UMA ÁFRICA INVENTADA PELO OCIDENTE E A SUA PRESENÇA NOS CURRÍCULOS ESCOLARES
Nem sempre
existiu uma idéia de continente africano, e tanto o conceito de África como os
termos empregados para designá-lo sofreram muitos câmbios no tempo e no espaço.
As categorias de africano e de África foram, em diferentes épocas e sociedades
permanentemente ressignificados e ainda hoje devem ser lidos como signos
abertos, permanentemente (re)construídos na liminaridade por diferentes atores
sociais, sejam eles africanos ou não. Ou seja, a própria construção do conceito
de África incorporou as tensões e as estereotipias elaboradas de modo desigual
por atores desiguais durante um processo extremamente desigual da colonização.
Inicialmente e
durante a maior parte deste processo, as idéias de África, Etiópia, Guiné e
Sudão foram categorias construídas por estrangeiros e, sobretudo, por um olhar
estrangeiro que buscava no outro as imagens do bárbaro, do estranho, do
exótico, do selvagem e do primitivo; imagens que refletem uma assimetria que
vai sendo aprofundada no decorrer dos séculos: a comparação entre um primeiro conjunto
de povos que progressivamente se reconhecem em torno dos conceitos de
Cristandade, Europa e Ocidente, proclamando a si mesmos civilizados, e um
segundo conjunto de povos que passam a ser reconhecidos como inferiores,
primitivos e desprovidos de cultura por este mesmo conjunto de povos que
definem a si mesmos como o modelo de civilização e progresso.
Os feitos coloniais
não foram obra do acaso, mas demonstram um esforço permanente dos atores
coloniais em (re)fundar uma versão de África, se apropriando de termos e idéias
forjados sobre o continente negro desde a época greco-romana.
A própria
invenção do termo ‘África’ parece estar situada no mundo greco-romano. Entre os
gregos antigos, o termo ‘África’ jamais existiu, sendo os romanos os primeiros
a empregá-lo. Após a conquista romana de Cartago (146 a.C), as novas terras
conquistadas se tornaram a Africae vetus, posteriormente denominada Africae
proconsularis (46 a.C) com a incorporação de parcelas da Numidia, da
Lybia e da Tripolitania.
O espaço
denominado por gregos e romanos como África pertencia às partes do mundo
conhecidas como “civilizadas”, ou seja, como parte do “Orbis terrarum”,
e se aproximava, grosso modo, ao espaço hoje ocupado pelo país denominado
Tunísia. O Egito, a Líbia e a Mauritânia também designavam parcelas do mundo
greco-romano, mas não eram conhecidos como África. Em
contraposição a
este conjunto de terras conhecidas e reconhecidas como civilização, a maioria
dos territórios do continente africano era conhecida como Aethiopia
sub-Aegypto e pertencia às partes do mundo consideradas pelos antigos como
bárbaras e designadas como “Terra Ignota” ou “Terra Incógnita”.
No final da Antigüidade
Clássica, Cláudio Ptolomeu (II d,C) e Macróbio (Vd.C), promoveram uma sistematização
das concepções espaciais do seu tempo, elaborando dois modelos cartográficos
que influenciaram profundamente a cartografia e o imaginário ocidentais: Os
mapas ptolomaicos, em forma de leque invertido, praticamente eram desconhecidos
pela Cristandade ocidental.
Eram “norteados”
(o norte era a parte superior do mapa), e freqüentemente designavam por África
uma realidade semicontinental que, às vezes, correspondia a atual África do
norte. Sua organização em paralelos e meridianos forneceria a base para a
elaboração dos “portulanos” (mapas portugueses) a partir do século XIII.
Já os mapas
macrobianos, conhecidos como “mapas em T” ou “discários”, eram “orientados” (o
leste era a parte superior do mapa) e predominaram entre os cristãos e
mulçumanos durante toda a era medieval. Os macrobianos medievais,
diferentemente dos seus similares antigos, apresentavam apenas um disco com a “Orbis
terrarum”, não representando num outro discário a Terra ignota” ou “Terra
incógnita”. Também influenciados pelos trabalhos de Ptolomeu e Macróbio,
outro “povo do livro” – os árabes – contrapunham o Billad el-Bidan (“a
terra dos homens brancos”) e o Machrek (“joia do Oriente”), berços da
civilização mulçumana, ao Billad el-Sudan (“a terra dos homens negros”)
e ao Maghreb (“jóia do Ocidente”).
Durante o medievo
europeu, o nascimento da Cristandade redesenhou o imaginário das terras conhecidas
e desconhecidas, a partir da fusão da cartografia ptolomaica-macrobiana e da
cosmologia cristã. Europa, Ásia e África – seja nos mapas ptolomaicos, seja nos
mapas macrobianos – aparecem explicitamente associadas ao pós-dilúvio bíblico e
a descendência dos filhos e netos de Noé; respectivamente, a Jafet, a Sem e a
Cam. A Cam foram associados os povos de
cor negra, lábios grossos e cabelos crespos, destinados por uma suposta
maldição bíblica a serem escravizados. Os descendentes de Cam passam a ser
identificados com os habitantes de Africae e da Aethiopia. No
final da era medieval européia, os escritos de viajantes, cronistas e
pensadores árabes e cristãos já consideravam os povos negros como bárbaros e
pagãos irredutíveis que possuíam na pele e na aparência física as marcas ou
estigmas que autorizariam a sua escravização.
No século XV, as
encíclicas papais Dum Diversas e Romanus Pontifex autorizavam a
escravidão de islâmicos, pagãos e dos povos “pretos”. Expressão do espírito da
época da expansão comercial e marítima européia, as encíclicas papais foram uma
resposta ao contato desigual da Cristandade com outras civilizações. É nesse
contexto que uma nova cartografia começa a se desenvolver, e o conceito de Africae
passa a designar uma área, ainda imprecisa, mas muito mais ampla do que nos
tempos antigos e medievais. O termo ‘África’ passa a concorrer com os termos
Guiné e Aethiopia para designar em escalas muitas vezes sobrepostas,
terras, povos e sociedades que começam a ser melhor conhecidos pelos
exploradores europeus, e sangrados pelo criminoso tráfico transatlântico de escravos.
Ou seja, data do início dos tempos modernos a interpenetração dos conceitos de Africae
e Aethiopia: enquanto o primeiro, seguindo a tendência medieval, se
descola do universo das regiões conhecidas e civilizadas e passa a se
identificar com a “terra de Cam”, de bárbaros e pagãos pecaminosos destinados a
escravidão, o segundo, sem perder sua associação com a barbárie e a selvageria,
passa a indicar cada vez mais as terras interiores do continente negro, ainda desconhecidas.
Foi exatamente a
força do trato negreiro que decidiu o destino do termo Africae.
Assiste-se, a partir do século XVII, à suplantação das expressões Aethiopia e
Guiné pela idéia continental de África, à medida que a imagem do continente
negro confunde-se com a de um imenso mercado e reservatório de escravos.
Nos séculos XVIII
e XIX, os estereótipos erigidos pela Modernidade em torno da idéia de África terminaram
por se somar ao darwinismo social e as teorias raciológicas, que animavam a
ação colonizadora de exploradores, conquistadores, missionários e
administradores coloniais na partilha dos territórios africanos pelas potências
capitalistas européias. Os africanos foram associados à “infância da humanidade”:
a “raça” negra seria o mais grosseiro e primitivo estágio do homem. Por contraposição,
o homem branco europeu corresponderia ao estágio superior da humanidade, apto a
“civilizar” e tutelar os demais povos. Bárbaros, selvagens, pagãos e
representantes dos estágios mais primitivos da humanidade, os africanos seriam
desprovidos de civilização e o continente africano de qualquer forma de
história. No século XIX, o filósofo Friedrich Hegel afirmava tranqüilamente que
“a África não é uma parte histórica do mundo. Não tem movimentos, progressos a
mostrar, movimentos históricos próprios dela”. Tal ponderação não expressa
apenas uma das mais bem acabadas concepções européias, no apogeu do
imperialismo, sobre uma idéia continental de África, mas expressa muito mais
intensamente a invenção de uma África periférica por uma civilização que ainda hoje
se pretende universal.
DESPERTAR O
CURRÍCULO PARA OS VALORES CIVILIZATÓRIOS AFRICANOS
Os currículos
escolares ainda refletem profundamente o esquecimento a que os historiadores da
burguesia relegaram as sociedades africanas. A engenhosa operação de esquecer e
invisibilizar o continente negro perpetua-se através da manutenção da África
periférica em nossos currículos escolares. O papel estratégico dessa noção de
África periférica é silenciar e impedir a manifestação de uma África a partir
de dentro.
A desconstrução
desse prolongado e persistente silêncio deve partir da constatação do fato de
África ter sido o palco da evolução biológica dos hominídeos, e do aparecimento
da humanidade anatomicamente moderna e das primeiras culturas humanas. Isto não
apenas credencia o continente africano como o berço da humanidade e das primeiras
civilizações humanas, mas também como o berço das primeiras narrativas humanas
que costumamos denominar de história. É nesse sentido que podemos entender a
atividade dos griots (denominados djeli, “sangue”, em bambara).
Apesar de
descritos por viajantes e colonizadores europeus como um misto de animadores
públicos e contadores de histórias, comparados com os menestréis e bardos medievais,
as atividades desenvolvidas por estes grupos, nas sociedades africanas,
consistiam tanto na preservação da memória social de impérios, reinos, povos e
linhagens de parentesco, quanto na exortação dos viventes à emulação do
comportamento dos antepassados, desempenhando um papel social que os aproxima
muito mais dos historiadores e diplomatas do que dos bardos e menestréis.
Assim sendo,
falar de África significa reconhecer e valorizar a palavra africana. Longe de
se restringir à oralidade, a palavra africana é um dos elementos fundamentais
de todas as civilizações negro africanas. Considerada sagrada, a palavra é o elemento
divino compartilhado com o humano que diferencia a humanidade dos demais seres
criados, colocando os homens no centro de toda a criação.
Está, portanto,
presente tanto nas narrativas orais quanto na arte tradicional, na
gestualística, no próprio modo africano de ser e estar no mundo, ou seja, na
cosmovisão africana.
A valorização da
palavra africana não pode ocorrer quando dissociamos as narrativas orais tradicionais
da cosmovisão que as sustenta. Portanto, a primeira tarefa consiste em dar voz
aos africanos na sua maneira africana de falar e ler o mundo. Isso possibilita
a desconstrução de um currículo eurocêntrico, ao deslocar os povos africanos da
condição de observados (objetos da história) para a de observadores (sujeitos
da história). É necessário arrancar de um passado silenciado toda a orça de
histórias e culturas votadas ao esquecimento por aqueles que as desprezam.
A segunda tarefa
consiste em problematizar os elementos constitutivos da cosmovisão africana no contexto
das diferentes sociedades presentes no continente. E, neste terreno, não
podemos generalizar: não existem uma África e uma humanidade africana
genéricas. Ao lado de uma diversidade de símbolos, idiomas, religiões,
organizações sociais e políticas, de costumes e práticas encontramos a presença
de traços civilizatórios comuns: a importância da família extensa e da economia
aldeã, a centralidade da ancestralidade, a crença em forças vitais e a
valorização da palavra como a sua manifestação por excelência, o papel
determinante do sagrado na organização da sociedade e do poder.
A terceira e
última tarefa, talvez a mais árdua de todas, consiste em historicizar os
valores civilizatórios africanos. Ou seja: sendo a cosmovisão um traço comum ao
homem negro e elemento estruturante presente nos impérios, reinos e sociedades
africanas de ontem e de hoje, cabe indagar por quais mecanismos e processos
históricos e sociais tais valores civilizatórios foram elaborados e se tornaram
o elemento fundamentais nestas sociedades e como continuam operantes ainda
hoje.
Por mais diversas
que sejam as histórias e tradições mandinga, yoruba, fulani ou
dos povos bantufalantes, a presença dos mesmos valores civilizatórios africanos
em todas elas indica que a milenar presença humana manifestada pela diversidade
de povos no continente neg o os construiu em conjunto: seja a partir de
matrizes comuns mais antigas, como parece ser o caso das sociedades iniciáticas
relacionadas aos caçadores; seja a partir de matrizes diferentes que
convergiram entre si, como parece ser o caso da organização da economia aldeã e
das tradições metalúrgicas negroafricanas apontadas pela arqueologia; ou ainda
a partir de matrizes por enquanto ainda difíceis de precisar, como parece ser o
caso do papel central desempenhado pelas concepções de mundo invisível/visível,
de forças vitais e do preexistente na organização da ancestralidade em seus
aspectos mítico e histórico.
CONCLUSÃO
Muitos foram os
avanços e os ganhos obtidos a partir da promulgação de Lei 10.639/03. Não
apenas a nossa indignação contra a discriminação e o racismo ganhou respaldo
legal, mas nossa escuta e nosso olhar também se tornaram mais sensíveis para as
diferenças. Os educadores cada vez mais estão empenhados na valorização da
diversidade e no combate ao racismo e às práticas discriminatórias.
Contudo, é ainda
muito forte a presença de uma história eurocêntrica que condena à
invisibilidade e ao esquecimento a história da África, desconsiderando a
importância da matriz africana na formação da sociedade brasileira.
Afinal, são
muitos os vínculos que ligam os dois lados do Atlântico que tanto separou como
uniu povos. Em nossas práticas de educadores, essa história eurocêntrica se tem
traduzido num currículo que desconsidera o fato de a cultura e a história serem
produzidas por diferentes grupos sociais.
Privilegiando a
Europa e o espaço ocidental, não nos damos conta de que não apenas precisamos,
mas devemos contar a história a partir de outros pontos de vista. Isso não
significa simplesmente adicionar, ao currículo já existente, elementos da
história e da cultura africana e afro-brasileira; significa rever esse
currículo e colocar em discussão os seus pressupostos mais íntimos, desconstruindo
as idéias, conceitos, valores e renças que o animam: os dispositivos de disciplinarização
e assujeitamento, o darwinismo social, o consumismo, o sexismo e o racismo
forjado pelas teorias raciológicas do século XIX, produzidas pelo homem
burguês, heterossexual, branco e europeu para o seu autoenaltecimento.
Este deve ser o
espírito que deve animar a nossa busca e as nossas pesquisas, muito necessárias
para a construção de um currículo que valorize a diversidade. Trata-se,
portanto, de dar visibilidade, reconhecer e valorizar outras narrativas e os
múltiplos sujeitos presentes na escola, na comunidade, na sociedade. É dentro
desse contexto que é necessário colocar em foco e no centro do currículo escolar
as experiências africanas e afro-brasileiras como história e cultura.
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