terça-feira, 19 de abril de 2011

Os Sofistas e a oposição entre fysis (phýsis) e nomos (nómos)

Os filósofos gregos do período considerado socrático ou antropológico (séculos V a III a.C.) produziram as matrizes conceituais da filosofia do direito na cultura ocidental. O grupo dos sofistas (Protágoras, Górgias, Crítias, Antifonte), a metafísica idealista de Platão e o realismo de Aristóteles construíram os primeiros alicerces teóricos da discussão jusfilosófica.
O primeiro momento tem início com os sofistas, mestres de retórica, que lançaram os debates em torno da lei, da justiça e da natureza. Atacados por Platão e Aristóteles, a tradição passou a considerá-los falsos sábios, ilusionistas do saber, mercenários e interesseiros. Um lento trabalho de reavaliação ocorrido nos últimos dois séculos tem reconhecido os méritos dos sofistas, o verdadeiro papel que desempenharam na construção da democracia ateniense.

Os Sofistas
A palavra sofista deriva do grego sophistés, com o sentido original de habilidade específica em algum setor, ou homem que detém um determinado saber (do grego sóphos, «saber, sabedoria»). De início, vários profissionais eram «sofistas»: carpinteiros, charreteiros, oleiros e poetas. Quando o domínio de uma técnica era reconhecido por todos, o profissional era dito «sofista», desde as atividades artesanais aos trabalhos de criação artística. O termo era, portanto, um elogio.
A partir do século V a.C. surgiram os professores itinerantes de gramática, eloquência e retórica, que ofereciam seus conhecimentos para educar os jovens na prática do debate público. A educação tradicional era insuficiente para preparar o cidadão para a discussão política. Era preciso o domínio da linguagem e de flexibilidade e agudeza dialética para derrotar os adversários.
O êxito desses tutores foi extraordinário. Passaram a ser então designados de sofistas, sábios capazes de elaborar discursos fascinantes, com intenso poder de persuasão. Por outro lado, foram recebidos com hostilidade e desconfiança pelos partidários do antigo regime aristocrático e conservador. Quando Atenas se envolveu na guerra do Peloponeso, os sofistas foram responsabilizados pela decadência moral e política da cidade. O julgamento de Sócrates ocorreu neste clima de acusação e ressentimento.
Nos séculos IV e III a.C., pensadores como Platão, Xenofonte e Aristóteles, dramaturgos como Aristófanes em sua comédia As Nuvens, todos passaram a atacar sistematicamente os sofistas. O termo adquire um sentido pejorativo e desfavorável, marcando para sempre o vocabulário filosófico: argumento sofístico ou sofisma é o mesmo que falso argumento ou argumento intencionalmente falacioso; de sofista deriva sofisticado, no sentido depreciativo de algo muito elaborado ou excessivamente ornado, embora vazio de conteúdo.

Características gerais dos sofistas
A primeira dificuldade em se falar dos sofistas em geral decorre do fato de não constituírem uma escola filosófica como os pitagóricos e os platônicos. Como veremos adiante, os sofistas seguem direções variadas e até mesmo opostas. Agrupá-los pelo que têm em comum, serve apenas para diferenciá-los dos filósofos anteriores, notadamente os pré-socráticos e suas preocupações com o mundo físico.
Os sofistas marcam a passagem do período cosmotológico para o período antropológico, centrado em questões linguísticas, gramaticais, epistemológicas e jurídicas. De acordo com Guillermo Fraile )História de la Filosofia, Volume I, páginas 226/227), as características gerais dos sofistas são as seguintes:
a) Relativismo – Tudo que existe é impermanente, mutável e plural. Tudo muda, as essências das coisas são variáveis e contingentes.
b) Subjetivismo – Não existe verdade objetiva. As coisas são como aparecem a cada um. «O homem é a medida de todas as coisas.» (Protágoras)
c) Ceticismo – Não podemos conhecer coisa alguma com certeza absoluta. O conhecimento humano é limitado às aparências.
d) Indiferentismo moral e religioso – Se as coisas são como parecem a cada um, não há nada que seja bom ou mau em si mesmo, pois não existe uma norma transcendente de conduta. Em matéria de crença religiosa, devemos ser indiferentes, isto é, tanto faz acatar estes ou aqueles deuses. Alguns sofistas foram acusados, em conseqüência desta postura, de ateísmo.
e) Convencionalismo jurídico – Acentuam a contraposição entre lei e natureza (nómos –phýsis). Não existem leis imutáveis, já que não possuem qualquer fundamento na natureza e nem foram estabelecida pelos deuses, mas são simples convenções dos homens para poderem viver em sociedade.
f) Oportunismo político – Se não há nada justo e injusto em si mesmo, todos os meios são bons para se atingir os fins que cada um se propõe. O bom resultado justifica os meios empregados para conseguí-lo. A eloquência é a arte da persuasão e pode ser empregada indistintamente para o bem e para o mal.
g) Utilitarismo – Mais do que servir ao Estado, os sofistas ensinavam a empregar as habilidades retóricas a serviço dos interesses particulares, manipulando, se necessário, os sentimentos e as paixões.
h) Frivolidade intelectual – Mais do que autênticos filósofos, os sofistas eram prestidigitadores intelectuais que encobriam o vazio do seu pensamento com uma «pirotecnia verbal» fascinante. Tinham uma confiança ilimitada no poder da palavra, na capacidade do discurso.
i) Venalidade – Ao cobrarem por suas lições, os sofistas sofreram a crítica mais severa por parte dos atenienses, que não aceitavam fazer da atividade intelectual uma forma de negócio. Platão qualificava os sofistas de «mercadores ambulantes de guloseimas da alma». (Protágoras, 313c)
j) Humanismo – Ao centrar seus interesses nos problemas humanos, os sofistas podem ser comparados aos humanistas da renascença (século XV), preocupados com os problemas práticos do homem político, da natureza humana inserida na pólis e na vida do Estado.
O que se percebe nesta caracterização? Apenas o último item é positivo, enquanto todo o restante é condenável.

Condenação e reabilitação dos sofistas
No diálogo Sofista, Platão mostra Sócrates a debater diversas definições para os sofistas:
• caçador interesseiro de jovens ricos (223b);
• comerciante do ensino e das virtudes (224d);
• pequeno comerciante de mercadorias de primeira ou de segunda-mão (224e);
• mercenário da arte da erística, da contradição, do combate (226a);
• arte do simulacro, da ilusão (236c).
A erística é a arte de batalhar com palavras (logomaquia, para os gregos), ou seja, a arte de vencer nas discussões. Como se vê, Platão reduz o sofista á condição de comerciante do saber, mercenário do espírito, mero ilusionista sem conteúdo.
Na peça As Nuvens, Aristófanes diz que o sofista possui a habilidade de pronunciar um discurso justo e um discurso injusto sobre o mesmo tema. No caso de um homicídio, por exemplo, o sofista poderia argumentar com igual brilhantismo como advogado de defesa e como promotor de acusação.
Outro discípulo de Sócrates e contemporâneo de Platão, Xenofonte escreve nos Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, que os sofistas eram comerciantes da sabedoria, e como tais comparáveis à venalidade da prostituição.
E Aristóteles, na obra Argumentos Sofísticos, acusa os sofistas de «traficantes de uma sabedoria aparente, não real». (Arg. Sof., I, 165a). Como se não bastasse, ainda o mesmo Platão em diálogos como Ménon e Crátilo, dirige aos sofistas as mesmas denúncias de vendedores caros de uma ciência não real, mas aparente.
Não se pode esquecer a origem aristocrática de Platão a Aristóteles. Este último era filho de um médico da corte de Felipe da Macedônia, tendo sob seu encargo a educação do filho do rei, o jovem Alexandre, posteriormente Alexandre Magno (O Grande). Acostumados a frequentar palácios e imersos numa cultura que despreza o trabalho manual, enxergaram apenas os aspectos venais e as habilidades verbais dos sofistas, como se fossem a ameaça contra o verdadeiro saber.
Podemos reconhecer aos sofistas gregos os seguintes méritos:
a. Iniciaram uma reflexão sistemática sobre os problemas humanos, ao invés das questões naturais e cosmológicas dos filósofos pré-socráticos;
b. Aperfeiçoaram a dialética e a discussão crítica sobre as limitações e o valor do conhecimento;
c. Destacaram o caráter diverso e relativo das leis, próprias de cada cidade, enfatizando a contraposição entre natureza (phýsis), lei (nómos) e pacto (thésis), em que se baseiam o direito natural e o direito positivo. Ver a respeito o fragmento «A Verdade» de Antifonte;
d. Defenderam o conceito de natureza comum a todos os homens, o que serviu para fundamentar a lei de modo mais igualitário e universalista;
e. Desenvolveram princípios educativos para o ensino de gramática e retórica; Protágoras considerava-se um mestre da sabedoria e da virtude política (politiké areté), formando os jovens para o debate público e o governo do Estado. O ideal sofístico de uma natureza humana que pode ser educada e constantemente aperfeiçoada deu início à ciência pedagógica e à formação humanista na antiguidade.
Não é pouca coisa, mas não se iguala, sem dúvida alguma, às contribuições de Sócrates, Platão e Aristóteles. Ao menos seja reconhecida a influência positiva dos sofistas no debate jusfilosófico: a defesa do naturalismo permite assentar o direito numa perspectiva mais cosmopolita e equânime.

Protágoras (490-420a.C.) e Górgias (485-380a.C.)
O mais eminente dos sofistas foi Protágoras, tratado com respeito por Platão no diálogo que leva seu nome. Atribui-se o primeiro estudo sistemático de gramática, distinguindo os gêneros masculino, feminino e neutro e as partes da oração em substantivo, adjetivo e verbo. Em retórica distinguiu as partes componentes do discurso: preâmbulo, disposição, exposição, discussão, refutação e conclusão. Ensinou durante quarenta anos e tornou-se muito rico, pois cobrava caro por suas lições.
Protágoras defendia o relativismo do conhecimento, através do famoso dito «O homem é a medida de todas as coisas». Se não há uma razão ou um bem imutável, se todas as percepções são subjetivas, a habilidade retórica deve prevalecer para que meu argumento seja vencedor. A posição relativista conduz ao dilema da verdade e do discurso verdadeiro: vence a discussão quem tem razão ou tem razão quem vence a discussão?
Górgias é famoso por seu niilismo exacerbado. Levando as teses relativistas ao extremo, nega a possibilidade de qualquer conhecimento, seja do espaço e do tempo, das coisas particulares ou mesmo do ser em geral. Conserva-se de Górgias os três princípios: a) Nada existe (o ser e o não-ser não existem); b) Se algo existisse, não poderia ser conhecido, ou seja, seria incompreensível para nós; c) Se algo existe e pode ser conhecido, não pode o conhecimento ser comunicado a alguém (este conhecimento seria totalmente subjetivo).
É possível que as teses de Górgias fossem um exercício de retórica, para provocar os oponentes ou exercitar os alunos. Um jogo dialético para questionar as afirmações dogmáticas ou pretensamente absolutas de muitos filósofos. O fato é que ambos, Protágoras e Górgias, compartilham das mesmas teses céticas e reduzem o conhecimento ao jogo das aparências.
Outros sofistas de destaque foram Hípias, Pródicos, Cálicles, Crítias e Antifonte. Chegaram até nós alguns fragmentos de suas obras e referências às suas façanhas de oratória.
No que interessa à filosofia do direito, a contribuição dos sofistas foi questionar os valores éticos e jurídicos da pólis ateniense, pondo em causa a forma de governo, combatendo a injustiça da economia escravista, embasando o direito natural a partir da ordem humana e não divina. Os sofistas forneceram os argumentos contra as distorções do direito positivo vigente nas diversas pólis gregas. O indivíduo é o criador da cidade e vale sempre mais que a coisa criada: sua consciência, sua lei interior é mais valiosa que o decreto do democrata Péricles ou do tirano de Tebas.
A crítica dos sofistas trouxe problemas. Com relação à escravidão, diziam: os deuses nos fizeram livres e a ninguém fez escravo. Ironizavam, na prática, a justiça da cidade, ensinando a quem quisesse pagar como vencer uma causa, independentemente da tese a ser defendida. Às leis decretadas pelo poder governante (nómos), opunham o conceito de uma natureza ou princípio natural (phýsis) presente no cosmo e no homem, assinalando, desse modo, a diferença entre as normas jurídicas convencionais e que quase sempre se identificam com os interesses do grupo mais forte.
Para ilustrar o tema, um texto de Antifonte, O Sofista.

Antifonte
Antifonte de Atenas (480-411 a.C.) é uma figura controversa. Menciona-se na antiguidade um Antifonte famoso pela oratória e que teria sido o primeiro logógrafo, ou seja, o primeiro a escrever discursos sob encomenda. Do orador restam discursos importantes. Não se tem certeza se o orador e o sofista são os mesmos. Dúvidas históricas à parte, Antifonte, o Sofista, representa melhor que todos a contraposição entre a natureza (phýsis), na qual se baseia o direito natural, considerado inato e absoluto, e as leis da cidade (nómos), nas quais se apoia o direito positivo, puramente convencional e imposto pela força ou pela necessidade.
A verdadeira justiça baseia-se na lei natural, que corresponde à verdade. As leis civis não passam de opinião. A separação em classes sociais é convenção social. Fomos todos feitos pela natureza do mesmo modo. Se a lei é apenas uma convenção, podemos transgredi-la, desde que ninguém o saiba. Mas não podemos transgredir de maneira alguma uma lei natural. Muitas leis e costumes não escritos são contrários à natureza, diz Antifonte, como honrar aos nascidos de berço nobre e desprezar os comuns. Todos os homens são iguais por natureza, sejam gregos ou bárbaros (não gregos).
Leia-se a seguir trechos selecionados de A Verdade, de Antifonte:
«Justiça é não transgredir as leis (nómos) da cidade, em que alguém é cidadão. Desse modo, um homem poderá melhor conduzir-se em harmonia com a justiça se na presença de testemunhas respeita as leis e, quando está só, sem testemunhas, respeita os decretos da natureza (phýsis). O que pertence às leis é imposto artificialmente, enquanto o que pertence à natureza é compulsório. Aquilo que se conforma às leis, se permanece oculto aos que estão de acordo com elas, escapa da vergonha e da punição; se não permanece oculto, não escapa; em contrapartida, se algo conatural à natureza (phýsis) é forçado, ultrapassando o que é possível, ainda que permaneça oculto a todos os homens, o mal não é menor, nem muito maior se todos o vêm, pois nesse caso não há transgressão segundo a aparência (doxa), mas segundo a verdade (alétheia)».
«A maior parte do justo segundo a lei é contrário à natureza. Com efeito, está legislado – estabelecido por nómos – para os olhos o que devem e não devem ver; para os ouvidos, o que devem ou não devem ouvir; para a língua, o que devem ou não devem dizer; para os pés, onde devem ou não devem caminhar; para o ânimo, o que deve ou não deve desejar. As proibições da lei não estão em acordo com a natureza. (...) A vida pertence à natureza, assim como a morte; a vida deriva do que é proveitoso, a morte que é nocivo.»
«Respeitamos e veneramos os nascidos de pais nobres, mas não respeitamos nem veneramos os que não se originam de casa nobres. (...) Tratamo-nos uns aos outros como bárbaros, embora todos por natureza tenhamos nascidos iguais, bárbaros e gregos. E é permitido a todos os homens observar as leis da natureza, que são obrigatórias. (...) Todos nós respiramos pela boca e pelo nariz, e comemos com as mãos...»

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