23 de Janeiro de 2013 • 07h04 • atualizado às 08h51
Bose Yacu morreu pouco depois da visita da BBC à sua tribo, no interior
da Amazônia boliviana
Foto: BBC
Em uma voz firme e profunda, Bose Yacu entoa os cânticos que ela
aprendeu com seu pai na região boliviana da floresta Amazônica, há 50 anos.
"Meu pai, Papa Yacu, cantava esse quando ele via trilhas de porco e saía
para caçar... já esse outro, quando colhia amêndoas... e esse outro era para
mostrar que vínhamos em paz, quando visitávamos alguém", explica Bose, ao
fim de cada canção.
Sentada do lado de fora de sua casa feita de madeira, Bose - uma mulher
magra com longos cabelos negros presos em um rabo de cavalo - era a mais velha
dos pacahuaras e a única que ainda mantinha algumas das tradições da sua tribo,
como usar uma franja e um pequeno pedaço de pau em seu nariz, com uma pena
vermelha de cada lado.
Quando eu a visitei em seu vilarejo, em setembro, senti que suas
histórias e cânticos escreveriam o último capítulo da história de sua tribo.
Bose morreu recentemente, deixando cinco irmãs: as últimas pacahuaras do mundo.
A notícia de sua morte não foi manchete em nenhum jornal, mas foi uma imensa
perda, já que as pacahuaras não têm para quem transmitir seus conhecimentos.
'Poucos sobreviventes'
Dois séculos atrás, os pacahuaras eram um dos principais grupos indígenas na Amazônia peruana. No final do século 18, os pacahuaras "ocupavam um vasto território", mas "dois séculos depois, dá para contar na mão o número de pacahuaras que restaram", de acordo com o antropólogo francês Philippe Erikson, no prefácio de seu livro The Pacahuaras: The Impossible Reduction (em tradução livre - Os Pacahuaras: a redução impossível).
Dois séculos atrás, os pacahuaras eram um dos principais grupos indígenas na Amazônia peruana. No final do século 18, os pacahuaras "ocupavam um vasto território", mas "dois séculos depois, dá para contar na mão o número de pacahuaras que restaram", de acordo com o antropólogo francês Philippe Erikson, no prefácio de seu livro The Pacahuaras: The Impossible Reduction (em tradução livre - Os Pacahuaras: a redução impossível).
Os cinco sobreviventes dos pacahuaras vivem nas cercanias de Alto Ivon,
um remoto vilarejo no nordeste da Bolívia, para onde eles foram relocados em
1969. Missionários americanos ajudaram a transferi-los, para escapar de
problemas que atingiam a tribo.
Era um período em que havia uma febre de produção de borracha em todo o
mundo - e isso estava causando graves problemas para as tribos indígenas na
Amazônia, alvo da exploração do produto.
Os pacahuaras dizem ter sofrido terrivelmente nas mãos de seringueiros
brasileiros. De toda a comunidade, acredita-se que apenas a família de Bose
sobreviveu: "Lutamos muito. Meu pai foi atingido na cabeça e jogado no
rio, mas ele conseguiu sobreviver e voltou para casa", conta ela.
Como restante da tribo, Bose não sabe sua idade exata, mas lembra que
chegou quando era adolescente em Alto Ivon. Era a terra dos chacobos, uma tribo
com raízes e língua similares. Hoje, cerca de 500 pessoas falam chacobo, que
está na categoria "definitivamente em perigo", segundo a Unesco.
Já a língua pacahuara foi classificada como "em perigo
crítico", apenas um estágio antes de "extinto".
Trilha com machetes
Ambas as tribos falam línguas da família linguística Panoan. Os missionários do Instituto Summer de Linguística ajudou os pacahuaras a se mudarem a 200 quilômetros ao sul da Amazônia, para que eles pudessem ser assimilados pelos chacobos.
Ambas as tribos falam línguas da família linguística Panoan. Os missionários do Instituto Summer de Linguística ajudou os pacahuaras a se mudarem a 200 quilômetros ao sul da Amazônia, para que eles pudessem ser assimilados pelos chacobos.
De acordo com o antropólogo boliviano Wigberto Rivero, "era a única
opção para salvá-los, já que, por causa do número reduzido de membros, o
crescimento biológico da tribo era impossível".
Os chacobos aceitaram a proposta dos missionários e alguns inclusive
ajudaram na transição.
"Nós sabíamos que eles estavam enfrentando muitos problemas.
Fizemos trilhas na floresta e espalhamos machetes e machados", conta
Alberto Ortiz Alvarez, líder chacobo, que é o presidente o Conselho Indígena da
Amazônia boliviana.
Ortiz lembra que quando viram que os objetos haviam sumido, sabia que a
tribo estava perto e que em pouco tempo os encontraria.
Uma vez que os pacahuaras chegaram, foram recebidos com uma festa, em
que receberam bananas e mandioca. O grupo era liderado pelo pai de Bose, que
tinha duas esposas e seis filhos.
'Nossa cultura ainda está viva'
Mais de 40 anos após a migração, com o patriarca e suas esposas mortos, restaram seus seis filhos - sendo que quatro deles se casaram com membros da tribo vizinha e adotaram sua língua e seus costumes.
Mais de 40 anos após a migração, com o patriarca e suas esposas mortos, restaram seus seis filhos - sendo que quatro deles se casaram com membros da tribo vizinha e adotaram sua língua e seus costumes.
Maro é o mais novo dos pacahuaras. Ele chegou em Alto Ivon quando ainda
era um bebê.
Ele já não fala mais sua língua nativa e diz que seus filhos não vão
aprendê-la.
"Falar chacobo é mais direto. Eles não conseguem falar como Bose
falava", diz Maro, que é casado com uma mulher chacobo.
De acordo com Rivero, "é um processo de assimilação
irreversível" que começou com a língua e, em muitos casos, como o de Maro,
se tornou uma assimilação social e cultural.
Cachorro de rua
Bose era a mais velha e a única que se casou com um membro da tribo: Buca, que era cerca de 10 anos mais novo que ela.
Bose era a mais velha e a única que se casou com um membro da tribo: Buca, que era cerca de 10 anos mais novo que ela.
"Quando eu era nova, não tinha um marido. Nessa época, meu pai se
casou também com a irmã da minha mãe. E meu marido era filho da sua segunda
mulher. Então, na verdade, meu marido e eu éramos meio-irmãos", disse
Bose.
O casal não quis falar sobre o porquê de não terem filhos. E mesmo
sabendo que isso significaria o fim da sua língua, não era algo que parecia
preocupá-los.
"Não estou triste. Nossa cultura ainda está viva. Quando a gente
morrer, ela vai morrer também", disse Buca, quando o visitei em setembro.
Mas após a morte de sua esposa, ele está vagando na floresta,
"sozinho, como um cachorro de rua", contou Pae Dávalos, um chacobo.
A morte de Bose deixou Buca transtornado. E deve também deve ter
entristecido o professor de chacobo Here Ortiz Soria, que estava tentando
arrecadar fundos para registrar a história e a língua dos pacahuaras.
Soria, cuja filha é casada com a segunda geração pacahuara, queria
entrevistar Bose e reunir palavras na língua da tribo para ensinar as gerações
mais novas.
Mas a anciã pacahuara morreu antes disso, levando consigo os últimos
capítulos da língua e da história da tribo.
Triste exemplo do desastre cultural que nosso etnocentrismo causou.
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