sexta-feira, 4 de setembro de 2015

A ESCRAVIDÃO E A CULTURA NEGRA NO BRASIL


Ao longo da experiência histórica brasileira a diferença entre negros e brancos foi construída, culturalmente. A classificação e a hierarquização racial articuladas no contexto da escravidão insistiram em regular as relações entre negros e brancos mesmo depois do 13 de maio de 1888. Isso ocorreu porque, uma vez constituídas e reproduzidas, essas hierarquias foram introjetadas por outras instituições para além da própria escravidão. Em outras palavras: o racismo contaminou a polícia (o que explica a atenção que as forças policiais davam às rodas de samba e aos capoeiras), a Igreja, a burocracia do estado e a educação no Brasil, mesmo depois da abolição. Aí está um dos pontos mais queridos pelo ENEM nos últimos anos.
A escola, enquanto instituição social responsável pela organização, transmissão e socialização do conhecimento e da cultura, foi um desses espaços em que as representações negativas sobre o negro foram difundidas. E por isso mesmo ela também é determinante para que essas mesmas visões possam ser superadas. A fome, a pobreza e a desigualdade em nosso país têm incidido com mais contundência sobre os descentes de africanos, por isso alguns intelectuais defendem a ideia de que a marginalidade tem cor no Brasil. E a reversão desse quadro traz a necessidade de políticas públicas específicas, notadamente na educação.
Simultaneamente –  e isso é muito caro ao ENEM – o resgate da positividade da cultura negra, a sua beleza, e sua contundente participação na constituição da nossa formação cultural precisam ser exaltadas da mesma forma que o estudo acerca da escravidão é caminho incontornável para a compreensão da formação social brasileira.
A escravidão na Colônia
A escravidão foi uma instituição central para a montagem do projeto colonizador português a inícios da Idade Moderna. É conhecida a teoria de que a escravidão era o único meio de garantir braços em larga escala para a lavoura canavieira, na medida em que a utilização de trabalhadores livres numa área de fronteiras abertas (lembre-se que na colônia a terra não era uma mercadoria e, portanto, sua obtenção não era fruto de poder aquisitivo – assim que trabalhador livre se sujeitaria a trabalhar para alguém se poderia ser proprietário?) poderia gerar um cenário de pequenos proprietários produzindo para a própria subsistência – algo bem distante dos reais interesses mercantilistas portugueses.
Superada a ideia de uma escravidão indígena – tanto pela dispersão das tribos ao longo do litoral quanto pelo conhecimento do território que facilitava as fugas e o interesse da Santa Sé em catequizar o gentio – emerge outra justificativa para a utilização da mão de obra escrava negra: a escravidão poderia ser alimentada por um tráfico internacional altamente lucrativo que criaria um circuito de acumulação pela burguesia portuguesa, integrando diferentes áreas do império ultramarino como a África, a América e a Ásia.
Mas a escravidão possuía uma outra significação determinante. Dado que aqueles que se aventuravam pelo Brasil viam na posse de homens a obtenção de um status que seria mais difícil de alcançar na Europa, a compra de escravos era uma necessidade social além de econômica. E se esse produto tão determinante (o escravo) tinha sua venda monopolizada pelos portugueses, concluímos que a Metrópole monopolizava as regras de acesso a um artigo determinante e que, por isso, poderia exigir dos colonos- seu mercado consumidor de escravos- qualquer produto como forma de troca: o açúcar, por exemplo.
Assim, se a Igreja funcionava – através dos jesuítas – como instituição normatizadora dos costumes coloniais, os padrões de produção econômica eram exigidos organicamente pelo fornecimento de mão de obra escrava.
A escravidão-instituição acompanhou o desenvolvimento da própria colônia. O aumento da produção colonial, provoca o aumento do comércio de escravos. Crises econômicas determinavam menores quantidades de negros entrando nos portos brasileiros. A dinamização da economia e sua.complexificacão em meio à urbanização do século XVIII minerador determinou mudanças também na lógica escravocrata. Se os escravos rurais eram dedicados ao eito e com pouco contato com outros grupos sociais, os novos escravos urbanos recebiam a permissão de “ganhar dinheiro” – e por isso eram chamados de escravos de ganho – oferecendo serviços diversos nas ruas e entregando uma parte aos seus senhores. Essa dinamização complexifica também a própria realidade dos escravos que se por um lado têm mais possibilidades de se organizarem conjuntamente (lembrem-se das Irmandades Religiosas de negros na área das Minas Gerais), podem também redefinir seus signos de pertencimento à sociedade.
Escravos alforriados compram escravos e tentam se diferenciar através do uso de roupas e sapatos, o que se por um lado marca sua ascensão numa certa escala social cotidiana por outro não evita a manutenção do preconceito.

A escravidão no Brasil Independente
A chegada da família real em 1808 produziria mudanças drásticas no sistema escravocrata. A suspensão do pacto colonial permitiu a uma elite genuinamente colonial participar de uma atividade até então restrita aos portugueses. São oscomerciantes de grosso trato. Empolgados com as possibilidades de altíssimos ganhos com a atividade traficante esses comerciantes aumentam de maneira absurda a chegada de africanos aos portos brasileiros, notadamente o porto do Rio de Janeiro que desde 1763 era a sede administrativa da colônia e agora se tornava a sede do Império Português.
O Primeiro Reinado (1822-1831) marcou a montagem de um estado nacional em meio a uma sociedade politicamente invertebrada, de poucas conexões além da língua e ainda dependente da escravidão, instituição que recebia cada vez maiores críticas da comunidade internacional. Não à toa, alguns próceres do novo estado nacional defendiam abertamente o fim da escravidão como José Bonifácio. Entretanto o lobby dos comerciante de escravos e seus impostos, bem como os interesses de uma elite rural que não conseguia imaginar a economia agrário exportadora sem a mão de obra escrava pressionavam o governo ao ponto de conseguirem tornar inócua uma lei que abolia o tráfico de escravos, publicada em 1831 (Lei Para Inglês ver).
O Período Regencial (1831-1840) marcou uma guinada na concepção da escravidão no Brasil graças à Revolta dos Malês (1835). A insurreição de escravos islamizados em Salvador produzia o temor salutar na elite brasileira, também amedrontada pelas notícias que chegavam da independência do Haiti. Começam a ganhar força e corpo as demandas pelo fim da escravidão – ou ao menos do tráfico negreiro. A grande concentração de escravos no Brasil trazia o fantasma da haitinização do Brasil.
O Segundo Reinado (1840-1889) começa sob a urgência de consolidar um estado nacional ainda convalescente de um imperador que renunciara e de praticamente uma década de revoltas que ameaçaram a unidade territorial. A engenharia política da centralização e da ordem foi assumida pelos medalhões do Partido Conservador ou Saquaremas, notadamente a Trindade Saquarema(o Visconde de Itaboraí, o Visconde do Uruguai e Euzébio de Queirós).
Os Saquaremas reconheciam a necessidade de um poder central forte (representado pelo poder moderador) que anulasse as clivagens políticas e regionais internas em nome de uma ordem que, aos poucos, conduziria e disponibilizaria direitos políticos a uma quantidade cada vez maior de cidadãos rumo a uma lógica liberal.
Do outro lado do espectro político imperial estava o Partido Liberal, apelidado de Luzia. Figuras como Tavares Bastos, deputado por Minas Gerais, exigiam o liberalismo imediato, criticavam a centralização asfixiante do império e reivindicavam a ampliação dos direitos políticos e sociais como premissa da interação do Brasil com as sociedades civilizadas do mundo. Dentro do Partido Liberal as demandas pelo fim da escravidão eram cada vez maiores, ainda que o abolicionismo não configurasse uma bandeira efetiva do partido. A retórica liberal de crítica à centralização monárquica assustava a elite cafeicultura tradicional do Vale do Paraíba fluminense que via na manutenção da monarquia e garantia de permanência da escravidão.
Ciente da necessidade de equilíbrio do jogo político, o governo por vezes contemporizava com as demandas liberais indicando gabinetes (lembre-se que o Brasil era um estado Parlamentarista onde o primeiro ministro era escolhido pelo Imperador, por isso a possibilidade de alternar os dois partidos no poder) luzias que aceleravam a aprovação de medidas paulatinamente desarticuladoras da escravidão. Prova disso foi o empenho na atração de imigrantes a partir da década de 1850, através do sistema de parceria que contou com recursos do próprio governo e com a condução de um senador do Império, Nicolau do Campos Vergueiro.
A partir de finais da década de 1860 autores como Joaquim Nabuco, membro do Partido Conservador, assumem de maneira enfática o abolicionismo, exaltando uma lógica de desenvolvimento social pautada pela prudência, pela moderação mas sempre pelo desenvolvimento paulatino, progressivo das instituições em nome da modernização no Brasil. A escravidão precisava ser superada para que o Brasil se modernizasse. O recado abolicionista de Nabuco é mal interpretado pela ala conservadora dos Saquaremas, que viam no fim da escravidão uma ameaça à Monarquia. Isso causa um racha no principal partido do país.
A efervescência do quadro político seria radicalizada pela entrada dos republicanos na cena nacional. Em 1870, o Manifesto Republicano assumia a bandeira do federalismo e aos poucos abraçava a bandeira do abolicionismo. A monarquia deixava de ser uma garantia para os escravocratas- -o que obviamente desgastou a relação entre o governo e seus antigos defensores do Vale do Paraíba.
O negro na sociedade de classes
Desde 1871, a Lei de abolição gradual da escravidão foi aprovada no Brasil. Se o tráfico intercontinental de escravos já havia sido definitivamente pela Lei Eusébio de Queirós (1850), a chamada Lei do Ventre livre anunciava que a escravidão seria abolida lentamente, através da liberdade do ventre escravo.
Ao contrário da ameaça representada pela interferência direta da Inglaterra, em 1850 – lembrem-se da Bill Aberdeen – a lei de 1871 foi fruto de um jogo interno e a iniciativa foi da Coroa. Para muitos contemporâneos, a Lei do Ventre Livre não significou mais do que uma forma de dar segurança aos proprietários e legitimar a manutenção da instituição por mais algum tempo.
Em 1885, era publicada a Lei dos Sexagenários e, em 1888, a Lei Áurea acabava com a escravidão sem garantir indenização aos proprietários. Muitos deles assumiram definitivamente o apoio à República, e ficariam conhecidos como republicanos de última hora. Pouco mais de um ano depois, a República era proclamada.
A problemática da transição da ordem social escravocrata e senhorial para o ambiente do capitalismo próprio da República que nascia em 1889 evidenciaria a condição de marginalidade do negro. O esforço de inserção na nova ordem social –  ancorada no estilo de vida individualista e competitivo próprio do liberalismo capitalista – era frustrado pela desorganização de negros e mulatos no novo contexto social. Isso porque a extinção da escravatura não promoveu a reintegração dos antigos escravos, relegando-os ao seu próprio destino, mantidos à sombra da sociedade que se modernizava.
O estatuto de pessoas juridicamente livres não significou, portanto, mudança substancial na condição de excluídos dos antigos escravos, impedindo-os de alçarem-se categoria de cidadãos.Marcados pela pauperização e desorganização, os negros viviam dentro da cidade, mas não progrediam com ela. O fim da escravidão não significou portanto a liberdade para o negro.
Desafios do movimento negro no século XX
Para reverter esse quadro de marginalização no alvorecer da República, os libertos, ex-escravos e seus descendentes instituíram os movimentos de mobilização racial negra no Brasil, criando inicialmente dezenas de grupos (grêmios, clubes ou associações) em alguns estados da nação. Em São Paulo, a agremiação negra mais antiga desse período foi o Clube 28 de Setembro, constituído em 1897.
Simultaneamente, apareceu o que se denomina imprensa negra: jornais publicados por negros e elaborados para tratar de suas questões. A imprensa negra conseguia reunir um grupo representativo de pessoas para empreender a batalha contra o “preconceito de cor”. Esses jornais enfocavam as mais diversas mazelas que afetavam a população negra no âmbito do trabalho, da habitação, da educação e da saúde, tornando-se uma tribuna privilegiada para se pensar em soluções concretas para o problema do racismo na sociedade brasileira.
Na década de 1930, o movimento negro experimentou enorme avanço com a fundação, em 1931, em São Paulo, da Frente Negra Brasileira (FNB). Na primeira metade do século XX, a FNB foi a mais importante entidade negra do país conseguindo converter o Movimento Negro Brasileiro em movimento de massa. Em 1936, a FNB transformou-se em partido político e pretendia participar das próximas eleições, a fim de capitalizar o voto da “população de cor”, mas veio o golpe do Estado Novo em 1937 e os partidos políticos foram suspensos.
A reorganização efetiva do movimento negro se deu no final da década de 1970, no turbilhão dos movimentos de contestação à ditadura iniciada em 1964. Em 1978 dá-se a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU) inspirado na luta a favor dos direitos civis dos negros estadunidenses (Martin Luther King, Malcon X).

Com a reabertura política o movimento negro assumiu uma postura mais enfática e contundente. O 13 de Maio, dia de comemoração festiva da abolição da escravatura, transformou-se em Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo. A data de celebração do MNU passou a ser o 20 de Novembro (presumível dia da morte de Zumbi dos Palmares), a qual foi eleita como Dia Nacional de Consciência Negra.  Para incentivar o negro a assumir sua condição racial, o MNU resolveu não só despojar o termo “negro” de sua conotação pejorativa, mas o adotou oficialmente para designar todos os descendentes de africanos escravizados no país. Assim, ele deixou de ser considerado ofensivo e passou a ser usado com orgulho pelos ativistas, o que não acontecia tempos atrás. O termo “homem de cor”, por sua vez, foi praticamente proscrito. Outra característica do movimento negro nos últimos anos é que ele “africanizou-se”, buscando a promoção de uma identidade étnica específica do negro, com a incorporação do padrão de beleza, da indumentária e da culinária africana.

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