Não há como negar o fato de que, de certa
maneira, a literatura refl ete a sociedade na qual ela se encontra
invariavelmente inserida. Por mais que alguns críticos e teóricos defendam a separação
radical entre literatura e sociedade, numa acirrada defesa da literariedade, há
um fator determinante nessa discussão: ambas, literatura e sociedade,
estabelecem entre si uma relação necessária de interdependência, na medida em
que se trata de conceitos marcados por um sentido de reciprocidade, sendo
possível equacionar – numa mesma obra – tanto a natureza essencialmente estética
da literatura quanto a conformação fundamentalmente política da sociedade.
Portanto, ligadas entre si de forma quase
inexorável, trazem consigo, contudo, todas as contradições que lhes são
inerentes, motivo pelo qual é relativamente comum percebermos a representação
artística, em determinadas obras literárias, das várias incertezas, dos
diversos equívocos e das múltiplas contradições do próprio tecido social. Por
isso, de uma noção verdadeiramente mítica, a arte passou a ser entendida como
uma manifestação autenticamente cultural, sujeita a todas as vicissitudes que
essa ideia possa acarretar: a arte como categoria idealizada da criatividade humana,
proveniente da inspiração inacessível aos homens comuns – como era entendida,
por exemplo, pelos românticos –, abandonou definitivamente essa condição
supra-humana para se colocar como criação da mais pura vontade do homem e da
sociedade.
No caso das chamadas sociedades emergentes,
como é o caso dos países africanos de expressão portuguesa, a literatura está
claramente – mas, não, exclusivamente, como nas sociedades de regime totalitário
– a serviço de uma determinada ideologia e, via de regra, como manifestação
prática de uma causa revolucionária, num claro processo de regeneração de uma
identidade cultural. De sociedades emergentes, surgem estéticas igualmente
emergentes, expressões comprometidas com a liberdade política da sociedade em
que se inserem: são manifestações artísticas em que a função social é, para além
de significativa, estrutural, o que aliás ocorre não apenas em boa parte do
continente africano, mas também numa parcela considerável da produção
latino-americana.
Evidentemente, trata-se de um posicionamento
relativamente tendencioso e, de certa forma, cronologicamente determinado, mas
que, de modo bastante consciencioso, revela a necessidade de enfatizar um
aspecto da literatura demasiadamente esquecido nestas épocas de globalização e
neoliberalismo a qualquer custo.
Fechar os olhos, portanto, à função social
da literatura – sobretudo nas sociedades que aqui denominamos emergentes –,
seja em virtude de um radical esteticismo, seja por uma injustificada intolerância,
é negar a própria essência da expressão estética, que na sua mais íntima
natureza é, antes de tudo, plural.
Estética desobrigada ou mensagem
comprometida, a literatura passa a ser, a um só tempo, razão e emoção,
contemplação ideal e prática social, não sendo possível simplesmente desconsiderar
sua propriedade funcional em razão de uma suposta prevalência de aspectos
estritamente imanentes.
Identidade Cultural e Consciência
Nacionalista
Pode-se dizer, sem risco de cometer alguma
impropriedade, que nos países africanos lusófonos a consciência nacionalista
nasce como resultado de um complexo processo de construção de uma identidade
cultural, representada, entre outras coisas, pela produção literária local.
Neste sentido, consciência nacionalista e identidade cultural são conceitos cambiáveis,
os quais não prescindem da concepção da arte como uma atividade socialmente
engajada.
O próprio desenvolvimento da literatura
africana lusófona sugere essa perspectiva crítica, na medida em que
nacionalismo e identidade tornam-se, a partir do século XX, conceitos
fundamentais na constituição de uma literatura independente e madura. Assim,
das primeiras manifestações ficcionais, ligadas ao imaginário popular e
folclórico das populações nativas da região, de caráter essencialmente oral, a
literatura lusófona do continente africano passa por um longo processo de maturação,
com uma produção – principalmente durante o século XIX, mas já avançando para o
XX – ainda essencialmente colonizada, representada por obras como as de José
Maria da Maia Ferreira (Espontaneidades de minha alma, 1849), José
Evaristo de Almeida (O escravo, 1856), Pinheiro Chagas (Os sertões d’Áfr
ica, 1880), Alfredo Troni (Ngá Muturi / Senhora Viúva, 1882), Pedro
Félix Machado (O Filho Adulterino, 1892), Hipólito Raposo (Ana, a Kalunga,
1926), Brito Camacho (Contos Selvagens, 1934) ou Henrique Galvão (O
Velo d’Oiro, 1936), narrativas caracterizadas, sobretudo, por uma perspectiva
eurocêntrica, por uma visão paternalista do negro, ao lado da mitificação do branco,
pela exploração do exótico.
Finalmente, essa literatura chega, ao longo
do século XX, à sua completa maturidade, com manifestações literárias realmente
nacionais e independentes, com obras como as de João Albasini (O livro da
dor, 1925), Antonio de Assis Júnior (O segredo da morta, 1929/1935),
Fausto Duarte (Auá, 1934), Baltasar Lopes (Chiquinho, 1947), José
Luandino Vieira (Luuanda, 1964), Francisco José Tenreiro (Coração em
Áfr ica, 1982) e muitas outras, todas elas podendo computar entre suas mais
relevantes características o anticolonialismo, a afirmação da identidade
cultural e a consciência nacionalista, ideário que se manifesta não apenas no
tratamento de temas e motivos retirados da história e do cotidiano das nações
representadas, mas também por uma nova ordem discursiva, que se traduz em
ruptura estética e criatividade linguística.
Não sem razão, a essência ideológica da
linguagem torna-se, neste como em outros contextos, elemento primordial da luta
pela transformação social e afirmação de uma identidade:
se a linguagem falasse
apenas à razão e constituísse assim uma ação sobre o entendimento dos homens,
então ela seria apenas informação ou representação. Mas, ao mesmo tempo em que
ela desprende o conjunto de relações necessárias da razão, também articula o
conjunto de relações desejadas da vontade. Neste sentido, o seu traço
fundamental é o argumentativo, o retórico, o ideológico, porque é este traço
que a apresenta não como marca de uma diferença entre o eu e o outro, entre
subjetividades cujo espaço de existência é a história de relações e
transformações sociais (VOGT,1989,p.75).
Analisando o desenvolvimento da maior parte
da produção literária lusófona no continente africano, não há como negar –
sobretudo quando pensamos na produção mais recente – nem sua procedência
anticolonialista, no plano social e histórico, nem sua vinculação com os
conceitos de nacionalismo e identidade, aqui destacados. Com efeito, se essa
literatura nasce vinculada a um projeto mais amplo de luta anticolonial, o que
lhe confere um caráter de literatura militante, utilizando-se do texto
literário em favor de uma causa político-social independentista, com o passar do
tempo e agora num plano fundamentalmente cultural, ela certamente se liga a um
desígnio identitário e nacionalista, resultando, primeiro, na afirmação da
identidade cultural local, com a valorização das singularidades nativas e
comunitárias da região; e, depois, na criação de uma consciência nacionalista,
incentivando a defesa de valores sociais humanitários.
Desse modo, ainda que o colonialismo tenha
servido, num primeiro momento, como elemento impulsionador da consciência e da
prática libertária que está na base da produção ficcional do período – como,
aliás, ensina Pires Laranjeira, para quem
o colonialismo serve-lhe
[à literatura africana] de propulsor da consciência, a qual se rebela contra
ele. No poder de confronto dessa rebelião literária (lingüística e ideológica),
no alcance da sua ruptura, na novidade da sua inovação, é que reside o estatuto
de liberdade, da sua libertação do jugo de outras literaturas (LARA NJEIRA ,
1985,p.10).
foi somente com a superação da condição
colonial que os países africanos lusófonos puderam, definitivamente, atingir
sua plena autonomia cultural:
a busca da autonomia
passa, portanto, e em suma, pela identificação dos locutores entre si e com um
projeto de independência literária face aos modelos coloniais da cultura.
Reivindicação anti-colonial, afirmação nacional, assunção étnica e folclórica,
uso do bilingüísmo textual ou de línguas não europeias (crioulo, forro, línguas
bantas), exposição africanística, exaltação rácica, exultação independentista,
todos os meios são aceitáveis pela comunidade de consciência não portuguesa,
desde que possam inserir o texto no processo de instauração de uma comunidade
africana (LARA NJEIRA , 2000,p.24).
Há, nesse sentido, um percurso não apenas
historiográfico, a alicerçar essa produção literária, mas sobretudo um percurso
ideológico, que vai justamente do
nativismo colonialista ao nacionalismo independentista, como a marcar –
idiossincraticamente – as etapas dessa mesma produção.
Assim, num primeiro momento da formação
literária africana lusófona, o que podemos chamar de Literatura Colonial
(1850-1900), a marca ideológica mais relevante é justamente o conceito de
nativismo, em que o elemento exótico e a perspectiva eurocêntrica – já
assinaladas anteriormente – sejam talvez seus principais componentes. Nas palavras
de Manuel Ferreira, nesse estágio da produção literária, “o escritor africano
encontra-se em estado quase absoluto de alienação, incapaz de se libertar dos
modelos europeus”(FERREIRA, s.d, p.33).
Já num segundo momento, emerge a chamada
Literatura Anti-Colonial (1900-1930), tendo como marca ideológica mais
relevante a ideia de negritude, em que a condição de escritores alienados é
relativamente ultrapassada, sendo substituída pela “percepção de um certo
regionalismo e o discurso acusa já alguma influência do meio social, geográfico
e cultural em que estão inseridos e a enunciação vive já os primeiros sinais de
sentimento nacional” (FERREIRA, s.d, p.33).
Já na etapa da Literatura Pré-Independente
(1930-1950), marcada ideologicamente pelo apego ao neo-realismo de inspiração
brasileira e portuguesa, o escritor liberta-se, finalmente, de sua condição de
alienado e a sua literatura “cria a sua razão de ser na expressão das raízes profundas
da realidade social nacional entendida dialecticamente”(FERREIRA, s.d, p.33).
Finalmente, é na Literatura Independente
(1950-2000) que o conceito de nacionalismo aflora em todo o seu vigor,
consolidando uma situação em que “é de todo eliminada a dependência dos
escritores africanos e restituída a sua plena individualidade” (FERREIRA, s.d,
p.33).
Há, nesse percurso, pelo menos duas ideias
que merecem ser destacadas, para melhor compreensão da dinâmica ideológica da
literatura africana de expressão lusófona: o imperativo moral e o imperativo
estético, que lhe são característicos.
O primeiro provém da tese defendida por
Sartre de que a literatura volta-se, entre outras coisas, para a defesa de
valores sociais da humanidade, associando-se, assim, à prática libertária, seja
ela relacionada ao autor, ao leitor ou à sociedade como um todo.
Neste sentido, a literatura – e esta é uma
consideração bastante apropriada à literatura africana lusófona – traduz-se
numa tomada de posição daqueles que com ela estejam diretamente envolvidos.
O segundo, das ideias expostas por Marcuse,
segundo as quais a arte se manifestaria em meio às relações sociais, possuindo
um potencial político, embora, ao contrário da ortodoxia marxista, esse
potencial esteja nela mesma, precisamente em sua dimensão estética,
concorrendo, dessa forma, para a defesa da liberdade.
Em ambas as teorias, a arte – exatamente
como tem ocorrido nos melhores exemplos da produção lusófona em África –
estaria visceralmente relacionada à ideia de liberdade, que, se para Sartre
revela-se como um imperativo moral, para Marcuse, manifesta-se como um
imperativo estético.
CONCLUSÃO
Evidentemente, a questão do nacionalismo e
da identidade em literatura é muito mais complexa do que este ensaio – cujos
propósitos não vão além de uma breve introdução ao assunto – pode sugerir. São,
antes de mais nada, conceitos que estão em contínua transformação, como aliás a
própria produção literária a que estão aqui associados, a qual, nas palavras de
Pires Laranjeira, depois de um claro pendor militante e engajado,
derivou para a tendência
de contestar, fi nalmente, a tradição realista, engagée, documentalista
e ideo-política, sem que, todavia, isso signifi casse o abandono desse fi lão
que a própria realidade histórica e política e a condição social e cultural do
escritor continuavam a prescrever (...) a temática e os espaços social e
cultural patenteados nos textos passaram a alargar-se consideravelmente, apresentando
desde o amor e a angústia existencial, às vivências do poder estabelecido (LARA
NJEIRA , 1987,p.83).
Isso, evidentemente, sem se esquecer dos
experimentalismos formais e do trabalho minucioso que se tem feito com a
linguagem, a qual passa a representar, na produção mais recente, uma etapa de
superação de seu viés marcadamente ideológico. Como afirmou Russel Hamilton,
desde os seus primeiros
momentos, a literatura aculturada tem sido uma procura de formas apropriadas
para novos conteúdos e para uma nova consciência. Nesta procura, sempre difícil
e às vezes agonizante, a desconstrução e a recriação da linguagem caracterizam
algumas das obras mais representativas da África lusófona (HAMILTON,1981,p.29).
Esses
são aspectos que não apenas elevam essa produção à condição de uma literatura
de primeira grandeza, mas reforçam ainda mais sua vocação a uma perspectiva
artística que não prescinde das noções de identidade e nacionalismo.
Referências
FERREIRA,
Manuel. O Discurso no Percurso Africano I (Contribuição
para uma Estética Africana).Lisboa: Plátano, s.d.
HAMILTON,
Russel G. Literatura Africana. Literatura
Necessária: Angola. Lisboa: Edições 70,1981, p. 29.
LARANJEIRA,
Pires. Literatura Calibanesca. Porto,
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Língua e Literatura nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. In:
GALANO, Ana Maria et al. (orgs) Lingua Mar: Criações
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GALANO,
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____.
As Literaturas Africanas de Língua Portuguesa - Identidade e Autonomia Scripta,
Belo Horizonte, Vol. 3, no.
6, p. 237-244, 2000.
MARCUSE,
Herbert. A Dimensão Estética.
São Paulo: Martins Fontes, 1981.
SARTRE,
Jean-Paul. Que é Literatura? São
Paulo: Ática, 1989.
VOGT,
Carlos. Linguagem, Pragmática e Ideologia.
São Paulo: Hucitec, 1989.
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