quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

LITERATURAS AFRICANAS LUSÓFONAS - UMA INTRODUÇÃO


Não há como negar o fato de que, de certa maneira, a literatura refl ete a sociedade na qual ela se encontra invariavelmente inserida. Por mais que alguns críticos e teóricos defendam a separação radical entre literatura e sociedade, numa acirrada defesa da literariedade, há um fator determinante nessa discussão: ambas, literatura e sociedade, estabelecem entre si uma relação necessária de interdependência, na medida em que se trata de conceitos marcados por um sentido de reciprocidade, sendo possível equacionar – numa mesma obra – tanto a natureza essencialmente estética da literatura quanto a conformação fundamentalmente política da sociedade.
 
Portanto, ligadas entre si de forma quase inexorável, trazem consigo, contudo, todas as contradições que lhes são inerentes, motivo pelo qual é relativamente comum percebermos a representação artística, em determinadas obras literárias, das várias incertezas, dos diversos equívocos e das múltiplas contradições do próprio tecido social. Por isso, de uma noção verdadeiramente mítica, a arte passou a ser entendida como uma manifestação autenticamente cultural, sujeita a todas as vicissitudes que essa ideia possa acarretar: a arte como categoria idealizada da criatividade humana, proveniente da inspiração inacessível aos homens comuns – como era entendida, por exemplo, pelos românticos –, abandonou definitivamente essa condição supra-humana para se colocar como criação da mais pura vontade do homem e da sociedade.
 
No caso das chamadas sociedades emergentes, como é o caso dos países africanos de expressão portuguesa, a literatura está claramente – mas, não, exclusivamente, como nas sociedades de regime totalitário – a serviço de uma determinada ideologia e, via de regra, como manifestação prática de uma causa revolucionária, num claro processo de regeneração de uma identidade cultural. De sociedades emergentes, surgem estéticas igualmente emergentes, expressões comprometidas com a liberdade política da sociedade em que se inserem: são manifestações artísticas em que a função social é, para além de significativa, estrutural, o que aliás ocorre não apenas em boa parte do continente africano, mas também numa parcela considerável da produção latino-americana.
 
Evidentemente, trata-se de um posicionamento relativamente tendencioso e, de certa forma, cronologicamente determinado, mas que, de modo bastante consciencioso, revela a necessidade de enfatizar um aspecto da literatura demasiadamente esquecido nestas épocas de globalização e neoliberalismo a qualquer custo.
 
Fechar os olhos, portanto, à função social da literatura – sobretudo nas sociedades que aqui denominamos emergentes –, seja em virtude de um radical esteticismo, seja por uma injustificada intolerância, é negar a própria essência da expressão estética, que na sua mais íntima natureza é, antes de tudo, plural.
 
Estética desobrigada ou mensagem comprometida, a literatura passa a ser, a um só tempo, razão e emoção, contemplação ideal e prática social, não sendo possível simplesmente desconsiderar sua propriedade funcional em razão de uma suposta prevalência de aspectos estritamente imanentes.
 
Identidade Cultural e Consciência Nacionalista
 
Pode-se dizer, sem risco de cometer alguma impropriedade, que nos países africanos lusófonos a consciência nacionalista nasce como resultado de um complexo processo de construção de uma identidade cultural, representada, entre outras coisas, pela produção literária local. Neste sentido, consciência nacionalista e identidade cultural são conceitos cambiáveis, os quais não prescindem da concepção da arte como uma atividade socialmente engajada.
 
O próprio desenvolvimento da literatura africana lusófona sugere essa perspectiva crítica, na medida em que nacionalismo e identidade tornam-se, a partir do século XX, conceitos fundamentais na constituição de uma literatura independente e madura. Assim, das primeiras manifestações ficcionais, ligadas ao imaginário popular e folclórico das populações nativas da região, de caráter essencialmente oral, a literatura lusófona do continente africano passa por um longo processo de maturação, com uma produção – principalmente durante o século XIX, mas já avançando para o XX – ainda essencialmente colonizada, representada por obras como as de José Maria da Maia Ferreira (Espontaneidades de minha alma, 1849), José Evaristo de Almeida (O escravo, 1856), Pinheiro Chagas (Os sertões d’Áfr ica, 1880), Alfredo Troni (Ngá Muturi / Senhora Viúva, 1882), Pedro Félix Machado (O Filho Adulterino, 1892), Hipólito Raposo (Ana, a Kalunga, 1926), Brito Camacho (Contos Selvagens, 1934) ou Henrique Galvão (O Velo d’Oiro, 1936), narrativas caracterizadas, sobretudo, por uma perspectiva eurocêntrica, por uma visão paternalista do negro, ao lado da mitificação do branco, pela exploração do exótico.
 
Finalmente, essa literatura chega, ao longo do século XX, à sua completa maturidade, com manifestações literárias realmente nacionais e independentes, com obras como as de João Albasini (O livro da dor, 1925), Antonio de Assis Júnior (O segredo da morta, 1929/1935), Fausto Duarte (Auá, 1934), Baltasar Lopes (Chiquinho, 1947), José Luandino Vieira (Luuanda, 1964), Francisco José Tenreiro (Coração em Áfr ica, 1982) e muitas outras, todas elas podendo computar entre suas mais relevantes características o anticolonialismo, a afirmação da identidade cultural e a consciência nacionalista, ideário que se manifesta não apenas no tratamento de temas e motivos retirados da história e do cotidiano das nações representadas, mas também por uma nova ordem discursiva, que se traduz em ruptura estética e criatividade linguística.
Não sem razão, a essência ideológica da linguagem torna-se, neste como em outros contextos, elemento primordial da luta pela transformação social e afirmação de uma identidade:
 
se a linguagem falasse apenas à razão e constituísse assim uma ação sobre o entendimento dos homens, então ela seria apenas informação ou representação. Mas, ao mesmo tempo em que ela desprende o conjunto de relações necessárias da razão, também articula o conjunto de relações desejadas da vontade. Neste sentido, o seu traço fundamental é o argumentativo, o retórico, o ideológico, porque é este traço que a apresenta não como marca de uma diferença entre o eu e o outro, entre subjetividades cujo espaço de existência é a história de relações e transformações sociais (VOGT,1989,p.75).
 
 
Analisando o desenvolvimento da maior parte da produção literária lusófona no continente africano, não há como negar – sobretudo quando pensamos na produção mais recente – nem sua procedência anticolonialista, no plano social e histórico, nem sua vinculação com os conceitos de nacionalismo e identidade, aqui destacados. Com efeito, se essa literatura nasce vinculada a um projeto mais amplo de luta anticolonial, o que lhe confere um caráter de literatura militante, utilizando-se do texto literário em favor de uma causa político-social independentista, com o passar do tempo e agora num plano fundamentalmente cultural, ela certamente se liga a um desígnio identitário e nacionalista, resultando, primeiro, na afirmação da identidade cultural local, com a valorização das singularidades nativas e comunitárias da região; e, depois, na criação de uma consciência nacionalista, incentivando a defesa de valores sociais humanitários.
 
Desse modo, ainda que o colonialismo tenha servido, num primeiro momento, como elemento impulsionador da consciência e da prática libertária que está na base da produção ficcional do período – como, aliás, ensina Pires Laranjeira, para quem
 
o colonialismo serve-lhe [à literatura africana] de propulsor da consciência, a qual se rebela contra ele. No poder de confronto dessa rebelião literária (lingüística e ideológica), no alcance da sua ruptura, na novidade da sua inovação, é que reside o estatuto de liberdade, da sua libertação do jugo de outras literaturas (LARA NJEIRA , 1985,p.10).
 
foi somente com a superação da condição colonial que os países africanos lusófonos puderam, definitivamente, atingir sua plena autonomia cultural:
 
a busca da autonomia passa, portanto, e em suma, pela identificação dos locutores entre si e com um projeto de independência literária face aos modelos coloniais da cultura. Reivindicação anti-colonial, afirmação nacional, assunção étnica e folclórica, uso do bilingüísmo textual ou de línguas não europeias (crioulo, forro, línguas bantas), exposição africanística, exaltação rácica, exultação independentista, todos os meios são aceitáveis pela comunidade de consciência não portuguesa, desde que possam inserir o texto no processo de instauração de uma comunidade africana (LARA NJEIRA , 2000,p.24).
 
Há, nesse sentido, um percurso não apenas historiográfico, a alicerçar essa produção literária, mas sobretudo um percurso ideológico, que vai  justamente do nativismo colonialista ao nacionalismo independentista, como a marcar – idiossincraticamente – as etapas dessa mesma produção.
 
Assim, num primeiro momento da formação literária africana lusófona, o que podemos chamar de Literatura Colonial (1850-1900), a marca ideológica mais relevante é justamente o conceito de nativismo, em que o elemento exótico e a perspectiva eurocêntrica – já assinaladas anteriormente – sejam talvez seus principais componentes. Nas palavras de Manuel Ferreira, nesse estágio da produção literária, “o escritor africano encontra-se em estado quase absoluto de alienação, incapaz de se libertar dos modelos europeus”(FERREIRA, s.d, p.33).
 
Já num segundo momento, emerge a chamada Literatura Anti-Colonial (1900-1930), tendo como marca ideológica mais relevante a ideia de negritude, em que a condição de escritores alienados é relativamente ultrapassada, sendo substituída pela “percepção de um certo regionalismo e o discurso acusa já alguma influência do meio social, geográfico e cultural em que estão inseridos e a enunciação vive já os primeiros sinais de sentimento nacional” (FERREIRA, s.d, p.33).
 
Já na etapa da Literatura Pré-Independente (1930-1950), marcada ideologicamente pelo apego ao neo-realismo de inspiração brasileira e portuguesa, o escritor liberta-se, finalmente, de sua condição de alienado e a sua literatura “cria a sua razão de ser na expressão das raízes profundas da realidade social nacional entendida dialecticamente”(FERREIRA, s.d, p.33).
 
Finalmente, é na Literatura Independente (1950-2000) que o conceito de nacionalismo aflora em todo o seu vigor, consolidando uma situação em que “é de todo eliminada a dependência dos escritores africanos e restituída a sua plena individualidade” (FERREIRA, s.d, p.33).
 
Há, nesse percurso, pelo menos duas ideias que merecem ser destacadas, para melhor compreensão da dinâmica ideológica da literatura africana de expressão lusófona: o imperativo moral e o imperativo estético, que lhe são característicos.
 
O primeiro provém da tese defendida por Sartre de que a literatura volta-se, entre outras coisas, para a defesa de valores sociais da humanidade, associando-se, assim, à prática libertária, seja ela relacionada ao autor, ao leitor ou à sociedade como um todo.
 
Neste sentido, a literatura – e esta é uma consideração bastante apropriada à literatura africana lusófona – traduz-se numa tomada de posição daqueles que com ela estejam diretamente envolvidos.
 
O segundo, das ideias expostas por Marcuse, segundo as quais a arte se manifestaria em meio às relações sociais, possuindo um potencial político, embora, ao contrário da ortodoxia marxista, esse potencial esteja nela mesma, precisamente em sua dimensão estética, concorrendo, dessa forma, para a defesa da liberdade.
 
Em ambas as teorias, a arte – exatamente como tem ocorrido nos melhores exemplos da produção lusófona em África – estaria visceralmente relacionada à ideia de liberdade, que, se para Sartre revela-se como um imperativo moral, para Marcuse, manifesta-se como um imperativo estético.
 
CONCLUSÃO
Evidentemente, a questão do nacionalismo e da identidade em literatura é muito mais complexa do que este ensaio – cujos propósitos não vão além de uma breve introdução ao assunto – pode sugerir. São, antes de mais nada, conceitos que estão em contínua transformação, como aliás a própria produção literária a que estão aqui associados, a qual, nas palavras de Pires Laranjeira, depois de um claro pendor militante e engajado,
 
derivou para a tendência de contestar, fi nalmente, a tradição realista, engagée, documentalista e ideo-política, sem que, todavia, isso signifi casse o abandono desse fi lão que a própria realidade histórica e política e a condição social e cultural do escritor continuavam a prescrever (...) a temática e os espaços social e cultural patenteados nos textos passaram a alargar-se consideravelmente, apresentando desde o amor e a angústia existencial, às vivências do poder estabelecido (LARA NJEIRA , 1987,p.83).
 
Isso, evidentemente, sem se esquecer dos experimentalismos formais e do trabalho minucioso que se tem feito com a linguagem, a qual passa a representar, na produção mais recente, uma etapa de superação de seu viés marcadamente ideológico. Como afirmou Russel Hamilton,
 
desde os seus primeiros momentos, a literatura aculturada tem sido uma procura de formas apropriadas para novos conteúdos e para uma nova consciência. Nesta procura, sempre difícil e às vezes agonizante, a desconstrução e a recriação da linguagem caracterizam algumas das obras mais representativas da África lusófona (HAMILTON,1981,p.29).
 
Esses são aspectos que não apenas elevam essa produção à condição de uma literatura de primeira grandeza, mas reforçam ainda mais sua vocação a uma perspectiva artística que não prescinde das noções de identidade e nacionalismo.
 
 
Referências
FERREIRA, Manuel. O Discurso no Percurso Africano I (Contribuição para uma Estética Africana).Lisboa: Plátano, s.d.
HAMILTON, Russel G. Literatura Africana. Literatura Necessária: Angola. Lisboa: Edições 70,1981, p. 29.
LARANJEIRA, Pires. Literatura Calibanesca. Porto, Afrontamento, 1985.
____. Língua e Literatura nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. In: GALANO, Ana Maria et al. (orgs) Lingua Mar: Criações e Confrontos em Português. Rio de Janeiro: Funarte, 1997, p. 83-99.
GALANO, Ana Maria et al (orgs.). Língua Mar: Criações e Confrontos em Português. Rio de Janeiro: Funarte, 1997, p. 83-99.
____. As Literaturas Africanas de Língua Portuguesa - Identidade e Autonomia Scripta, Belo Horizonte, Vol. 3, no. 6, p. 237-244, 2000.
MARCUSE, Herbert. A Dimensão Estética. São Paulo: Martins Fontes, 1981.
SARTRE, Jean-Paul. Que é Literatura? São Paulo: Ática, 1989.
VOGT, Carlos. Linguagem, Pragmática e Ideologia. São Paulo: Hucitec, 1989.

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