terça-feira, 23 de abril de 2013

Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico - Friedrich Engels

Texto & Contexto

Em 1875, Eugênio Dühring, professor da Universidade de Berlim, publicou um livro que daria conta de uma teoria socialista e de um plano de reorganização da sociedade. Uma tentativa de chamar a seu redor setores do movimento operário para enfraquecimento do Partido Socialista da Alemanha, que vinha se tornando uma potência. Engels escreveu uma série de artigos com severas críticas às pretensões reacionárias desse escritor, reunindo-os em um livro sob o título "A subversão da Ciência pelo senhor Eugênio Dühring", publicado em 1878, que passou a ser conhecido como Anti Dühring. Em 1880, Engels destacou três capítulos desse livro para ser publicado em um folheto sob o título "Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico".

Mais sobre o contexto: Prefácio à edição inglesa.

O Texto

Estruturado em três capítulos.

No Capítulo I, Engels assinala os méritos das teorias socialistas do passado (principalmente as dos socialistas utópicos) e discute seus limites e equívocos, salientando que, "para converter o socialismo em ciência era necessário, antes de tudo, situá-lo no terreno da realidade".

No Capítulo II, sintetiza características do método dialético (em oposição ao metafísico) e da concepção materialista (em oposição à idealista), mostrando que é a concepção materialista de história (o materialismo dialético-histórico) que permite a análise científica do modo capitalista de produção, o entendimento de como se dá a exploração do trabalho sob esse regime e a demonstração da necessidade e possibilidade de sua superação. "Desse modo o socialismo já não aparecia como a descoberta casual de tal ou qual intelecto genial, mas como o produto necessário da luta entre as duas classes formadas historicamente: o proletariado e a burguesia".

No Capítulo III, analisa as contradições básicas do capitalismo (capital x trabalho, burguesia x proletariado) e suas manifestações no conflito entre as forças produtivas e as relações de produção: "a incompatibilidade entre a produção social e a apropriação capitalista"; "o antagonismo entre a organização da produção dentro de cada fábrica e a anarquia da produção no seio de toda a sociedade". Enfatiza a revolução proletária como ato que socializa os meios de produção, põe fim à anarquia e inicia a superação da exploração, rumo ao "salto da humanidade do reino da necessidade para o reino da liberdade". E situa o socialismo científico como "expressão teórica do movimento proletário" - capaz de infundir-lhe "a consciência das condições e da natureza de sua própria ação".

Alguns Destaques

I - O socialismo científico tem suas raízes nos fatos materiais da sociedade moderna e nas idéias dos grandes pensadores do século XVIII.

· Os socialistas utópicos: Socialistas, porque suas idéias - enquanto crítica das injustiças e das condições de exploração da sociedade capitalista - traziam, em germe, posições econômicas e políticas que apontavam para o fim da exploração do homem pelo homem. Utópicos, no sentido de vislumbrar uma ordem social ideal, não realizável nas condições concretas em que viviam.

· Traço comum entre eles: não atuavam como representantes dos interesses do proletariado - "suas teorias incipientes refletem o estado incipiente da produção capitalista e a incipiente condição de classe" (o proletariado ainda não despontara com ação política própria). Predominavam, em suas teorias:

- a reiteração das idéias da revolução francesa: império da razão e da justiça eterna - instauração de um Estado racional, capaz de ajustar a sociedade aos ditames da razão;

- a constatação de que as instituições sociais e políticas reais não correspondiam às idealizadas pelos revolucionários burgueses;

- a idéia de que as injustiças seriam corrigidas se aparecesse um gênio capaz de convencer os homens sobre a verdade, enfim descoberta;

- a pretensão de tirar da cabeça a solução para os problemas sociais e traduzi-la em experiências que pudessem servir de modelo para um sistema mais perfeito de ordem social.

Principais idéias

a)    Saint-Simon (1760-1825) - intelectual de origem nobre.

- somente os que trabalham podem usufruir dos bens da sociedade: "todos os homens devem trabalhar";
- necessidade da luta dos "trabalhadores" (os operários assalariados, mas também os fabricantes, comerciantes e banqueiros) contra os "ociosos" ( a nobreza, o clero e todos os que viviam de renda, sem atuar na produção ou no comércio);
- a Revolução Francesa como luta de classes entre a nobreza, a burguesia e os despossuídos; segundo Engels, "uma descoberta verdadeiramente genial" para a época;
- a política como ciência da produção - em germe, a noção da situação econômica como base das instituições políticas e a idéia de "abolição do Estado".

b) Fourier (1772-1837) - escritor, crítico da sociedade burguesa.

- crítica das condições sociais existentes - desmascarando a falácia do discurso burguês;
- crítica das relações entre os sexos e da posição da mulher na sociedade - "o grau de emancipação da mulher numa sociedade é o barômetro natural pelo qual se mede a emancipação geral";
- análise das contradições da civilização - "a pobreza brota da própria abundância";
- visão dialética - "toda fase histórica tem sua vertente ascensional, mas também sua ladeira descendente".


c) Owen (1771-1858) - sócio e gerente de uma indústria têxtil.
- defesa de condições humanas de vida e educação aos operários e seus filhos;
- com medidas colocadas em prática na sua empresa, uma espécie de colônia-modelo: jardins de infância, redução da jornada de trabalho, manutenção de emprego e salário, mesmo em ocasiões de crise;
- constatação de que a filantropia não diminuía a distância entre ricos e pobres; daí a perspectiva comunista - idéia de reforma social que mexesse na propriedade privada;
- participação em movimentos sociais e luta por progressos para a classe trabalhadora: limitação do trabalho da mulher e da criança nas fábricas; criação de cooperativas de produção e de consumo ("o comerciante e o fabricante não são indispensáveis");

II - O Socialismo Científico expressa os avanços do pensamento filosófico, sintetizando, dialeticamente, o materialismo mecanicista francês e a dialética idealista alemã.

- A elaboração do materialismo histórico só se tornou possível com o desenvolvimento da filosofia, as descobertas científicas e os fatos históricos do século XIX e como fruto de uma dupla revolução:
- na concepção da natureza - noção de que a natureza tem sua história no tempo, com base em descobertas como as de Darwin (1809-1882), mostrando que os mundos e as espécies orgânicas que os habitam em condições propícias desenvolvem-se, transformam-se;
- na concepção de história - idéia de luta de classes, com base em fatos históricos como a insurreição operária em Lyon (1831) e o movimento dos cartistas ingleses (1838-1842), revelando que a luta entre o proletariado e a burguesia assumia o primeiro plano da história dos países europeus (nos quais se desenvolvia, de um lado, a grande indústria e, de outro, a dominação política recém-conquistada da burguesia).

Dialética e Metafísica – métodos de investigação da realidade
Dialética
Metafísica
- análise de conjunto: fatos, fenômenos, processos em sua dinâmica, substancialmente variáveis (transições,concatenações,fluxos e refluxos);
- análise das partes: fatos, fenômenos, processos estaticamente, isolados, como substâncias fixas, (em ciclos estreitos, um após outro, como algo perene);
- pólos antitéticos, mas inseparáveis – penetram-se mutuamente (algo é e não é ao mesmo tempo).
- sim ou não, isto ou aquilo, é ou não é, positivo x negativo, causa x efeito.
Materialismo e Idealismo – concepções de mundo, de homem e de sociedade
Materialismo
Idealismo
- concebe as idéias como imagens mais ou menos abstratas dos objetos e fenômenos da realidade;
- concebe as coisas e seu desenvolvimento como projeções realizadas da idéia, que lhes antecede;
- explica a consciência do homem por sua existência.
- explica a existência do homem por sua consciência.
Concepção de História como movimento da sociedade – análise dialética
Concepção materialista de história:
Concepção idealista de história:
- em cada época,as idéias, crenças, conhecimentos e instituições jurídicas e políticas relacionam-se reciprocamente com a base econômica (relações de produção e de troca).
- a produção e todas as relações econômicas só existem como elemento secundário dentro da “história cultural”.

outras características desses métodos e concepções:

O desenvolvimento dos métodos de pensamento e das concepções de mundo se deu não de forma linear e independente, mas de modo dialético, com relações recíprocas.

a)    Já na antiga filosofia grega aparece a dialética, mas ainda rudimentar, insuficiente para permitir o conhecimento da realidade:
- a ciência progrediu, principalmente a partir do século XV, com o emprego do método metafísico no estudo de fenômenos particulares;
- esse método, importante nas ciências naturais, foi transportado para a filosofia, sob a forma do método metafísico de especulação (separação corpo x espírito, coisa x idéia da coisa, matéria x consciência).

b)    A moderna filosofia alemã, especialmente com Hegel (1770-1831), recupera a dialética na análise da natureza, da sociedade e do pensamento:
- concebendo como totalidade a natureza, a sociedade e o espírito humano, em íntima conexão, constante movimento, transformação e desenvolvimento e examinando a história da humanidade não como caos, mas como processo, que pode ser acompanhado pelo pensamento, em suas leis internas, suas etapas graduais, seus desvios;
- Hegel libertou da metafísica a concepção de história, tornando-a dialética, mas viu-se limitado pelos próprios conhecimentos, pelos conhecimentos e concepções de sua época e por sua concepção essencialmente idealista.

c)    A consciência da inversão em que incorria o idealismo alemão levou ao materialismo histórico, substancialmente dialético:
- concepção da história da humanidade como processo de desenvolvimento, procurando descobrir suas leis dinâmicas;
- entendimento da luta de classes como fruto das relações de produção e de troca, refutando as doutrinas burguesas da identidade entre capital e trabalho e da harmonia universal e bem-estar geral das nações com base na livre concorrência;
- explicação da relação entre a estrutura econômica e a superestrutura (instituições jurídicas e políticas, idéias, conhecimentos e crenças) de cada época histórica.

outras características das relações entre dialética, metafísica, materialismo e idealismo, ao longo da história: Capítulo II

Socialismo Utópico
Socialismo Científico
- incompatível com a visão materialista de história (do mesmo modo que a concepção de natureza do materialismo francês não se ajustava à dialética e às novas ciências naturais);
- exposição do modo capitalista de produção em suas conexões históricas, pondo a nu seu caráter interno, ainda oculto;
- crítica ao modo capitalista de produção existente e suas conseqüências, mas sem conseguir explicá-lo nem destruí-lo ideologicamente, e também sem explicar claramente como nascia e em que consistia a exploração da classe operária.
- descoberta da mais-valia – massa cada vez maior do capital acumulado pelas classes que detêm os meios de produção (na compra da força de trabalho do operário, o capitalista se apropria do trabalho não pago);
- reconhecimento do capitalismo como modo de produção necessário para uma determinada época histórica, demonstrando também a necessidade e possibilidade de sua superação.

outras características do socialismo científico: Capítulos II e III.

III- O Socialismo Científico explica o modo de produção capitalista, examinando-o em suas condições e características concretas, captando suas contradições e apontando para a sua superação.

O capitalismo nasceu e desenvolveu-se no seio das contradições do regime feudal e buscando superar seus entraves:
- sob o regime feudal, a troca, compra e venda de mercadorias permitiam a satisfação das necessidades dos produtores individuais, numa elementar divisão social de trabalho, sem plano nem sistema, e a propriedade dos produtos baseava-se no trabalho pessoal;
- a manufatura e o artesanato, que se desenvolviam sob a influência da burguesia, chocavam-se com os entraves feudais das corporações e com os privilégios e vínculos institucionais caraterísticos da ordem feudal;
- no regime capitalista, instituem-se a livre concorrência, a liberdade de domicílio, a igualdade de direitos dos possuidores de mercadorias; o vapor e a maquinaria possibilitam a transformação da manufatura em grande indústria e acelera-se o movimento as forças produtivas; implanta-se a organização planificada em cada fábrica, revolucionando a produção, tornando-a social - mantendo, contudo, as formas privadas de apropriação das mercadorias.

Em um nível mais alto de desenvolvimento, a grande indústria passa a encontrar entraves no modo de produção capitalista:
- o trabalho assalariado torna-se regra e forma fundamental de toda a produção e converte-se em ocupação exclusiva do operário - expressando o divórcio entre os proprietários dos meios de produção e os possuidores da força de trabalho;
- a expansão dos mercados não pode desenvolver-se ao mesmo ritmo que a da produção, levando a crises, cada vez mais freqüentes;

- aprofunda-se o conflito entre as forças produtivas e as relações de produção: produção social versus apropriação privada; organização da produção em cada fábrica versus anarquia da produção no seio da sociedade;
- "o socialismo moderno não é mais que o reflexo desse conflito material na consciência, sua projeção ideal nas cabeças, a começar pelas da classe que sofre diretamente suas conseqüências: a classe operária".

Manifestações das contradições do capitalismo e de suas crises
O caráter social das forças produtivas compele à transformação das relações de produção, que exige a socialização dos meios de produção.
- no capitalismo avançado, os capitalistas isolados se juntam em sociedades anônimas e trustes; o Estado - representante oficial da burguesia - toma a seu cargo o comando direto da produção, mas as forças produtivas mantêm sua condição de capital (fruto da exploração do trabalho); quanto mais forças produtivas passam à propriedade do Estado capitalista tanto mais ele se converte em "capitalista coletivo" e tanto maior quantidade de cidadãos ele explora;
- a propriedade do Estado sobre as forças produtivas não é a solução para as contradições do capitalismo, mas abriga já em seu seio o instrumento para chegar à solução - que exige o reconhecimento do caráter social das forças produtivas modernas e, conseqüentemente, a harmonização dos modos de produção, de apropriação e de troca; para isso, só há um caminho: que a sociedade tome posse das forças produtivas e passe a dirigi-las;
- é necessário termos consciência dessa possibilidade: as forças da sociedade atuam, enquanto não as conhecemos, de modo cego e violento - mas, uma vez conhecidas, logo que saibamos compreender sua ação, suas tendências e seus efeitos, está em nossas mãos sujeitá-las e por meio delas alcançar os fins propostos;
- o proletariado toma em suas mãos o poder do Estado e principia por converter os meios de produção em propriedade do Estado; quando não houver mais classe que precise ser submetida, quando o Estado se converter, finalmente, em representante efetivo de toda a sociedade, tornar-se-á por si mesmo supérfluo; o governo sobre as pessoas será substituído pela administração das coisas e pela direção dos processos de produção;
- apossando-se o proletariado dos meios de produção, a anarquia da produção social cederá lugar a uma organização planejada e consciente, criando condições para que os homens comecem a ter plena consciência do que fazem: donos por fim de sua existência social, tornam-se donos da natureza, senhores de si mesmos, homens livres.


Atenção!
A afirmação de que o marxismo converteu o socialismo em ciência refere-se ao esforço teórico para a explicação do modo de produção capitalista, na perspectiva de sua superação: em especial, a concepção materialista de história e a revelação do segredo da exploração capitalista através da mais valia, que devemos a Marx. Longe de constituir-se em verdades prontas e acabadas, trata-se de um sistema de pensamento que, como diz Engels, "nos resta desenvolver em todos os seus detalhes e concatenações" - estudando cada realidade, em suas transformações.

Sugestão de leitura

As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo - Lênin - Em: Obras Escolhidas, volume 1, Ed. Alfa-Omega. Ou na brochura de mesmo título - Ed. Global.
A Doutrina de Marx (O Materialismo Filosófico/A Dialética/A Concepção Materialista de História/A Luta de Classes) - Lênin - Idem.
Materialismo Mecanicista e Materialismo Dialético - Paul Langevin - Princípios n.º 18.
Por que o socialismo? - Albert Einstein - Princípios n.º 36.
…E o Socialismo Virou Ciência Bernardo Joffily

Vários atributos contribuíram para transformar Do socialismo utópico ao socialismo científico no segundo texto marxista mais lido e relido pelos trabalhadores do mundo inteiro - atrás apenas do Manifesto do partido comunista. Pesa, aí, a linguagem simples, enxuta, direta, acessível do livrete de Friedrich Engels. Mas basta folhear esta pequena obra-prima do maior colaborador de Marx para perceber que não é um mero texto de vulgarização.

Engels, em resumo, historia como e por que o socialismo se transformou em ciência. Para tanto, recupera os grandes pensadores socialistas que precederam o marxismo - Claude Henri de Saint-Simon (1760-1825), Charles Fourier (1772-1837) e Robert Owen (1771-1858). Destaca sua contribuição à crítica do capitalismo, mas também as limitações de suas doutrinas, que continham intuições às vezes geniais, mas careciam de alicerces sólidos.

Dois caminhos opostos

Os socialistas utópicos, como ficaram conhecidos (o nome vem da palavra grega utopia, "lugar nenhum") dedicaram seus principais esforços a conceber como seria uma sociedade futura, nova, avançada, próspera, fraterna, racional, livre dos males do capitalismo. Descreveram-na minuciosamente, e tanto Fourier como Owen chegaram a tentar levá-la à prática, em escala experimental.

Já Marx e Engels seguiram o caminho inverso. Pouco se ocuparam em esmiuçar a sociedade do futuro, descrevendo-a apenas em seus traços mais gerais. Todos os seus estudos tiveram como foco a sociedade do presente. Trataram de dissecar o capitalismo, reconstituir seu nascimento e sua trajetória, revelar suas entranhas, expor à luz do dia os mecanismos secretos do seu funcionamento, estudar suas contradições e as forças sociais que o protagonizam.

Os utópicos escreveram e lutaram em nome da "razão", da "justiça" e da "verdade" abstratas e a-históricas, dentro da melhor tradição do século 18. Marx e Engels, ao contrário, descobriram que os homens não "vivem como pensam" mas sim "pensam como vivem".

"Desse modo - afirma Engels - o socialismo já não aparecia como a descoberta casual de tal ou qual intelecto genial, mas como o produto necessário da luta entre as duas classes formadas historicamente: o proletariado e a burguesia".

Convém sublinhar aqui, entre parênteses, que isso não significa desprezar o pensamento e a dinâmica de seu desenvolvimento. O próprio Engels, no prefácio à edição inglesa, normalmente publicado junto com Do socialismo, fornece um excelente exemplo de "história das mentalidades" (como os acadêmicos de hoje costumam dizer) firmemente ancorada no método materialista dialético.

As premissas do socialismo

Engels localiza, dentro do próprio desenvolvimento capitalista, as contradições que abrem caminho para o socialismo. A produção é social, e socializa-se sempre mais, enquanto a apropriação é privada, e concentra-se a cada dia - através da concorrência - em um círculo mais reduzido de grandes burgueses. Desta contradição básica nasce o irremediável (embora tantas vezes negado, contestado e exconjurado) antagonismo entre as duas classes fundamentais da sociedade moderna, o proletariado e a burguesia. E nasce também daí uma terceira contradição, entre a organização cada vez mais expandida e sofisticada da produção, no nível de cada empresa, e a anarquia da produção, no nível de toda a sociedade, condenando o sistema à tortura das crise cíclicas.

Mais de um século depois de escrita, a análise de Engels impressiona pela atualidade. Ali está, exposta a nu, a explicação dos verdadeiros motivos econômico-sociais do chamado desemprego tecnológico. É verdade que o ciclo das crises já não é dez anos, como ocorria no século 19. Os mecanismos de intervenção "anticíclica", criados no nível dos Estados burgueses (após o crack de 1929) e de todo o mundo capitalista (ao fim da II Guerra) quebraram essa regularidade de relógio. Mas mostram-se impotentes para evitar ou vencer as crises, como mostra a onda recessiva de 1997-98, que já derrubou os tigres asiáticos, o Japão, a Rússia e agora o Brasil.

Os "neo-utópicos"

No ambiente político-ideológico pós-URSS, a utopia vem sendo relançada por certas áreas de esquerda. Os "neo-utópicos" se assumem como tal como forma de contestarem o conformismo dos intelectuais do tipo Fernando Henrique Cardoso, que renunciaram as transformações de fundo na sociedade, acomodando-se à onda neoliberal. Ao mesmo tempo, não é por acaso que ressuscitaram o nome usado pejorativamente pelos comunistas desde o Manifesto de 1848. Tratam - às vezes explícita e ativamente - de diferenciar-se do marxismo, contestando justamente a possibilidade de uma fundamentação científica para a luta por uma nova sociedade.

A ressurreição de um rótulo que parecia relegado ao museu das relíquias doutrinárias é um sinal do clima ideológico deste fim-de-século de restauração e reação. E nós marxistas temos, hoje mais do que antes, todos os motivos para reafirmarmos e defendermos o caráter científico de nosso corpo teórico. Nem por isso deixamos de saudar a disposição dos "neo-utópicos" para integrar a frente-única da resistência ao "pensamento único" neoliberal.

 

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