sexta-feira, 2 de março de 2012

OS CAMINHOS ANTIGOS E O POVOAMENTO DO BRASIL - CAPISTRANO DE ABREU

Estudo publicado no "Jornal do Cornmercio de 12, 29 de agosto e 10 de setembro de 1 899 e reproduzido, refundido e ampliado, na "America Brasileira"’, ns. 32, 33 e 34 de agosto, setembro e outubro de 1 924
Na era de 1 530 o território entre o Maranhão e Santa Catarina foi dividido em 12 capitanias hereditárias, desiguais em superfície, limitadas toda a Este pelo Atlântico, o Oeste pela linha fantástica de Tordesilhas.
Até então o Brasil estivera entregue a degredados, a desertores, a traficantes da madeira que lhe deram o nome. Seu povoamento fora descurado inteiramente, embora Diogo de Gouvêa e Cristóvão Jaques apontassem, como meio único de impedir as incessantes incursões francesas, a fundação de pcvoações e fortalezas, que não deixassem carga para as naus de contrabandistas. Com o ano de 1 535 se iniciou um movimento capital, que ainda hoje continua.

Como se deu? Pode-se apanhá-lo em algumas linhas principais, qual de um país se reúnem todas as águas em poucas bacias preponderantes? E’ o que se pretende averiguar neste ligeiro esboço.

Começaremos eliminando das 12 primitivas capitanias as que demoravam além do cabo de S. Roque.
João de Barros, Fernão Álvares de Andrade, Ayres da Cunha, Antônio Cardoso de Barros passaram sem deixar sinais. A ponta arenosa e sáfia, descoberta em agosto de 1 501, resistiu à onda colonizadora tão rijamente como o Bojador e o Tormentório aos que procuravam o caminho marítimo das índias. A ocupação permanente da costa de Nordeste, ou Leste-Oeste segundo mais geralmente se dizia, só vingou no século XVII.
Eliminemos também o território entre o Sul da baía de Todos os Santos e a capitania de Santo Amaro. Por todo êle se estendia mata grossa e enredada, que vedava passagem. A via única de penetração somava-se em rios encachoeirados, que era possível vencer e foram de fato vencidos: Sebastião Touri-nho, Adorno, Azeredo, atestam-no. Da passagem de tantos homens audazes apagava-se, porém, o efeito com a esteira das canoas que montavam. Seus nomes pertencem antes à erudição que à história. Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, parte de S, Vicente e Santo Amaro pouco diferiram em 1 801 do que foram em 1 601. Rio de Janeiro figurava uma exceção, por motivos indicados adiante.
Feitas estas eliminações, restam Pernambuco e S. Vicente, e os troços da capitania de Pero Lopes, que sempre gravitaram para as cie Duarte Coelho e Martim Afonso, e finalmente nelas se absorveram. São estes os dois primeiros focos do povoamento da nossa terra.
A posição de Pernambuco, na parte mais oriental do novo e mais vizinha do velho mundo, facilitava as comunicações com a Europa de onde viriam capitais e braços a explorar suas riquezas. Duarte Coelho, donatário primitivo, soube aproveitar enérgico a situação e firmar sòlidamente seu domínio. Os sucessores o imitaram. Até a invasão holandesa Pernambuco se avantajava em população, riqueza e cultura a todas as irmãs.
Duarte Coelho se estabelecera em Igaraçu, na divisa de Itamaracá, capitania de Pero Lopes, passando depois para Olinda, mais ao Sul.
Para o Sul continuaram Jerônimo de Albuquerque, Duarte Coelho II, Jorge de Albuquerque. No mesmo sentido trabalharam particulares, como João Paes, que fundou oito engenhos junto ao cabo de Sto. Agostinho, como o fidalgo alemão Cristóvão Lins, cuja viúva, D. Adriana de Olanda, vivia ainda na era de 1640, com 110 anos de idade, cercada de cinco gerações de descendentes; trabalharam ainda outros, cuja lembrança não se conservou com o mesmo cuidado.
A tendência de todos esses povoadores era evidentemente o rio de S. Francisco, que o primeiro donatário se oferecera a conquistar, seduzido) pelas riquezas dele fabuladas. Pelos anos de 1 630 estava repartido todo o espaço entre Igaraçu e sua foz, e ainda além; Duarte Coelho III elevou Penedo à categoria de vila.
A invasão holandesa sustou o avanço. Bagnuoli, Camarão, Henrique Dias, Vidal, Barbalho, abriram caminhos que lhes permitiam passar longe do mar de um a outro extremo de Pernambuco. Com a capitulação de Taborda, a evacuação do Recife e a vitória final dos patriotas, o desuso os tornou obsoletos e por fim fecharam-se, para não se abrir senão muito tarde, quando o primeiro impulso colonizador divergira para outros rumos.
Na segunda metade do século XVIII não se penetrava no Recife além de Bezerros, a quinze léguas para o interior: o que ficava além entendia-se com a Bahia. O Bispo Azeredo Cou-tinho alegava como um dos serviços de seu governo interino (1798-1804) ter aberto um caminho comunicando a praça de Olinda com os sertões de S. Francisco.
Esse caminho serôdio que, a julgar por uma indicação vaga de frei Caneca, acompanhava o Capiberibe até Taquaritinga, de onde demandava o Brejo da Madre de Deus, isto é, sertões batidos por baianos um século antes talvez, explica exuberantemente por que motivo os limites pernambucanos recuaram de Carinhanha, hoje divisa de Bahia e Minas Gerais, para Pau de Arara, cento e cinqüenta e quatro léguas rio abaixo, segundo as medições de Halfeld, e, ao contrário, a Bahia se estendeu até as fronteiras de Goiás. Pouco repara quem vir nisto apenas efeitos do decreto de 7 de julho de 1 824, que desligou de Pernambuco a comarca de S. Francisco, e da resolução de 15 de outubro de 1 827, que a incorporou à Bahia. Estes dois atos apenas apuram a Nêmesis da história.
Os serviços superiores de Pernambuco, avultam em direção muito diferente. De lá partiu a assistência perene para Itamaracá, tantas vezes premida pelos potiguares irreconciliáveis; as numerosas expedições que trouxeram a conquista árdua da Paraíba e do Rio Grande do Norte, onde franceses e potiguares fincaram pé mais de trinta anos antes de se darem por vencidos; o avanço arrastado para o Ceará, a conquista do Maranhão, a fundação de Belém, a investida do Amazonas.
A situação oriental de Pernambuco, tão favorável a outros respeitos, designava-o de preferência aos ataques vindos do Oriente. O último partiu dos holandeses, que só abandonaram o território heróico depois de um quarto de século de ocupação pertinaz. E a incorporação de Fernando de Noronha, no alternar, a Nordeste, prolongamento antegeográfico de Pernambuco, em desafio ao Oriente ultramarino, não é menos instrutiva do que a sua atrofia irreparável a Sudoeste.
O influxo de Pernambuco foi efêmero em todas as terras situadas além do Paraíba, e mesmo aquém, no Piauí que, apenas começadas a povoar, constituíram logo o estado do Maranhão, isolado inteiramente do resto do Brasil por circunstâncias que depois indicaremos1; quando se reataram novamente os laços, já estava esquecida a que se pode chamar, a segunda metrópole. Ao contrário, Paraíba, Rio Grande do Norte, e mais tarde Ceará, depois de desligado do Maranhão, Alagoas, conservaram-se em maior ou menor dependência comercial, econômica e política até nossos dias.
1. Pernambuco.
Embora em menor escala, que da Baía de Todos os Santos para o, Sul, as serras e inatas opuseram-se ao povoamento normal de Pernambuco.
A existência e resistência dos quilombos de Palmares seriam impossíveis em outras condições.
As páginas do texto, como saíram primeiro no Jornal do Commercio, e agora vão ligeiramente atenuadas, provocaram as seguintes linhas de Aníbal Falcão, grande e luminoso espínto, que a morte atingiu em plena floração. Para apanhar bem seu alcance convém lembrar que Aníbal professava as crenças do positivismo mais ortodoxo.
"Paris, Domingo, 15 de Outubro de 1S0P, — 1, rue Merlon (Avenue Marceau). — Aproveito estes momentos de repouso, a que me obrigam a doença e a necessidade de dar outro alimento à cabeça, para escrever-te dum artigo que li no Jornal do Commercio, acerca do povoamento do Brasil. Não julgo que seja teu o trabalho, mas é evidentemente inspirado nos teus estudos, de que ern conversa me deste notícia.
Na publicação a que aludo são acusados os’ pernambucanos de não haverem completado o reconhecimento de sua terra.
O fato ê incontroversível, mas a inculpação imerecida. Sobretudo quando se enaltecem os méritos dos paulistas.
Não haverá nisso resquícios da ingratidão dos cearenses para conosco? De tua província raros representantes de algumas excepcionais famílias se mostraram, por atos políticos, ligados aos pernambucanos; a essa solidariedade parece agora atribuir-se a comunhão no ódio ao poder adverso.
Donde vem esse sentimento hostil? Provavelmente da preponderância etnológica do caboclo.
Digo etnológica justamente porque a influencia sociológica dos antigos Incolas do Brasil foi quase nula na constituição de nossa nacionalidade.
Podes procurá-la por toda parte, e em nenhuma lograrás achá-la. — Xo indianismo literário? — Mas é, em Alencar, seu grande representante, um produto de imitação de que foram modelos Fenimore Cooper e Chateaubriand. Em Gonçalves Dias — mulato — é pura erudição. Esse grande poeta devera ter cantado os negros, cujos ternos sentimentos revelou em formas" eruditas.
Antes desses, que são o autor do Caramuru e Basilio da Gama? Artífices estrangeiros.
O cearense ficou desconfiado por ser da insociâvel raça do Floriano; ao passo que o pernambucano íêz triunfar na Terra Papagallorum a missão dos Portugueses.
Tu, que deves ser o historiador da Fundação do Brasil, ouve estas razões que te vou dizer.
Os pernambucanos não escudrinharam o país em cuja orla marítima elegeram sua habitação, por muitos motivos dos quais descobriste um: a inavegabilidade dos rios (salvo — e ainda assim! — o S. Francisco) pelos quais deveriam subir ao sertão. Os outros motivos — muito mais importantes- — podem resumir-se no seguinte: eles tinham coisa mais importante a fazer, que era, após se terem estabelecido em pontos que lhes pareceram favoráveis, e depois de haverem, percustrado o litoral vizinho, defender as suas posições.
Só isto lhes custou esforço meritório de grande reconhecimento nosso. Mas muitíssimo benefício nos deram maior que esse: o da pronta constituição de uma nova Pátria — a nossa. Tudo eles da Europa transportaram às regiões vizinhas do Iguaraçu, e defenderam-no com heroísmo: costumes, leis, indústrias, literatura científica e poética, — o conjunto, enfim, da mais adiantada civilização do mundo atual.
Que fizeram os teus paulistas?
Em primeiro lugar, porque eram já habitadores do sertão, não tinham que lutar com os fortes competidores europeus; em segundo lugar, descobriram apenas o que se lhes deparou na sua caçada aos índios para a exploração do ouro. Nisso não os guiava o primeiro impulso dum brasileirismo espontâneo: a cobiça devastou-lhes terras cujos íncolas eles exterminaram pelo arcabuz ou pelo cativeiro.
Ainda que eu pudesse demonstrar essas afirmativas, nem tenho tempo de o fazer, nem tu de tal precisas. Mas, Capistrano de Abreu, historiador do Brasil, carece de justiça e de verdade. Que o Tietê não se lhe represente, melhor do que é e, sobretudo, foi: o rio da escravidão dos índios está muito longe de haver sido o Nilo, em cujas margens se fundou a nossa civilização."
18 — C. H. Colonial
A falta de bons portos e rios navegáveis, ou pelo menos perenes, em toda essa zona ingrata do Nordeste e a proibição, vigente mais de cem anos, de comerciarem suas capitanias subalternas diretamente com o reino, influíram bastante para o resultado. Não menos concorreria o fato dos pernambucanos aqui não terem tido repugnância de entrar pelo sertão.
No avanço para o sertão defrontaram os índios, em que sobressaíam os cariris, antigos dominadores do litoral, então acuados entre o S. Francisco e a Ibiapaba. A sua resistência foi terrível, talvez a mais persistente que os povoadores encontraram em todo o país; mas atacados no rio S. Francisco, no Piranhas, no Jaguaribe, no Parnaíba, por gente de S. Paulo, da Bahia, de Pernambuco, da Paraíba, do Ceará, foram uns mortos, outros reduzidos a aldeamentos, outros agregados a fazendas, fundindo-se e confundindo-se com os colonizadores alienígenas.
A pacificação dos cariris, mais ou menos completa nos primeiros decênios do século XVIII, deixou livre uma grande área e por ela alastraram numerosas fazendas de gado. Dos povoadores alguns se corresponderam principalmente com a Bahia ou Minas Gerais, outros demandaram do Acaraú, do Jaguaribe, do Piancó, através da Borborema, o litoral pernambucano.
Antonilcalculava em mais de oitocentas léguas a extensão ocupada por currais pernambucanos, a contar de Carinhanha. A maior parte escoava para fora da capitania. Excluindo o S. Francisco, alista nos centros pastoris o rio das Cabaças, o rio de São Miguel, as duas alagoas com o rio do Porto do Calvo, o da Paraíba, o dos Cariris, o do Açu, o do Podi, o do Jaguaribe, o das Piranhas, o Pajeú, o Jacaré, o Canindé, o Parnaíba, o das Pedras, o dos Camarões e o Piaugui.
Nos primeiros tempos Piauí pertencia a Pernambuco e a freguesia da Mocha dependia da de Cabrobó.
Dos pontos extremos a que chegou a ascendência de Pernambuco para o Norte podemos indicar Lavras, no Jaguaribe, em cujas cercanias estavam a fazenda do Juiz, pertencente ao mosteiro de S. Bento de Olinda, e Caiçara ou Sobral, na ribeira do Acaraú. Ligando Sobral às terras de Parnaíba, tornou-se viagem relativamente fácil vir do Maranhão e Piauí a Pernambuco pelo caminho indicado.
Grande e bem grande centro de povoamento foi S. Vicente, vila fundada em 1 532 por Martim Afonso de Sousa. Dela se separou logo Santos, que já existia em 1 549. X)as duas saiu gente que se estendeu para o Norte até a angra dos Reis e para o Sul até Laguna.
A mata litorânea, que começa em Ilhéus, prossegue para Santa Catarina, até onde avança a serra do Mar; estreita-se, porém, em frente a S. Vicente, onde já fora vencida antes de Colombo e Pedralvares, graças à circunstância de serem os mesmos os índios que habitavam o litoral e o planalto — os tupiniquins e antes destes os guaianases, guarulhos, gualachos, maramomis, diferentes em tudo dos primeiros.
Depois de instalar S. Vicente, Martim Afonso transpôs a serra de Paranapiacaba e criou outra vila, que posteriormente mudou de sede e nome, transformando-se insensivelmente na atual cidade de S. Paulo.
O caminho entre S. Paulo e S. Vicente não era cômodo, mesmo aproveitados os trechos navegáveis do Cubatão e de um dos afluentes do Tietê. Fernão Cardim, que fêz a viagem em 1 585, nas melhores condições possíveis para a época, por acompanhar o padre Cristóvão de Gouvêa, visitador da Companhia de Jesus, já pujante e prestigiosa, graças a tantos serviços prestados, empregou nela quatro dias e diz: "O caminho é tão íngreme que às vezes íamos pegando com as mãos", antes de chegarem bem cansados ao cume da Paranapiacaba; e depois de passado: "Todo o caminho é cheio de tijucos, o pior que nunca vi, e sempre íamos subindo e descendo serras altíssimas e passando rios caudais de água frigidíssima".
Portanto, não podiam ser freqüentes as comunicações entre o litoral e o planalto, como logo o vestuário o malsinava. Os moradores de Piratininga, diz-nos o mesmo autor, "vestem-se de burel e pelotes pardos e azuis, de pertinas compridas… vão aos domingos à igreja com roupões ou berneu de caxeira sem capa". E frei Vicente do Salvador, descrevendo a viagem feita por D. Francisco de Sousa uns quinze anos mais tarde, repara: "Até então os homens e mulheres se vestiam de algodão tinto, e se havia alguma capa de baeta e manto de sarge, se emprestavam aos noivos e noivas para irem à porta da igreja".
Assim as asperezas do caminho dificultavam o trato entre o interior e o litoral. E não o favoreciam as condições econômicas, pois Piratininga só precisaria de sal, pólvora, armas e alguns tecidos e quase só podia dar em troca algum ouro de lavagem, que desde logo foi sendo extraído, e os índios apanhados nas bandeiras, que, movendo-se pelo próprios pés, dispensavam conduções dispendiosas. Acrescente-se que os habitantes do campo cegavam às vezes os caminhos, para tolher a ação das autoridades de serra abaixo, representantes do poder real ou senhorial. De tudo resulta a necessidade de considerar o povoado serrano independente de Santos, de S. Vicente e da marinha em geral. Esta, fique logo entendido, só em nossos dias sacudiu o letargo.
A situação geográfica de Piratininga impelia-a para o sertão, para os dois rios de cuja bacia se avizinha, o Tietê e o Paraíba do Sul, teatros prováveis das primeiras bandeiras, que tornaram logo famoso e temido o nome paulista. No Paraná, os jesuítas do Paraguai foram reunindo e domesticando numerosas tribos inermes, indefesas.
Ao assunto que estudamos não pertencem as bandeiras, por motivos óbvios. Concorreram antes para despovoar que para povoar nossa terra, trazendo índios dos lugares que habitavam, causando sua morte em grande número, ora nos assaltos às aldeias e aldeamentos, ora com os maus tratos infligidos em viagens, ora, terminadas estas, pelas epidemias fatais e constantes, aqui e alhures apenas os silvícolas entram em contato com os civilizados. Acresce que os bandeirantes iam e tornavam, não se fixavam nunca nos territórios percorridos; isto explica o motivo da sua persistência durante mais de um século e seu exílio quando não tornaram mais à pátria.
A atenção que não cabe aos bandeirantes reclamam-na de passagem os conquistadores, homens audazes, contratados pelos podêres públicos para pacificar certas regiões em que os naturais apresentavam mais rija resistência. Os conquistadores podiam cativar legalmente a indiada, recebiam vastas concessões territoriais, iam autorizados a distribuir hábitos e patentes aos companheiros mais esforçados. Estêvão Ribeiro Baião Parente, Matias Cardoso, Domingos Jorge Velho e outros fixam este curioso tipo; geralmente não tornavam à pátria e deixaram sinais de sua passagem e herdeiros de seu sangue em Minas Gerais, na Bahia, em Alagoas e alhures; mas o maior serviço que prestaram consistiu em ligar o Tietê e o Paraíba do Sul ao S. Francisco, através da Mantiqueira, construindo e levando rio abaixo canoas para as quais não havia aqui madeira própria, e auxiliarem os curraleiros a se estenderem até o Parnaíba e Maranhão. Domingos Jorge Velho foi um dos primeiros devassadores do Poti.
Ao tempo em que os conquistadores se batiam contra os índios de Paraguaçu e Ilhéus, prosperava à volta de São Paulo grande número de vilas: Moji das Cruzes, Parnaíba, Taubaté, Guaratinguetá, Itu, Jundiaí, Sorocaba, são todas anteriores a 1 680, anteriores ao grande êxodo que assinalou o último quartel do Século XVII. Cada uma das vilas extremas demandava destino diverso: as vilas do Paraíba do Sul apontavam para as próximas Minas Gerais, como Parnaíba e Itu apontavam para Mato Grosso, como Jundiaí apontava para Goiás, e Sorocaba para os campos de pinheiros em que já surgia Curitiba.
Para mobilizar todas essas forças bastou o descobrimento do ouro, ouro corrido, é verdade, como se conseguira já em tantos córregos e rios, mas com abundância de que só em terras de língua inglesa se encontrou o equivalente em nossos dias.
Os primeiros descobertos lavraram-se em águas do rio Doce, do rio das Velhas, mais tarde, do rio das Mortes e do Jequitinhonha: a população que acudiu procedeu toda, ou quase, do planalto, especialmente do rio Paraíba do Sul, onde a estreiteza do vale, cavado entre a Mantiqueira e a cordilheira marítima, produzia o efeito de condensador. Logo apareceram outros novos haveres. Pouco tempo os desfrutaram em paz os descendentes dos bandeirantes e conquistadores, derrotados no encontro com os emboabas, ou, para falar com mais precisão, dos aventureiros, na maioria baianos, vindos do Norte, beirando o S. Francisco e o rio das Velhas.
Com a vitória dos emboabas, Itu e Sorocaba assumem seu papel histórico. Pelo Tietê abaixo até a barra, pelo Paraná até o Pardo, por este até a balança das águas com o Paraguai, pelo Coxim, pelo Taquari, pelo Paraguai, pelo S. Lourenço, pelo Cuiabá, atingiu-se a descobertos em que o ouro se apanhou às arrobas. E logo transposta a chapada e espontados rios que correm ao Amazonas e ao Prata, chegou-se às cabeceiras do Guaporé, desceu-se para o mato grosso do Jauru, ou avançou-se para o alto Paraguai. Até aqui, não se atreveram emboabas, mas no labirinto dos pantanais apareceram índios ferozes, não desbastados suficientemente por bandeiras; apareceram as dificuldades da viagem, que desde Araritaguaba, ou Porto Feliz, pedia quatro a cinco meses, através de mais de cem saltos, cachoeiras, corredeiras e entaipavas. Cuiabá e Mato Grosso, para não sucumbir, tiveram que se desligar de São Paulo.
Antes disto se consumar chegara a vez de Jundiaí, de onde partiu Bartolomeu Bueno e cortando afluentes do rio Grande, e o próprio rio Grande, pondo-se dó outro lado do Parnaíba (do Sul) encontrou finalmente os índios goiases, que vira menino, quando por aquelas brenhas guerreava em companhia de seu pai Anhanguera, o diabo velho, o diabo legião que incendiava os rios. Em águas de um afluente do Araguaia pintou o primeiro ouro. Abundantes minas encontraram logo Amaro Leite, Godoy, Calhamara pela ribeira do Araguaia, pela ribeira do Tocantins.
Cerca de 1 740 minerava-se ouro desde as serranias do Espinhaço até os chapadões dos Parecis, e quase sempre fora um paulista o descobridor. São Paulo estava, porém, exausto. Densa sua população não era tanta que pudesse resistir a tantas sangrias ininterruptas que a vitimaram. Por maior desventura os poderes públicos quase não deram um passo que não fosse em detrimento daqueles sertanistas façanhudos.
Artur de Sá, governador do Rio de Janeiro, o primeiro que visitou as minas gerais, teve de ir por terra desta cidade a Parati, e de Parati a Taubaté, para transpor a Mantiqueira. Seguiu assim uma trilha antiquíssima dos guainases, porque do mesmo modo que a gente de Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo, os fluminenses não se animaram a varar a mata de um a outro lado.
Ofereceu-se a Artur de Sá para abrir comunicação direta com o Rio um paulista, Garcia Rodrigues Paes, filho de Fernão Dias Paes, o governador das esmeraldas2. Isto fêz partindo dos descobertos já lavrados, beirando o Paraibuna até o Paraíba do Sul e transpondo a divisória deste até o rio Morobaí ou Pilar, traçado em parte coincidente com a via férrea que já não se chama Pedro II e com a de Melhoramentos a esta reunida3. Data daí a ruptura das matas, feita por mãos alheias (o fluminense é incapaz de dizer sape a um gato, escreve alguém que os conversou), o florescimento do Rio de Janeiro, que em 1711 já fornecia opimo espólio ao corsário Duguay-Trouin.
A obra antipaulística de Garcia foi continuada por seu con-cunhado Manuel da Borba Gato, que se estabeleceu no rio das Velhas.
Dali contra a própria vontade e ordens draconianas do ultramar, mas urgido por inelutáveis condições demográficas, encaminhou para a Bahia o ouro e o comércio do S. Francisco.
Em Mato Grosso procurava-se remédio contra os ataques ferozes dos paiaguás, guaicurus, caiapós ou porrudos, que desde os pantanais do Paraguai até os saltos do Pardo, balizaram de cadáveres cada palmo de terreno. O que se ofereceu mais adequado consistiu em abrir trato por terra para as minas de Goiás já então descobertas. Desta empresa se encarregou Antônio Pires de Campos, auxiliado pelos bororós, que soube atrair ao seu serviço. No princípio do Século XIX Caetano Pinto, nomeado governador de Pernambuco, veio por terra do Guaporé ao rio de São Francisco.
No ano de 1 742, Manoel Félix de Lima desceu pela primeira vez o Madeira desde o Sararé e Guaporé até o Pará: José de Sousa Azevedo em 1 746 desceu o Tapajós. O governo da metrópole proibiu sob graves penas o aproveitamento dessas vias de comunicação, especialmente a do Madeira; mas desde que se erigiu a capitania de Mato Grosso e se escolheu para a capital a Vila-Bela não restava outro recurso. Com o governo de D. Antônio Rolim de Moura se tratou de utilizar o Mamoré e Madeira para as comunicações com o Pará, apesar dos colossais embaraços oferecidos pelo trecho encachoeirado, só vencíveis e só vencidos por via férrea. D. Antônio Rolim de Moura, conde de Azambuja, que alcançara Cuiabá-Mato Grosso e de sua viagem deixou aprazível narrativa, nomeado governador da Bahia em 1 766, desceu do Guaporé ao Maranhão, donde foi por terra a seu destino.
2. O roteiro de Fernão Dias Paes.
O caminho seguido por Fernão Dias Paes era bem conhecido e mais de uma vez foi trilhado por pessoas que do sertão vinham pedir reforços ou de Piratininga iam levando auxílios mandados pela família no decurso da expedição em que finalmente deixou a vida. Comparando-o com o de D. Rodrigo de Castello Branco, administrador das minas, pode-se determiná-lo com bastante precisão, pois D. Rodrigo não teve maior preocupação que a de acompanhar-lhe as pegadas. Apenas chegou a Santos tratou de pôr-se em comunicação com o governador das? esmeraldas para quando tornasse de Paranaguá. Na entrada elegeu braço direito a Matias Cardoso de Almeida, seu antigo companheiro. Na marcha encontrou um portador de Garcia Paes*, filho de Fernão, mais adiante o próprio Garcia e tragicamente foi morto no arraial de Manoel de Borba Gato, cunhado deste.
D. Rodrigo partindo de São Paulo a 19 de março de 1 681, a 24 assinava um documento em Atibaia; a 19 de abril fugiam-lhe índios na paragem de Sapucaí; estes dois nomes bastariam para mostrar que o caminho seguido não foi o do Paraíba do Sul.
Deve ter sido o de Atibaia, em parte percorrido por Spix e Martius, e em parte descrito por Paula Ribeiro em 1 815: Rev. Trim., 2.°, 5º.
O caminho de Atibaia ou Sapucaí e o de Paraíba do Sul comunicavam-se na Mantiqueira por várias gargantas, apontadas nas seguintes" notas graciosamente fornecidas por Dr. Gentil Moura:
"Na região de Piracaia (antiga cidade de Santo Antônio da Cachoeira) há as gargantas do rio Cachoeira e Muquém, afluentes do rio Atibaia e situados entre os morros do Lopo e a pedra do Selado.
Fronteiras a Jacareí há as gargantas do rio do Peixe e do rio das Cobras, afluentes do Paraíba e situados ao Sul da pedra do Selado.
Fronteiras a S. José dos Campos há as gargantas do Pio Buquira.
Fronteira a Pidamonhangaba e entre os morros do Itapeva e Pico Agudo, há a garganta do Piracuama.
A partir do Jacareí, as gargantas convergem para a região mineira chamada do Sapucaí (S. José do Paraíso, Santana do Sapucaí etc.).
Fronteiras a Guaratinguetá hâ as gargantas do Pirajuí e Guaratinguetá; fronteira de Lorena a do Piquete, e fronteira de Cachoeira (Bocaina) há a garganta do Embaú, onde se fêz a entrada para Minas Gerais, ganhando o vale de Passa Vinte depois da travessia da serra."
Ao tomar posse de sua cadeira no Instituto Hisrtúrico do Pio, Gentil Moura traçou uma bela síntese da antiga viação paulista, que se pode ler no Diário Oficial de 3 de julho de 1920.
3. Primeiros caminhos do Rio para as minas.
Três foram os primitivos caminhos que puseram em comunicação a cidade do Rio de Janeiro com as terras de além Paraíba do Sul e Paraibuna.
O primeiro, vulgarmente chamado o caminho velho, aberto por Garcia Rodrigues Paes-, partia do norte do Pilar, transpunha a serra, passava as roças Marcos da Costa nas cabeceiras do rio Santana, Pati, etc.
O segundo depois de passado o Paraíba do Sul, desenvolvia-se pelas margens do Piabanha e Inhomerim: de Inhomerirn vinha-se embarcado para o Rio; a praia dos Mineiros era o ponto de desembarque.
O terceiro, vulgarmente chamado caminho novo, passava por Meriti, Maxam bomba e Sacra Família.
Todos três se reuniam na bacia do Paraíba do Sul e transpunham a divisa das águas para a Guanabara, onde feneciam.
O caminho aberto por Garcia Rodrigues está descrito em Antonil: por êle marcharam as tropas que das terras de ouro vieram acudir ao Rio, atacado por Duguay-Trouin.
O segundo, obra de Bernardo Soares de Proença, já era utilizado em 1 725, como desde 1 907, se divulgou nos Capítulos da História Colonial, pág. 140. (Edição da Sociedade Capistrano de Abreu, pág. 106).
Entre São Paulo e Rio os caminhos variaram bastante. Muitos moradores de serra acima procuraram saída para as águas da ilha Grande ou de Angra dos Reis, donde era fácil o transporte por terra ou por sumacas até a capital. A E. F. Central do Brasil, desde as divisas de São Paulo, afastou-se dos caminhos preexistentes e abriu novos. Na jornada de Ipiranga, Pedro I viajou por Santa Cruz e Itaguaí, S. João Marcos, Areias, Lorena.
O caminho fluvial do Madeira, o caminho terrestre de Goiás, concluíram a obra antipaulística iniciada nos morticínios dos pantanais. Quando Spix e Martius visitaram Porto Feliz, na segunda década do passado século, o comércio antigo estava amortecido. Não mais de seis a oito canoas anualmente faziam o serviço, em que não muitos anos antes porfiavam tantas monções.
Também Goiás não se lembrou muito tempo que de São Paulo partira o movimento que o transformara. A divisória das águas entre o Tocantins e o S. Francisco abunda em gargantas, seguramente já trilhadas pelos índios: Duro, S. Domingos, Taguatinga, Santa Maria, Arrependidos etc. Pelas gargantas mais setentrionais, os goianos se comunicaram com a margem pernambucana (esquerda) do São Francisco, de onde com mais facilidade tinha de ir o gado de que precisavam, sob pena de morrerem de fome; pelas mais meridionais atingiram a margem baiana do S. Francisco, ou terras de Minas, que apresentavam como termo de viagem os portos da Bahia e Rio de Janeiro, a todos os respeitos mais vantajosos que São Paulo ou Santos. O refluxo de Goiás para São Paulo é todo obra dos nossos dias e precedeu de pouco a abertura da Mojiana.
O governo da metrópole, absorvido por interesses fiscais, sacrificou conscientemente São Paulo a Minas, porque a princípio não tinha confiança nos paulistas, tanto que recomendou ao governador Antônio de Albuquerque que não lhes confiasse armas, e porque, estando o serviço de arrecadação de quintos melhor organizado em Minas Gerais, onde registrou vantagens, patrulhas volantes tomaram todas as saídas e as Câmaras municipais prometeram pagar cem arratéis de ouro anualmente, da metrópole galardoada.
Na segunda metade do século dezoito o megalomaníaco governador de S. Paulo, D. Luís Antônio de Sousa Botelho e Mourão, quis aproveitar a posição de Sorocaba e mandou fundar Lajes, em terras que atualmente pertencem a Santa Catarina. Assim e mais com a empresa trágica de Iguatemi não fêz senão consumar a ruína da capitania entregue a seus cuidados. Os paulistas não sabiam mais sertanejar nem minerar. Encontramo-los depois nas tropas regulares empenhados nas guerras platinas desde o refúgio: é seu pêjo extremo.
A estrada de Sorocaba a Porto Alegre e ao território das Missões teve sua importância quando vinham às feiras dezenas de milhares de bestas, mas sua influência durou pouco e esvaiu-se com a introdução do vapor. A Este nela desembarcaram caminhos vindos da marinha, onde a Serra do Mar permitia passagem. A Oeste não romperam a mata nem domaram a indiada. A margem esquerda e a direita do Paraná durante o período colonial não se povoaram, e ainda hoje continuam quase desertas.
Entretanto, lentamente São Paulo foi-se reerguendo. A plantação de cana, de café, a imigração, as estradas de ferro, os fatores geográficos revalorizados, deram-lhe nova e mais vigorosa vida e lhe restituíram a hegemonia que há anos representa em toda a vida brasileira
A cidade do Salvador, instituída na baía de Todos os Santos por Tomé de Sousa em 1 549, figura outro centro considerável de povoamento de nossa terra.
D.João III tomou-a sob sua especial proteção, enviou-lhe colonos, forneceu dinheiro, adiantou escravos e mercadorias, isentou ou aliviou de impostos os moradores, cercou-a de cuidados e desvelos que a fizeram desde o começo viável e a ajudaram a medrar vigorosa.
A população alastrou de preferência pelo litoral do pequeno mediterrâneo, geralmente chamado recôncavo. Em 1 587, menos de quarenta anos depois da fundação, Gabriel Soares contava dezesseis freguesias; sessenta e duas igrejas, todas bem consertadas, limpas e providas de ornamentos; três mosteiros de religiosos; oito casas de cozer meles, mui proveitosas e de muito fabrico; trinta e seis engenhos moentes e correntes, dos quais quinze movidos por bois, o resto por água. Outros quatro estavam construindo, e a produção anua montava o melhor de cento e vinte mil arrobas de açúcar e muitas conservas.
Todos os moradores tinham seu barco ou canoa; o serviço dos engenhos fazia-se todo por mar; cada engenho possuía quatro embarcações; mil e quatrocentas se poderiam facilmente ajuntar, se o serviço real as reclamasse. Acrescia a isto que os escravos e a classe pobre se alimentavam quase só de peixe, e principalmente de mariscos apanhados nos mangues, e dispensa grande esforço intelectual compreender que esta gente não trocaria de boa vontade as vantagens da marinha pelas asperezas e descômodos das brenhas do interior.
Os engenhos estavam todos na mata, o que se explica pela maior fertilidade dos terrenos bem vestidos, e pela abundância de lenha, necessária às fornalhas em um labor que às vezes durava, dia e noite, oito e nove meses. E não deviam se afastar muito do litoral marítimo, sob pena de, sendo um só o preço dos gêneros de exportação, não poderem competir com os fazendeiros mais vizinhos do mercado, cujo produto não se gravava com as despesas de transporte.
4. Trechos de uma carta de Teodoro Sampaio, escrita da Paulicéia, a 31 de agosto de 1 809 :
"Peço-lhe atender às seguintes observações que passo a fazer a propósito do como encarei as catingas em relação ao problema da conquista dos sertões.
No meu artigo — O sertão antes da conquista — publicado no Comercio de São Paulo, o que tive em vista deixar assinalado era a diversidade das fluas metades do país, o Norte e o Sul, quanto aos seus caracteres físicos, estabelecendo um paralelo entre a catinga e o campo, como entre a hidrografia do Paraná brasileiro e a dos rios do Norte. No Sul o meio físico impelia o homem para o sertão, para assim dizer aberto. No Norte nem as catingas nem a hidrografia facilitavam tanto. Do ponto-de-vista da exploração sertaneja, o vale do Paraná oferece uma série de extensíssimas campinas, que as baixadas dos afluentes apenas interrompem sem, contudo, isolar totalmente; e estas campinas começam quase na crista das montanhas à beira mar e vão fundo no interior do continente. Por isso, as primeiras invasões dos europeus desde logo atingem ou transpõem a funda bacia do Paraná-Paraguai, e é tradição que uma delas varou até os Andes do Peru.
No Norte a causa é bem diversa. Só depois de transcorrido mais de meio-século é que uma partida de europeus pôde varar até o São Francisco. A invasão do território não tem aí o caráter de incursões venatória como as do Sul. Um ou outro obscuro mamalucoé que se atrevia a entrar nos sertões para descer índios, e isso mais com engodos do que pela força. Aí não se penetra habitualmente tão longe desde os primeiros anos. A conquista parece fazer um movimento de flanco; caminha-se ao longo das praias. Atinge-se Sergipe, para daí subir-.se pelo São Francisco, onde se obtém sesmaria após sesmaria, fazenda após fazenda, para mais tarde procurar-se ou voltar-se ao centro irradiante pelo caminho mais curto- É que V. chamou o traçado pela hipotenusa. Varnhagen tem razão se se compara a catinga com a mata; não, porém, se o paralelo do ponto-de-vista da exploração, tiver de fazer-se com o campo, como é a minha tese.
A catinga, de certo, tem mais larguezas que a mata não tem. A orientação na catinga é cabível, digo, é mais acessível, mas não é fácil, porque se o céu é mais descoberto, o solo é mais inçado do obstáculos. As veredas falsas, múltiplas são um verdadeiro perigo. A vegetação espinhenta, as trincheiras quase intransponíveis das bromélias e dos cardos formam uma barreira que se sucede por dezenas de léguas, desafiando aos mais robustos picadores de mato. Só o gado pôde primeiro trilhar a catinga; e naquelas regiões onde o europeu primeiro penetrou através dela, foi sem dúvida pela trilha do índio, e guiado por índio. Ajunte-se a tudo isso, a falta dágua por dezenas de léguas*, a aridez do solo, a escassez das chuvas, e se compreenderá por que o movimento invasor busca desenvolver-se ao longo do mar e dos grandes rios perenes, para depois voltar ao centro, retificando os" caminhos através das catingas de baixo de permeio.
O campo oferecia no Sul elementos bem diversos: rios perenes em grande número, clima menos ardente, matas de pinheiro, cu.ios frutos eram excelentes e abundante provisão, constituindo no meio das solidões um verdadeiro oásis. As marchas diárias eram nessa região um movimento regulado e calculado. Nas catingas, isso era impossível. Nas margens do São Francisco recolhi a tradição de que os primeiros catingueiros que ousaram enveredar para os lados do Piauí, carregavam água em borracha, e penetravam, rompendo a catinga até onde a água permitia, e voltando ao rio São Francisco para renovar as provisões enquanto o fogo, deitado à catinga sistematicamente, ia desbravando a região e abrindo as veredas.
Está visto que a mata oferece muito maiores obstáculos, e isso explica bem o retardamento com que se povoaram as regiões dentro do Rio e Minas, e as de entre o Espírito Santo e o vale superior do rio Doce e outros."
A mata do recôncavo, a partir da margem direita do Paraguaçu, é contínua com a que se estende até além do Capricórnio pela fralda oriental da serra do Mar. – Da ponta de Santo Antônio, um dos extremos do recôncavo, até o rio de São Francisco a mata aparece em manchas consideráveis, capões, ilhas mais ou menos extensas, engasgadas nos campos e catingas, antes dominadas que dominantes. Por aqui de preferência se estabeleceu o povoamento, depois de repleto o recôncavo.
Varnhagen vê uma das causas do rápido devassamento dos sertões no fato de as catingas se despirem anualmente de folhas. Teodoro Sampaio4, tão eminente, conhecedor da história como da geografia nacional, acaba de dizer quase o contrário em admirável artigo recente: "Se o perigo da mata virgem é a solidão sem veredas e sem saídas, escreve êle, o terror da catinga é o desnorteamento infalível pela multiplicidade delas. O bruto com o seu instinto rasga horizontes sem vacilar; o homem, porém, que de uma vez penetrou na catinga e lhe falhou a memória na escolha da vereda, é uma vítima que só um milagre o salvará."
Pensando bem, parece que a razão está antes com Varnhagen. A catinga permite sempre a vista do céu e a orientação por ele; os obstáculos que depara resolvem-se com um facão ou uma foice ou a fogo. Os lugares em que ela se aproxima do litoral foram devassados logo. Já em 1584 se tinha ladeado o Orobó região de grandes matas, e de lá trazido milhares de índios prisioneiros.
O que não pode haver dúvida é que as catingas pouco remuneram a lavoura, como então, mais ainda que hoje, se praticava, — simples latrocínio da natureza, sem compensação alguma oferecida por parte do homem. Urgia dar-lhes destino, mesmo porque a área dos catingais era enorme, e descurá-la tanto montava a deixar sem proveito a maior parte do país. A criação do gado resolveu o problema.
Que a mata é incompatível com a criação do gado, ainda agora se vê no Amazonas. A pouca luz que côa através das copas unidas do arvoredo não permite a formação de pasto; para os ruminantes a opulência vegetativa redunda em inanição irremediável. A catinga é bem mais hospitaleira, apesar dos espinhos que caracterizam grande parte das suas árvores, herança dos tempos diluviais, armas nas lutas contra as colossais preguiças herbívoras, hoje extintas, então muito numerosas, — no entender de W. Detmer, botânico ilustre, que há anos visitou a Bahia.
Os primeiros colonos evitaram os catingais; nos requerimentos de sesmaria alegam sempre que as terras não têm pastos suficientes, por causa das catingas. Mais tarde, porém, acomodaram-se com elas: porque entre um tronco e outro há sempre comédia; entre uma catinga e outra há sempre campos; de certas árvores que não perdem a folha, aproveita-se a rama para alimentar a gadaria contra o flagelo das secas. Finalmente, estas matas virgens plebéias, que designamos por uma palavra da língua tupi, revestem formas muito diferentes, que podem emparelhar quase com as florestas próceras do litoral ou nivelar-se, com o campo rasteiro.
A criação de gado começou no governo de Tome de Sousa.
"As primeiras vacas que foram para a Bahia, escreve Gabriel Soares, levaram-se de Cabo-Verde e depois de Pernambuco, as quais se dão de feição que parem cada ano… e acontece muitas vezes mamar o bezerro na novilha e a novilha na vaca juntamente, o que se vê também nas éguas, cabras, ovelhas e porcas."
Dentro do recôncavo e em certas ilhas deles havia alguns currais; a força da criação começava da ponta de Santo Antônio para o Norte; no tempo em que Gabriel escrevia já alcançava o rio Itapicuru, e avultavam como criadores os jesuítas e Garcia de Ávila, e fundador dessa casa da Torre que mais tarde devia tornar-se tão opulenta.
A conquista de Sergipe na última década do século XVI, franqueou um amplo espaço, logo distribuído em sesmarias, distribuídas sem o mínimo escrúpulo, sem um ligeiro vislumbre sequer de inteligência, desde que Sergipe teve capitão-mor próprio e desabusado.
Como não são sesmarias o objeto deste esboço, lembrar-se-á apenas que, à medida que a margem baiana do São Francisco ia sendo aproveitada, se tornava maior a distância da cidade do Salvador e seu recôncavo, onde existiam os principais consumidores de gado. A condução deste, beirando o São Francisco até a foz, e daí acompanhando o oceano, ficava cada vez mais penosa e demorada; impunha-se a serventia de caminho mais rápido.
Dizia o saudoso engenheiro Carlos A. Morsing que as vias férreas se desenvolvem em triângulos no sentido da hipotenusa; o mesmo se dá com as vias comuns. No presente caso figurou de hipotenusa a linha de Jeremoabo.
Um caminho destes oscila naturalmente antes de fixar-se, e assim não é fácil apurar qual foi seu primeiro rumo. Frei Martin de Nantes, missionário capuchinho que mais de uma vez cumpriu a jornada entre 1 672 e 1 683, apenas indica três pontos por onde passava: a aldeia de Canabrava, hoje Pombal, em águas do Itapicuru, Jeremoabo em águas do Vazabarris, e uma passagem no rio de São Francisco, abaixo das ilhas Pambu e Uacapara. No princípio do século XIX a passagem era em Ibó. a pouca distância de Cabrobó. Dela serviam-se os correios que transitavam entre a capital da Bahia e a do Ceará no governo de Francisco Alberto Rubim.
No tempo do intrépido frei Martin já se realizava uma invenção que agiu de modo extraordinário sobre nossa história e a modelou em grande parte. Um gênio anônimo, túmulo que nunca será conhecido nem visitado, inventou o meio de passar o gado nos rios caudalosos. "Na passagem de alguns rios, informa Antonil-Andreoni no seu livro sobre a cultura e opulência do Brasil, na passagem de alguns rios, um dos que guiam a boiada, pondo uma armação de boi na cabeça e nadando mostra às reses o vau por onde hão de passar."
Com esta invenção se tornaram igualmente apetecidas ambas as margens do rio São Francisco.
O governador geral do Brasil, o governador de Pernambuco, o capitão-mor de Sergipe concederam todas as terras requeridas. Pelo lado direito do São Francisco até o rio do Salitre, por léguas sem conta na margem esquerda logo acima do trecho encachoeirado, a casa da Torre chamou a si territórios mais vastos que grandes reinos.
Nas proximidades destas terras morava Domingos Afonso, por antonomásia Certão. A procura de campos novos, ou no encalço dos índios, adiantou-se tanto que passou das águas de São Francisco para as do Parnaíba. Encontrou-se no rio Piauí, e este nome estendeu-se posteriormente à capitania e ao estado. No território assim descoberto o gado multiplicou-se de modo maravilhoso. Domingos Afonso fundou e possuiu dezenas de fazendas; trinta legou aos jesuítas; e com outros acréscimos tanto proliferaram as célebres fazendas nacionais, confiscadas pela vesânia pombalina, que mais de século e meio de incúria e malversação não as conseguiram extinguir de todo, tal a sua vitalidade inicial. No tempo de Rocha Pitta (antes de 1 730) as fazendas do Piauí iam descendo o Parnaíba e alcançavam o Longa e o Piracuruca, à procura de saída mais cômoda pelo litoral do que as cinco estradas que já então ou mais tarde, vinham desembocar no São Francisco, entre Cabrobó e a barra do rio Grande (rio Grande do Sul, como primeiramente se chamara).
As sesmarias denotadoras de peregrinos dotes geográficos e políticos em quem pediu e ainda mais em quem as concedeu, em si muito curiosas, são alheias ao presente assunto.
Voltando a êle, notaremos que à medida que o gado ia subindo pelo São Francisco, o caminho de Jeremoabo ia perdendo as comodidades que antes oferecia e impunha-se à criação de novos caminhos, os de Jacobina, Itapicuru e outros substituídos hoje em sua missão histórica pela estrada de ferro de São Francisco. O caminho de Joazeiro ilustra em uma página lapidar o venerando Martius, que por êle seguiu viagem para o Maranhão 5.
5. Uma página de Martins sobre o caminho de Joazeiro.
A serra da Tiúba atravessa bastante extensa e esgalhada a parte Noroeste da capitania da Bahia, variando de dominação com as localidades; forma a divisora das águas entre o rio São Francisco a Oeste e os pequenos rios a Este que muitas vozes secam em parte ou de todo ficam sem água, que ao Sul daquele corram para o oceano, e dos quais o rio Itapicuru é o de maior curso. No arraial de Santo Antônio das Queimadas, a três léguas do rio do Peixe, adiamos este rio, mas, devido â seca persistente, tão seco que apresentava apenas algumas poças.
Todos os rios deste trecho são de pequeno cabedal e secam durante a falta de chuva, e então apenas um leito rócheo, largo e irregular, indica sua presença e direções. Suas pontas originam-se de gretas de penhas e formam geralmente fontes claras e rasas. Durante os meses molhados, porém, os álveos ficam cheios de água de chuva, e isto sucede em conseqüência da formação particular do terreno que se fende em numerosos valetes conexos, com tal rapidez que dentro de oito dias se vê um álveo pétreo e seco cheio por uma corrente torrencial.
A falta de humo, a densidade, a rijeza, a horizontabilidade predominante da rocha, favorecem o escoamento rápido, e este por sua vez atua sobre as condições da crosta terrestre, reagindo por éste meio sobre a periodicidade dos rios. -
De fato, como nenhuma umidade resta na terra, a decomposição das folhas caídas e de outras matérias orgânicas não pôde realizar-se pela ação da água; dá-se antes um mirramento ao ar quo um processo de putrefação, e muito pouco é o humo que se forma. Os ventos dispersam o pó, constituído de partículas orgânicas, e a rocha escalvada fica sem aquela cobertura, tão apropriada a prender a água atmosférica, favorecendo assim a origem de fontes perenes.
Também a espécie de vegetação desta zona parece determinar esta marcha do processo dos elementos; pois as folhas são relativamente mais raras do que nas matas virgens do litoral e de contextura mais seca. Assim, como agente importante da aviventação deste território madrastamente dotado, resta a água fluvial, e como nem picos alterosos nem rochas particularmente densas favorecem a atração da umidade atmosférica só vigora a periodicidade geral das estações seca e úmida, é fácil achar o motivo por que nem um progresso do país se iniciará aqui, no ciclo de tão desfavoráveis ações e reações recíprocas. Estas condições assinalam também as relações desta zona com a cultura possível; só após muitos esforços virá uma agricultura remuneradora juntar-se à criação do gado, principal base da alimentação dos habitantes.
"Procurei descrever em geral as relações em quo estão entre si o solo, o clima e a vegetação; se me fosse permitido aventurar uma suposição quanto ás primeiras causas que produziram a situação presente, seria que as serras perderam sua antiga coberta de terra com as possantes e largas lavagens do Oceano.
Muitas circunstâncias parecem favorecer esta afirmação; a descida gradual desta região para o mar, o curso regular dos rasos vales de escoamento em direção igual, a extensão das superfícies rócheas escalvadas, o arredondamento da muitos troços graníticos, que jazem esparsos ora nas alturas, ora nas baixas e principalmente o teor salino do humo das regiões ocidentais.
Em tal caso não fora de estranhar depararmos aqui vegetação tão diferente da mata virgem das serras graníticas do litoral; deve-se considerá-la como uma formação secundária de plantas; na realidade nem quanto à altura e força de crescimento nem quanto à plenitude e às singularidades de forma pode considerar-se esta a vegetação das eras primevas" (MartiuS,reise in Brasilien, 723, 725).
Por descuido vai esta velha e imperfeita versão, quando tão fácil seria aproveitar a bela tradução de Pirajá da Silva — 173-176, Bahia, 1 916.
De passagem se note que o caminho de Joazeiro se conta entre os menos antigos da Bahia — antes via de vazão que de penetração.
Em geral formava-se uma linha muito sinuosa que evitava as matas onde o gado não encontraria o que comer; as serras onde as chuvas mais freqüentes produziam, às vezes, florestas luxuosas como as de Orobó, os desfiladeiros arriscados, as catingas mais bravas, as travessias órfãs d’água.
"Constam as boiadas que ordinariamente vêm para a Bahia de cem, cento e sessenta, duzentas e trezentas cabeças de gado; e destas quase cada semana chegam algumas a Capoame (hoje Feira-Velha), lugar distante da cidade oito léguas, onde tem pastos e onde os marchantes as compram; e em alguns tempos há semanas em que cada dia chegam boiadas. Os que as trazem são brancos, mulatos e pretos, e também índios, que com este trabalho procuram ter algum lucro. Guiam-se indo uns adiante cantando, para serem desta sorte seguidos do gado; e outros vêm atrás das reses tangendo-as e tendo cuidado que não saiam do caminho e se amontem. As jornadas são de quatro, cinco e seis léguas, conforme a comodidade dos pastos, onde hão de parar. Porém, onde há falta de água, seguem o caminho de quinze e vinte léguas, marchando de dia e de noite, com pouco descanso, até que achem paragem onde possam parar. Nas passagens de alguns rios, um dos que guiam a boiada, pondo uma armação de boi na cabeça e nadando, mostra às reses o vau por onde irão passar."
Assim escrevia em 1 711, André João Antonil, pseudônimo e anagrama de João Antônio Andreoni, visitador da Companhia e seu provincial.
E aqui seja-nos permitido atender às dúvidas que dois amigos de São Paulo, de igual competência na história e geografia pátrias, Orville Derby e Teodoro Sampaio, levantaram em cartas muito eruditas contra a identificação de emboabas feita em artigo anterior6.
A identificação comum é de portugueses e emboabas; foi a primeira, mas, quando viram disputadas as minas que com tanto esforço haviam descoberto, e os atritos degenerando em batalhas mortíferas, os paulistas, querendo estigmatizar os inimigos vindos do Norte, para estes estenderam o epíteto afrontoso, antes aplicado aos odiados reinóis odiosos. Cada margem do rio de São Francisco pertencia a capitania diversa; como chamar aos invasores pernambucanos, se a maioria procedia da margem direita? Como chamar-lhes baianos, se havia gente da margem esquerda? Emboabas resolvia a questão, encharcando no mesmo desprezo baianos, pernambucanos e portugueses. Portugueses havia, sem dúvida, no meio de todas aquelas turbas que cerca de vinte anos zombaram de todas as leis divinas e humanas, até que o enérgico conde de Assumar lhes deu uma lição talvez excessiva, cujos efeitos perduram nos descendentes timoratos. Mas podiam aparecer em exércitos desde logo, adaptar-se eletricamente ao viver das brenhas, vencer bandeirantes acostumados à luta dos sertões, intimidar governadores?
6. Sobre emboabas.
A. palavra emboaba, idêntica a moab referida por Jean de Léry no século XVI, deve ter hibernado na linguagem popular para florir no tempo das rusgas a que deu o nome. O coronel Pedro Leobino de Marta, superintendente das Minas Novas, diligente explorador de salitre em Montes-Claros, sertanista famoso, informava em 1 759 que emboaba se chamava quem não era paulista.
Qual o papel representado nos conflitos pulos reinóis? Muito maior certamente do que lhes foi atribuído nestas mal traçadas linhas, contestando observações1 em parte justas de Orville Derby e Teodoro Sampaio. Os portugueses chegados na última frota, sem parentes na terra, sem amigos, sem recomendações, sem eira nem beira, eram o material mais conveniente às empresas desesperadas, nas quais se amalgava perfeitamente, para usar o termo corrente nos primeiros exércitos da revolução francesa. Assim passava na Índia Oriental, segundo as memórias de um soldado editadas por Costa Lobo, autor do admirável livro História da Sociedade em Portugal no século XV.
Não ser paulista era mácula original, indelével e irreparável; nascer na metrópole ou em qualquer outro ponto da colônia pouco valia. A primeira manifestação conhecida de malevolência, não contra reinóis, mas contra os vizinhos do Rio de Janeiro, foi em 16 de abril de 1 700, quando os descobertos poucos anos contavam.
Uma reunião de homens bons, representantes de Piratininga e mais vilas anexas, pediu à Câmara que " requuresse ao general Artur de Sá e Menezes, governador da praça do Rio de Janeiro e das mais da repartição, que as terras do território das minas de Catagoás assim campos como matos lavradios de direito pertenciam aos paulistas para os possuírem por datas de Sua Majestade que Deus guarde ou de quem fôr donatário, porquanto eles foram os descobridores das minas de ouro que do presente se lavram o que é notório e patente, o que tudo fizeram à custa de suas vidas e fazendas sem dispêndio da fazenda real e que seria uma grande injustiça conceder-se as ditas terras aos moradores do Rio de Janeiro que nunca tiveram parte tanto na conquista como no descobrimento."
Sobre os sucessos da guerra dos Emboabas anteriores à. ida do governador Mascarenhas âs minas há muitos documentos; a segunda fase é pouco conhecida. Uma biografia objetiva de Manoel Nunes Vianna, o cabecilha dos emboabas, preencheria importante lacuna.
Não esquecer que no Rio Grande do Sul, ligado desde muito a São Paulo pela estrada de Lajes, a palavra baiano tem ainda hoje significação semelhante à de emboaba
No instrumento dos serviços prestados como governador do Brasil, Mem de Sá alega as guerras do Paraguaçú, com a destruição de cento e sessenta aldeias.
Se assim castigou ofensas recentes, preparou também maus dias para si e para seus sucessores.
A marca ou comarca de gentio de língua geral, mais ou menos dútil, mais ou menos assimilável, foi substituída por tapuias irredutíveis que detinha. Já no livro de Gandavo se lê que os aimorés passaram de Porto Seguro e Ilhéus para o Norte, tudo devastando, iludindo quaisquer ataques, escondidos nas matarias, donde por trás de paus expediam invisíveis as flechas mortíferas. Ao terminar o século, na administração interina de Álvaro de Carvalho, enquanto D. Francisco de Sousa percorria as capitais de baixo, beiravam o Paraguaçú.
Junto à cachoeira em que este abandona o planalto para perder-se no estuário, afazendaram-se os irmãos Adorno, mamaucos de sangue em parte italiano, sertanistas destemidos citados na guerra de Sergipe e outros feitos. Nas cercanias fundaram-se engenhos, plantou-se fumo, ramo de cultura desde logo próspero, que reagiu sobre a zona pastoril, por saírem encourados os rolos destinados ao exterior. Álvaro Rodrigues Adorno com bons modos conseguiu conciliar os aimorés por algum tempo.
Segundo documentos oficiais, em 1 612 estes ou outros, os tapuias, invadiram o distrito de Capanema, em 32, mataram os vaqueiros do Aporá e marcharam para o Norte até Ita-pororocas, que despovoaram. No governo de Antônio Teles da Silva (1 642-1 647) tanto se repetiram as hostilidades e insultos que se lhes declarou guerra e se fizeram escravos todos os nela tomados prisioneiros.
Confirmou-se em dezembro de 1 654, no governo do conde de Atouguia, esta resolução. Como passara o perigo holandês, tratou-se de executá-la mandando ao sertão Gaspar Rodrigues Adorno e Tome Dias Laços. Pouco se colhendo de tais entradas, agitou-se a idéia de ir buscar a São Paulo gente própria a realizar a conquista.
Domingos Barbosa Carneiros embarcou na cidade do Salvador com a sua pouco numerosa tropa na monção de 1 658 e dirigiu-se para Jacobina, confiado nos paiaiases, pelo padre Antônio Pereira conciliados, que deviam servir de guias auxiliares. Mais de sessenta dias andaram enganados por serras inúteis e montanhas ásperas, sem jamais nunca poderem chegar às ditas aldeias que buscavam, usando os paiaiases da indústria de aconselharem aos nossos que não atirassem para matar caça, nem cortassem paus para tirar mel, para não serem sentidos doa tapuias.
Com este malogro, não admira se assanhassem as incursões dos tapuias que infestando sempre os Ilhéus, Cairu, Jequiri-çá e Jaguaripe, transpuseram também o Paraguaçu e entrando até as terras de João Peixoto Viegas, em Itapororocas. Urgia tomar logo enérgicas providências, e isto praticou o assento de 4 de março de 1 669, em que se declarou a guerra justa nos termos da lei de 1 611. Para fazer a guerra, novamente se chamaram os paulistas.
Em agosto de 1 671 chegou a gente de São Paulo, para cujo transporte a câmara do Salvador despendeu o melhor de dez contos de réis. Eram dois os chefes principais: Brás Rodrigues Arzão, que apareceu primeiro, e Estêvão Ribeiro Baião Parente, cabo supremo. João Peixoto Viegas eficazmente concorreu com os índios paiaiases que domesticara, cuja administração logrou por tais serviços.
Foi Cachoeira a base das operações.
Por motivos ignorados Brás Rodrigues, depois de tomar a aldeia do Camisão, voltou para sua terra. Que não fêz por cansaço pode afirmar-se, pois anos mais tarde aparece em outras empresas. De divergências com o chefe não há notícias nem probabilidades, que um combateu na margem direita, outro na margem esquerda do Paraguaçu. Possível é que achasse a tarefa quase resolvida.
De fato, ao Norte do Camisão os jesuítas possuíam vários aldeamentos; capuchinhos franceses catequizavam os cariris; núcleos indígenas obstinados haveria, basta lembrar os Arizes, mas estavam sitiados, podia-se atacá-los do recôncavo, do São Francisco, de quase todos os pontos cardeais. Fazendas de gado existiam numerosas, algumas munidas de fartos meios de defesa, e até de ofensiva, quando se oferecesse ensejo de cativar indígenas. Jacobina povoava-se, os engenhos e currais de Sergipe d’El-Rei avançavam.
No teatro da atividade de Arzão existiam manchas de mata por vezes bastante extensas, mas a feição dominante eram campos e catingas. A Estevão Ribeiro couberam as matas, ainda hoje quase invictas do Paraguaçu.
Estêvão Ribeiro tomou a aldeia de Maracás na margem direita do Paraguaçu. Ali foi doada a seu filho uma grande ses-maria com o senhorio de vila. A vila de João Amaro, reduzida a tapera, ainda hoje perpetua a fama de seu epônimo nos catin-gais da Bahia. O proprietário vendeu-a com todas as terras ao coronel Manuel de Aragão, quando se retirou definitivamente para sua pátria.
Apesar do prêmio, excepcional dentro das idéias do tempo, magros resultados produziram as guerras de Estêvão Ribeiro. Meio século depois, em relatório oficial concluído na Bahia a 15 de fevereiro de 1 721, escrevia Miguel Pereira da Costa que por todo o litoral onde faz barra o rio das Contas, só há duas léguas de trato e lavoura pela terra dentro. "Pela extensão da costa, afastada do mar aquelas poucas léguas, corre uma mancha de mato virgem e é mato em que nunca houve corte, onde há quantidade de gentio, que para o sertão o mais que se estendem é pelo rio Pardo; este, seguido dos paulistas, quando em outro tempo cuidaram mais em sua extinção, e andavam à caça deles, espalhados por estes sertões, se foi retirando para aquela parte, onde acantonados se têm conservado até o presente sem experimentarem a menor invasão, tendo produzido inumeravelmente pelas suas aldeias."
Não serão fora de propósito algumas notas sobre um trecho ao menos da mata que pegava na ponta do Garcez e se estendia além do trópico.
No tempo de Antonil, as matas de Jaguaripe bastavam para dar lenha a quantos engenhos havia no recôncavo à beira-mar. Começava o corte nos princípios de julho; tinha cada escravo de cortar e arrumar cada dia uma medida de lenha, alta sete palmos, larga oito, medida de um carro; de oito carradas constava um tarefa, que custava 2$500; alguns engenhos gastavam dois mil cruzados de lenha anualmente; um ano o de Sergipe do Conde, fundado por Mem de Sá, terceiro governador geral, sogro do conde de Linhares, e depois pertencente aos padres da Companhia, gastou mais de três mil cruzados.
Por 1 718, o paulista Pantaleão Rodrigues, acostumado à vida dos sertanistas, tentou ir da barra às cabeceiras do rio das Contas. De trinta e cinco homens constava a tropa, que partiu acompanhando o rio, onde as cachoeiras e serranias não o estorvavam, evitando as aldeias e fugindo do contato com os índios. Alguns retrocederam desde logo; no fim de dois meses da maior marcha estava a bandeira reduzida a onze pessoas. Sem mantimentos, com pouca pólvora, viram-se obrigados a prender-se mais estreitamente ao rio, que ao menos dava água para matarem a sede e com o peixe que às vezes fornecia, prorrogava-lhes a fome. Passados cinco meses estavam reduzidos a cinco, afinal apenas dois chegaram a seu destino.
"Um deles era o Pantaleão Rodrigues, cabo de partida, escreve Miguel Pereira da Costa, que havendo muitos meses que havia chegado e estava convalescendo, quando fui ao rio das Contas inda não tinha inteiramente tornado a si; mas ratificando-me o sucesso, acrescentou que gastou mais de oito meses e que pelo caminho que fizera andara mais de duzentas léguas."
Outro fato característico do segregamento entre a marinha, a mata e o sertão que lhe ficava ao fundo, é passado com João Gonçalves da Costa. Depois de muitas guerras com os índios, que resultaram na fundação da Vitória da Conquista, desceu pelo rio Pardo até o mar, em 1 806. Só então ficou sabendo que era o mesmo rio pelos praieiros chamado Patipe e pelos sertanejos Pardo. A este não se limitava aliás a diversidade de nomes, um na embocadura, outro nas origens.
No ano de 1808 o Desembargador Tomás Navarro veio por terra da Bahia ao Rio de Janeiro com o fim de estudar uma linha de correio que ligasse a antiga à presente capital. Sua viagem foi sempre à beira-mar, exceto nos pontos em que morros muito íngremes ou amarados obrigavam o rodeio, ou nos rios sem canoas e sem pontes, que o desembargador subiu até os lugares vadeáveis.
Mais característico que tudo isto é a extinção espontânea da3 capitanias de Ilhéus e Porto Seguro, pobres frontarias existentes desde D. João III. Da mesma sorte só escapou o Espírito Santo, talvez pela dificuldade de contentar na partilha Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro; mas a simples inspeção do mapa mostra que este é um estado anômalo que não há de continuar como aparece.
Não seria excessivo chamar impermeável ao Paraguaçu, impermeável na marinha, impermeável no álveo, impermeável nas margens, salvo o oásis de Cachoeira. Só próximo às origens pôde utilizar-se e sua utilidade consistiu em dar passagem para outras bacias, para o rio das Contas, para o São Francisco.
Em 5 de julho de 1 677, foi nomeado capitão de entradas Domingos de Freitas de Azevedo, cabo de uma tropa de São Paulo, desbaratada no sertão do rio pelas nações bárbaras com que pelejou. Era seu fim na entrada ir.às cabeceiras do Paraguaçu, a 60 léguas do Itapororocas, procurar algumas aldeias de que tinha notícia. João Peixoto Viegas comprometeu-se a auxiliá-lo. Que fim teve a empresa, ignoramos. Nem mesmo se sabe se fêz a viagem rio de São Francisco abaixo em canoas, como já se praticava.
Em 1 690, transposto enfim o alto Paraguaçu, estavam em guerra com os índios do alto rio das Contas o capitão-mor Marcelino Coelho Bitencourt, seu filho coronel Dâmaso Coelho de Pina e André da Rocha Pinto, seu genro.
Saiu-lhes com protestos o mestre de campo Antônio Guedes de Brito, fundado numa sesmaria de Brás da Rocha Cardoso, capitão-mor de Sergipe, datada de 2 de maio de 1 684, concedendo-lhe todas as terras do rio São Francisco até as nascenças do rio Vainhum ou Vainhão, provavelmente o rio das Velhas. Afinal os contendores chegaram a acordo em 1.° de agosto de 1 691; o mestre de campo abriu mão da metade das terras entre os rios Paraguaçu, São Francisco, Velhas, Doce, Pardo e Contas que poderiam arrendar. Ainda em 1 725 os coronéis Damaso Coelho e André Rocha eram incumbidos de explorar o rio das Contas e o Pardo. Com seu curso vário continuou este avanço para o mar através das florestas incoercíveis.
Em setembro de 1700, D. João de Lencastro, governador geral, escrevia a Artur de Sá de Menezes, governador do Rio de Janeiro.
"…me parece advertir a V. S., como seu amigo, que o rio Verde, o Doce, o Pardo, o das Velhas e as cabeceiras do Espírito Santo estão no distrito da Bahia, para que V. S. os evite pelo caminho que melhor lhe parecer, que de nenhum modo excedam as pessoas que andarem no tal descobrimento os termos que inviolavelmente devem observar, não passando de uma capitania para outra."
Isto implica uma série de entradas e bandeiras, cujos pormenores são desconhecidos, e não abona muito o cabedal geográfico do governador. Sabemos apenas que o Paraguaçu foi vencido nas alturas da serra do Sincorá. Ainda em 1 802 escrevia Vilhena: "… a travessia que vai de Moritiba até o Sincorá é talvez um dos caminhos piores por que pode transitar-se por ser ainda deserto e doentio, onde morrem de sezões inumeráveis viandantes, sendo preciso trazerem de muito longe cavales de água e bebida quinada".
A marcha conquistadora, norteada para o mar, avassalou as cabeceiras do Contas, do Pardo, do São Mateus, do Jequitinhonha.
Assim não é de estranhar que baianos figurem entre os primeiros descobridores do Serro e de Caeté. A região de Minas Novas, depois de elevada a vila, durante algum tempo andou incorporada à comarca de Jacobina. Ainda na guerra da independência, o governo de Cachoeira, ansioso de ter comunicações seguras com o Rio de Janeiro, estabeleceu uma linha postal para Diamantina.
O correio seria sustentado por dez paradas de Cachoeira ao Pardo, a saber: Curralinho, Santa Rita, Quaté, Caldeirões, Barra do Sincorá, Lajes de Baixo, São João ou morada do capitão João Martins, Curral, Areão, Rio Pardo.
Do arraial do rio Pardo seguia o correio para o Tejuco, hoje Diamantina, por seis paradas: Tapera, Barreiro das Antas, Machado, Pé de Morro, Rio Manso, Tejuco.
Como se vê, até à passagem do Sincorá continuava impermeável o Paraguaçu. Apesar disto era freqüentado seu caminho, porque abreviava a jornada consideravelmente.
Na margem pernambucana do São Francisco, estranha à jurisdição de D. João de Lencastro, abriu-se com o tempo a estrada que levaria a Goiás. Existe o roteiro da viagem feita pelo governador Luís da Cunha Menezes entre Cachoeira, no rio Paraguaçu e Vila Boa, e o de José de Almeida e Vasconcelos, barão de Mossamedes, em sentido inverso.
Ali mesmo ainda, na margem esquerda do São Francisco, ao lado desta possibilidade só mais tarde percebida, existia já uma realidade vigorosa.
O gado semeado nas cercanias da serra dos Dois Irmãos e do alto Piauí, medrou tanto que atingiu as terras do Pernaguá e não podia vir mais ao recôncavo baiano pelos antigos caminhos. As boiadas do Piauí até a barra do Iguaçu e do Pernaguá, e do Preto, iam quase todas para Bahia por lhes ficar melhor caminho pelas Jacobinas, informa Antonil, referindo-se às condições anteriores aos descobrimentos auríferos. Uma das passagens para Jacobina aproveitava as cabeceiras do rio das Contas e do Paraguaçu. "A Jacobina nova e a velha, ambas mui numerosamente povoadas, são tão grandes que podem competir na largura com um reino", escrevia um contemporâneo.
A prosperidade daqueles sertões recresceu com as jazidas auríferas de Jacobina e rio das Contas. Em 1 742 criou-se a comarca de Jacobina.
Logo em seguida aos conquistadores Estêvão Ribeiro e Arzão aparecem canoas paulistas, feitas com madeira do alto São Francisco, de que havia carência nas margens baiana e pernambucana do trecho médio. Precederam de pouco o período de mineração. Constituíram não só meio cômodo de transporte como ramo de negócio.
"Sendo o sertão da Bahia tão dilatado, escreve o generoso Antonil-Andreoni, pertence quase todo a duas das principais famílias da mesma cidade, que são a da Torre e a do defunto mestre de campo Antônio Guedes de Brito. Porque a casa da Torre tem duzentas e sessenta léguas pelo rio São Francisco acima, à mão direita, indo para o Sul e indo do dito rio para o Norte, chega a oitenta léguas. E os herdeiros do mestre de campo Antônio Guedes possuem desde o morro dos Chapéus, até a nascença do rio das Velhas, cento e sessenta léguas. E nestas terras, parte os donos dela têm currais próprios e parte são dos que arrendaram sítio delas, pagando por cada sítio, que ordinariamente é de uma légua, cada ano dez mil réis de foro. E assim como há currais no território da Bahia e de Pernambuco e de outras capitanias, de duzentas, trezentas, quatrocentas, quinhentas, oitocentas e mil cabeças de gado, assim há fazendas a quem pertencem tantos currais que chegam a ter seis mil, oito mil, dez mil, quinze mil e mais de vinte mil cabeças de gado, de onde se tiram cada ano muitas boiadas, conforme os tempos são mais ou menos favoráveis à parição e multiplicação do mesmo gado e os pastos, assim nos sítios, como também nos caminhos".
A fecundidade natural do gado, a existência dos terrenos salinos, explicam em parte esta expansão extraordinária; mas houve outras causas que com felicidade observou em tempo e arquivou o Roteiro do Maranhão a Goiás pela capitania do Piauí. Quem o escreveu ignora-se; o próprio livro apesar de ser impresso pelo Patriota no princípio do século XIX, conserva-se quase tão inédito como se nunca houvera saído da carteira do seu autor. Sua redação é de 1770 e tantos. Recentemente o reimprimiu a Rev. do Inst. Histórico, no vol. 62.°, I, mas a correção do belo texto deixa muito a desejar.
Nos países próprios à criação, abertos e cheios de campinas, diz ele em suma, pouco se muda à superfície da terra; levantada uma casa coberta pela maior parte de palha, feitos uns currais e introduzidos os gados estão povoadas três léguas de terra; os mulatos, os mestiços e os pretos forros, tão avessos a todo trabalho, entregam-se com gosto a este, na esperança de um dia virem a ser fazendeiros, e tal esperança facilmente pode realizar-se, porque os vaqueiros são pagos em gêneros, de quatro bezerros um, de modo que em poucos anos têm semente com que começar vantajosamente a luta pela existência.
Mas o que mais claramente patenteia o influxo da criação do gado e sua vantagem sobre a agricultura de exportação em um país tão vasto quanto ralamente povoado, é a capacidade de vencer as distâncias. "Os gados, diz o mesmo autor, não necessitam de quem os carregue; eles são os que sentem nas longas marchas todo o peso do seu corpo e apenas se faz necessário que haja quem os encaminhe."
Em tais encaminhamentos transviavam-se reses ou cansavam, ou ficavam quase moribundas, à falta d’água. A experiência ensinou certos povoadores a estabelecerem-se pelos caminhos, a fazerem açudes, a plantarem mantimentos, que não precisavam ser exportados, porque se vendiam na porta aos transeuntes, a comprarem as reses transviadas ou desfalecidas que, tratadas com cuidados, ou serviam à alimentação ou revendiam com lucro. Assim os caminhos se foram povoando lentamente, e as malhas de povoamento apertaram-se mais na Bahia que eu outra parte, exceto em algumas da capitania de Pernambuco igualmente pastoris.
Na arenosa costa Nordeste do Brasil sopram os ventos, cursam as correntes em direção invariável durante certa parte do ano. Lê-se isto na forma das dunas abruptas para Este e brandamente inclinadas para Oeste, nos leques dos rios, cujas bocas orientais, como as primeiras que apanham a areia, são menos profundas que as bocas ocidentais. Decorreu daí com igual clareza a elevação do Maranhão a Estado independente logo depois da conquista, devido à impossibilidade de ligá-lo de maneira constante ao território de Este e Sueste.
A ilha do Maranhão, tomada aos franceses em 1 615, e até certo ponto centro de comunicações e povoamento, nulo nos primeiros tempos e nunca muito considerável pela ralidade de sua população.
A situação primitiva, descreve o missionário incansável, o jesuíta glorioso que subiu as primeiras cachoeiras do Tocantins e respirou os ares da Ibiapaba.
"Uma das mais dificultosas e trabalhosas navegações de todo o mar Oceano, escreve o ilustre Antônio Vieira, é a que se faz do Maranhão até o Ceará por costa, não só pelos muitos e cegos baixios, de que toda está cortada, mas muito mais pela pertinácia dos ventos e perpétua correnteza das águas. Vem esta correnteza feita desde o cabo da Boa Esperança com todo o peso das águas do Oceano na travessa, onde éle é mais largo, que dentre as duas costas de África e América, e começando a descabeçar desde o cabo de Santo Agostinho até o cabo do Norte, é notável a força que em todo aquele cotovelo de costa faz o ímpeto da corrente, levando após si não só tanta parte da mesma terra que tem comido, mas ainda aos próprios céus e os ventos que em companhia das águas e como arrebatados delas, correm perpètuamente de Leste a Oeste.
"Com esta contrariedade contínua das águas e dos ventos, que ordinariamente são brisas desfeitas, fica toda a costa deste Estado quase inavegável para barlavento, de sorte que do Pará para Maranhão de nem um modo se pode navegar por fora e do Maranhão para o Ceará com grandíssima dificuldade, e só em certos meses do ano que são os de maior inverno.
"Navega-se nestes meses pela madrugada com a bafagem dos terrenos, os quais como são incertos e duram poucas horas, todo o resto do dia e da noite, e às vezes semanas e meses inteiros, se está esperando sobre ferro na costa descoberta e sem abrigo, sendo este um trabalho e enfada mento maior do que toda a paciência dos homens; e o pior de tudo é que, depois desta tão cansada porfia, acontece muitas vezes tornarem as embarcações arribadas ao Maranhão."
E o admirável escritor cita o caso de dois jesuítas que indo em uma sumaca de São Luís para o Camocim, gastaram cinqüenta dias em montar só até o rio Preguiça, viagem que, quando desenganados, resolveram tornar, desandaram em doze horas.
Relativamente ao Pará a situação do Maranhão era mais favorável. Entre as duas capitanias chanfram-se numerosas baías, trinta e duas segundo as contas do tempo; conquista, devido à impossibilidade do local se a navegação por fora era impraticável, a navegação interna por canoas era sempre mais ou menos possível.
Além disso, mais de uma vez se recorreu a caminhos terrestres para anular o segregamento.
Mencionam certos cronistas que os primeiros colonos abriram um de Belém a São Luís. Assegura Paula Ribeiro ter distinguido ainda vestígios de antiga estrada, em 1 811, na vizinhança da vila de Viana, que passava da ilha à terra firme pela Estiva, Anajatuba, e depois de atravessar o Mearim, o Pindaré e o Turi, entrava na cidade do Pará. Entretanto, esta parece antes a que por 1770 abriu com êxito não muito satisfatório Evaristo Rodrigues, natural de Pernambuco, para introduzir no Pará gado do Maranhão e Piauí.
Como subsistem todos os mais obstáculos das inundações e falta de pasto, escrevia por aquele tempo o original autor do Roteiro do Maranhão a Goiás vela capitania do Piauí, e subsistiram de novo também os mesmos que ele removeu, pela facilidade com que costumam cair das matas as mesmas árvores e madeiros, nunca esta estrada se fará praticável enquanto a dita mata não fôr por toda ela povoada.
Refletindo no que diz Vieira sobre a navegação por fora, e em seu silêncio quanto a qualquer via terrestre que desviasse os obstáculos, parece razoável a opinião de Varnhagen, que apenas fala de ter sido a Pedro Teixeira "confiada a missão de abrir ou fazer mais praticável a comunicação terrestre-fluvial até Maranhão". Esta existiu até o século XIX: descreve-a Oliveira Bastos, descreve-a Romualdo Antônio, que mais tarde devia realçar o nome paraense no sólio da Bahia. Partia de Belém, subia o Guamá, passava por Ourem e Bragança, e saía na costa junto ao Turi-Açu.
Bem diversa apresentava-se a situação para o Ceará e mais capitanias de baixo, donde por mais antigas e cultivadas, podia vir auxílio que a Amazônia ainda virgem recusava.
Logo depois da batalha de Guaxenduba, Jerônimo de Albuquerque mandou portadores por terra do Maranhão a Pernambuco; a Olinda recolheu-se por terra André Vidal de Negreiros, terminado o seu governo; pelo mesmo caminho foi o padre Vieira da ilha de São Luís a Ibiapaba.
Podemos, pois consultar o missionário com toda a confiança sobre as vantagens desta via de comunicação.
"Um dos perigos e trabalhos grandes que tem este caminho é a passagem de quatorze rios mui caudalosos que o atravessam e se passam todos por meio da foz, onde confundem e encontram suas águas com as do mar; e porque não há nestes rios embarcação para passagem, é força trazê-la do Maranhão com imenso trabalho, porque se vem levando às mãos por entre o rolo e a ressaca das ondas, sempre por costa bravíssima, alagando-se a cada passo, e atirando o mar com ela e com os que a levam, com risco não só dos índios e da canoa, se não da mesma viagem que dela totalmente depende.
Muitas vezes é também necessário arrastá-la por grande espaço de terras e montes para a lançar de um mar a outro e talvez obrigam estas dificuldades a tomar a mesma canoa em peso às costas, com toda gente e levá-la assim por muitas léguas: de modo que para haver embarcação para passar os rios, se há de levar pelo mar, pela terra e pelo ar."
Destes apuros resultou que o Ceará se desligou desde as guerras flamengas do estado do Maranhão, e tão insensivelmente que ainda não se fixou a data do fato nem mais se encontrou decreto ou alvará mandando isto. Resultou mais que o Pará, apesar da proximidade, persistiu intato e segregado, de preferência estanque do vizinho, procurando a metrópole. Resultou felizmente efeito mais perdurável e fecundo: afastados dos seus vizinhos do Norte, do Sul e Este, por tantos obstáculos invencíveis, os moradores do Maranhão procuraram contorná-los e conseguiram.
Primeiro passo neste sentido pode considerar-se a exploração do rio Punaré ou Parnaíba, realizada em 1 670, por Vital Maciel Parente, filho de Bento Maciel. Outro, foram as guerras feitas no governo de Ignácio Coelho da Silva (1 678-1 682) aos tremembés, talvez vedetas avançadas dos cariris, guerras que deixaram livres as praias onde aqueles tapuias atacavam a gente que passava por terra e por mar. Mas o passo decisivo deve-se a Gomes Freire de Andrada (1685-1687).
Reprimida a revolta de Bequimão, Gomes Freire tratou de deixar de si melhor e mais duradouro testemunho nas terras confiadas a seu governo. Quatro cidadãos cie São Luís, um piloto, um engenheiro e alguns soldados, — ordenou que numa canoa "navegada a costa para a parte do Ceará, fossem sondando todas as baías, enseadas e rios que descobrissem e assinalados os baixos, penetrassem aquelas barras em que sem o perigo de serem acometidos dos bárbaros pudessem surgir, procurando examinar as qualidades do país e achando sítio acomodado à fundação de uma vila a desenhassem no lugar que parecesse aos moradores melhor defensável, aos socorros mais fácil."
O ponto escolhido foi entre os rios Icatu e Monim, que explorados até suas cabeceiras, mostraram logo grandes vantagens: proximidade da cabeça do governo, ausência de índios, fertilidade do solo e posição própria à cobertura do Itapicuru. Enquanto mandava consultar a metrópole sobre a conveniência da vila nova, Gomes Freire concebeu plano mais arrojado: descobrir caminho por terra para a Bahia. Falavam os índios num rio Praguaçu, que se julgava o São Francisco, e de fato era. Para verificá-lo despediu João Velho do Vale.
Duas viagens fêz João Velho do Vale. Na primeira chegou à serra do Ibiapaba, onde deixou três estradas conhecidas apenas pela afirmação vaga de um contemporâneo. Da segunda chegou até à Bahia, naturalmente partindo da mesma serra, o que indica um traçado bastante oriental, talvez pelas ribeiras do Poti e contra vertentes do São Francisco, a Cabrobó e Geremoabo. Na Bahia, afirma frei Domingos Teixeira, biógrafo de Gomes Freire de Andrada — "depois de dar, em larga relação, notícia exata dos sertões que penetrou, assinalando pelos graus a altura do pólo, mais gasto dos trabalhos que dos anos, veio a acabar João Velho do Vale em benefício da pátria, com serviços maiores que a gratidão". Descansam suas cinzas em jazigo humilde, na cidade do Salvador.
Com esta façanha se conseguiu, finalmente, vencer os ventos alísios pela única maneira possível, antes do vapor.
O roteiro de João Velho do Vale foi para Portugal e El-Rei confiou-o a Gomes Freire: talvez por isso não produziu logo efeito nem na Bahia nem no Maranhão. Do Maranhão, em 15 de julho de 1 694, Antônio de Albuquerque escrevia sobre a possibilidade do caminho entre as duas capitanias, uma carta que Antônio da Cunha Soutomaior entregou na Bahia a D. João de Lencastro, a 19 de abril do ano seguinte.
Dois dias depois chegava o sargento-mor Francisco dos Santos com quatro soldados e vinte índios que tinham acabado de descobrir o caminho, e trouxeram uma carta de Antônio de Albuquerque, datada de 17 de dezembro. Para retribuir a fineza e ver se podia encurtar o caminho, o governador geral mandou o capitão André Lopes ao Maranhão com carta para Antônio de Albuquerque, datada de 21 de maio. André Lopes chegou a seu destino em novembro, mas teve de demorar-se até que o governadar daquele estado viesse ao Pará. Com resposta de 15 de março de 1 696, chegou à Bahia em 22 de setembro.
Já o Piauí estava povoado por baianos e pelo Piauí, mais próximo, naturalmente se encaminhavam os esforços do Maranhão. Padre Malagrida, que fez estas viagens missionando, atravessou o Parnaiba em seu curso inferior, esteve em Maratoã e Piracuruca, de onde foi a Mocha (Oeiras) e finalmente ao rio São Francisco, certamente pelo caminho de Domingos Afonso ou seus sucessores.
Mais tarde, não muito antes da expulsão dos jesuítas, o caminho do Maranhão à Bahia chegou a seu traçado definitivo. As aldeias catequizadas, que alcançavam apenas a barra do Codó no Itapicuru, quando o mártir dos furores de Pombal apostolava os Tabajaras e Caicases, foram subindo este rio: fundaram-se as Aldeias Altas ou Caxias e Trizidelas, onde os jesuítas instituíram um seminário e começaram a ensinar latim aos filhos dos moradores vizinhos.
Conhecida a pouca distância que nesta altura separa o Itapicuru do Parnaiba, averiguadas as excelentes condições de navegabilidade oferecidas por aquele, que tinha ainda mais a vantagem de desembocar na baía de São José, tornou-se este o caminho preferido. A via-férrea que liga Caxias a São João de Cajazeiras figura um resto deste estado de coisas que o vapor veio derruir, e agora se procura reconstituir pelo mesmo agente.
O território de Pastos Bons, povoado por baianos, só com a Bahia se comunicou até 1760; neste ano começou a navegação do Parnaiba, na escala mínima que permitia o uso exclusivo de balsas de buriti. Quando se aldearam os índios na bacia do rio Preto, a gente de Pastos Bons demandou Guaiás. No Duro trif urcavam-se as estradas para Traíras, Vila Boa e Natividade; a estrada principal acompanhava o Gurgueia e passava por Per-naguá.
Uma circunstância merece reparo no Roteiro do Maranhão a Goiás pela capitani a do Piauí escrito por 1 770 e tantos. Diz-nos o autor que o Parnaiba não recebe afluente importante pela margem esquerda depois do Uruçuí, e que o Balsas conflui no Itapicuru: isto prova que ambos os rios foram primeiramente conhecidos no curso superior ou médio. De fato, se o Uruçuí fora conhecido na foz, a importância do Balsas saltara logo aos olhos. Sabemos por outro lado que acima de Caxias começaram a espalhar-se fazendas de gado, nos pingues campos derramados pelas pontas do Itapicuru, do Balsas, do Grajaú e do Manoel Alves Grande. Só com o tempo ficaram conhecidas as relações que havia entre umas e outras ribeiras. Naturalmente foi primeiro conhecida a de São Félix, nome do Balsas na confluência do Parnaiba, como se deduz da importância e antigüidade da passagem de Nossa Senhora da Manga, por onde ia gado até Minas Gerais; seguiu-se o Manoel Alves Grande navegado em 1 804 por Elias Ferreira de Barros até o Tocantins e por este até Belém. Veio por último o Grajaú, navegado em maio de 1 811 por Antônio Francisco dos Reis, desde o lugar em que está hoje a cidade da Chapada até o porto da Vitória. Graças a criadores que se estabeleceram naquela região, os maranhenses conseguiram. dilatar seus limites e tomar a Goiás o território de Carolina: e movimento exclusivamente maranhense é este, que desde Manoel Alves Grande foi descendo o Tocantins e alcançou as águas do Gurupi.
O povoamento do Maranhão em 1 817 resume nos seguintes termos o homem que mais conheceu e viajou aqueles sertões, em que deixou a vida, porque, soldado português, não quis aderir à independência do Brasil e contra ela se bateu no Tocantins. Além desse crime, passava o major Francisco de Paula Ribeiro por ter consigo 18 mil cruzados. Nem tanto era preciso para que José Dias de Mattos, presidente da Independência, como se chamava, o trucidasse entre Carolina e Pastos Bons. Diz êle:
"Povoada assim em toda a largura somente nos distritos vizinhos ao mar, a capitania vai levando pela banda de Leste encostada aos rios Parnaiba e Balsas quase em todo o seu comprimento S. O. uma única tira da terra habitada, que principia a estreitar-se desde o meio baixo Itapicuru até a passagem do rio Neves, porque daí suas povoações tornam a estender-se para Oeste, rodeando as mesmas cabeceiras do Itapicuru e as do Alpercates até se encostar ao Tocantins pelas fazendas Boqueirão, fazenda grande de Elias Ferreira Barros e outros. A parte que menos se alarga é das alturas, do lugar capital Pastos Bons para o Sul até o Riacho Batateiras, aonde entra o arraial do Príncipe Regente (Carolina) lhe fica para Oeste um desconhecido de mais de oitenta léguas."
Excluindo desta revista os territórios das fronteiras que obedeciam a outras considerações e foram ocupados segundo princípios que não é agora ocasião de estudar, repetiremos nossa pergunta inicial: pode reduzir-se o povoamento de nossa terra a algumas linhas principais, como num país as águas se somam em algumas bacias preponderantes?
A resposta afirmativa decorre do que fica expendido: e quatro centros apuram-se do estudo da nossa história.
Começa o movimento na capitania de São Vicente, onde a mata litorânea se estreita, os campos se avizinham e amiúdam, os rios avançando para o sertão procuram o mar depois de longos meandros para o Nordeste, os índios dos campos são os da praia. O fundador de São Vicente é o próprio fundador da vila, que afinal ficou sendo a cidade de São Paulo.
A população estende-se pelo litoral da Angra dos Reis a Laguna. A gente de Paranaguá transpõe a serra e liga-se a Curitiba, desce a serra e alcança São Francisco do Sul. Mais tarde chegada, a gente de Santa Catarina não se abalança a tanto, e por isso perde parte do território.
A cidade de São Paulo aproveita-se de sua posição, valorizando ao mesmo tempo a bacia do Prata, de cujas águas bebe, a Mantiqueira de aquém e de além e o Paraíba do Sul.
Em poucos anos se desenvolvem tanto as bandeiras que os paulistas à procura do sertão se embatem contra os jesuítas do Paraguai à procura do mar e ensangüentam as águas do Paraná. O Paraíba do Sul, o Sapucaí e a Mantiqueira levam pelo São Francisco a Minas Gerais, à Bahia, a Pernambuco, à Paraíba, ao Rio Grande do Norte, ao Ceará, ao Piauí, ao Maranhão. Evitando o salto do Urubupungá chegam a Goiás e descem ao Amazonas; evitando o das Sete Quedas, passam ao Paraguai e pelo Cuiabá-Mato Grosso chegam igualmente ao Amazonas. Entre o Ocidente da serra do Mar e as matas do rio Paraná, ligam-se precariamente a lagoa dos Patos e o Missões com os ribeirinhos do Tietê.
Mas as vilas da serra não são bastante populosas: além de Sorocaba, ou de Itu, ou de Guaratinguetá começa o deserto, a população termina bruscamente, como montanha em talhado. E quando, descobertas as minas, se tratou de povoar os territórios antes tantas vezes talados pelas bandeiras, as vilas do Tietê e do Paraíba do Sul ficam exaustas. Os bandeirantes, esquecidos de sua pátria e alheios a considerações sentimentais, procuram de preferência Bahia e Rio de Janeiro, já prósperos e que mais prosperam ainda com suas correntes que vinham fecund antes; para aí caminharam os povos de Goiás, Cuiabá, Mato Grosso, que não demandaram o deserto do Amazonas.
A Bahia, a Bahia de Coutinho e Tomé de Sousa, não a que resultou de tantas anexações e hoje nos é familiar, estende-se primeiro pela praia, do Sul a Norte, à distância em que os rios dão vau, ocupa o rio São Francisco de Este a Oeste, de Nordeste a Sudoeste; mas não se limita a uma só margem, abarca logo acima de Paulo Afonso, a que pertence a Pernambuco e vai povoando-as ininterruptamente, enchendo-as de gado, que encontra seu optimum no terreno salitrado, nos campos mimosos e por fim se adapta às catingas, aos agrestes e carrascos. O gado transporta o dono. E pululam fazendas e nascem estradas e o povoamento quase contínuo se torna ao menos no sentido longitudinal. A população baiana transborda para Maranhão, Piauí; remonta depois para todos os descobertos auríferos que sem gado teriam perecido no nascedouro.
Desde que recebe o rio Grande pela margem esquerda até fenecer no mar, o São Francisco não conta afluente perene, porque as divisórias de águas se multiplicam, e os quocientes minguam em igual proporção; o mesmo sucede aos rios que correm entre o São Francisco e o Parnaíba. E esta circunstância, tão prejudicial a outros respeitos, teve um lado bom: — o de facilitar a passagem de uma para outra bacia, favorecendo assim a unificação econômica.
20 — C. H. Colonial
Os baianos, não conseguindo vencer o Paraguaçu, acompanharam-no até as origens. Aí bifurcaram-se rumo do São Francisco, onde afluíam as boiadas de Pernaguá em busca de Jacobina, e não tardou muito que as minas de ouro tudo incendiassem; ou transpassaram para as cabeceiras do rio das Contas, do rio Verde, do Jequitinhonha, demarcando a fimbria ocidental da mata litorânea, facilitando sua ruptura para o mar, ligando-se às esticadas mineiras idas do Rio e São Paulo. De Araçuaí ao Rio a distância é aproximadamente a mesma que à Bahia, porém, as comunicações para esta se faziam com mais comodidade, ou menos tempo e obtinham a preferência.
Pernambuco, a primeira capitania no século XVI, adormece sobre os louros colhidos na guerra holandesa. No São Francisco vê apenas uma margem, nesta margem vê apenas o trecho desimpedido, a cachoeira de Paulo Afonso amedronta-o. Por isso Alagoas diferencia-se, e é simbólico o limite pelo Moxotó, bem junto ao sumidouro. Além do sumidouro abandonou-se tudo aos baianos, e o limite atual pelo Pau da Arara ou Pau da História relembra a pungente história perpétua da justiça imanente das coisas.
Para o Norte, desde a Paraíba a ação pernambucana direta ou indireta aparece mais eficaz; o nome pernambucano repercute muitas vezes nos territórios de Borborema, Cariri, Ibiapaba: vai-se pelo interior desde Piauí até Recife e Olinda, mas mesmo aí as comunicações com a Bahia se estabeleceram e continuaram sempre, continuam ainda hoje muito reduzidas, embora; e Pernambuco, que algum tempo alcançou de Carinhanha a Amarração, teve de dividir sua herança pelo Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas e Bahia.
Fundado já no século XVII, o Maranhão procurou unir-se à Bahia e Pernambuco, e conseguiu-o, utilizando o Parnaíba e o São Francisco; mas o seu movimento próprio deu-se no décimo nono século, consistiu na procura do rio Tocantins, isto é, de Goiás e do Pará. Graças a este esforço pertence-lhe o território que vai do Manoel Alves Grande ao Gurupi. Não é muito; mas ao passo que Pernambuco minguava, o Maranhão crescia.
Assim no princípio do século último estava todo o país ligado, imperfeitamente embora, por meio de vias terrestres ou fluviais. Chegar-se-ia a formar um conjunto, uma nacionalidade? O sistema colonial era a divergência, o particularismo; o centro ficava além mar.
Por circunstâncias conhecidas, a corte portuguesa transplantou-se, e ficou intrínseco o centro que estava fora. Treze anos reinou D. João VI, dez anos reinou D. Pedro I, e tão suave começou a convergência das partes, e tão naturalmente correu o processo de unificação que, apesar das revoluções profundas realizadas nestes dois reinados, tudo se pautou por uma evolução gradual e legítima. Tão cimentada ficou a obra nacional que desafiou as crises que acompanharam a regência e ainda entraram pelo segundo reinado.
A cidade de São Sebastião, mais moderna que São Paulo ou Pernambuco ou Bahia, menos ilustre que qualquer delas, prospera verdadeiramente só depois que os paulistas rasgaram a cintura de matas ambientes, contra a qual os cariocas não se animaram, foi escolhida para a corte e residência. Assim decidiu-se a seu favor a questão da primazia que as outras três com muito mais razão podiam reclamar, questão que em outras condições seria causa de lutas desesperadas e sangüinolentas, como foi por exemplo no Prata.
Por ter sido uma vez a cabeça continua ainda e continuará muito tempo ainda, apesar da ameaça goiana: se não foi aqui que primeiro se concebeu a idéia de uma nação, aqui pelo menos se realizou este sonho que bem perto esteve de esvair-se como sonho.
Os papas Nicolau V, Calixto III, Sixto IV, concederam à Coroa portuguesa as terras e ilhas do Atlântico novamente descobertas sob o influxo do infante D. Henrique e dos seus sucessores imediatos. Com surpresa de Portugal obtiveram os reis católicos uma concessão do mesmo gênero depois de Cristóvão Colombo tornar de sua primeira viagem; em maio de 1 493 atribuiu-lhes Alexandre VI todas as terras e ilhas descobertas e por descobrir, situadas cem léguas a Oeste de qualquer das ilhas dos Açores e do Cabo Verde.
Protestou contra o ato pontifício D. João II, julgando-o lesivo de seus direitos. Depois do protesto entabularam negociações os monarcas e, próximos parentes e vizinhos, afinal concluíram um acordo em Tordesilhas. O convênio assinado em 7 de junho de 1494, manteve o princípio promulgado pelo Papa: a divisão do mundo em dois hemisférios, pertencente um a Portugal, outro à Espanha; modificou, porém, o número de léguas, elevando-as de cem a trezentas e setenta, e o ponto de partida para a contagem, que seria uma ilha, não especificada, então nem depois, do arquipélago do Cabo Verde. O arreglo foi meramente formal e teórico: ninguém sabia o que dava ou recebia, se ganhava ou afinal perderia com ele.
O descobrimento do Brasil, cumprido alguns anos depois por Pedro Alvares Cabral, foi precedido da expedição de Vicente Yanez Pinzon; mas os espanhóis não alegaram prioridade nem duvidaram coubesse a terra dos Papagaios dentro na raia portuguesa. Seus interesses estavam ao Norte, não ao Sul da equinocial, que só começou a valer com a armada de D. Nuno Manuel e o descobrimento de Vasco Nunez de Balboa.
As primeiras dúvidas sobre a linha divisória surgiram no mediterrâneo austral-asiático. Segundo o parecer de Fernão de Magalhães compreendiam-se nos domínios da Espanha as Molucas, tão cobiçadas por suas especiarias, Para prová-lo empreendeu a viagem em que descobriu o estreito ainda hoje conhecido por seu nome, atravessou o oceano Pacífico, chegou pelo Poente ao Levante, como nebulosamente concebeu e nunca realizou Colombo. Depois de sua morte Sebastian d’Elcano concluiu o périplo incomparável. Na volta à pátria, em setembro de 1 522, manifestou a mesma crença nos direitos de sua nação e a urgência de reivindicá-los.
A corte espanhola deixou-se convencer. Entre ela e a de Portugal estabeleceu-se uma discussão enfadonha, alegando-se ora a prioridade do descobrimento, ora a legitimidade do domínio no arquipélago prestigioso. Do debate resultou a capitulação de Saragoça, em abril de 1 529. Admitindo que as Molucas pertenciam legitimamente à coroa espanhola, D. João III comprou os direitos de Carlos I, rei da Espanha, Imperador da Alemanha, por trezentos e cinqüenta mil ducados. Se mais tarde verificassem a não existência de tais direitos, o imperador-rei restituiria a soma recebida. A linha divisória passaria naquele hemisfério duzentas e noventa e sete e meia léguas ao Oriente das Molucas; a légua seria das dezessete e meia o grau no equador.
Um machado de metal levado à península pela armada de D. Nuno Manuel em 1 ’514, do rio por este motivo ainda hoje chamado da Prata, as expedições de Solís, Cristóvão Jaques, Cabot e Garcia, deram realce às terras platinas, e levantaram a questão de limites no continente americano. Surgiram e arrastaram-se os debates a propósito da expedição de Martim Afonso de Sousa (1530-1533), sempre sob a dupla face de prioridade do descobrimento proclamada por Portugal e de legitimidade de domínio, alegada por Castela. Em setembro de 32, exprimia D. João III a idéia de distribuir em capitanias hereditárias o território situado entre Pernambuco e rio da Prata; nas doações feitas mais tarde, avançou apenas até 28° 1/2, à vista das reclamações espanholas? — ou, segundo parece, de observações astronômicas de Martim Afonso? Assim reconheceu ipso facto que seus domínios não iam além das terras de Santana na Laguna. Os espanhóis estendiam, porém, suas pretensões mais para o Norte. Em 1 534, Rui Mosquera estabelecido no Iguape, repeliu com vantagem um ataque de Pero de Góes e saqueou São Vicente. Diversos documentos oficiais contemporâneos traçam a linha divisória desde Cananéia e até desde São Vicente.
Em compensação Magalhães antes de partir deixou um escrito: "ten el cabo de Santa Maria que es en la misma tierra del Brasil, de Portugal estan en treinta e cinco grados de latitud."
Com a união das duas coroas penínsulares em 1 580 decresceu a importância da fronteira renovada e a atenção concentrou-se na Amazônia. Ante as incipientes incursões de flamengos e ingleses, conhecidas apenas no Pará se estabeleceu Castelo Branco em 1 616, pareceu acertado confiar as novas conquistas à guarda dos portugueses, mais próximos e melhor preparados para defendê-las.
A criação de um governo separado no Maranhão em 1 622 representou o primeiro passo neste sentido.
Ainda mais decisiva foi a criação de duas capitanias hereditárias, sujeitas ambas à coroa portuguesa, em terreno indiscutivelmente espanhol pelo espírito e pela letra de Tordesilhas: a de Cametá, concedida a Feliciano Coelho de Carvalho, limitada a Oeste pelo Xingu na margem direita, e a do cabo do Norte na margem esquerda do Amazonas, concedida a Bento Maciel Parente, limitada a Oeste pelo Paru.
Em 1639, Pedro Teixeira voltando de Quito, tomou posse em nome dei rei de Portugal das terras situadas entre o rio Aguarico, afluente do Napo, e o mar. Faltava-lhe autoridade para tanto: mas seu ato foi mais tarde e muitas vezes invocado e aceito como título de posse.
No Sul, o movimento colonizador se operou com muita lentidão por parte de Portugal, acompanhando o litoral dos atuais estados do Paraná e de Santa Catarina, e continuou do mesmo modo ainda depois de 1 640, sacudido o jugo espanhol. Por sua parte os espanhóis não cuidaram de ocupar a margem esquerda do Prata. Seus interesses não urgiam no Atlântico, mas além dos Andes, no Pacífico.
Se persistissem as reduções no Guairá fundadas pelos jesuítas avançariam naturalmente para o Oriente e chegariam à marinha. Os jesuítas perseverantes criaram as missões do Uruguai depois que as bandeiras destruidoras talaram as do Paraná e as relações delas gravitaram para Buenos Aires e Asuncion, como estas capitais só se entendiam com a região transandina.
Autores e cartógrafos portugueses discutiam entretanto o meridiano de Tordesilhas, traçando uns pela foz do Prata, outros pelo golfo de São Matias, na Patagônia. Tais idéias tornaram-se correntes. Depois de ratificada a paz que reconheceu sua independência da Espanha, o monarca de Portugal outorgou uma capitania a um dos netos de Salvador Corrêa, balizando-a pelo estuário platino. Em 1 680 mandou fundar na margem setentrional do Prata, a dez léguas de Buenos Aires, a Colônia do Sacramento.
Apenas se certificou de sua existência, José Garro, governador espanhol da margem fronteira, atacou-a e tomou-a. A notícia transmitida à Europa quase desencadeou nova guerra. Procurou-se ainda uma vez com mais veras, apurar o verdadeiro alcance da linha de Tordesilhas. Não se conseguiu. A Espanha condescendeu em reconstruir a fortaleza tomada e restituir provisionalmente o território, para afastar qualquer motivo de irritação do debate, que devia correr no terreno diplomático.
Ao rebentar a guerra da sucessão da Espanha, el-rei de Portugal esposou a causa do duque de Anjou, que por isso lhe cedeu o território disputado no Prata. Mais tarde mudou de partido e aliou-se à Inglaterra, sem a qual não poderia continuar potência colonial, a favor do pretendente austríaco. Daí resultou novo ataque e nova tomada da Colônia do Sacramento, que permaneceu em mãos do inimigo de 1 706 a 1 715.
Levara até então vida bem singular o estabelecimento português. "A nova Colônia do Sacramento por mercê de Deus se conserva, escrevia alguém pouco depois de 1 690, por meterem nela um presídio fechado sem mulherio que é o que conserva os homens, porque se não tem visto em parte alguma do mundo fazerem-se novas povoações sem casais."
Este ninho antes de contrabandistas que de soldados, foi talvez o berço de uma prole sinistra, os gaúchos ou gaudérios, originários da margem esquerda do Prata, segundo parece, famosos durante largas décadas e ainda não assimilados de todo à civilização. A quantidade de meios de sola atestada por Antonil Andreoni exportados do Rio no começo do século XVIII, não se explica pela simples produção indígena nem por contrabandos dos portenhos: implica o processo sumário dos gaúchos na matança das reses, resultante da superabundância e depreciação do gado vacum, do esbanjamento da cavalhada e do espaço indefinido e livre para as correrias.
O tratado de Utrecht mandou restituir a colônia a Portugal e restituí-la com o seu território.
Qual era o seu território? Toda a margem esquerda do Prata, pretenderam os portugueses; o espaço alcançado por um canhão da fortaleza, entendiam os espanhóis. Triunfaram estes. Aqueles tentaram estabelecer-se em Montevidéu, mas seus esforços foram perdidos. Também os espanhóis em 1 735 tentaram apossar-se da colônia, sujeitando-a a um assédio aspérrimo de vinte e dois meses. Antônio Pedro de Vasconcelos, comandante da praça, resistiu heroicamente e obrigou o inimigo a retirar-se.
A fundação da Colônia do Sacramento devia servir de ponto de partida para um povoamento que, começando do Prata, iria ter à beira-mar, plano análogo ao das missões destruídas do Guairá. Este plano falhara; restava o plano contrário: estabelecer-se na marinha, estender-se para o interior até chegar às águas platinas, em outros termos, povoar o rio de São Pedro, mais tarde chamado Rio Grande do Sul. Várias tentativas anteriores de efeitos insignificantes ou nulos são conhecidas.
Em fevereiro de 1 737 entrou José da Silva Pais pelo canal que sangra a lagoa dos Patos e a Mirim. No local que lhe pareceu mais apropriado desembarcou, fortificou-se. Â sombra da fortaleza adensou-se pouco a pouco a população. Dos Açores vieram várias famílias e agregaram-se a este núcleo primitivo; as capitanias do Norte por força ou por vontade forneceram não poucos colonos.
A rápida expansão do Brasil pelo Amazonas até o Javari, facilitada pela direção uniforme da bacia, sempre emparelhada à linha equinocial no rumo aproximado de E.-O., pela ausência de empecilhos à navegação num rio de profundidade máxima e declive mínimo, favorecida pelos ventos que demandam as terras andinas, o avanço vertiginoso decorrente das descobertas de Cuiabá e Mato Grosso até o Guaporé, o incremento vigoroso do Sul, intimaram a necessidade de atacar de frente a questão de limites entre possessões portuguesas e espanholas, no velho e no novo mundo, sempre adiada, sempre renascente, de interpretar autenticamente os convênios de 1494. Com este fim, os dois monarcas da península assinaram um tratado em Madrid, a 13 de janeiro de 1 750.
Ambas as partes contratantes reconheceram nesse documento ter violado a linha de Tordesilhas, uma na Ásia, outra na América. Começaram, portanto, abolindo "a demarcação acordada em Tordesilhas, assim porque se não declarou de qual das ilhas do Cabo Verde se havia de começar a conta das trezentas e setenta léguas, como pela dificuldade de assinalar nas costas da América Meridional os dois pontos ao Sul e ao Norte, donde havia de principiar a linha, como também pela impossibilidade moral de estabelecer com certeza pelo meio da mesma América uma linha meridiana". Na mesma ocasião, aboliram quaisquer outras convenções anteriores referentes a limites, que exclusivamente seriam regidos pelo tratado agora assinado.
A linha meridiana, até então vigente pelo menos nos instrumentos públicos, seria substituída por limites naturais, tomando por balizas as paragens mais conhecidas para que em tempo nem um se confundissem, nem dessem ocasião a disputas, come são a origem e curso dos rios e os montes mais notáveis. Salvo mútuas concessões inspiradas por conveniências comuns para os confins ficarem menos sujeitos a controvérsia, caberia a cada parte o que atualmente possuísse.
Maior importância que às terras se prestou ao aprovenamento dos rios. Estabeleceu-se que a navegação seria comum quando cada um dos reinos tivesse estabelecimentos ribeirinhos; se pertencessem à mesma nação ambas as margens, só ela poderia navegar pelo canal. Para ficar com a navegação exclusiva do Prata, a Espanha trocou a colônia do Sacramento pelas missões do Uruguai. Encarregadas de assentar os limites iriam duas tropas de comissários, uma pelo Amazonas, outra pelo Prata.
Da comissão do Amazonas foi plenipotenciário e principal comissário português o irmão do marquês de Pombal, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que já exercia o cargo de capitão-general do Maranhão, quando foi nomeado para o trabalho das demarcações.
A 2 de outubro de 1 754 saiu para o rio Negro, levando em sua companhia setecentas e noventa e seis pessoas, distribuídas em vinte e cinco barcos. Escolheu para residência a aldeia de Mariuá, chamada mais tarde Barcelos, e nela mandou construir aposentos para acomodar a partida espanhola. À frente desta, de estado maior ainda mais pomposo, partiu de Cádiz D. José de Iturriaga, a 13 de janeiro do mesmo ano, e chegou ao Orinoco aos fins de julho. Em 1 756 fundou São Fernando de Atabapo, para escala da grande peregrinação e caixa de víveres. Daí por diante, arcando com o áspero sertão despovoado, tais embaraços encontrou, apesar das ordens mais expressas e das facilidades extraordinárias proporcionadas pelo governo absoluto, que gastou anos no caminho.
A partida de Mendonça tinha de se ocupar de três questões principais: a do rio Negro, a do Japurá e a do Madeira e Javari; a cada qual caberia uma tropa.
O plenipotenciário português tomou as providências necessárias para organizá-las, e como Iturriaga continuasse ausente voltou em 1 756 para Belém com os engenheiros da demarcação. Ali absorveram-no outras preocupações mais instantes.
Em janeiro de 1 758, recebendo aviso da próxima chegada dos comissários espanhóis, dirigiu-se novamente para Barcelos. Com efeito, no ano seguinte ali se apresentaram D. José de Iturriaga e seu grandioso séquito de comissários, matemáticos, engenheiros, desenhistas. Quase ao mesmo tempo chegou a notícia da substituição de Mendonça na capitania do Pará e no trabalho dos limites, que daí em diante dirigiria da parte de Portugal por Antônio Rolím de Moura, governador de Mato Grosso, mais tarde vice-rei do Brasil e conde de Azambuja. No mesmo dia e hora da partida de Mendonça Furtado para a capital os comissários espanhóis volveram ao Orinoco. Tal é pelo menos a versão referida por Baena. Os escritores venezuelanos e colombianos contestam o encontro dos dois comissários e, parece, com melhores fundamentos.
Depois de tantos anos e de tantas canseiras nem um passo se dera na Amazônia para realizar o ideal afagado pelo tratado de Madrid. Para os interesses territoriais de Portugal a solução não foi desvantajosa; estribado no uti possidetis dando-lhe uma extensão dificilmente conciliável com o tratado de Madrid, pode agora satisfazer a sua avidez de terras.
No tempo de Mendonça instalou-se a capitania de São José de Javari. Mandara-lhe a coroa assentar a sede da nova fundação próxima dos limites ocidentais; êle achou mais conveniente situá-la no rio Negro, donde os espanhóis estavam muito afastados, como o provara a lenta marcha de Iturriaga. Aí, portanto, a expansão portuguesa se faria sem tropeços. Além disso a proximidade relativa de Belém e de Portugal garantia uma superioridade esmagadora. Em seu tempo foram fundados o forte de Marabitanas no rio Negro, e de São Joaquim na confluência do Uraricoera e Tacutu, cabeceiras do Branco.
Pelas instruções dos governos das metrópoles, a força de comissários destinados à demarcação do Sul devia subdividir-se em três troços: um reconheceria o terreno desde Castilhos Grandes até a barra do Ibicuí, no Uruguai; outro o Uruguai desde o Ibicuí até o Pepiriguaçu, e passada sua contravertente, desceria o Iguaçu até marcar a barra do Igureí, aquele afluente oriental, este ocidental do Paraná; a terceira deveria demarcar o Igureí em todo o curso, por seu concabeçante descer para o Paraguai e subir por este até a barra do Jauru.
As duas últimas tropas deram conta de sua comissão pacificamente; a primeira andou com menos fortuna. Em troca da Colônia do Sacramento para garantir a navegação exclusiva do Prata, a Espanha cedera a Portugal a navegação do Uruguai com os sete povos das missões jesuíticas: São Nicolau, São Miguel, São Luís Gonzaga, São Borja, São Lourenço, São João e Santo Ângelo, fundados entre 1 687 e 1 707, alguns com os restos de redução guairenhas escapos à braveza leonina dos mamalucos.
Ceder terras com seus habitantes sempre se fêz e está fazendo; evacuar territórios, deixando os bens de raiz, levando os moradores apenas os móveis e semoventes, reporta à crueza dos Assírios. Entretanto, as duas cortes julgaram consumar facilmente este ultraje à humanidade, se os jesuítas as ajudassem, pesando sobre o espírito dos índios. Os jesuítas acreditaram-se poderosos para tanto, e bem caro pagaram este acesso de fraqueza ou de vaidade: quando os índios se levantaram desmentindo ou antes engrandecendo seus padres, mostrando que acatequese não fora mera domesticação e a vida interior vibrava-lhes na consciência, aos jesuítas foi atribuída a responsabilidade exclusiva em um movimento natural, honesto, humano, por isso mesmo irresistível.
Os chefes da missão demarcadora do Sul, Gomes Freire de Andrada por parte de Portugal, o marquês de Valdelirios pela de Espanha, encontraram-se na fronteira marítima do Rio Grande do Sul em começo de setembro de 1 752, e no mês seguinte iniciaram os trabalhos. Em janeiro, assentado o terceiro marco, Gomes Freire ausentou-se para a Colônia do Sacramento e o marquês para Montevidéu. A primeira partida luso-espanhola continuou na tarefa, que deveria levar até a barra do Ibicuí; mas ao chegar a Santa Tecla, dependência do povo de São Miguel, situado um pouco ao norte do atual cidade de Bagé, defrontou índios armados que se opuseram a seu avanço.
Fora prevista a hipótese e havia ordem dos dois governos para domar a resistência pelas armas, pois os jesuítas já se haviam convencido de sua impotência.
Reunidos Gomes Freire e Valdelirios na ilha de Martim Garcia resolveram mandar emissários às missões a ver se era possível conciliar a indiada. Se eles continuassem teimosos, marchariam Adonaegui, governador de Buenos Aires, pelo Uruguai até São Borja, Gomes Freire pelo rio Pardo até Santo Ângelo. Depois de tomadas estas duas reduções prosseguiriam até se encontrar. Em março de 54 Adonaegui pôs-se em movimento, mas o mau estado da cavalhada e outras causas não menos fortes obrigaram-no a recuar até Daiman, junto à presente cidade do Salto. Aí os índios atacaram os espanhóis e perderam trezentos homens, dos quais duzentos e trinta mortos, canhões, armas brancas e cavalhada. Menos feliz saiu Gomes Freire, obrigado a assinar um armistício com os levantados a 18 de novembro.
Viu-se que melhor andariam unidos os dois exércitos. Partiu Gomes Freire do rio Pardo, em Sarandi, no rio Negro, juntou-se às forças de Adonaegui. A 21 de janeiro de 56 marcharam para as missões. Quase só encontraram os obstáculos criados pela natureza. Os índios, embora numerosos, mal armados, mal ou antes não dirigidos, pouca resistência podiam oferecer; de todos os recontros saíram derrotados. A 17 de maio entregou-se São Miguel sem resistência e os outros povos foram-lhe seguindo o exemplo. Podia-se agora operar a permuta, Gomes Freire empossar-se das sete missões e entregar a Colônia do Sacramento. Não se fêz isto; dir-se-ia que, como os primitivos, estes mamalucos póstumos tinham por móvel único a destruição. Em janeiro de 59 Gomes Freire embarcou para o Rio, donde não mais voltou.
Entretanto, falecia Fernando VI, subia ao trono Carlos III, inimigo do tratado de 1 750 desde o tempo de seu reinado em Nápoles. Um dos primeiros cuidados do novo rei foi anulá-lo pelo pacto firmado no Pardo, a 12 de fevereiro de 1 761. Ficaram outra vez de pé todos os atos reguladores de limites, a principiar pelo de Tordesilhas, tantas vezes desrespeitado por ambas as partes, como de plano haviam reconhecido poucos anos antes. O tratado de Madrid, exatamente porque resolvia uma questão secular, fora atacado com violência em ambas as cortes e a cordialidade dos dois monarcas que o subscreveram não teve eco nos respectivos povos. Agora com razão condenavam-no os representantes dos dois governos à vista de seus resultados, fáceis de evitar, a não ser a cláusula bárbara relativa aos sete povos do Uruguai: "estipulado substancial e positivamente para estabelecer uma perfeita harmonia entre as duas coroas e uma inalterável união entre os vassalos delas, se viu pelo contrário que desde o ano de 1752 tem dado e daria no futuro muitos e muitos freqüentes motivos de controvérsias e contestações opostas a tão louváveis fins."
A repugnância de Portugal a aderir ao pacto de família, dirigido pelos Bourbons contra a Inglaterra, desencadeou as hostilidades na península e nos domínios da América do Sul. Pedro Cevallos, sucessor de Adonaegui no governo de Buenos Aires, pôs cerco à Colônia do Sacramento em outubro de 62 e tomou-a sem grande esforço. Dirigiu-se depois às plagas rio-granden-ses, num passeio militar apossou-se do forte de Santa Tereza próximo ao Chuí, da vila capital, da margem setentrional da lagoa dos Patos. Um convênio concluído no povoado de São Pedro em 6 de agosto de 1 763, declarou o porto privativo do domínio da Espanha, fechado, portanto, ao comércio de qualquer outra nação.
O tratado de Paris, ultimado a 10 de fevereiro de 1 763, mandou voltarem as coisas ao estado anterior à guerra. Cevallos restituiu a Colônia do Sacramento, guardou o Rio Grande, deixando os portugueses reduzidos à fortaleza do rio Pardo, e às cercanias de Viamão. Mesmo estas nesgas procurou retirar-lhes Vertiz y Salcedo, novo governador de Buenos Aires, atacando o rio Pardo em 1 773, não com tanta felicidade como esperava.
Portugal pareceu aceitar a situação criada por Cevallos, mas foi se preparando manhosamente para modificá-la em seu proveito. Readquiriu, sem combate, São José cio Norte, à entrada da barra; a pouco e pouco mandou forças por terra; uma esquadra entrou pelo canal apesar das fortalezas inimigas; em março de 76, combinadas as forças de terra e mar atacaram e tomaram as fortificações dos castelhanos. Em abril a vila de São Pedro foi evacuada. O domínio espanhol durara treze anos: data dele a fortuna do porto dos Casais, hoje Porto Alegre.
Muitos dos colonos portugueses transplantados para além do Chuí não tornaram mais aos antigos pagos. Muito sangue castelhano misturou-se ao dos que ficaram.
Apenas chegou ao velho mundo a notícia da reconquista do rio de São Pedro, preparou-se em Espanha uma forte armada para tirar a desforra. Comandava-a Cevallos, nomeado para assumir o vice-reinado do Prata, já então criado. Deveria tomar Santa Catarina, Rio Grande e Sacramento. Santa Catarina entregou-se logo sem resistência; na colônia propuseram a entrega apenas se apresentou o inimigo. O Rio Grande ficou livre de ser acometido pela banda marítima graças aos ventos contrários; quando ia ser atacado por via terrestre, chegou da Europa ordem de suspender as hostilidades. Cevallos, como se votasse ódio pessoal à Colônia do Sacramento, secular pomo de discórdia entre os dois povos, não quis deixar pedra sobre pedra. A 8 de junho de 77 começou a derrocada pela fortaleza; foram depois destruídas as casas, obstruído o porto; as famílias que não quiseram recolher-se ao Brasil, transportadas para Buenos Aires, distribuíram-se pelo caminho do Peru.
Expirava a este tempo D. José I, extinguia-se o poderio do truculento Pombal, pela primeira vez uma rainha ascendia ao trono português. Todos esses motivos juntos à estreita consangüinidade das duas dinastias, podem ter influído certa bran-dura no tratado de limites firmado em Santo Ildefonso a 1.° de julho de 1 777, em quase tudo semelhante ao de Madrid, e mais humano e generoso que este, pois não impunha êxodos cruentos.
O uti possidetis, reconhecido em 1 750, anulado em 761, veio outra vez a prevalecer. Se não se explicasse pela superioridade relativa das posições portuguesas nas zonas litigiosas, seria uma das ironias da história averiguar que do mero apego à posse das Filipinas, última das colônias que perdeu, procederam todas as concessões consentidas por parte da Espanha.
As modificações mais notáveis apanharam a fronteira meridional. A Espanha não consentiu mais que Portugal tivesse direito a navegar no Uruguai e por isso impôs uma fronteira tal que as possessões portuguesas só abeirassem o rio na foz do Pepiriguaçu. Desenvolvendo um princípio já formulado no tratado de Madrid, cujo artigo 22 não permitia fortificações nem povoações nos cumes das raias, a partir das lagoas Mirim e da Mangueira, o tratado de Santo Ildefonso estabeleceu no artigo 5 "um espaço suficiente entre os limites de ambas as nações, ainda que não seja de igual largura à das referidas lagoas, no qual não possam edificar-se povoações por nem uma das duas partes, nem construir-se fortalezas, guardas ou postos de tropas, de modo que os tais espaços sejam neutros, pondo-se marcos e sinais seguros que façam constar aos vassalos de cada nação o sítio de que não deverão passar, a cujo fim se buscarão os lagos e rios que possam servir de limite fixo e inalterável, em sua falta o cume dos montes mais assinalados, ficando estes e as suas faldas por termo natural e divisório, em que se não possa entrar, povoar, edificar nem fortificar por alguma das duas nações.*’
Para o trabalho de demarcar as fronteiras foram criadas quatro divisões: operaria a primeira do Chuí ao Iguaçu; a segunda do Igureí ao Jauru; a terceira do Jauru ao Japurá; a quarta daí ao rio Negro. Pela parte de Portugal ficaram dependentes do vice-rei no Rio, dos governadores de São Paulo, Mato Grosso e Pará. O trabalho efetivo limitou-se à fronteira do Chuí ao Iguaçu, e à do Javari ao Japurá, isto durante anos de argúcias, dilações, inatividade, inércia de que cada nação lançava à outra a culpa exclusiva. As divisões confiadas aos governadores de São Paulo e Mato Grosso nunca se encontraram com as divisões espanholas. Poder-se-ia dizer que, graças aos demar cadores, progrediu a geografia das respectivas regiões, pois os cientistas exploraram rios, descreveram plantas e animais, enviaram curiosos espécimens dos três reinos para os estabelecimentos de além-mar… poder-se-ia dizê-lo, se tais trabalhos, ciosamente aferrolhados, fossem dados então à publicidade.
Dois episódios mostraram como as coisas passavam.
O tratado de Madrid nos artigos 5.° e 6.°, repetidos pelo de Santo Ildefonso nos artigos 8.° e 9.°, dispunha que a fronteira desde a barra do Iguaçu prosseguiria pelo álveo do Paraná acima até onde pela parte ocidental se lhe ajuntasse o Igureí, acompanharia este até descer o concabeçante mais próximo, afluente do Paraguai, chamado talvez Comentes.
Próximo do Iguaçu não desemboca pela margem ocidental do Paraná rio chamado Igureí, próprio a servir de fronteiras alegou Sá e Faria, português passado agora para o serviço de Castela; rio Corrientes tampouco se conhecia no Paraguai. Convencionou-se, pois, que a fronteira partiria do Iguatemi, primeiro afluente à direita do Paraná, acima das Sete-Quedas. Mais tarde, o vice-rei do Brasil escreveu ao do Prata que a convenção fora condicional, para a hipótese de não existir o Igureí; ora Igureí existia abaixo das Sete-Quedas. Cândido Xavier o descobrira e o seu correspondente no Paraguai era o Jejuí. Pelo Igureí e pelo Jejuí devia passar, portanto, a linha divisória.
Tem razão o vice-rei do Brasil, respondia Félix de Azara, comissário espanhol; a convenção fora condicional, e desaparece apurada a existência do Igureí; mas o Igureí existe: é o Igureí, Monici ou Ivinheima, e corresponde-lhe pelo Paraguai outro rio caudaloso, que desemboca aos 22°. "Isto, acrescentava, nos dará as únicas terras não inundadas, daquelas regiões: teremos ervais, barreiros, salinas, pastos, aguadas, madeiras; as frotas de Cuiabá e Mato Grosso cairão em nossas mãos na boca do Taquari ou mais acima; podemos na paz chupar suas riquezas por um comércio que há de ser-nos vantajoso sem prejuízo; os famosos estabelecimentos de Mato Grosso, Cuiabá e serra do Paraguai serão precários a seus ilegítimos donos e ao fim cairão em nossas mãos com o tempo". "No es posible que no tengamos Ias minas de Cuyabá y Mato-grosso, cuando las podemos atacar con fuerzas competentes, llevadas por el mejor rio dei mundo., sin que los portugueses puedan susterlas ni llegar a ellas — sino por el embudo obstruído dei rio Tacuarí, en canoas y con los trabajos que nadie ignora".
Seriam melhores os portugueses? O caso Chermont-Requena narrado brevemente responderá de modo satisfatório.
Tinham os comissários de demarcar a fronteira do Javari à boca mais oriental do Japurá e seguir por esta acima até um rio que resguardasse os estabelecimentos portugueses do rio Negro. A boca mais ocidental do Japurá originou graves discussões, por um chamar boca ao que outro considerava furo, isto é, um canal que levava as águas do Solimões ao Japurá em vez de trazê-las. O rio que devia resguardar as possessões portuguesas do rio Negro seria o Apaparis, o Comiaria ou dos Enganos, ou qualquer outro? Nunca se decidiu, à vista dos múltiplos varadouros, imaginários ou verdadeiros, alegados por parte de Portugal. Em todo caso, Tabatinga demorava a Oeste da mais ocidental das bocas do Japurá, demorava mesmo a Oeste do Içá, não compreendido nas pretensões portuguesas mais exageradas; quando, porém, Requena reclamou a posse de Tabatinga, Cher-mont negou-se a assumir responsabilidade tão grave e declinou da sua para a competência de João Pereira Caldas, chefe daquela divisão. Este se declarou prestes a fazer a entrega de Tabatinga se os espanhóis lhe entregassem São Carlos, forte do alto rio Negro, fundado na expedição de D. José de Iturriaga, malogrado comissário da primeira demarcação.
Nestes dares e tomares consumiu Requena um decênio. Afinal conseguiu de seu rei licença de voltar para a Europa, e o de Portugal permitiu-lhe que descesse até o Pará. "De ordem do governador do rio Negro o acompanhou o tenente-coronel engenheiro José Simões de Carvalho com a recomendação secreta de dirigir a viagem de maneira que êle não visse povoação alguma, nem pudesse tomar nota topográfica de qualquer ponto do Amazonas. Destinou o governador do Pará para a sua morada a fazenda de Vai de Cães. Ali o teve como em custódia até prosseguir a viagem, permitindo-lhe vir à cidade de Belém só de noite, e acompanhado de um oficial de tropa regular quando intentava fazer-lhe visitação, na qual também era recebido pelos cidadãos mais qualificados, que segundo a disposição do governador o esperavam em grande cerimônia".
Em suma, valiam-se bem os comissários das duas altas partes contratantes. Teria razão, ou talvez não tenha quem duvidava de sua boa-fé; entretanto, uma ou outra opinião seria unilateral.
Os termos dos tratados prestavam-se às vezes a mais de uma interpretação; os mapas trazidos do reino, muitos feitos a olho e sobre informes infidedignos aplicaram-se mal aos terrenos; nem destes nem daqueles resultava uma hermenêutica insofismável. Cada funcionário procurava ostentar zelo, isto é, adiantar sua carreira. E em nome destes seres heterônomos ainda hoje nossos vizinhos propagam e instilam o ódio ao Brasil desde os bancos escolares! Felizmente, no Brasil já não somos prisioneiros destas paixões inferiores de colonos fossilizados.
Portugal saiu mais favorecido da sorte por ter criado a capitania independente de Mato Grosso logo depois do tratado de 1 750 e a capitania subordinada do Rio Negro em seguida. De Vila-Bela via-se bem claro que o problema se decompunha em duas partes: absorver a navegação do Madeira, paralisando as hostilidades das vizinhas aldeias dos Moxos e dos Chiquitos, — e isto fêz principalmente o conde de Azambuja; passar além dos Xarais, até onde o Paraguai não transborda do leito, limi tanto assim as possibilidades de ataques e surpresas, garantindo ao mesmo tempo a navegação de São Paulo, — isto fizeram Luís de Albuquerque com a fundação de Corumbá e Coimbra, Caetano Pinto com a de Miranda.
Na capitania subalterna de S. José, Mendonça Furtado sentiu a importância singular do rio Negro e do rio Branco, escolhendo Barcelos para capital, assinalou nitidamente o rumo a seguir pelos sucessores. Tanto em Mato Grosso como no Rio Negro houve pequenos conflitos sem importância, de que os espanhóis não tiraram o melhor partido, e os portugueses puderam continuar na sua maneira original de entender e aplicar o uti possidetis.
Os debates inanes das demarcações ainda continuavam em 1 801 ao rebentar a guerra entre Portugal e Espanha. Ipso facto caducaram os tratados. José Borges do Canto, desertor do regimento dos dragões, e Manoel dos Santos Pedroso, sem ordem de ninguém, congregaram troços de aventureiros e atiraram-se contra os sete povos do Uruguai. Foram, viram, venceram. Voltou novamente a ser lindeiro o rio Ibicuí. Nas outras fronteiras nada ocorreu de notável. Um ataque contra o forte de Coimbra começou por ameaças formidáveis e deu em retirada clandestina.
Depois disto não houve mais questões sobre limites americanos entre as duas metrópoles peninsulares. Com seus herdeiros o Brasil as tem liquidado pacificamente. Só no Uruguai mais de uma vez rebentaram conflitos, hoje de todo serenados e esquecidos. Na sangrenta guerra do Paraguai não influíram ambições territoriais.
O histórico dos limites com a França conta-se em poucas palavras.
A capitania do cabo do Norte, doada a Bento Maciel Parente, era limitada à beira-mar pelo rio Vicente Pinzon, cuja denominação indígena é Oiapoque. Apenas se fixaram em Caiena, os franceses lançaram vistas cobiçosas sobre o Amazonas, e reclamaram-no como limite.
Para afirmar seus direitos, em 1 697, tomaram os fortes portugueses de Araguari, Toeré e Macapá, logo retomados. Um tratado provisional concluído em 1 701 neutralizou o território, mas o de Utrecht restituiu-o aos portugueses. Pelo inequívoco artigo 8, Sua Majestade Cristianíssima desistiu "pelos termos mais fortes e mais autênticos e com todas as cláusulas que se requerem, assim em seu nome como de seus descendentes, sucessores e herdeiros de todo e qualquer direito e pretensão que pode ou poderá ter sobre a propriedade das terras chamadas do cabo do Norte, e situadas sobre o rio das Amazonas e o de Oiapoque ou de Vicente Pinzon, sem reservar ou reter porção alguma da ditas terras, para que elas sejam possuídas daqui em diante por Sua Majestade Portuguesa" etc.
A disposição por sua clareza não permitia dúvidas; os franceses acharam meio de perpetuá-las descobrindo mais de um rio Vicente Pinzon e mais de um Oiapoque, de modo a aproximarem-se o mais possível do Amazonas, e nele estabeleceram seu verdadeiro e constante objetivo. Isto lograram durante a revolução francesa e o império. O tratado de Paris, de 23 de Thermidor V, traçou o limite pelo Calçoene até as cabeceiras e destas por uma reta até o rio Branco. O de Badajoz de 6 de junho de 1 801 transportou-o para o Araguari, desde a foz mais apartada do cabo do Norte até as cabeceiras e daí até o rio Branco. O de Madrid, de 29 de setembro do mesmo ano, fixou-o no Carapanatuba desde a foz até as cabeceiras, donde acompanharia as inflexões de serrania divisória das águas até o ponto mais próximo do rio Branco cerca de 2o 1/3 Norte; O de Amiens, de 27 de março de 1 802, trouxe-o novamente para o Araguari.
21 — C. H. Colônia
Todos esses tratados caducaram com o de Fontainebleau, que desmembrou Portugal e produziu a trasladação da corte portuguesa para o Brasil. Os portugueses conquistaram então a Guiana Francesa, administraram-na alguns anos com certa habilidade, para restituí-la pelo tratado de Viena. Os esforços dos franceses mangraram por igual. Depois de acidentes vários o Brasil, já no regime republicano, por sentença arbitrai do governo suíço, ficou com a fronteira do Oiapoque ou Vicente Pinzon.
Depois de na era de 1 850 terem passado do rio Branco para o Repununi, os portugueses se apropriaram das possessões holandesas. Nunca travaram conflito com elas, nem convenção alguma interveio entre as duas metrópoles.
Ultimamente pelo tratado firmado no Rio a 5 de maio de 1 906 a fronteira fixou-se pela divisa das águas.
Com as guerras decorrentes do império napoleônico, a Inglaterra conseguiu afinal tomar pé no continente da América do Sul, incorporando parte das possessões neerlandesas. O conhecimento da situação de sua conquista despertou na alma britânica o desejo de possuir terra na bacia amazônica. Um laudo arbitrai favorável outorgou-lhe esta Birsa, recatado foco de contrabando por ora, mais tarde, quem sabe mais?

O parágrafo VII é reprodução do Capítulo X dos "Capítulos de História Colonial", revisto e aumentado pelo autor

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