segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

A ESCRAVIDÃO ATLÂNTICA


De acordo com a convenção sobre a escravatura assinada em Genebra, em 25 de setembro de 1926, e emendada pelo protocolo aberto à assinatura ou à aceitação na sede da Organização das Nações Unidas, realizada em 7 de Dezembro de 1953 na cidade de Nova Iorque, em seu artigo primeiro, parágrafo primeiro: “A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade”. Ainda tratando da mesma temática em seu parágrafo segundo do mesmo artigo afirma que:
O tráfico de escravos compreende todo ato de captura, aquisição ou cessão de um indivíduo com o propósito de escravizá-lo; todo ato
de aquisição de um escravo com o propósito de vendê-lo ou trocá-lo; todo ato de cessão, por meio de venda ou troca, de um escravo adquirido para ser vendido ou
trocado; assim como em geral todo ato de comércio ou de transportes de escravos. 1
 
Paul Lovejoy aprofunda ainda mais esses conceitos ao apontar as características específicas da escravidão incluindo a idéia de que os escravos eram em termos absolutos uma propriedade, e que também: “eram estrangeiros, alienados pela origem ou dos quais, por sanções judiciais ou outras, se retirara a herança social que lhes coubera ao nascer; que a coerção podia ser usada à vontade; que a sua força de trabalho estava à completa disposição de um senhor”, (LOVEJOY, 2002). Uma observação mais acurada desses conceitos permite entender, de alguma forma, a transformação do africano escravizado em “coisa”, em sujeito passivo que não encontra expressão em sua própria história. Essa visão estereotipada do escravo como
res, no limite como um ser desprovido de história, contribui, e isso não é pouco, para a configuração atual da posição social dos negros no interior das sociedades contemporâneas. Pode-se, com relativa facilidade, relacionar os processos nefastos dos preconceitos raciais – a racialização do negro, portanto, no interior de sociedades marcadas profundamente pelo predomínio e pela hegemonia das populações brancas – à própria construção, no âmbito da história, da condição do escravo enquanto mero instrumento da produção de bens capitalistas.
O africano escravizado não constituía “mercadoria”2 exclusiva do comércio escravo pelas rotas do Atlântico, como sempre foi entendido pelo senso comum da historiografia tradicional que se interessava por essa temática.
Comerciantes africanos também se utilizaram da mão de obra escrava articulando-a com os interesses do capitalismo, principalmente durante parte do século XIX, atendendo à demanda da expansão comercial no exterior. A necessidade de se ampliar o comércio “resultou no emprego de escravos no comércio e na produção; então a África interiorizava a escravidão como um modo de produção, ao passo que anteriormente a escravidão africana tinha sido parte de uma rede maior, intercontinental”. (LOVEJOY, 2002).
Para esse autor, o modo de produção escravista que surgia na África possuía diferenças significativas quando comparados com a evolução do sistema escravocrata nas Américas, embora as similitudes encontradas entre os dois sistemas quando consideradas suas subordinações ao capitalismo. Nas Américas o sistema escravocrata dependia da importação de seus escravos, enquanto que na África foi conseqüência natural da evolução desta instituição entre os nativos, cuja característica principal era sua concentração em pequenas regiões, enquanto que no Novo Mundo o comércio dilatava-se pelos mercados mundiais.
Para Jaime Rodrigues, o tráfico negreiro configurava-se como um excelente negócio e a questão econômica a ele intrínseca explicava, em parte, o maior fenômeno de migração forçada da idade moderna. Ao contrário do que se imaginava, o comércio de escravos entre a África e o mundo ocidental demandava o envolvimento das sociedades africanas que formaram uma complexa rede de intermediários e procedimentos tornando-o possível e racional em termos comerciais. Esta questão, seguramente, consiste no lado mais sombrio e perverso da natureza humana, um refluxo da ignomínia que representa a ambição desmedida levada a seu extremo.
A dinâmica do comércio negreiro envolvendo toda uma gama de intermediários onerava, sobremaneira, os preços de cada escravo no mercado transatlântico. Participavam do tráfico negreiro, entre outros: capitães dos navios e suas equipagens, sertanejos, colonos, pombeiros3, autoridades metropolitanas e sobas4 africanos. Tal como no processo do tráfico negreiro em terras africanas, envolvendo em sua rede comercial representantes daquelas sociedades, no navio negreiro, segundo Rodrigues, havia também um intrincado sistema sócio-político e administrativo tornando possível o transporte dos escravos. Desconstruindo as categorias generalizantes que enquadravam numa análise simplista o traficante e os senhores de escravos, esse autor observa de forma substancial que na arena onde de desenvolveu o tráfico verificou-se de forma acentuada um confronto de interesses: de um lado a coroa portuguesa que se preocupava com as conquistas de novos territórios e a arrecadação sempre bem vinda de impostos e, de outro os grandes e pequenos traficantes. Rodrigues aponta também o interesse de uma elite de brancos residentes em Angola que se dedicava à intermediação da transação financeira de escravos entre soberanos africanos e comerciantes negreiros.
Tal como Lovejoy, Rodrigues identifica uma crescente economia, de proporções continentais, em solo africano, centrada no comércio e no tráfico de escravos. De acordo com ele, forçar o aprisionamento e transporte de milhões de africanos nas rotas do Atlântico só se tornaram possíveis graças à existência de condições ideais à sua empresa no próprio continente Africano.
Obviamente, o tráfico negreiro expandiu-se na África em resposta à demanda do capitalismo que tornou a mercadoria humana um produto altamente valorizado no mercado mundial. “O contato entre africanos e europeus em diferentes lugares do continente africano criou uma nova dinâmica social que permitiu a consolidação do tráfico como negócio legítimo e socialmente aceito, embora nunca isento de contestações e conflitos” (RODRIGUES, 2005). De acordo com as coletâneas publicadas pelo Legislativo Britânico em 1791, a pedido da Câmara dos Comuns, cujos conteúdos foram retirados das diversas narrativas de pessoas que viveram na América e também dos viajantes que percorreram partes do continente africano, entre o rio Senegal e Angola, de 1754 a 1789, as formas mais corriqueiras nas práticas de captura de escravos eram:
 
 
a) Guerra: Não se tratava de guerra em sua forma tradicional como a conhecemos. Para os traficantes, guerra significava “Esperar a noite cair, atear fogo às aldeias e prender tantas pessoas quanto fosse possível” (RODRIGUES, 2005).
b) Roubo e adultério: Era fato corriqueiro pessoas serem condenadas por praticar roubo e também adultério serem vendidas como escravas.
c) Pilhagem: Constituía uma ameaça constante, o que levava muitos nativos a estar sempre preparados, ativando seus sentidos apurados para detectar indícios na natureza que pudesse denotar perigo. Segundo Rodrigues outra forma de prevenção e defesa contra os ataques de invasores era a manutenção de espiões nas proximidades.
 
No entanto, uma das formas mais sutis e não menos perversa do sistema de captura de escravos consistia na sistemática prática de incentivo aos conflitos entre tribos africanas promovidas pelos europeus. “Esses conflitos – nos quais as armas de fogo introduzidas pelos europeus eram fundamentais – representavam um elo importante do circuito que envolvia ainda trocas comerciais e acordos entre europeus e africanos de diversas etnias e hierarquias sociais” (RODRIGUES, 2005). Essa prática caracterizava-se pela sua alta eficiência no que se refere à quantidade de escravos conseguidos após as guerras tribais, onde os povos vencidos eram transportados para o litoral e de lá vendidos aos traficantes negreiros.
 
Rodrigues levanta uma questão delicada acerca da taxa de mortalidade dos escravos que segundo a historiografia tradicional podia alcançar índices impressionantes de perdas geralmente ocorridas no transporte a bordo dos navios negreiros, alguns índices apontavam a morte de quase metade da quantidade de escravos embarcados no continente Africano. Uma das imagens mais tradicionais referentes ao tema da escravidão racial, sem dúvida é a do “Negros no porão” de Rugendas, cuja sensibilidade retrata o ambiente do interior de um navio negreiro.
 
 
 
Uma leitura iconográfica superficial desta gravura de Rugendas aponta o porão do navio negreiro como um local altamente insalubre e impróprio para o transporte de pessoas. Um local reduzido, pouco espaço, gente amontoada, pouca luz e abundante sofrimento humano. Para Rodrigues, a imagem de Rugendas representa um esforço de propaganda abolicionista. O próprio autor da imagem foi um dos leitores dos “Relatórios do Parlamento Britânico”, referentes à campanha abolicionista na Inglaterra do século XIX. Desta forma “A imagem que retrata o porão do navio negreiro feita por Rugendas poderia ser interpretada como um importante documento antiescravista, menos pelo que ela possui de verdade descritiva e mais pelo seu valor de denúncia” (RODRIGUES, 2005). Em termos reais, o grande problema da mortalidade de escravos a bordo dos navios negreiros foi numa certa medida atenuado pelo avanço das técnicas de fabricação e utilização de materiais mais adequados na produção destas embarcações, tais como o revestimento de cobre. Outro fator importante consistiu no tempo gasto na travessia do oceano Atlântico e a escassa capacidade de transporte de víveres, de alimentos não perecíveis bem como de água potável para consumo humano. Para resolver esses problemas,  navios mais velozes foram fabricados diminuindo consideravelmente o tempo gasto na travessia do Atlântico.
Ao levar em consideração os altos custos na aquisição e transporte de escravos seria ingenuidade afirmar que os homens envolvidos no tráfico negreiro não consideravam e nem promoviam esforços no sentido de preservação de suas mercadorias humanas. No entanto, uma questão  fundamental para a compreensão da lógica senhorial intrínseca ao processo da escravidão racial foi levantada por Jaime Rodrigues em sua tese. Trata-se da questão da doutrinação ideológica pelo uso da violência e do terror psicológico. Para a eficiência total da empresa escravista tornava-se imprescindível que os africanos escravizados fossem entregues aos seus compradores nas condições apropriadas para o aproveitamento máximo de sua mão de obra. Para se conseguir maximizar toda a potencialidade do trabalho escravo tornava-se necessário discipliná-lo da melhor forma possível, refreando ímpetos de rebeldia e revolta e até ensinando alguns rudimentos da língua vernácula do lugar à que seria vendido.
Pensando dessa forma, aceitava-se, numa certa medida, a própria morte de parte dos escravos no processo compreendido entre sua captura na África e a posterior venda nos locais de destino, como parte do programa de doutrinação pelo uso do terror que a própria travessia impunha ao imaginário daqueles homens.
Não há como se pensar o tráfico negreiro e a própria escravidão racial da era moderna se não enquanto simples comércio altamente lucrativo e embasado nos moldes dos princípios capitalistas. Essa lógica perversa do sistema escravocrata contribuiu conceitualmente para a redução do escravo em coisa, um mero objeto do sistema que o oprime e explora.
Entretanto, essa visão estreita do senso comum que retira do africano sua humanidade consiste numa incoerência e numa impossibilidade histórica. Como afirma Silva, no decorrer da longa experiência da escravidão racial no Brasil, uma forma dicotômica de relacionamento sintetizou-se na mentalidade coletiva: “De um lado, Zumbí de Palmares, a ira sagrada, o treme-terra; de outro, Pai João, a submissão conformada” (SILVA, 1989). Esses autores apontam que entre o ideal revolucionário e a submissão conformada havia o escravo que negociava da melhor forma possível o sua vida.
Ainda pouco estudada no Brasil o conceito “brecha camponesa”5 revela em larga escala os mecanismos de controle de uma forma mais sutil, uma negociação em níveis mais profundos, considerando-se seus aspectos psicológicos. O silêncio em torno dessa delicada questão, na historiografia tradicional, se prende segundo esses autores à própria lógica cristalizada pela memória da escravidão que, via de regra, não admitia que os escravos fossem senhores de sua história, “enquanto res, instrumentos de produção, propriedade de outrem, não teria, simplesmente, uma economia própria” (SILVA, 1989). Na verdade, a possibilidade fornecida aos escravos de uma margem de economia própria, através da cessão de pedaços de terra para o plantio e a folga de um dia por semana para o manejo da plantação, consistia num poderoso mecanismo de negociação a favor dos senhores e proprietários de escravos. Desta forma, a “brecha camponesa”, de acordo com Silva, “aumentava a quantidade de gêneros disponíveis para alimentar a escravaria numerosa, ao mesmo tempo em que fornecia uma válvula de escape para as pressões resultantes da escravidão” (SILVA, 1989). Essa última questão, a segurança, de acordo com esses autores, é central nas relações entre senhores e seus escravos, buscando da melhor forma possível um ambiente com, pelo menos, um mínimo de paz.
A própria lógica do sistema escravista permite essa margem de negociação na medida em que se admite a irracionalidade da relação entre senhor e escravo baseada exclusivamente no uso da força. O fato é que esse pequeno direito de propriedade assume proporção de alta relevância também para os escravos que tanto lutam por sua manutenção, quanto por sua ampliação. Silva usa como exemplo os escravos do engenho Santana de Ilhéus que se rebelaram, no século XVIII, exigindo entre as condições de suas voltas ao trabalho a ampliação da “brecha camponesa”. Possuir, mesmo que informalmente, um pedaço de terra onde plantar suas roças, seus “sonhos e esperanças” constituem um poderoso elo de ligação entre os escravos, ao mesmo tempo em que possibilita uma economia autônoma, dentro dos limites permitidos, que produz numa certa medida um sentimento de relativa independência.
Jaime Pinsky contesta o caráter puramente econômico da escravidão racial, “para mim, a escravidão não é apenas uma ‘instituição histórica’ ou um ‘modo de produção’, mas uma maneira de relacionamento entre seres humanos”.  (PINSKY, 2006). A grande massa de população africana que foi traficada para a colônia portuguesa “não pode ser analisada apenas como ‘força de trabalho’ e, por isso, muitos historiadores, hoje, procuram discernir os caminhos, nem simples nem óbvios, através dos quais os escravos fizeram história.” (SILVA, 1989).
Nas trilhas percorridas pelos escravos sempre houve, e isso é essencial, o exercício de vontades delimitando seus espaços de atuações, consentidas e até conquistadas, por força de negociações e resistências. Torna-se óbvio perceber que eles foram hábeis em conquistar seus lugares no interior do regime, onde pudessem da melhor forma possível não apenas sobreviver, mas, sim, viver.
Entendemos a importância e a centralidade dessa nova tendência historiográfica que retira do escravo a condição de coisa e o coloca no centro da convergência de seus próprios valores, ao mesmo tempo em que o identifica como ator e autor de sua própria história.

 

Legenda

1 Disponível em: http://www.onubrasil.org.br/doc_escravatura.php, acesso em 22/junho/2011.
2 Utilizamos o termo mercadoria entre aspas para designar a forma com a qual eram considerados os africanos que foram comercializados no longo período da escravidão racial da era moderna.
3 Os pombeiros eram agentes especializados no comércio e no transporte de mercadorias de valor, servindo de intermediários entre comerciantes do interior e do litoral. No entanto, a mercadoria mais cobiçada era o escravo. Os grandes exportadores que movimentavam o comércio de longa distância não passavam de simples negreiros que não sabiam e de nenhuma forma queriam lidar com outros tipos de mercadorias: “A exportação em grandes quantidades do marfim, da cera, da goma copal, da urzela não interessava aos traficantes nem aos seus concessionários, uns e outros habituados aos grandes lucros, com pouco esforço, oferecidos pela escravatura”. Disponível em: http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http:/
/petrinus.com.sapo.pt/pombeiros1. Acesso em 22/junho/2011.
4 Ou régulos, denominações em algumas regiões da África atribuída à chefes de tribos.
5Segundo Eduardo Silva e João José Reis, o conceito brecha camponesa “embora razoavelmente estudado nos Estados Unidos e, sobretudo, no Caribe” (SILVA, 1989), tem sido negligenciado pela historiografia brasileira. Tadeusz Lepkowski (Haiti) utilizou o conceito “brecha camponesa” para designar as atividades econômicas que escapavam estritamente ao sistema de plantagem, de acordo com sua própria designação, desenvolvida nas colônias escravistas. Lepkowski substitui, com muita propriedade, o tradicional conceito da plantation pelo de “plantagem” numa personificação mais adequada ao sistema da exploração colonial em terras brasileiras.

 

Referências

LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

PINSKY, Jaime. Escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006.

RODRIGUES, Jaime. De costa à costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780 – 1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Nenhum comentário:

Postar um comentário