Democracia é uma categoria central para o direito, a
política, a filosofia, enfim, para a vida, para a sociedade, para a vida em
sociedade. Há muito a dizer, afinal, desde os antigos essa é uma especulação e
uma experiência sobre a qual se fala, se discute, se delibera, se constrói
concepções. Este não é ou pretende ser um artigo compreensivo sobre a
“evolução” do sentido de democracia ao longo do tempo no ocidente. Aliás, lugar
comum nos trabalhos acadêmicos é justamente a tal “evolução histórica” da
democracia ao que, sempre que posso, educadamente digo, por favor, não. O que
quero explorar é o vínculo entre democracia e crise ou precisamente a ideia de
que democracia, em certo sentido (o que mais me atrai) é crise.
Os eventos políticos, sociais e econômicos que vimos
presenciando no Brasil, especialmente desde a última eleição presidencial,
sugerem uma superlativa crise sobre a qual os cínicos vaticinam e procuram
atribuir culpa e castigo ao pecador (como se houvesse um), mas no fundo se
contorcem de prazer ao apostar no “quanto pior melhor”. Os iludidos, por sua
vez, suavizam a crise e buscam fazer crer que se trata apenas de uma macabra
manobra contra o governo pelos seus detratores. Dos dois lados, cínicos e
ingênuos aniquilam, a sua forma, a democracia. Aqueles porque não sabem ou não
querem saber de conviver com ela e estes porque subestimam o seu conteúdo, seu
procedimento e seu sentido crítico.
Não por acaso, crise e crítica têm na sua origem a palavra
grega krinein que significa tanto distinguir, separar, quanto julgar,
decidir. Ser crítico é internalizar o sentido de crise não só teórica, mas
praticamente e, assim, a democracia deve ser enfrentada como algo que se
constitui na e com a crise e empreende um permanente julgar ou decidir ou
discernir.
Ao contrário do que a maior parte das pessoas deduz ou é
levada a deduzir os tempos de crise são próprios de regimes políticos em que
podemos ver e rever nossas escolhas, nossas posições, conforme procedimentos
sobre e a partir dos quais deliberamos para, assim, decidir sobre o que nos
afeta. Em regimes políticos não democráticos a regra é exatamente oposta, isto
é, não escolhemos, não nos posicionamos, não há procedimentos a partir dos quais
deliberamos, ou seja, é um tempo e espaço no qual reina a paz dos cemitérios.
As ações humanas são, genericamente falando, motivadas pela
razão, pelos interesses e pelas paixões. No plano da razão e dos interesses
teorias e práticas focalizam em cálculos e medidas o que pode suscitar
diagnósticos para a democracia, no limite, aproveitáveis, mas sobre os quais
devemos sempre ter uma certa desconfiança, afinal, os críticos do século
dezenove denunciaram o lado perverso de uma sociedade que se organiza baseada
no interesse individual e egoísta, assim como os críticos do início do século
vinte denunciaram o caráter instrumental da razão. Mesmo assim, há explicações
racionais da democracia, oferecidas pelas chamadas ciências sociais positivas,
que são persuasivas (incrivelmente para muitos) justamente por sugerir a
eliminação, na medida do desejável, do impacto das paixões e das preferências
do campo da política democrática.
Contra a contingência e o caráter aberto da sociedade e da
identidade dos atores políticos, teorias racionais sobre a democracia se valem
do cálculo entre meios e fins por meio do qual se pode chegar a um acordo
quanto aos interesses, mitigar as preferencias e eliminar as paixões. A crise,
neste sentido, não é compreendida como algo que constitui a própria democracia,
mas é descrita por meio do cálculo do comportamento dos atores, do desenho das
instituições, etc., ou seja, a crise é externa e indesejável e naquilo que a
relaciona com a crítica esta também deixa ser uma possibilidade para pensar a
democracia.
Não acho que a maioria dos cínicos que advogam pelo “quanto
pior melhor” ou dos ingênuos que creem em manobra macabra tenham, consciente e
refletidamente, uma explicação para a democracia que se valha, necessariamente,
do instrumental das ciências sociais positivas. Ao contrário, falta-lhes mesmo
ciência, no sentido próprio, tanto quanto política. Entretanto, o que meu
argumento quer forçar é a ideia de que seja para o senso comum, quanto para as
ciências e suas teorias racionais o sentido de crise, de crítica e de paixão
simplesmente não se coloca no horizonte da democracia, exceto para ser
eliminado. E por que?
Ora se subestima a nossa capacidade de enfrentar a
democracia, as tensões e crises que a constituem ora se sente ameaçado diante
de reflexões e práticas criticamente democráticas que não acomodam privilégios
e favorecimentos, na medida em que demandam ação permanente e transformadora (a
reinventar a própria democracia).
A precária situação política do atual governo da República
Federativa do Brasil mostra como a democracia é mal tratada de todos os lados.
Os políticos que se opõem ao governo, tentam, dia-após-dia, estratégias para o
pedido de impeachment da presidente eleita, não sem contar com o apoio luxuoso
de outros privilegiados da burocracia estatal. Tomam o conflito da política
democrática como algo a ser eliminado e para tanto desrespeitam as próprias e
mais básicas regras do processo democrático. As recentes deliberações e
respectivas decisões da Câmara dos Deputados, sob o comando do seu atual
presidente, baseadas em procedimentos duvidosos, rompem com as regras do jogo
democrático, ao mesmo tempo que fazem do princípio republicano uma quimera.
Nestas circunstâncias não basta descrever o comportamento do presidente da
Câmara Federal e num cálculo de probabilidades dizer que ele vai atuar de tal
ou qual maneira, pois neste caso, há algo que escapa esse cálculo pois pertence
ao âmbito do que não é calculável como os princípios éticos ou morais.
É preciso uma postura crítica, radicalmente crítica, por
meio da qual a democracia questiona a si mesma todo o tempo. Nesta constatação
percebo que o conflito é inevitável, que as decisões políticas são
contestáveis, que o desacordo é o campo por excelência da política democrática
e não a sua eliminação. Minha interpretação sobre o impeachment nas atuais
circunstâncias é que se trata de um expediente para aniquilar o desacordo, o
conflito e, por consequência, a própria democracia. Neste sentido, se crise há,
ela é pelo não reconhecimento do seu sentido como constitutivo da democracia.
O governo, por sua vez, acuado, parece medroso da democracia
quando evita questionar-se e, assim, se isola em cálculos equivocados (e haja
equívoco nas últimas contas) de todas as ordens. O fato é que a despeito dos
avanços sociais promovidos pelo governo, este não foi a campo para promover a
necessária alteração nas estruturas de poder. Como sugere Roberto Gargarella,
em seu último livro intitulado La sala de máquinas de la Constitucion, dos
siglos de constitucionalismo em América Latina (1810-2010), não adianta
apenas ampliar o rol de direitos, reinterpretá-los à melhor luz e permanecer
com uma maquinaria institucional não alterada. Outro Roberto, o Mangabeira
Unger, em seu recente lançado livro T he critical legal studies
movement: another time, a great task, também fala que sem reformatar os
arranjos institucionais do governo e sua relação com a sociedade, sem mudanças
estruturais, sem aumentar a temperatura da política como o nível do engajamento
popular na vida política cotidiana, a democracia padece. Ou seja, a efetivação
dos direitos sociais e econômicos esbarra em uma sala de máquinas institucional
de engrenagens antigas e inadequadas para a democracia, pois forjadas para um
modelo de Estado e de governo de concentração de poder, de renda e de
privilégios.
Interessante seria dirigir diretamente a pergunta ao segundo
Roberto, o Mangabeira Unger - que até pouco tempo participou do governo- acerca
dos limites e possibilidades de tomarmos a nossa democracia em nossas próprias
mãos, assumindo-a como um categoria em si mesma crítica e constituída pela
ideia de crise, de forma que com ela, sempre com ela e nunca contra ela -e de
maneira criativa- possamos alterar a nossa sala de máquinas e promover as
transformações necessárias nas anacrônicas engrenagens do poder.
* As opiniões expressas nesta coluna apresenta o ponto de
vista de sua autora e não reflete o
posicionamento do Judiciário Brasileiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário