sexta-feira, 9 de março de 2012

PRIMÓRDIOS DO POVOAMENTO. O PAU-BRASIL. PRIMEIROS NÚCLEOS. O REGIME DAS CAPITANIAS E DO GOVERNO-GERAL.

A Carta 
A Carta de Caminha a D. Manuel nenhum a esperança dava à coroa quanto a produtos de fácil comércio e grandes lucros e muito menos quanto a existência de ouro ou outros minerais preciosos. 
Dava a entender, perfeitamente, que a terra precisava ser trabalhada para produzir, o que não acontecia na Índia em que a questão não era produzir, mas comerciar.
"Até agora — escreve Pêro Vaz de Caminha — não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro e Minho, porque neste tempo dagora assim os achávamos como os de lá.
As águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas tem!"
É de se admitir que notícia desta natureza, embora bastante poética, não era de entusiasmar um rei embalado pelos sucessos de Vasco da Gama e pelas possibilidades, que, depois, se veria serem mais ilusórias, que o Oriente oferecia.
Outra informação que não dava grande esperança de bom comércio, foi a de Vespucci, ao afirmar que, aqui, nada se encontrava de proveito, "exceto infinitas árvores de verzino (pau-brasil), cana fístula, das quais se extrai mirra e maravilhas da natureza, cuja narração seria longa."
O pau-brasil, embora conhecido na Europa desde a Idade Média, em que era chamado de lignum brasile, e usado no preparo de tinta para indústria, fabricação de móveis etc, não despertou interesse em Portugal, preocupado, como dissemos, com o comércio da índia mais do que com as terras da América.
Os franceses, entretanto, logo começaram a freqüentar o litoral brasileiro em busca da preciosa madeira.
Três coisas devia fazer Portugal: explorar, tomar melhor conhecimento da costa e prevenir-se para sua defesa.
A primeira expedição, à qual já nos referimos, de 1501, cujo comandante parece ter sido Gaspar de Lemos, o que não se sabe com segurança, teve objetivo de reconhecimento. Seu espírito era mais de uma expedição científica.
Em 1503, outra expedição, esta sob o comando de Gonçalo Coelho, devia explorar mais ao sul. Era composta de seis navios, um dos quais comandado por Américo Vespucci.
"Diante de ilha desabitada, que depois se chamou Fernando de Noronha, naufragou a Capitânia, na noite de 10 de agosto.
Por ordem do capitão, Vespucci foi à procura de ancoradouro para a frota. Fundeou. Depois de oito dias de espera, resolveu levantar ferros.
Avistou uma nau e seguiu com ela, depois de tomar água e lenha, rumou sul-sudoeste.
Após dezessete dias de navegação, Américo Vespucci, finalmente, chegou ao litoral de Santa Cruz, atingindo-o na altura da baía de Todos os Santos, onde permaneceu dois meses e quatro dias.
Navegou, em seguida, para o sul, chegando a um porto distante duzentas c sessenta léguas do anterior. Permaneceu aí cinco meses e fundou uma fortaleza (Cabo Frio), onde deixou vinte e quatro homens. Fêz, igualmente, uma entrada pelo sertão, em companhia de trinta homens. Carregado de pau-brasil, chegou a Lisboa de volta, após setenta e sete dias de travessia, a 18 de junho de 1504."
O pau-brasil que chegava a Portugal, despertou a cobiça dos franceses, que, logo, passaram a visitar o litoral brasileiro, na prática do contrabando. Aliaram-se aos índios, o que lhes facilitava as manobras e lhes fortalecia a ação.
Portugal procurou resolver, amigavelmente, com a França, o caso que surgira com o envio de embarcações dessa nacionalidade ao Brasil para carregar a madeira vermelha. De nada valeu o meio diplomático, pois que Francisco I, chacoteando, perguntou "qual a cláusula do testamento de Adão em que este dividira o mundo entre Portugal e Espanha."
A este descaso, a resposta foi dura.
Cristóvão Jacques aqui esteve, em 1516 e 1527, para dar resposta, no campo da luta, aos que não atenderam as reclamações no terreno da diplomacia.
"Ainda nos últimos tempos de D. Manuel, começaram os protestos contra a presença dos mair (franceses); com a ascensão de D. João III a situação agravou-se. Reconhecida a inutilidade de embaixadas à corte de França, e de promessas compradas a peso de ouro e jamais cumpridas, o rei de Portugal resolveu desforrar-se. Uma armada de guarda-costa veio em 1527 ao Brasil comandada por Cristóvão Jacques, que já estivera antes na terra e deixara uma feitoria junto a Itamaracá, de volta de uma expedição ao Prata. Desde Pernambuco até a Bahia e talvez Rio de Janeiro, Cristóvão Jacques deu caça aos entrelopos; segundo testemunhos interessados, não conhecia limites sua selvageria; não lhe bastava a morte simples, precisava de torturas e entregava os prisioneiros aos antropófagos para que os devorassem. Mesmo assim ainda levou trezentos prisioneiros para o Reino. Devia ter causado um mal enorme aos franceses.
As armadas de guarda-costa eram simples paliativos; só povoando a terra, cortar-se-ia o mal pela raiz. Cristóvão Jacques ofereceu-se a trazer mil povoadores; oferecimento semelhante fêz João de Melo da Câmara, irmão do capitão-mor da ilha de S. Miguel. Indignava-se este vendo que até então a gente que vinha ao Brasil limitava-se a comer alimentos da terra e tomar as índias por mancebas, e propôs trazer numerosas famílias, bois, cavalos, sementes, etc.
Preferiu-se a estas propostas práticas e razoáveis aparelhar nova e mais poderosa armada às ordens de Martim Afonso de Sousa, meio termo entre armada de guarda-costa e expedição povoadora."
Antes, porém, de tratarmos da armada de Martim Afonso, falemos do pau-brasil nos primeiros trinta anos da nossa história.
Monopólio e arrendamento do pau-brasil
Pela importância do pau-brasil, D. Manuel o declarou, logo, monopólio da coroa. Este monopólio durou mais de três séculos e meio, pois que só em 1859, o Brasil independente e já em pleno segundo reinado, foi extinto.
Mesmo importante o pau-brasil não podia ombrear com as riquezas da índia. E não podendo explorá-lo diretamente,fêz o rei o trato do pau-brasil, arrendando sua exploração a um consórcio cujo principal sócio era Fernando de Noronha (ou Loronha), rico cristão novo, de grande prestígio e influência em Lisboa. Deste consórcio faziam parte negociantes portugueses e italianos, aliás o que comumcnte sucedia nas empresas então organizadas, como aconteceu na própria armada de Pedro Álvares Cabral.
O trato (ou contrato) do Brasil tinha duração de três anos, mas foi, não há dúvida, renovado diversas vezes. A respeito dos seus termos faltam notícias que melhor possam esclarecer a matéria. Sabe-se, no entanto, que a sociedade se obrigou a mandar anualmente três naus à América Portuguesa, com o objetivo de descobrir 300 léguas de costa e pagar um tributo à coroa, correspondente a 20% da madeira extraída.
"Foi nesse comércio que se utilizou da nau Bretoa de cujo regimento circunstanciado existe cópia nos arquivos portugueses. Na sua viagem em 1511, diz-se que essa nau transportava 5.000 toros de pau-brasil, alguns escravos e muitos papagaios e macacos. Os toros deviam pesar de 20 a 30 quilos, uns pelos outros.
Arrendadas as terras e correndo por conta dos arrendatários os gastos com sua manutenção, redundava em lucro para a fazenda real a soma que pagavam. O sistema funcionou bem por algum tempo, até que se tornou evidente não poder o concessionário, mais tarde (1504) donatário da Ilha de São João, que lhe recebeu o nome, manter o seu negócio em lutas constantes com inimigos de fora e domésticos. Com aumento dos riscos, parece que a defesa do domínio passou a ser feita pela coroa e os rendimentos não poderiam ter os desenvolvimentos desejados."
Na verdade, Fernando de Noronha não tinha condições de defender a costa e, daí, a presença de franceses cada vez maia assídua, o que viria redundar nos desentendimentos entre Portugal e França, e disto resultariam as expedições comandadas por Cristóvão Jacques.
Durante os três primeiros decênios, mesmo com as dificuldades existentes, as expedições portuguesas, o trato do pau-brasil, que para sua extração exigia a formação de feitorias, foram surgindo núcleos povoadores pelo amplo e desprotegido litoral.
Entre as feitorias — pois que admitimos a existência de outras de menor significação e por isso não registradas — destacam-se: Cabo Frio, Pernambuco, São Vicente, Porto Seguro e Cananéia.
Durante esse período, a incipiente vida econômica nacional giraria era torno do pau-brasil, o principal produto exportável.
 
Expedição de Martin Afonso de Sousa
Martim Afonso de Sousa veio para o Brasil com a dupla função de combater o francês e quantos infestassem o litoral e de dar início à sua colonização regular. Sua missão precípua, era, porém, combater piratas.
Tinha-lhe o rei especial afeto.
Camões o consagrou, em estrofe por nós citada, como vencedor do "pirata francês, ao mar usado."
Noutra passagem dos Lusíadas, temo-lo já governador da Índia, após sua partida do Brasil
"Tendo assim limpa a Índia dos imigos, / virá depois com cetro a governá-la, / sem que ache resistência nem perigos, / que todos tremem dele e nenhum fala.
Só quis, provar os ásperos castigos / Baticalá, que vira já Bcadala: / De sangue e corpos mortos ficou cheia J e de fogo e trovões desfeita e feia.
* * *
Este será Martinho, que de Marte / o nome tem coas obras derivado; / tanto em armas ilustre em toda parte / quanto em conselho sábio e bem cuidado".
Pelos versos de Camões se vê que o forte de Martim era o combate. E êle mesmo assim se considera. Na Relação de sua vida6, que enviou à rainha Catarina, quando se refere ao Brasü, lembra, apenas, o combate que sustentou contra os franceses.
Mas, mesmo assim considerando, a semente que lançou no então extremo Sul da Colônia, indica que sua obra era de maior amplitude e seu objetivo mais largo. O continente, além da imaginária linha de Tordesilhas, já se ia povoando de espanhóis que mantinham comércio com os habitantes de São Vicente, e era preciso contê-los fora da América Portuguesa.
Trazia na sua expedição 400 homens e sua ida até o Chuí levando-os todos, mostra bem que estava sondando a costa, para ver onde deveria se instalar.
Voltando a São Vicente, onde já havia um pequeno povoado, conhecido por Porto dos Escravos de São Vicente, viu que ali podia desembarcar sua gente e suas coisas e dar começo à sua obra civilizadora.
São Vicente já era habitado por portugueses, quando ali chegou Martin Afonso de Sousa. E até um deles, o famoso João Ramalho já havia galgado o contraforte da Serra e se fixara na sua Santo André da Borda do Campo. No litoral, entre outros, encontravam-se o enigmático bacharel, que por residir em Cananéia lhe tomou o nome; Francisco Chaves, que comandou a expedição que não mais voltou e que, segundo tudo indica foi exterminado no lugar onde o rio Iguaçu desemboca no Paraná. E outros tantos. Esses europeus teriam chegado com as primeiras expedições, alguns; outros seriam náufragos.
O porto de São Vicente logo tornou-se conhecido na Península Ibérica, e isto fêz com que fosse "instância buscada pelos navios de Rodrigo d’Acunã, de Diogo Garcia de Moguer e de Sebastião Caboto.
Data de então, o que passaremos a nomear — o porto dos escravos de Sam Vicente."
Os moradores de São Vicente "oriundos de um bom povo lavrador eles aí já faziam granjeio das lavouras, pois colhiam hortaliças (…) como também mandioca e milho (ou abati), do que faziam farinha, segundo se depreende do depoimento de Sebastião Caboto.
Havia galinhas e porcos de Espanha em muita abundância — informa Santa Cruz8 — criação feita cm um ilhéu que demorava entre as duas ilhas de São Vicente e Santo Amaro — e que bem justifica o abastecimento de carne e outras vitualhas anteriormente feito à armada de Diogo Garcia de Moguer. O pescado era abundante, e a pesca feita ou à maneira dos silvícolas ou valendo-se de anzóis que muitas vezes serviram para troca de escravos.
Se forneciam lenha às naus é porque já tinham machados, não somente de pedra, que as próprias expedições clandestinas favoreceram; se preparavam farinha, é porque talvez já houvesse alguma atafona de moagem tão peculiar às aldeias portuguesas ou porque a estilo dos tupis a fabricariam, espremendo mandioca no tipiti, desmanchando a massa sobre a urupema, e o pó lançando num alguidar sobre o fogo onde se enxugava e cozia — segundo Gabriel Soares; se possuíam armamento para uma rude torre de dejesa que os resguardava das flechas dos índios, é porque cambiavam, com a gente das naus clandestinas, escravos que preavam nas guerras, por alguns arcabuzes, passa-muro ou ferro velho, que improvisado ferreiro ou armeiro trabalhava ao fogo; se criavam galinhas e porcos de Espanha é porque lhes haviam trazido da Península Ibérica casais a bordo dessas mesmas naus clandestinas; se trabalhavam a madeira, construíam bergantins e aparelhavam, é que além do oficial do risco, que nesse caso seria Gonçalo da Costa, algum outro colono teria habilidades de sarapina, petintal, calafate ou bragueiro no estaleiro modesto que existiu nessas ribeiras."
Pelo que se acaba de ler, São Vicente era um povoado sem organização oficial, mas entre seus habitantes existia um consenso unânime, um direito consuetudinário normativo das relações daquela incipiente comunidade.
Martin Afonso ali chegando deu a São Vicente organização administrativa de conformidade com as leis do reino. É certo, segundo lembra Washington Luís, que só a 20 de janeiro de 1535, quando Martini já não mais se encontrava no Brasil, que recebeu poderes para "fazer vilas", o que, sob certo aspecto pode trazer dúvidas quanto à legalidade do seu ato.
Diz o ilustre historiador:
"Durante o tempo em que Martin Afonso de Sousa permaneceu em São Vicente, isto é, de janeiro de 1532 a meados de 1533, não era êle ainda donatário da capitania, nem mesmo a costa do Brasil havia sido repartida em capitanias hereditárias, não havia êle ainda recebido a doação que lhe deu poderes para criar vilas."
Se quanto à fundação do povoado de São Vicente cabe toda a razão a Washington Luís em afirmar que não foi Martini Afonso o seu fundador, quanto à vila não se pode estar do seu lado. E isto apesar do documento citado.
Assim pensamos, porque nem sempre as antigas municipalidades tiveram origem em um ato do poder central ou do poder legislativo.
Cortines Laxe ensina:
"As municipalidades do Brasil, como as primitivas municipalidades portuguesas, não tiveram todas origem em ato do poder legislativo ou autoridade central. O desenvolvimento de população em um ponto do território e a conseqüente necessidade de uma administração local que se curasse dos imediatos interesses desse núcleo de população, levaram muitas vezes os povos a quebrar os laços de dependência que os prendiam a um município, proclamando sua emancipação, constituindo-se em município independente o que completava-se pelo levantamento do pelourinho, monumento que simbolizava a independência municipal."
Ora, se um município podia constituir-se dessa forma, nada impedia que Martini Afonso, face a uma realidade e com os poderes que tinha de governador das terras do Brasil, organizasse vilas para posterior confirmação. E, na verdade, nunca foi contestado o seu ato.
Pêro Lopes de Sousa, em seu Diário da Navegação, tão bem comentado pelo Cmte. Eugênio de Castro, informa que Martim Afonso, além da Vila de São Vicente, fêz outra "9 léguas dentro pelo sertão, à borda de um rio que se chama Pirti-tininga." Desta, porém, não se tem informação mais segura, pa-recendo-nos que se tratasse mais de um povoado dependendo da Vila de São Vicente. Em abono, entretanto, dos que são pela vila junto ao rio Piratininga, há, ainda, outra afirmação de Pêro Lopes ao dizer que seu irmão "fêz nelas oficiais: e pôs tudo em boa obra de justiça, de que a gente toda tomou muita consolação, com verem povoar vilas e ter leis e sacrifícios e celebrar matrimónios, e viverem em comunicação das artes; e ser cada um senhor do seu; e vestir as injúrias particulares; e ter os outros bens da vida segura e conversável."
O certo é que não se tem nada que confirme a informação de Pêro Lopes, sobre a vila, como organização administrativa e política, no serra-acima. Ponderação nossa, apenas.
Varnhagen assim se manifesta:
"Na capitania de Martim Afonso, que do nome de povoação capital se chamou São Vicente, prosperam as duas vilas fundadas. O vigário Gonçalo Monteiro rege na marinha. O sertanejo João Ramalho capitaneia no campo, e influi em Piratininga. É natural que desde logo em uma vila se organizasse um simulacro de câmaras municipais, com seus vereadores: — estes provavelmente seriam a princípio de nomeação, e não eleição; — pois não se poderia esta fazer, sem se apurarem os ho-mens-bons que, em conformidade das ordenações, deviam ser os eleitores."
"O vocábulo homens bons (boni-homines) que, tratando das classes não nobres, é aplicado em especial a todos os her-dadores (indivíduos não nobres que possuem hereditariamente a propriedade livre), como a mais autorizada entre elas, encon-trar-se-á em certos monumentos, principalmente em atos judiciais, qualificando os indivíduos mais respeitáveis das classes nobres e privilegiadas." (Alexandre Herculano, História de Portugal, vol. 3?). Os homens bons e as pessoas do povo que podiam votar, eram pelos corregedores ou juízes a quem incumbia presidir as eleições, qualificados em cadernos, onde se escreviam os seus nomes com todas as individuações necessárias para verificar-se a idoneidade, exigidas pelas leis, forais e costumes (Alv. de 12 de novembro de 1611). Não eram qualificados os mecânicos, operários, degredados, judeus e outros que pertenciam à classe dos peões (Prov. de 8 de maio de 1791).
Martim Afonso recebeu três cartas do rei. Na primeira era autorizado a tomar posse das terras que descobrisse; na segunda recebia o título de capitão-mor e governador da colônia, o que levou Max Fleiuss a dizer que sendo São Vicente o primeiro núcleo civil de administração da América Portuguesa, a Vila martim-afonsina foi a primeira capital do Brasil; e, finalmente, a terceira, que lhe dava poderes para fazer vilas.
Na de 20 de novembro de 1530, investia Martim Afonso do poder de dar terras de Sesmaria às pessoas que levasse consigo para o Brasil, segundo o merecessem por seus serviços, impondo-lhes a condição de as cultivar no prazo de dois anos e caso não atendessem a esta condição, as ditas terras seriam dadas a outros que as quisessem aproveitar naquele tempo determinado.
Na instituição das sesmarias se encontra a origem da propriedade imobiliária no Brasil.
Vieram com Martim Afonso, "400 homens, entre soldados, marinheiros, fidalgos, artífices, lavradores, e mais o pároco Gonçalo Monteiro, com título de vigário e substituto legal" do capitão-mor.
São Vicente se organizou administrativa e socialmente e foram tomadas as iniciativas para que o povoado se revestisse das características de vila. Sua população, em um único dia, viu-se aumentada de 400 novos habitantes. Foi preciso arruar, distribuir lotes para a edificação das casas, construir prédio para a instalação condigna da Câmara, ou seja, da administração local ou municipal, etc. A primeira fonte regular de riqueza foi a agricultura, daí a necessidade de dar sesmarias aos que tivessem condições de cultivar a terra e preduzir para o sustento da população e do comercio conseqüente.
Ergueram-se os primeiros engenhos de açúcar de que se tem notícia precisa, dos quais foram proprietários Pêro e Luís de Góis (irmãos), os Adornos, João van Hielst e Erasmo Shetz. Ao destes se associou Martim Afonso, daí o nome que teve de Engenho do Senhor Governador. O primeiro gado vacum veio para o Brasil em 1534, por iniciativa de Ana Pimentel, esposa de Martim Afonso.
As possibilidades de comercio que o Nordeste oferecia e o progresso que a indústria do açúcar teria, fariam, logo, São Vicente ficar como que esquecido. Foi êle um núcleo propulsor, pioneiro de iniciativas importantes, mas não foi devidamente cuidado.
Nóbrega, em carta a Simão Rodrigues, dizia: "São Vicente se vai pouco a pouco despovoando, pela pouca conta e cuidado que el-rei e Martim Afonso têm…"
Nessa altura, Martim Afonso de há muito não se encontrava no Brasil, pois que daqui saíra, em 1534, desgostoso com o rei que dividiu o Brasil em capitanias antes de ouvi-lo.
 
O regime das capitanias
O sistema instituidor das capitanias hereditárias não era novidade em Portugal. Este regime já fora posto em prática nas ilhas portuguesas do Atlântico. São Vicente se constituía em baluarte da defesa do Sul da Colônia, mas, o que se via, era que o resto do litoral estava mal defendido. Outros núcleos deviam ser fundados, o que era difícil para Portugal, que tinha seu erário ameaçado pela triste experiência da índia.
Diogo de Gouveia, ilustre mestre residente na França, onde gozava de prestígio, pois fora reitor da Universidade de Paris e Principal do Colégio Santa Bárbara, tinha justificado receio de que os franceses ocupassem o Brasil de forma a não se poder, depois, desalojá-los daqui. E estava, evidentemente, bem informado e isto levou ao conhecimento de seu amigo e soberano, D. João III. E aconselhava dar terras do Brasil aos que pudessem povoá-las, colonizá-las, defendê-las, torná-las produtivas, enriquecerem.
Escrevia: "Quando vossos vassalos forem ricos, os Reinos não se perdem por isso, mas se ganham, porque quando lá houver sete ou oito povoações estes bastantes para defenderem aos da terra que não vendam o Brasil (pau-brasil) a ninguém e não o vendendo as naus não hão-de querer lá irem para virem de vazio.
Depois disto, aproveitarão a terra, na qual não se sabe se há minas de metais como deve haver, e converterão a gente, à fé, que é o principal intento que deve ser de Vossa Alteza, e não teremos pendença com esta gente, nem com outra."
Tais conselhos pesavam.
Por essa razão, o rei resolveu dividir o Brasil em capitanias que constituíam áreas cujas divisas eram linhas retas e paralelas que, saindo da costa, iam encontrar, perpendicularmente, a linha de Tordesilhas.
D. João se apressa em informar Martim Afonso de Sousa: "Depois de vossa partida se praticou se seria meu serviço povoar-se toda essa costa do Brasil, e algumas pessoas me requeriam Capitanias em terras dela. Eu quisera, antes de nisso fazer coisa alguma, esperar por vossa vinda, para com vossa informação fazer o que me parecer, e que na repartição que disso se houver de fazer, escolhais a melhor parte. E porém porque depois fui informado que de algumas partes faziam fundamento de povoar a terra do dito Brasil, considerando eu com quanto trabalho se lançaria fora a gente que a povoasse, depois de estar assentada na terra, e ter nelas feitas algumas forças (como já em Pernambuco se começava a fazer, segundo o Conde de Castanheira vos escreverá), determinei mandar demarcar de Pernambuco até ao Rio da Prata cinqüenta léguas de costa a cada Capitania, e antes de se dar a nenhuma pessoa, mandei apartar para vós cem léguas, e para Pêro Lopes, vosso irmão, cinqüenta, nos melhores limites dessa costa, por parecer de pi lotos e de outras pessoas de quem o Conde, por meu mandado informou; como vereis pelas doações que logo mandei fazer, que vos enviará; e depois de escolhidas estas cento e cinqüenta léguas de costa para vós e para vosso irmão, mandei dar a algumas pessoas que me requereram Capitanias de cinqüenta leguas cada uma; e segundo todos fazem obrigações de levarem gente e navios à sua custa, em tempo certo, como vós o Conde mais largamente escreverá; porque êle tem cuidado de me requerer vossas coisas, e eu lhe mandei que vos escrevesse."
As capitanias, pela sua natureza jurídica, constituíam verdadeiros feudos. Há os que as julgam semifeudais. Na realidade, os donatários ou capitães, seus governadores, estavam investidos de poderes de senhores feudais.
O ato jurídico que as instituía chamava-se doação. A carta de doação era um verdadeiro diploma legal onde, além da doação, instituía normas, criando direitos e obrigações.
Os donatários exerciam poderes quase que absolutos "cobrando tributos para si, concedendo terras, nomeando direta ou indiretamente os encarregados da administração da respectiva capitania, que se tornava, dessa forma, um feudo, administrando, pessoalmente, ou por seus adeptos, a justiça aos moradores da capitania, tanto no cível como no crime, e gozando ao mesmo tempo da inviolabilidade da própria capitania por parte até dos representantes da coroa, e da impunidade pessoal pelos crimes que porventura cometessem. Gozavam, afinal, os donatários, de uma situação de soberano, bastante lisonjeira para induzi-los a aceitar e enfrentar os labores da colonização."
Para a coroa ficaram reservados o quinto das pedras preciosas e metais, bem como o monopólio do pau-brasil, das drogas e especiarias, o dízimo de todos os produtos, por ser o rei o grão-mestre da Ordem de Cristo, e os direitos das alfândegas arrecadados por seus feitores, com escrivães e agentes.
Com este regime, pôde Portugal espalhar em toda a costa inúmeros povoados e vilas (os donatários tinham poderes para instalar vilas), erguer casas-fortes e torres, ter grupos aguerridos para lutar contra piratas e índios. Tudo à custa dos capitães, que embora fracassados na sua quase totalidade (exceção feita aos de S. Vicente e Pernambuco) foram pioneiros da colonização regular do Brasil.
Eram 12 os capitães:
1 — Santo Amaro (de Laguna a Cananéia) e terras de Santana (da ilha do Mel até à altura de Laguna) — Pêro Lopes de Sousa. Cada qual um lote.
2 — São Vicente (de Cananéia a Cabo Frio) — Martini Afonso de Sousa. Dois lotes.
3 — Paraíba do Sul (de Cabo Frio a Itapemirim) — Pêro Góis.
4 — Espírito Santo (de Itapemirim a Mucuri) — Vasco Fernandes Coutinho.
5 — Porto Seguro (do Rio Mucuri até o limite incerto de Ilhéus) — Pêro de Campos Tourinho.
6 — Ilhéus (dos limites de Porto Seguro à barra da Bahia de Todos os Santos) — Jorge Figueiredo Correia.
7 — Bahia de Todos os Santos (da barra do mesmo nome até a foz do rio São Francisco) — Francisco Pereira Coutinho.
8 — Pernambuco (do rio São Francisco ao norte do rio Iguarassú) — Duarte Coelho.
9 — Itamaracá (do norte do rio Iguarassú à baía do Açejutiribó, hoje Traição) — Pêro Lopes de Sousa.
10 — Maranhão (da baía de Acejutiribó à foz do rio Gurupi) — Aires da Cunha que se associou ao historiador João de Barros, autor das Décadas. Dois lotes.
11 — Ceará (da foz do rio Mossoró até a foz do rio Camocim) — Antônio Cardoso de Barros.
12 — Piauí, compreendendo parte do Maranhão (da foz do Camocim à ponta do Mangues Verdes) — Fernando Álvares de Andrade.
De todas as capitanias duas haveriam de progredir, a de São Vicente e a de Pernambuco. Da primeira já nos ocupamos, ao falar de Martim Afonso de Sousa.
As duas capitanias que floresceram eram, no conjunto geral, uma situação à parte. Revestiam-se de outras condições históricas.
Segundo parece, em 1526, Pernambuco já produzia açúcar e este era exportado para Portugal. Pero Capico ali instalara um pequeno engenho, oito anos, ou mais, antes da criação das capitanias. Não temos informações seguras como as que se referem a São Vicente, mas encontramos pequena semente do seu grande progresso.


Divisão do Brasil em capitanias hereditárias. Vê-se, também, a linha perpendicular — o Meridiano de Tordesilhas — que dividiu a América do Sul entre as coroas portuguesa e espanhola.
Duarte Coelho, o seu donatário, era homem enérgico e empreendedor. Dele fala Costa Porto:
"Largado na vastidão do mundo cabralino, o capitão donatário teria, assim, de contar consigo mesmo, e se não tivesse energia e capacidade para dominar o ambiente acabaria esmagado, como ocorreu com quase todos os donos de feudos na Colônia. Velho marinheiro, amadurado nas lutas do expansionismo lusitano, Duarte Coelho porém não desanima. Esta terra é nossa empresa, poderia dizer com o padre Nóbrega e, para o êxito da experiência colonizadora, joga na arena tudo que lhe está ao alcance.
É uma tremenda batalha nas sombras, esta travada pelo donatário, Yo no vino aqui para cultivar la tierra com um la~ briego, sino para buscar oro, dizia Cortez ao desembarcar no continente americano. Duarte Coelho pensa diferentemente. A posse de minerais lhe parece coisa secundária, preocupando-se, primordialmente, com o campo. Este, na verdade, um dos aspectos marcantes da sua situação na Nova Lusitânia, orientação de resto que não é somente sua, mas constitui processo comum ao lusitano no Brasil."15
Fora essas duas exceções, São Vicente e Pernambuco, o regime das capitanias fracassou, pois para a Colônia não era o indicado, porque não lhe dava unidade administrativa, entendendo, como se entendiam, os donatários diretamente com Lisboa que, aliás, não tinha condições de atender aos reclamos dos donatários abandonados à própria sorte.
A Colônia reclamava unidade, socorro recíproco, assistência mútua entre as unidades que a compunham e isto, na realidade, não existia. Cada qual que cuidasse de seu destino.
As capitanias foram, depois, revertendo à Coroa, ou porque a linha sucessória dos donatários veio a se extinguir, ou através de indenizações aos herdeiros dos primeiros capitães.
A incorporação das capitanias à coroa, como medida de ordem geral, se deve a D. José I. Com isto houve uma modificação nas condições político-jurídicas da Colônia, pois que as capitanias passaram a ser administradas diretamente pela metrópole, como também extinguiam-se os privilégios resultantes das cartas de doação e dos forais.
Surgem, então, as capitanias gerais, às quais se subordinavam as que podem ser denominadas capitanias subalternas, cujo estudo, porém, não cabe na natureza deste trabalho.
Já que falamos em linha sucessória, nunca é demais lembrar que as capitanias eram hereditárias, porque só podiam ser transmitidas por sucessão, sendo que os herdeiros deviam conservar o apelido de família.
"Estabeleceu-se, como cláusula dotal, sucessão fideicomis-sária perpétua, segundo os costumes feudais, mercê da jurisprudência heróica reguladora dos morgados."
Ensina Pascoal José de Melo Freire:
"O morgado, entendido como disposição de propriedade, é um fideicomisso gradual, sucessivo, perpétuo e indivisível, deixado para o fim de se conservar o nome e esplendor de uma família, aproveitando sempre à pessoa mais velha da mesma, circunstância esta, de que a disposição tomou o nome, formado das duas palavras — majores natu — que exprimem aquela qualidade e requisito nos substituídos, ou nos chamados de fideicomisso."
Há de se ver, aqui, com ligeira alteração, o sentido e o porquê das capitanias hereditárias, no que tange à sucessão.
A população das capitanias era composta de gente de boa conduta e ânimo forte, de índios livres ou escravizados, das primeiras gerações de mamelucos, de aventureiros, náufragos, desertores, degredados e fugidos da justiça.
"Atendendo a que, por delitos cometidos, muitas pessoas andavam foragidas, ausentando-se para reinos estrangeiros; sendo de grande conveniência, entretanto, que ficasse antes no reino e senhorio, e sobretudo que se passassem para as capitanias do Brasil — houve El-Rei por bem declará-la couto e homizio para todos os criminosos que nelas quisessem vir morar, ainda que já condenados por sentença até pena de morte, excetuados somente os crimes de heresia, traição, sodomia e moeda falsa."
De modo geral, as coisas no Brasil andavam mal. Devia a coroa tomar iniciativa para defendê-lo e organizá-lo, que os particulares, por mais que fizessem não tinham condições para pôr ordem em toda a costa e evitar as constantes visitas de piratas e outros aventureiros. Só um governo geral, que trouxesse força para administrar e prestígio para se impor teria condições para pôr termo àquele estado de coisas que se criara por falta de autoridade.
 
Governo-Geral
Por Carta Régia de 7 de janeiro de 1549, foi criado o Governo Geral do Brasil, com sede na Bahia de Todos os Santos, Capitania que voltara à coroa com a morte do seu infeliz donatário, Francisco Pereira Coutinho.
O novo regime trazia a vantagem de criar um governo centralizador dos interesses das capitanias, que, até então, eram inteiramente autônomas entre si, sem o menor liame que as ligasse, submetidas diretamente à coroa. Somente o comércio e:a livre, não pagando os produtos negociados, entre elas, qualquer tributo.
O período administrativo de cada governador geral era de três anos e a cada um o rei daria um regimento. Acontece porém que o regimento dado a Tomé de Sousa, por ordem real, foi servindo aos governos que o sucederam, durante mais de 100 anos. E o período administrativo, embora fixado em 3 anos para cada gestão, não foi respeitado, por conveniências da coroa.
"O Regimento de 17 de dezembro de 1548, base do segundo sistema de administração colonial, vigorou por mais de um século, servindo a todos os sucessores de Tomé de Sousa até 1677. Foi somente no começo desse ano que se deu novo regimento ao governador nomeado — Roque da Costa Barreto. Teve tal regimento a data de 23 de janeiro e compunha-se de 61 artigos explícitos e minuciosos."
No Regimento do Primeiro Governador assinala-se que "o principal fim porque se manda povoar o Brasil é a redução do gentio à fé católica."
Tomé de Sousa chegou ao Brasil, tendo desembarcado na Bahia, a 29 de março de 1549.
Vinha na sua esquadra um sistema completo de governo e sua organização. Para os negócios da Justiça foi nomeado um ouvidor-geral na pessoa do experimentado e competente Pêro Borges; para provedor da Fazenda, Antônio Cardoso de Barros, que tinha a atribuição de arrecadar impostos e mais dinheiros da coroa; e para defender e vigiar o litoral, fora designado Pêro Góis, com o título de capitão-mor da costa.
Entende-se, perfeitamente, que se estabelecia uma verdadeira hierarquia, ao ser nomeado um governador geral, ao qual se submetiam os governadores ou capitães das capitanias; um ouvidor-geral em grau superior aos ouvidores; um provedor da Fazenda Real, ao qual competia zelar, em todo o território pela arrecadação da coroa; e, finalmente, um capitão-mor da costa, que era o coordenador da defesa do litoral, dando unidade ao que já existia espalhado pelo litoral, o que representava maior segurança.
Com Tomé de Souza veio também o padre Manuel da Nóbrega, superior da missão jesuítica que tantos e assinalados serviços prestaria ao Brasil, como veremos em capítulo próprio.
Mas não era só. A organização de uma capital exigia mais gente, além dos que responderiam pela administração e pelo ensino religioso e de primeiras letras, este confiado aos jesuítas. E assim aqui chegaram, também, 400 degredados, 200 homens de tropa regular e 300 colonos contratados. Vinham, ainda, muitas famílias.
Lançavam-se, na Bahia, os alicerces de Salvador, primeira cidade brasileira. Não confundir cidade com município, pois o primeiro foi São Vicente. São Paulo, por exemplo, só passou a ser cidade em 1711.
Na Bahia moravam 40 ou 50 portugueses, segundo Nóbrega, que deve ter excluído os índios, ao se referir aos habitantes ali encontrados numa povoação chamada Vila Velha ou Povoação de Francisco Pereira Coutinho que fora donatário da capitania.
A obra a ser levada avante não era simples; a par da parte material e administrativa, como a da construção de prédios, fortes etc, da instalação dos órgãos administrativos, havia a organização social e moral, que ofereceria reais dificuldades.
Nóbrega, vice-provincial da Companhia de Jesus no Brasil, no dia 9 de agosto de 1549, escrevia ao seu superior de Lisboa, padre Simão Rodrigues, importantíssima carta, onde se revela bom observador e rigoroso crítico:
"Nesta terra há um grande pecado, que é terem os homens quase todos suas negras"* por mancebas. (…) E estas, deixam-nas quando lhes apraz, o que é grande escândalo para a nova Igreja que o Senhor quer fundar."
Mas os europeus aqui encontrados e que viviam com as índias, o que não era aceito pela severidade excessiva do superior dos jesuítas, sendo entretanto perfeitamente compreensível pela situação em que estavam, alegavam em sua defesa, que não havia mulheres brancas com quem casar. . .
Nóbrega, a certa altura, sugere:
"Parece-me coisa mui conveniente mandar S.A. algumas mulheres, que já tem pouco remédio de casamento, a estas par tes, ainda que fossem erradas, porque casarão todas mui bem, contanto que não sejam tais que de todo tenham perdida a vergonha a Deus c ao mundo. E digo que todas casarão muito bem, porque é a terra muito grossa e larga, e uma planta que se faz uma vez dura 10 anos aquela novidade, porque, assim como vão apanhando as raízes, plantam logo os ramos e logo arrebentam. De maneira que logo as mulheres teriam remédio de vida, e estes homens remediariam suas almas, e facilmente se povoaria a terra."
 


* Negra ou negro, nas primeiras cartas jesuíticas significava índios, pois que, na situação em que se encontravam, estava relacionada à idéia de escravo, e estes, como se sabe, na Península Ibérica, eram os negros africanos.
Aos que viviam amancebados, o superior da Companhia os admoestava de maneira que uns se casavam e outros pediam prazo para venderem as índias ou se casarem.
E ainda:
"Trabalhe V. R. por virem a esta terra pessoas casadas, porque certo é mal empregada esta terra cm degredados, que cá fazem muito mal, e já que cá viessem havia de ser para andarem aferrolhados nas obras de S.A."
Na questão da escolha do clero que era enviado ao Brasil, tornava-se implacável:
"Cá há clérigos, mas é a escoria que de lá vem. Não se devia consentir embarcar sacerdotes sem ser sua vida muito aprovada, porque destroem tudo quanto se edifica."
Nos negócios da justiça as coisas não estavam mais alentadoras. Pêro Borges, em carta que enviou ao rei em 7 de fevereiro de 1550, revela o estado em que encontrara as coisas da sua competência:
Da visita que fêz a Ilhéus diz que encontrou "um capitão Jorge de Figueiredo, que também serve de ouvidor, a que chamam de Francisco Romeiro que já ali esteve outra vez no mesmo cargo, e foi preso no Limoeiro (prisão de Lisboa) muitos dias por culpas que cometeu no mesmo ofício, o qual é bom homem, mas não para fazer mando de justiça, porque é ignorante e muito pobre, o que muitas vezes faz fazer aos homens o que não devem."
E mais adiante:
"Eu não consinto agora que nenhum degredado sirva nenhum ofício e mando que não haja Juiz de Órfãos nem escrivães porque nenhuma destas capitanias não passa de 400 vizinhos como diz a Ordenação que há de ser vila em que houver de haver Juiz de Órfão."
Com a experiência de antigo corregedor de Algarves, foi vendo tudo:
"Nem pude dissimular com os tabeliães dos Ilhéus e alguns daqui do Porto Seguro porque os achei a servir deles sem cartas dos ofícios senão com uns alvarás dos capitães, nenhuns tinham livros de querelas, antes as tomavam em folha de papel. Nenhum tinha regimento, levavam os que queriam às partes, como não tinham por onde se regerem, alguns serviam sem iuramento: e porque isto é uma pública ladroíce e grande malícia porque cuidavam que não lhe haviam de tomar nunca conta, viviam sem lei nem conheciam superior, procedo contra eles porque me pareceu pecado no Espírito Santo passar por isto."
O Regimento do Ouvidor-Geral ainda não é conhecido, ou se perdeu, mas na dita carta de Pêro Borges, podemos conhecer os seus poderes:
"No meu Regimento se contém que nos casos crimes conheça por ação nova e que tenha alçada até morte natural exclusive em escravos e gentios e peões cristãos, homens livres e que naqueles casos, em que por direito ou vossas ordenações às pessoas ditas de qualidade é posta pena de morte natural inclusive, que eu proceda nos tais feitos até final e os despache com o governador, sem apelação, sendo ambos conforme e sendo diferentes que ponha cada um seu parecer e mande os autos ao corregedor da corte com o tal preso, e que nas pessoas de mais qualidade dos ditos, tenha alçada em cinco anos de degredo."
As Ordenações, de modo geral, eram as leis que se aplicavam no Brasil, no que se refere, principalmente, ao direito privado. "Direito público, notadamente na parte administrativa, sofria constantes modificações com as cartas de doação, regimentos, cartas régias, provisões, alvarás, que estabeleciam normas especiais para o Brasil." O direito municipal ia se formando de acordo com as condições e necessidades locais.
Assim, ao lado das Ordenações, surgia um direito especial para o Brasil, pois que Mem de Sá, secundando observação já feita por Pêro Borges, diria que a "justiça tinha que ser temperada até para os próprios colonos, sob pena de não haver gente no Brasil."
O provedor-mor que era auxiliado por três escrivães, o da fazenda, o da alfândega e o da casa de contos, tinha, como dissemos, que cuidar das rendas da coroa, que não estavam sendo arrecadadas como deviam, não estando, portanto, em ordem.
D. João III era bastante claro:
"… e para a arrecadação delas se ponha em ordem que a meu serviço cumpre, ordenei ora de mandar às ditas terras uma pessoa de confiança, que sirva de provedor-mor da minha fazenda."
Esta, de maneira sucinta, era a organização do governo geral, que estruturou a América Portuguesa, a fim de que tivesse administração em condições de atender ao reclamo dos povos, face às dificuldades que os donatários tinham que enfrentar.
A administração de Tomé de Sousa foi de bastante proveito para a terra, quer porque foi o primeiro governo geral aqui instituído, quer porque tudo estava por fazer. Contou com o auxílio de Caramuru (Diogo Álvares Correa) e dos índios seus amigos.
Tomé de Sousa "organizou a defesa das colônias, forti-ficando-as e tornando obrigatório por toda a parte o serviço militar, mas sem excesso. Protegeu os índios mas não sem castigá-los severamente, quando necessário; de uma feita, tendo estes mortificado e devorado dois portugueses, aprisionou dois quaisquer morubixabas (assim chamam aos chefes), atou-os à boca de uma peça que fêz disparar em seguida. Essa crueldade foi bem inútil e parece inexplicável que fosse consentida e autorizada por um homem como Tomé de Sousa, que, para poupar a população ou aumentá-la, revogou a seu arbítrio as leis penais das Ordenações, perdoando a facinorosos de toda a casta. Assim acumulou muitas dificuldades para os seus sucessores e autorizou maiores injustiças.
Percorreu várias vezes as capitanias, em 1552 com o padre Nóbrega, visitou o Sul, o Rio de Janeiro, São Vicente, depôs um mau capitão e tudo quis prover, para fortalecer a defesa da terra, dando auxílio e conselho, criando povoações (Conceição de Itanhaem e Santo André) a fim de reunir a gente que andava derramada pelos campos ou pelas praias, promovendo a expulsão dos espanhóis que comerciavam já pelo sertão do rio Paraná."
Durante o seu governo foi nomeado o primeiro bispo do Brasil, D. Pêro Fernandes Sardinha.
Tomé de Sousa governou até 1553, quando foi nomeado, para substituí-lo, Duarte da Costa.
Quando chegou a notícia, as novas, sobre sua substituição, Nóbrega fêz tudo para que êle continuasse no Brasil, como governador ou não, enviando cartas que falavam dos grandes serviços prestados à Colônia, mas nada conseguiu.
Com Duarte da Costa vieram novos jesuítas, entre eles José de Anchieta, que se tornaria o grande apóstolo do Brasil e uma das figuras ímpares da nossa história. Luís da Grã chefiava o grupo de loiolistas que aportaram em 1553.
A administração de Duarte da Costa não foi tranqüila. Muito ao contrário. Teve que enfrentar problemas e não poucos.
Os historiadores, com raras exceções, não têm feito justiça a Duarte da Costa. E sem buscar as razões dos fatos do seu governo, chegam a apontá-lo como administrador fracassado.
Quando Tomé de Sousa transmitiu o cargo a Duarte da Costa, a situação entre portugueses e índios era das mais tensas, sendo que o que mais exaltava os ânimos selvagens era o fato do estraçalhamento dos dois morubixabas amarrados à boca de um canhão. O espírito de vingança dos índios veio a explodir em cheio na administração Duarte da Costa. Não bastasse isso, seu filho Álvaro, valente soldado que fora em terras d’África, mas de conduta extravagante, entrou em choque com o bispo Pêro Fernandes Sardinha. Nesse período, franceses invadiram o Rio de Janeiro com o intuito de fundar a França Antártica. Villegagnon os chefiava. Jamais a metrópole mandou recursos para os expulsar. Vivia, assim, Duarte da Costa, ameaçado pelos índios que atacavam os brancos sempre que podiam, e sem nada poder contra os franceses que, em grande número e aliados aos aborígines, inimigos dos lusos, tomavam pé em Terra firme. Comparar o seu governo com o de Mem de Sá — que foi indiscutivelmente, um valoroso administrador — para diminuí-lo, é cometer um grave erro. Mem de Sá pouco teria feito se ficasse na situação desamparada em que permaneceu Duarte da Costa. Nada recebeu de Portugal para combater os franceses. A Confederação dos Tamoios teve um feliz término, graças, principalmente, a Anchieta e Nóbrega e ao sempre esquecido José Adorno, que conduziu os jesuítas em navio de sua propriedade, até Iperoig, onde foi ajustado o armistício.
Para a expulsão dos franceses do Rio, não fora o concurso dos paulistas, outra teria sido a sorte das armas.
"Quando Estácio de Sá se desesperava — escreve Martins Francisco dos Santos — por não poder expulsar do Rio de Janeiro os franceses e seus aliados, os tamoios, foi em Santos que êle resolveu, a conselho de Nóbrega, buscar o apoio e o reforço de que carecia para a última tentativa de expulsão. Foi José Adorno, então, quem reuniu um grande corpo de combatentes brasileiros e portugueses — 300 homens de Santos, São Vicente e São Paulo, segundo Simão de Vasconcelos, armados e aparelhados pelos genovês — fornecendo bergantins e canoas de voga, conseguindo peças de artilharia, mantimentos e tudo quanto era necessário para uma longa expedição."
No dia 20 de janeiro, os invasores foram expulsos do território fluminense, mas, para isso, Mem de Sá teve apoio de gente de além-mar e daqui. Duarte da Costa, não. Ficou como que encurralado, na Bahia, com poucas armas e com pouca gente. Frei Vicente do Salvador afirmou ter sido Duarte da Costa "grande servidor do rei".
Fêz o que pôde, governando em meio à tormenta e sozinho, ou quase sozinho, procurando imprimir direção segura cm meio a elementos duvidosos.
Devido aos desentendimentos havidos entre Álvaro da Costa e o bispo, foi este chamado a Lisboa. O navio em que ia para a Europa, naufragou nas costas brasileiras, perto do rio Curupire, tendo sido Pêro Fernandes Sardinha e outros náufragos, depois de chegarem à praia, presos e devorados pelos índios.
Em 1558 terminou seu período de governo, sendo nomeado para substituí-lo o governador-geral Mem de Sá, de grande prestígio na corte e irmão do grande poeta Sá de Miranda.
A administração de Mem de Sá foi até o ano de 1572. Durou, portanto, 14 anos.
Como já vimos, ao sair Duarte da Costa, a situação não estava boa. Teve Mem de Sá que harmonizar as relações entre colonos e devolver aos jesuítas as antigas condições de trabalho, apoiando-os na sua obra.
Sobre a expulsão dos franceses da Baía da Guanabara, fizemos referência, mas cabe ainda dizer, tão logo Mem de Sá teve oportunidade, em 1560, veio para o Sul e deu combate aos invasores, que foram vencidos, mas não expulsos do Brasil naquela região. Isto só se daria em 1567.
Em 1565, Estácio de Sá, que veio comandando reforços para lutar contra os invasores, deu início, junto ao Pão de Açúcar, à povoação que se transformaria na formosa Rio de Janeiro, hoje Estado da Guanabara.
Na sua primeira viagem (1560) ao Sul, Mem de Sá esteve em São Vicente e a pedido de Nóbrega transferiu a Vila de Santo André da Borda do Campo para o povoado que os jesuítas e Tibiriçá* fundaram em 25 de janeiro de 1554, durante o governo de Duarte da Costa. Assim, em 1560, por determinação do terceiro governador-geral, São Paulo passou à categoria de vila.
Quer pelo apoio que recebia da Metrópole, quer pelo entendimento que mantinha com os jesuítas e ainda pelo longo tempo que administrou, Mem de Sá foi, dos três primeiros governadores, o que mais se destacou.
Os engenhos de açúcar que tomaram grande impulso a partir de 1549, com a entrada dos escravos africanos, transformaram-se na principal fonte de riqueza com o correr do tempo.
Considere-se, e isto é bastante importante, que o escravo negro, substituindo, em grande parte, o índio, diminuiria um dos pontos de atrito entre jesuítas e colonos, pelo menos no Nordeste, onde se concentraria o cerne da economia colonial, nos dois primeiros séculos.
Durante o tempo em que Mem de Sá esteve no Brasil não só cuidou da administração, mas também dos seus engenhos, que lhe deram boa fortuna. Cansado e velho, pediu que lhe dessem substituto, tendo sido nomeado, em 1570, Luís de Vasconcelos, que não chegou a tomar posse, pois durante a viagem para o Brasil, com mais quarenta religiosos e outros infelizes, caiu em mãos dos piratas franceses, que os trucidaram.
Mem de Sá morreu na Bahia, em 2 de março de 1572, tendo o ouvidor-geral Fernão da Silva assumido, interinamente, o governo.

* Como se sabe, Tibiriçá, sogro de João Ramalho, foi quem construiu a cabana onde os jesuítas se abrigaram no dia da fundação de São Paulo. Seu nome, portanto, está intimamente ligado ao ato. E sempre esteve ao lado dos inacianos, notadamente nas horas difíceis. Daí Anchieta ter escrito: "Mais do que todos creio que lhe devemos nós, os da Companhia, e por isso determinou dar-lhe em conta não só de benfeitor, mas ainda de fundador e conservador da Casa de Piratininga e de nossas vidas." (Carta de 16 de abril de 1563).

Bibliografia
Fonte. Material Didático de História do Brasil Didática Biblioteca Nacional

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