sexta-feira, 2 de março de 2012

O MERCADOR DE VENEZA - RESENHA

Judeus e cristãos. Cristãos e judeus. Mais uma vez voltamos à questão das diferenças religiosas, mas no caso de uma obra shakespiriana, só podemos esperar um tema tão espinhoso sendo tratado de modo cômico e irônico. Uma das marcas registradas do melhor inglês da literatura universal.

A ideia de William Shakespeare certamente não foi a de causar um mal estar entre os seguidores de uma ou outra religião, mas por um tempo ele arrumou uma dor de cabeça por causa do livro: chegou a ser acusado de antissemitismo por criar um personagem judeu avaro e vingativo. Mas por conta disso, ou apesar disso, Shylock é uma de suas figuras mais populares. Aliás, o Mercador de Veneza (escrita em 1596 ou 1598), assim como todas as peças de William lembradas aqui se tornaram grandes clássicos, e esta é uma das mais queridas por juntar comédia com elementos do romantismo, trazendo personagens astutos e um tema que segue ainda bem atual, além de seus “recados” com uma certa complexidade moral.


A história se dá na Veneza do século XVI e o problema começa quando o jovem Bassânio pede uma quantia em dinheiro emprestada ao amigo Antônio (o mercador) para viajar até Belmonte, onde pedirá a mão de Pórcia em casamento. Aliás, Pórcia representa aqui toda a classe das típicas moças ricas que não têm nenhuma meta na vida que não seja arranjar um marido, correspondendo à parte romântica da obra.


O mercador Antônio até que está disposto a ajudar o amigo, mas não possui a quantia que lhe foi pedida, já que seus navios ainda não regressaram do mar. Para não decepcionar Bassânio, ele promete que será seu fiador, caso o amigo arranje um empréstimo. Bassânio então cai na besteira de recorrer a um agiota, o judeu Shylock. Acontece que Shylock guarda uma certa implicância com Antônio, já que ele, um cristão “modelo”, vive falando mal do judeu pela cidade, tendo cuspido nele certa vez. O judeu também conhece a fama de Antônio em não pagar juros dos empréstimos e propõe a ele o seguinte: ele empresta o que foi solicitado, mas caso Antônio não lhe pague o devido na data combinada, Shyloch ficaria com 1 libra (ou quase meio quilo) da carne do cristão. Bassânio acha um absurdo, mas Antônio topa o acordo, e ainda ironiza Shylock dizendo que ele foi muito generoso em não cobrar os juros. Bassânio então viaja em busca da noiva e a história se desenrola com armações, falsidades e desencontros. Em Belmonte, Pórcia era cortejada por vários pretendentes e seu pai, antes de morrer deixou-lhe um testamento e um “teste” para ver quem seria merecedor da mão da moça, e Bassânio, naturalmente, participa da prova.


Enquanto isso, em Veneza, Antônio fica sabendo que seus navios naufragaram e ele não teria como saldar sua dívida com Shylock. O judeu, que já estava fulo da vida com os cristãos (sua filha Jéssica se converteu ao cristianismo por conta do noivo), adorou a notícia do naufrágio e ficou ainda mais assanhado para tirar o pedaço de carne de Antônio.


Bassânio retorna a Veneza justo quando Antônio ia a julgamento. Ele regressa com o dobro da quantia emprestada para pagar Shylock, mas o vingativo agiota prefere o pedaço de carne do mercador. Nisso, o misterioso “doutor em Direito”, Baltazar surge e vendo que seus apelos para salvar Antônio não surtiam efeito, apontou uma grande falha no contrato da dívida que o judeu não havia notado. E essa brecha poderia salvar Antônio, que já estava prestes a ser cortado e ainda, de acordo com as leis de Veneza, faria com que Shylock perdesse seus bens e terras.


Para criar essa peça, William se inspirou em O judeu de Malta, de Christopher Marlowe e nos antigos contos “Il Pecorone” e “Gesta Romanorum”. E o inglês, por sua vez inspirou o brasileiro Ariano Suassuna em O Auto da Compadecida, sendo o Mercador uma de suas obras mais encenadas e filmadas. Então quem se recorda da obra de Suassuna, deve imaginar o desfecho sagaz do Mercador. Se Bassânio fica com Pórcia, se Shylock é castigado, quem é afinal Baltazar, qual é o furo que há no contrato ou se a dívida é paga, é claro que nada disso será dito aqui. Não tenho o intuito de contar o final das histórias. William merece ser lido e saboreado. Religiosamente..

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