O CASO DA ADORAÇÃO DO CÃO GUINEFORT (FRANÇA, SÉCULO XIII)
Gisele Finatti Baraglio
Resumo: O artigo examina um excerto escrito pelo bispo dominicano Étienne de Bourbon que narra a adoração do Cão de Guinefort. Para a interpretação do que é descrito pelo clérigo são expostas noções das diferentes concepções do que era superstição, utilizando principalmente Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. A procedência do culto e das superstições é discutida, assim como os níveis de cultura envolvidos, com a identificação de um nível comum e intermediário e das relações constituídas. Também é estabelecida uma relação entre as superstições e o pecado, e algumas das consequências da obrigatoriedade das confissões. Com estas análises, este trabalho retrata certas características da religiosidade e da religião no século XIII.
Palavras-chave: Século XIII; Dominicanos; Superstição ou Crença; Santidade oficial ou local.
Neste texto vamos tratar do excerto “Da adoração do cão Guinefort”, escrito por Étienne de Bourbon, um bispo dominicano, inquisidor e pregador, durante o século XIII. Nele é narrada uma história que envolve superstição e uma dita idolatria, condenada pela Igreja e pelos padres. Porém, o conceito de superstição, assim como a prática do que era concebido como tal, teve profundas alterações no tempo, sendo necessária uma noção destas mudanças.
Segundo Schmitt, de um modo geral, superstição poderia ser concebida como relacionar uma causalidade com atos considerados significativos noção que sobrevive até com as atuais concepções científicas e técnicas. Émile Benveniste considera que a palavra superstitio teria origem em super-stare (estar acima de), que designaria uma condição de testemunha (superstes), “quem, por ter ‘sobrevivido’ a um acontecimento passado, pode atestar que este teve realmente lugar” (BENVENISTE, apud, SCHMITT, 1997, p.15). Esta palavra adquire significado religioso somente a partir da era romana, com o registro da concepção de Cícero, para quem supersticiosos seriam pessoas que todos os dias dedicavam orações ou sacrifícios para garantir a sobrevivência dos filhos (SCHMITT, 1997, p.16).
Seu significado torna-se aposto a religio, a maneira apropriada de se reunir, segundo as regras, em contraposição à superstição, supérflua e exagerada.
O cristianismo herda a palavra, noções e valores que esta carregava. Lactâncio, porém, nega as etimologias de Cícero - defende que todos esperam que seus filhos sobrevivam – considerando que os supersticiosos seriam, na verdade, aqueles que veneram a memória de defuntos ou prestam culto doméstico à imagem de seus pais. Esta concepção acabava por condenar (ainda mais) práticas pagãs, pois, tradicionalmente, em Roma o pater famílias era o encarregado do culto dos antepassados (sacra familae) e, segundo Geza Alföldy (1989), “eram seus antepassados, e a sua glória garantia o prestígio dos seus descendentes” (p.51). Após Lactâncio, permanece somente o significado negativo de superstição, que seria a adoração do falso, oposta a religião, a adoração do verdadeiro Deus. Sua condenação bíblica está na Epístola aos Colossenses (2, 23), da Vulgata, tradução de São Jerônimo da Bíblia, quando São Paulo adverte os batizados para não irem para o caminho errado da religiosidade, ou “in superstitione” (apud SCHMITT, 1997, p.17).
Um importante teórico para entender a concepção e condenação da superstição é Santo Agostinho. Para ele, as superstições seriam as sobrevivências de práticas e crenças que o cristianismo aboliu, podendo ser pagãs, como a idolatria (adoração de ídolos e criaturas), ou judaicas, como a circuncisão. Ele também é o responsável pela ligação entre a demonologia e a superstição, a sedução diabólica (que seria até mesmo a causa do pecado original). Satã, expulso do paraíso, ressentido com os homens, que foram criados para ocupar o lugar vago neste, esforça-se para incitar os homens ao pecado, à idolatria e às superstições, com o propósito de voltar Adão contra seu criador.
Para Agostinho, as últimas seriam códigos, signos convencionais usados entre os homens e o demônio para se comunicarem, com a noção de um pacto entre ambos. A partir disso, o clérigo faz uma lista das superstições que devem ser evitadas e repudiadas. Segundo Agostinho, estas poderiam ocorrer por defeito (um culto prestado a Deus que seria indigno) ou excesso (idolatria), e o pacto com o demônio poderia ocorrer de uma forma “passiva”, por conivência na falta de precaução, ou por um pacto consciente.
A Igreja condena as superstições, inicialmente, por serem uma sobrevivência pagã. Havia uma grande oposição entre meios “culturalmente privilegiados”, que eram minoritários e a massa do povo, questão que no seu âmbito cultural será abordada adiante. O povo, “entregue a si mesmo” nos campos, acaba vivenciando a recuperação da vitalidade das religiões antigas, como a Celta, marcando uma oposição entre urbani e rustici. O exemplo disto é a palavra paganus, que origina, em francês, simultaneamente, paysan (camponês) e païen (pagão).
No ano de 1215, a obrigação da confissão auricular anual, decidida pelo cânone 21 do Concílio de Latrão IV, dá aos padres “um meio de controle pessoal, íntimo, de cada fiel” (SCHMITT, 1997, p.105). Neste contexto, surgem especialista na penitência e pregação, entre eles os dominicanos, que estabelecem, entre 1222 e 1233, junto com outras ordens, o novo procedimento da Inquisição, ordenados pelo Papa. A reflexão teológica e canônica das superstições foi colocada na prática com o sacramento da penitência, e há uma multiplicação dos manuais de confessores. O excerto analisado é posterior a este cânone, e o próprio Étienne de Bourbon descobriu o caso de superstição relatado através de uma confissão.
São Tomás de Aquino também é importante para entender esse novo contexto do século XIII e suas implicações no campo religioso. No campo das superstições, ele conserva somente aquela que, segundo Agostinho, ocorre por excesso (idolatria), e defende que aquele que cai nas armadilhas do Diabo é porque as procurou, abandonando o pacto por conivências. São Tomás de Aquino considera supersticiosas pessoas que fazem o pacto intencionalmente, o que, deste modo, contribui para justificar e conduzir ao desenvolvimento de uma maior repressão aos casos mais graves.
O escritor da fonte aqui analisada pertencia à ordem dominicana, criada por São Domingos de Gusmão, em 1216, aprovada pelo Papa Inocêncio III. O pontífice máximo, mesmo limitado pelo então recente Concílio de Latrão (que proibia a aprovação de novas ordens), apoiou o projeto de Domingos de criação de uma ordem, desde que seus membros adotassem a regra de Santo Agostinho. Tal projeto surgiu quando o último e seu bispo, Diego, passavam pelo sul da França e depararam-se com uma guerra civil, proporcionada pelas influências heréticas dos albigienses e cátaros.
Nem mesmo a pregação dos legados do Papa solucionara tal problema, uma vez que se apresentavam com todas as suas honras, mordomias e autoridades perante heréticos que pregavam e viviam uma vida de simplicidade, informalismo e cujas teorias consistiam num cristianismo com base na humildade e vida comunitária. Assim, Diego e Domingos iniciaram a pregação utilizando-se destes mesmos princípios, e obtiveram sucesso. Esta pregação deveria se basear numa formação teológica e ser apresentada na forma de um discurso racional.
Neste contexto do século XIII, Étienne de Bourbon, como pregador e inquisidor dominicano, lutou contra as superstições e foi responsável por diversos exempla que tratavam destas na vida cotidiana. Ele faz parte do grupo de clérigos que contribuíram com testemunhos escritos de práticas concretas, observadas ou contadas por testemunhas ditas de “boa fé”. O autor não acreditava em adivinhos, nem que estes tinham poderes diabólicos. Porém, tudo indica que o clérigo (assim como a maior parte dos membros eclesiásticos) acreditava no caráter demoníaco das superstições, do pacto com o demônio. Na época de Étienne, a questão já não é mais condenar as sobrevivências (excessivas) do paganismo, mas perseguir as superstições nas práticas legítimas: nos sacramentos, nos cemitérios, e na própria instituição (Igreja). Entre os fiéis havia uma “ânsia pela santidade”, segundo Schmitt (1997, p.128), em que os mais
supersticiosos seriam cristãos.
A adoração do cão de Guinefort seria um “culto selvagem”, a adoração de um santo local, configurando um rito diabólico, (supostamente) uma “sobrevivência do paganismo”, mas possui uma estreita relação com a superstição dentro da Igreja. O culto, na descrição de Étienne, se baseava na crença de que os espíritos da floresta (changelings, faunos) substituíam uma criança sã por uma enferma e demoníaca (assim explicando a doença das crianças, a adversidade biológica). Para devolver a criança roubada era necessário um ritual que obrigasse os espíritos a fazer a troca. A prática era muito semelhante a uma cristã, da “humilhação dos santos”, especificamente a do constrangimento da Virgem. Ao ter seu filho raptado, uma fiel censura a Virgem, dirigindo-se à estátua desta, que não protegeu a criança mesmo com a devoção da mãe, que toma o Menino Jesus da estátua. A Virgem aparece ao filho prisioneiro, o liberta, e manda este dizer à sua mãe que devolva o Menino Jesus. Jean Claude Schmitt (1997) discorda de uma sobrevivência pagã do culto ao Santo Guinefort, defendendo que este teria surgido entre os séculos XI-XII, “no momento em que se estabeleceram as estruturas sociais e o povoamento característico do período feudal” (p.129).
As semelhanças entre as duas práticas têm relação direta com o embate entre a cultura clerical e outra vulgar, com uma excelente explicação feita por Hilário Fraco Júnior: “religiosidade popular não é aquela que se identifica com um grupo social, ou que teve origem nele, mas sim aquela que nas suas manifestações popularizou elementos de diversas procedências” (FRANCO JÚNIOR, 1990, p.41). No caso apresentado pelo excerto, observam-se facilmente as manifestações popularizadas que possuem uma procedência cristã de idolatria e superstição dentro da própria Igreja, no exagero do culto aos santos, imagens e relíquias.
As práticas são descritas por Étienne de Bourbon como populares (por mais que ele não utilize o termo), e as personagens são caracterizadas de forma caricata, como era típico na Idade Média, com traços gerais de um grupo. São representantes de uma cultura vulgar, mas que possuem claramente elementos de uma cultura eclesiástica, que por sua vez, também tem elementos “populares”. Novamente, recorremos a uma passagem elucidativa de Hilário Franco Júnior: “Mas percebe então claramente que cultura erudita e cultura popular não podem ser vistas como elementos opostos e impermeáveis” (FRANCO JÚNIOR, 1996, p.34). Ou seja, a distinção entre superstição e liturgia oficial da Igreja é polarizada, entre vulgar e eclesiástica, mas estas possuem um grande “núcleo comum”, trocas e relações muito mais complexas do que este sistema binário aparenta. Este núcleo comum seria um “nível intermediário”, onde
elementos de diversos polos culturais se encontram, demonstrando que suas características não são exclusivas de um determinado grupo social ou povo. A necessidade de um ato mágico para a cura, o uso de ervas acompanhado de uma manifestação religiosa, por exemplo, era aceita pelo clero e pelos ditos supersticiosos; porém, para o clero esta devia ser uma prece, enquanto na cultura vulgar seriam “encantações”. O papel enquanto religião seria igual, mas a ideologia seria diferente, segundo conceitos de Hilário Franco Júnior (1996, p.37).
Havia uma concorrência entre a cultura folclórica e a eclesiástica pelos lugares sagrados, principalmente o espaço dos mortos, e o controle destes, e também dos santos e sua adoração. O constrangimento da Virgem foi condenado no concílio de Lyon de 1247, e tal fato provavelmente impulsionou a procura de feiticeiras no objetivo de resolver as adversidades biológicas, como doenças, mesmo havendo práticas para estas proporcionadas pelo clero.
“Da adoração do cão Guinefort” exemplifica satisfatoriamente os métodos utilizados para combater a superstição. Ao destruir o local de culto, o clérigo cumpre seu papel de inquisidor e pregador, proibindo a prática, exumando o cachorro, tomando medidas junto com os “senhores da terra” para evitar a continuidade do rito e pregando contra tudo o que foi dito. Ficam explícitos os procedimentos utilizados, a pregação para convencer e persuadir os supersticiosos, a destruição do local de culto, e medidas junto a estâncias temporais do poder.
Durante a etapa anterior, o combate ao paganismo, ocorria, além da destruição do templo ou ídolo pagão, a construção de uma igreja católica para substituir o antigo culto. Conforme o excerto, o cão é tratado como um santo, tendo diversas analogias com o rito ecumênico, sendo condenado por ser um animal, elemento que é próximo da idolatria pagã e, obviamente, por não ser oficializado pela Igreja. Deus destruiu o castelo e tornou a área deserta, mas nem mesmo isso, nem as medidas tomadas pelo clérigo, impediram os camponeses de irem ao local e realizarem práticas supersticiosas. Segundo Jean Claude Schmitt, o culto foi verificado até mesmo no início do século XX! O rito lembra muito a concepção de Cícero, por mais afastada e fora de contexto que se encontre em relação à época. O ocorrido realmente é a tentativa de salvação dos filhos, o que reforça a impressão de que o conceito dado por Lactâncio era restrito somente à condenação do paganismo. Porém, a superstição no século XIII não era uma prática somente com este intento, podendo ser vista como uma contestação do monopólio eclesiástico (e masculino) dos atos mágicos para a cura e uma resposta para a abolição do Constrangimento da Virgem.
Vale ressaltar que os supersticiosos eram pecadores. Qual o pecado que cometiam? A soberba, consistindo em colocar os demônios e ídolos acima de Deus, e os interesses individuais acima dos divinos. Como relata Étienne, referindo-se às superstições: “São ultrajantes a Deus as superstições que atribuem honras divinas aos demônios ou a outra criatura qualquer” (BOURBON apud DUBY, 1990, p. 37). Os supersticiosos, na concepção eclesiástica, se considerariam dignos de receberem honras divinas de criaturas demoníacas, sendo este um ato de arrogância, de soberba. Além disso, segundo as tradições, este pecado estaria relacionado ao original. Como já foi dito acima, nas narrativas e origens da superstição, o pecado original é colocado como uma tentação de Lúcifer, invejoso da posição do homem no paraíso, que o tenta para as superstições.
As superstições passaram por diversas compreensões e ações combativas por parte da Igreja durante a Idade Média e a partir da breve noção de como esta era concebida em momentos distintos, podemos dizer que o relato de Ètienne é mais do que uma história sobre idolatria. Trata-se de uma acusação da soberba, o pecado dos supersticiosos, e uma afirmação das pregações moralistas que ocorreram no século XIII, principalmente com as ordens dominicanas e franciscanas, e uma prova de que a divisão binária e simplista da cultura pode esconder uma interrelação e complexidade enormes.
O excerto demonstra a manifestação de um nível cultural intermediário, a ação dos dominicanos de aculturação e imposição ideológica, que esconde uma identificação nas concepções e sentimentos comuns entre o que era tido como supersticioso e o que era canonizado.
Superstitions, sin and cultural levels in the Middle Age: The case of the Guinefort’s
dog worship (France, XIII Century)
Abstract: The article examines an excerpt written by the Dominican bishop Étienne de Bourbon, that tells the worship of the Dog from Guinefort. For the interpretation of what the priest described, slight knowledge of the different conceptions of what were the concept of superstition, using mainly Saint Augustin and Saint Thomas Aquinas. The origin of the cult and the superstitions is argued, as well as the involved levels of culture, with the identification of a common and intermediate cultural level and of the established relations. Also it is established a relation between the superstitions and the sin, and some of the consequences of the obligatoriness of the confessions. With these analyses, the article portrays certain characteristics of the religiosity and the religion in XIII century.
Keywords: XIII Century; Dominicans; Superstition/Faith; Official/Local Sanctity.
Referências
ALFÖLDY, G. A História social de Roma. Lisboa: Presença, 1989.
DUBY, Georges. A Europa na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
FRANCO JÚNIOR, H. A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São Paulo:
Edusc, 1996.
FRANCO JÚNIOR, H. Peregrinos, monges e guerreiros. São Paulo: Hucitec, 1990.
SCHMITT, J.C. História das superstições. Lisboa: Europa-América, 1997.
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