De acordo com a
convenção sobre a escravatura assinada em Genebra, em 25 de setembro de 1926, e
emendada pelo protocolo aberto à assinatura ou à aceitação na sede da
Organização das Nações Unidas, realizada em 7 de Dezembro de 1953 na cidade de
Nova Iorque, em seu artigo primeiro, parágrafo primeiro: “A escravidão é o estado
ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os
atributos do direito de propriedade”. Ainda tratando da mesma temática em seu
parágrafo segundo do mesmo artigo afirma que:
O tráfico de escravos compreende todo ato de captura, aquisição ou cessão
de um indivíduo com o propósito de escravizá-lo; todo ato
de aquisição de um escravo com o propósito de vendê-lo ou trocá-lo; todo
ato de cessão, por meio de venda ou troca, de um escravo adquirido para ser
vendido ou
trocado; assim como em geral todo ato de comércio ou de transportes de
escravos. 1
Paul Lovejoy
aprofunda ainda mais esses conceitos ao apontar as características específicas
da escravidão incluindo a idéia de que os escravos eram em termos absolutos uma
propriedade, e que também: “eram estrangeiros, alienados pela origem ou dos
quais, por sanções judiciais ou outras, se retirara a herança social que lhes
coubera ao nascer; que a coerção podia ser usada à vontade; que a sua força de
trabalho estava à completa disposição de um senhor”, (LOVEJOY, 2002). Uma
observação mais acurada desses conceitos permite entender, de alguma forma, a
transformação do africano escravizado em “coisa”, em sujeito passivo que não
encontra expressão em sua própria história. Essa visão estereotipada do escravo
como
res, no limite
como um ser desprovido de história, contribui, e isso não é pouco, para a
configuração atual da posição social dos negros no interior das sociedades
contemporâneas. Pode-se, com relativa facilidade, relacionar os processos
nefastos dos preconceitos raciais – a racialização do negro, portanto, no
interior de sociedades marcadas profundamente pelo predomínio e pela hegemonia
das populações brancas – à própria construção, no âmbito da história, da condição
do escravo enquanto mero instrumento da produção de bens capitalistas.
O africano
escravizado não constituía “mercadoria”2 exclusiva
do comércio escravo pelas rotas do Atlântico, como sempre foi entendido pelo
senso comum da historiografia tradicional que se interessava por essa temática.
Comerciantes
africanos também se utilizaram da mão de obra escrava articulando-a com os
interesses do capitalismo, principalmente durante parte do século XIX,
atendendo à demanda da expansão comercial no exterior. A necessidade de se
ampliar o comércio “resultou no emprego de escravos no comércio e na produção; então
a África interiorizava a escravidão como um modo de produção, ao passo que
anteriormente a escravidão africana tinha sido parte de uma rede maior, intercontinental”.
(LOVEJOY, 2002).
Para esse autor,
o modo de produção escravista que surgia na África possuía diferenças
significativas quando comparados com a evolução do sistema escravocrata nas
Américas, embora as similitudes encontradas entre os dois sistemas quando
consideradas suas subordinações ao capitalismo. Nas Américas o sistema
escravocrata dependia da importação de seus escravos, enquanto que na África
foi conseqüência natural da evolução desta instituição entre os nativos, cuja característica
principal era sua concentração em pequenas regiões, enquanto que no Novo Mundo
o comércio dilatava-se pelos mercados mundiais.
Para Jaime
Rodrigues, o tráfico negreiro configurava-se como um excelente negócio e a questão
econômica a ele intrínseca explicava, em parte, o maior fenômeno de migração
forçada da idade moderna. Ao contrário do que se imaginava, o comércio de
escravos entre a África e o mundo ocidental demandava o envolvimento das sociedades
africanas que formaram uma complexa rede de intermediários e procedimentos
tornando-o possível e racional em termos comerciais. Esta questão, seguramente,
consiste no lado mais sombrio e perverso da natureza humana, um refluxo da
ignomínia que representa a ambição desmedida levada a seu extremo.
A dinâmica do
comércio negreiro envolvendo toda uma gama de intermediários onerava,
sobremaneira, os preços de cada escravo no mercado transatlântico. Participavam
do tráfico negreiro, entre outros: capitães dos navios e suas equipagens,
sertanejos, colonos, pombeiros3, autoridades metropolitanas
e sobas4 africanos. Tal como no processo do tráfico
negreiro em terras africanas, envolvendo em sua rede comercial representantes
daquelas sociedades, no navio negreiro, segundo Rodrigues, havia também um
intrincado sistema sócio-político e administrativo tornando possível o
transporte dos escravos. Desconstruindo as categorias generalizantes que
enquadravam numa análise simplista o traficante e os senhores de escravos, esse
autor observa de forma substancial que na arena onde de desenvolveu o tráfico
verificou-se de forma acentuada um confronto de interesses: de um lado a coroa portuguesa
que se preocupava com as conquistas de novos territórios e a arrecadação sempre
bem vinda de impostos e, de outro os grandes e pequenos traficantes. Rodrigues
aponta também o interesse de uma elite de brancos residentes em Angola que se dedicava
à intermediação da transação financeira de escravos entre soberanos africanos e
comerciantes negreiros.
Tal como Lovejoy,
Rodrigues identifica uma crescente economia, de proporções continentais, em
solo africano, centrada no comércio e no tráfico de escravos. De acordo com
ele, forçar o aprisionamento e transporte de milhões de africanos nas rotas do
Atlântico só se tornaram possíveis graças à existência de condições ideais à
sua empresa no próprio continente Africano.
Obviamente, o
tráfico negreiro expandiu-se na África em resposta à demanda do capitalismo que
tornou a mercadoria humana um produto altamente valorizado no mercado mundial. “O
contato entre africanos e europeus em diferentes lugares do continente africano
criou uma nova dinâmica social que permitiu a consolidação do tráfico como
negócio legítimo e socialmente aceito, embora nunca isento de contestações e conflitos”
(RODRIGUES, 2005). De acordo com as coletâneas publicadas pelo Legislativo
Britânico em 1791, a pedido da Câmara dos Comuns, cujos conteúdos foram
retirados das diversas narrativas de pessoas que viveram na América e também
dos viajantes que percorreram partes do continente africano, entre o rio
Senegal e Angola, de 1754 a 1789, as formas mais corriqueiras nas práticas de
captura de escravos eram:
a) Guerra: Não se
tratava de guerra em sua forma tradicional como a conhecemos. Para os traficantes,
guerra significava “Esperar a noite cair, atear fogo às aldeias e prender
tantas pessoas quanto fosse possível” (RODRIGUES, 2005).
b) Roubo e
adultério: Era fato corriqueiro pessoas serem condenadas por praticar roubo e também
adultério serem vendidas como escravas.
c) Pilhagem:
Constituía uma ameaça constante, o que levava muitos nativos a estar sempre preparados,
ativando seus sentidos apurados para detectar indícios na natureza que pudesse
denotar perigo. Segundo Rodrigues outra forma de prevenção e defesa contra os ataques
de invasores era a manutenção de espiões nas proximidades.
No entanto, uma
das formas mais sutis e não menos perversa do sistema de captura de escravos
consistia na sistemática prática de incentivo aos conflitos entre tribos
africanas promovidas pelos europeus. “Esses conflitos – nos quais as armas de
fogo introduzidas pelos europeus eram fundamentais – representavam um elo importante
do circuito que envolvia ainda trocas comerciais e acordos entre europeus e
africanos de diversas etnias e hierarquias sociais” (RODRIGUES, 2005). Essa
prática caracterizava-se pela sua alta eficiência no que se refere à quantidade
de escravos conseguidos após as guerras tribais, onde os povos vencidos eram
transportados para o litoral e de lá vendidos aos traficantes negreiros.
Rodrigues levanta
uma questão delicada acerca da taxa de mortalidade dos escravos que segundo a
historiografia tradicional podia alcançar índices impressionantes de perdas
geralmente ocorridas no transporte a bordo dos navios negreiros, alguns índices
apontavam a morte de quase metade da quantidade de escravos embarcados no continente
Africano. Uma das imagens mais tradicionais referentes ao tema da escravidão
racial, sem dúvida é a do “Negros no porão” de Rugendas, cuja sensibilidade
retrata o ambiente do interior de um navio negreiro.
Uma leitura
iconográfica superficial desta gravura de Rugendas aponta o porão do navio
negreiro como um local altamente insalubre e impróprio para o transporte de
pessoas. Um local reduzido, pouco espaço, gente amontoada, pouca luz e
abundante sofrimento humano. Para Rodrigues, a imagem de Rugendas representa um
esforço de propaganda abolicionista. O próprio autor da imagem foi um dos leitores
dos “Relatórios do Parlamento Britânico”, referentes à campanha abolicionista
na Inglaterra do século XIX. Desta forma “A imagem que retrata o porão do navio
negreiro feita por Rugendas poderia ser interpretada como um importante
documento antiescravista, menos pelo que ela possui de verdade descritiva e
mais pelo seu valor de denúncia” (RODRIGUES, 2005). Em termos reais, o grande problema
da mortalidade de escravos a bordo dos navios negreiros foi numa certa medida
atenuado pelo avanço das técnicas de fabricação e utilização de materiais mais
adequados na produção destas embarcações, tais como o revestimento de cobre.
Outro fator importante consistiu no tempo gasto na travessia do oceano
Atlântico e a escassa capacidade de transporte de víveres, de alimentos não
perecíveis bem como de água potável para consumo humano. Para resolver esses problemas,
navios mais velozes foram fabricados
diminuindo consideravelmente o tempo gasto na travessia do Atlântico.
Ao levar em
consideração os altos custos na aquisição e transporte de escravos seria
ingenuidade afirmar que os homens envolvidos no tráfico negreiro não
consideravam e nem promoviam esforços no sentido de preservação de suas
mercadorias humanas. No entanto, uma questão fundamental para a compreensão da lógica
senhorial intrínseca ao processo da escravidão racial foi levantada por Jaime
Rodrigues em sua tese. Trata-se da questão da doutrinação ideológica pelo uso
da violência e do terror psicológico. Para a eficiência total da empresa
escravista tornava-se imprescindível que os africanos escravizados fossem
entregues aos seus compradores nas condições apropriadas para o aproveitamento
máximo de sua mão de obra. Para se conseguir maximizar toda a potencialidade do
trabalho escravo tornava-se necessário discipliná-lo da melhor forma possível, refreando
ímpetos de rebeldia e revolta e até ensinando alguns rudimentos da língua
vernácula do lugar à que seria vendido.
Pensando dessa
forma, aceitava-se, numa certa medida, a própria morte de parte dos escravos no
processo compreendido entre sua captura na África e a posterior venda nos
locais de destino, como parte do programa de doutrinação pelo uso do terror que
a própria travessia impunha ao imaginário daqueles homens.
Não há como se
pensar o tráfico negreiro e a própria escravidão racial da era moderna se não
enquanto simples comércio altamente lucrativo e embasado nos moldes dos
princípios capitalistas. Essa lógica perversa do sistema escravocrata
contribuiu conceitualmente para a redução do escravo em coisa, um mero objeto
do sistema que o oprime e explora.
Entretanto, essa
visão estreita do senso comum que retira do africano sua humanidade consiste
numa incoerência e numa impossibilidade histórica. Como afirma Silva, no
decorrer da longa experiência da escravidão racial no Brasil, uma forma
dicotômica de relacionamento sintetizou-se na mentalidade coletiva: “De um
lado, Zumbí de Palmares, a ira sagrada, o treme-terra; de outro, Pai João, a submissão
conformada” (SILVA, 1989). Esses autores apontam que entre o ideal
revolucionário e a submissão conformada havia o escravo que negociava da melhor
forma possível o sua vida.
Ainda pouco
estudada no Brasil o conceito “brecha camponesa”5 revela em larga escala os mecanismos de controle de uma forma mais
sutil, uma negociação em níveis mais profundos, considerando-se seus aspectos psicológicos.
O silêncio em torno dessa delicada questão, na historiografia tradicional, se
prende segundo esses autores à própria lógica cristalizada pela memória da
escravidão que, via de regra, não admitia que os escravos fossem senhores de
sua história, “enquanto res, instrumentos de produção, propriedade de outrem,
não teria, simplesmente, uma economia própria” (SILVA, 1989). Na verdade, a possibilidade
fornecida aos escravos de uma margem de economia própria, através da cessão de
pedaços de terra para o plantio e a folga de um dia por semana para o manejo da
plantação, consistia num poderoso mecanismo de negociação a favor dos senhores
e proprietários de escravos. Desta forma, a “brecha camponesa”, de acordo com Silva,
“aumentava a quantidade de gêneros disponíveis para alimentar a escravaria
numerosa, ao mesmo tempo em que fornecia uma válvula de escape para as pressões
resultantes da escravidão” (SILVA, 1989). Essa última questão, a segurança, de
acordo com esses autores, é central nas relações entre senhores e seus
escravos, buscando da melhor forma possível um ambiente com, pelo menos, um
mínimo de paz.
A própria lógica
do sistema escravista permite essa margem de negociação na medida em que se
admite a irracionalidade da relação entre senhor e escravo baseada
exclusivamente no uso da força. O fato é que esse pequeno direito de
propriedade assume proporção de alta relevância também para os escravos que
tanto lutam por sua manutenção, quanto por sua ampliação. Silva usa como
exemplo os escravos do engenho Santana de Ilhéus que se rebelaram, no século
XVIII, exigindo entre as condições de suas voltas ao trabalho a ampliação da “brecha
camponesa”. Possuir, mesmo que informalmente, um pedaço de terra onde plantar
suas roças, seus “sonhos e esperanças” constituem um poderoso elo de ligação
entre os escravos, ao mesmo tempo em que possibilita uma economia autônoma,
dentro dos limites permitidos, que produz numa certa medida um sentimento de
relativa independência.
Jaime Pinsky
contesta o caráter puramente econômico da escravidão racial, “para mim, a
escravidão não é apenas uma ‘instituição histórica’ ou um ‘modo de produção’,
mas uma maneira de relacionamento entre seres humanos”. (PINSKY, 2006). A grande massa de população
africana que foi traficada para a colônia portuguesa “não pode ser analisada
apenas como ‘força de trabalho’ e, por isso, muitos historiadores, hoje,
procuram discernir os caminhos, nem simples nem óbvios, através dos quais os
escravos fizeram história.” (SILVA, 1989).
Nas trilhas percorridas
pelos escravos sempre houve, e isso é essencial, o exercício de vontades
delimitando seus espaços de atuações, consentidas e até conquistadas, por força
de negociações e resistências. Torna-se óbvio perceber que eles foram hábeis em
conquistar seus lugares no interior do regime, onde pudessem da melhor forma
possível não apenas sobreviver, mas, sim, viver.
Entendemos a
importância e a centralidade dessa nova tendência historiográfica que retira do
escravo a condição de coisa e o coloca no centro da convergência de seus
próprios valores, ao mesmo tempo em que o identifica como ator e autor de sua própria
história.
Legenda
1 Disponível em: http://www.onubrasil.org.br/doc_escravatura.php, acesso em 22/junho/2011.
2 Utilizamos o
termo mercadoria entre aspas para designar a forma com a qual eram considerados
os africanos que foram comercializados no longo período da escravidão racial da
era moderna.
3 Os pombeiros eram
agentes especializados no comércio e no transporte de mercadorias de valor,
servindo de intermediários entre comerciantes do interior e do litoral. No
entanto, a mercadoria mais cobiçada era o escravo. Os grandes exportadores que
movimentavam o comércio de longa distância não passavam de simples negreiros
que não sabiam e de nenhuma forma queriam lidar com outros tipos de mercadorias: “A exportação em grandes quantidades do
marfim, da cera, da goma copal, da urzela não interessava aos traficantes nem aos
seus concessionários, uns e outros habituados aos grandes lucros, com pouco esforço,
oferecidos pela escravatura”. Disponível em: http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http:/
/petrinus.com.sapo.pt/pombeiros1. Acesso em 22/junho/2011.
4 Ou régulos, denominações em algumas regiões da África atribuída à
chefes de tribos.
5Segundo Eduardo
Silva e João José Reis, o conceito brecha camponesa “embora razoavelmente
estudado nos Estados Unidos e, sobretudo, no Caribe” (SILVA, 1989), tem sido negligenciado pela historiografia
brasileira. Tadeusz Lepkowski (Haiti) utilizou o conceito “brecha camponesa”
para designar as atividades econômicas que escapavam estritamente ao sistema de
plantagem, de acordo com sua própria designação, desenvolvida nas colônias escravistas.
Lepkowski substitui, com muita propriedade, o tradicional conceito da plantation
pelo de “plantagem” numa personificação mais adequada ao sistema da exploração
colonial em terras brasileiras.
Referências
LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas
transformações. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
PINSKY, Jaime. Escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006.
RODRIGUES, Jaime. De costa à costa: escravos, marinheiros e
intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780 – 1860).
São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
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