“É nesta língua eterna que o catolicismo pronuncia seus oráculos, que sempre falou e ainda fala a todos os seus filhos dispersos sobre a superfície do globo. Nas escolas do Estado, estranhamente negligenciamos o latim. Eis algo que a Igreja não pode fazer, eis algo que ela não pode permitir. Eis o que não permitirá jamais em suas escolas. Daremos nossa vida, nosso sangue, se for preciso”
Monsenhor DUPANLOUP
Bispo de Orleans (1868)
Existe humor em alguns acontecimentos da História. Os homens da Renascença do século XV e seus imitadores tinham condenado o latim medieval, em nome da estética, antes de tudo.
Ora, é o culto da beleza, revivificado, que faria com que o latim da Igreja fosse redescoberto! Quando a ciência alemã tiver restabelecido a honra dos séculos da “Idade Média”; quando as reformas de Dom Guéranger tiverem reconduzido os católicos do século XIX à beleza dos ofícios em latim, veremos alguns diletantes subitamente tomados de paixão pelos hinos medievais. Este gosto é por vezes evidente entre aqueles capazes de estranhas alianças: “Marshall está ao órgão na grande sala, escreveu Georges Moore, jovem esteta inglês vindo a Paris, por volta de 1880, ele toca um canto gregoriano, este hino magnífico, o Vexilla Regis de São Fortunato, o grande poeta da Idade Média. E eu, depois de ter folheado as Festas Galantes, sento-me para escrever.”
Sim, estranhas vizinhanças...
Mas, depois de três séculos dedicados aos cultos pagãos da razão e da beleza, não era preciso, antes de mais nada, relembrar a imensa dívida da civilização ocidental com a Igreja, tanto no domínio das artes quanto no das conquistas intelectuais?
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Em 1892, um letrado francês apresenta ao grande público uma obra reveladora. É Rémy de Gourmont. De sua parte, supõe que um número razoável de homens instruídos na França não ignora a importância da cultura greco-latina das idades clássicas. Mas ele quer fazer com que descubram outra coisa: o esplendor literário dos escritos da Idade Média latina ocidental, que há quatro séculos afetamos tratar de língua degenerada, de “latim de igreja”. Ele aponta grandes poetas desconhecidos entre os velhos bispos da Gália, que salvaram o latim no meio do triunfo geral dos bárbaros. E eis aqui evocada a extraordinária e insubstituível qualidade desta língua latina adotada na Cristandade: seu caráter universal.
Universal porque se enriquecera de todas as contribuições das nações reunidas sob a espada das legiões romanas: a qualidade elevadíssima do pensamento grego, as misteriosas confidências da Índia, a sabedoria milenar do Egito, os rudes costumes da África do Norte, a poesia cheia de assombro dos Celtas e Germanos — todos estes tesouros o latim medieval juntara sob as pregas da toga romana. Sua literatura ganhou em variedade, em curiosidade, em élan. O latim usado pela Igreja romana era uma língua verdadeiramente adaptada a todos os homens. A Igreja, que se proclamava católica, teve a providencial oportunidade de acolher uma linguagem conveniente ao seu principal objetivo: a universalidade.
Os cristãos, adotando este latim já universal, sublimaram-no ainda. Como a nova religião tinha a ensinar verdades espirituais que o mundo jamais ouvira, era preciso forjar palavras novas. Os grandes sábios gregos e romanos, os grandes filósofos que foram os primeiros padres da Igreja, eram também grandes retores, grandes lingüistas (tais como Santo Agostinho e São Jerônimo) ...eles fizeram o latim sujeitar-se a uma prodigiosa transmutação: deram-lhe um vocabulário que viajava, por assim dizer, entre o céu e a terra; martelaram esta língua de juristas, soldados e agricultores, para forçá-la a exprimir o mundo do invisível. E, como as religiões antigas eram quase todas impregnadas de naturalismo, os padres da Igreja deram à língua latina seu diploma de espiritualidade.
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Para celebrar este latim, língua de uma civilização universal e língua da Igreja, davam-se as mãos, no século XIX, adversários de idéias como Joseph de Maistre e Monsenhor Dupanloup:
“Nada se iguala à majestade da língua latina, escrevia Joseph de Maistre. Ela foi falada pelo povo-rei que lhe imprimiu este caráter de grandeza único na história da linguagem humana e que mesmo as línguas mais perfeitas não puderam jamais alcançar. O termo majestoso pertence ao latim. A Grécia o ignora, e é por essa majestade somente que ela permanece abaixo de Roma, nas letras como nos campos de batalha.”
Monsenhor Dupanloup, em seu discurso de recepção na Academia Francesa: “Não, senhores, não é sem um designo providencial, diria mesmo sem uma inspiração do Altíssimo, que a língua de Platão e a de Virgilio adquiriram tais traços e prodigalizaram tantas obras-primas, uma vez que Deus decidiu que estas duas línguas seriam as de sua Igreja. O mundo antigo preparava o Mundo Novo e as duas mais belas línguas que os homens jamais falaram, recebiam antecipadamente sua missão e se formavam para um dia repetir na terra as coisas do céu”.
Monsenhor Gaume, prelado de Nivernais, celebrava o latim dos padres da Igreja e dos grandes prelados da Idade Média: “Dos elementos da língua latina antiga, modelada e disciplinada pelas mãos da Igreja, saiu uma língua nova, bela das graças da juventude, brilhante dos ardores da fé, dotada das promessas de eternidade e veloz para a conquista do mundo. Os mártires deram-lhe firmeza, os doutores inspirados deram-lhe elevação, os oradores transmitiram-lhe a fé que queimava suas almas, os dialéticos impiedosos martelaram-na em todos os sentidos com as pancadas de seus silogismos, a fim de fazê-la exprimir com precisão matemática uma verdade que não comporta imperfeições. Foi assim que se formou este idioma maravilhoso, que recebeu e que conserva tudo que há de verdade sobre a terra, que é a língua mesma pela qual a Igreja fala com Deus”.
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Então os homens do final do século XIX, racionalista e laico, afinaram os ouvidos aos sons que escapavam das esquecidas catedrais. Viam-se sábios, infiéis, escutarem entusiasmados hinos conservados naqueles muros romanos e góticos que o romancista Huysmans logo exaltaria. Um grande músico exclamava que daria toda a sua obra para ter composto o Dies iræ, evocação poética e melódica do formidável tremor da terra e dos céus. Um poeta incréu sentia as lágrimas virem à audição do Adeste fideles de Natal. Os mais céticos, os menos religiosos, mas todos aqueles que possuíam algum senso da beleza, do mistério, do sagrado, admiravam secretamente o que, em nossos dias, a grande poetiza Marie Noël louvou: “os grandes Aleluias da Páscoa, sob os sinos a toda força; a lamentação extraterrena do ofício dos Mortos, seu formidável e suplicante “Dies iræ”; o “Parce Domine” implorando contra as calamidades públicas; o “Te Deum” fulgurante, sobre-humano das ações de graças com seu caráter épico, toda essa magnificência cantada, a Igreja Católica dá ao povo na magnificência monumental das catedrais, sob a magnificência radiosa dos vitrais” 1.
E a história, melhor conhecida, revela um outro fenômeno: que os mil anos de Idade Média tinham verdadeiramente vivido das recordações de Roma; que todo seu progresso, todas suas criações, toda sua busca de idéias tinha invocado Roma, nem sempre como ponto de partida, mas como reguladora e como defesa em face do Oriente e mesmo da Grécia, sempre tentada, desde o conquistador Alexandre, pelas vertigens do Oriente. Roma não era mais a descoberta da Renascença do século XVI: sabia-se agora que um milênio da história ocidental apegara-se a ela, do mesmo modo que Dante apegara-se à mão de Virgilio antes de explorar o mundo do invisível...
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A erudição mostrava que a Idade Média cristã sempre considerara o império de Roma como um fenômeno providencial para a expansão do cristianismo. Os primeiros apóstolos abandonaram rapidamente o Oriente: é à cabeça do mundo, é a Roma que Pedro e Paulo vinham pregar o Cristo2. E os historiadores e geógrafos revelaram que os apóstolos não puderam senão seguir as rotas, as pistas, as cidades traçadas e estabelecidas pelo extraordinário sucesso do Império. O plano de cristianização do mundo fora inicialmente delimitado pelas vitórias romanas.
(O poeta Péguy exprimirá este fato em uma fórmula fulgurante: “Os pés das legiões marcharam pelo Cristo”.)
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Sabemos que a Idade Média, seguindo os padres da Igreja, apresenta sinais de uma comovente piedade com respeito às recordações de Roma. Assinalava-se que, no Evangelho, um centurião romano mereceu este elogio do Cristo: “Nunca encontrei tamanha fé em Israel!” E que um outro centurião romano reconhecera — foi o primeiro — ao pé da Cruz, bem antes da Ressurreição, a divindade de Jesus: “Este homem era verdadeiramente o Filho de Deus!”.
O Cristo viera nascer em Belém, por ocasião de um decreto romano ordenando o recenseamento do mundo. E foi um governador romano, no momento de sua morte, que redigira a inscrição posta no topo da Cruz: “Jesus de Nazaré, rei dos Judeus!” Durante a cena dramática da Paixão, abandonado pelos discípulos, pelos amigos, pelo povo “eleito” que renegava sua missão, somente a administração de Roma pronunciava a palavra de Justiça: “Este homem é inocente... Dareis morte a um Justo...”(Apesar da covardia de Pilatos, esta dignidade devia-se a Roma, pois seu destino era proclamar a ordem e a justiça entre os homens.)
Mais tarde, São Paulo louvava sem parar, em meio às suas pregações, seu título de cidadão romano. No dia de seu martírio, ele lembrou que o deviam executar segundo o modo usual para os cidadãos do império.
Assim, por toda parte, os cristãos medievais reencontraram misteriosamente o destino de Roma cidade terrestre, entrelaçada ao caminho invisível da Cidade de Deus. Roma era a madrinha daqueles Gentios que substituíram o “povo eleito”, negador de sua Missão. Roma era o primeiro tutor terrestre da Igreja...
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Ela sempre deu testemunho de que a ordem e a justiça humanas são um excelente e sem dúvida necessário prefácio à expansão da caridade do Cristo. “Não vim destruir o que era antes de mim, dizia o Cristo, mas cumpri-lo...”
A Roma humana era a moldura perene da Roma cristã, Cidade invisível.
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Mas a erudição prosseguia em suas descobertas.
A organização formidável e sólida da Igreja romana antes era o decalque da do Império, genial administrador. O protestante Guizot honestamente constatava que uma Igreja unicamente ocupada a pregar às suas almas, sem procurar ter uma hierarquia, uma autoridade, uma disciplina, não poderia resistir nunca à dissolução da Europa no momento das invasões bárbaras. No seu curso de História moderna (1828-1830), Guizot destacava: “O cristianismo não era somente uma religião, era uma Igreja. Se não houvesse uma Igreja, não sei... o que teria acontecido durante a queda do império romano. Baseio-me somente em considerações puramente humanas... É claro que seria necessária uma sociedade fortemente organizada, governada, para lutar contra tal desastre, para sair vitoriosa de um tal furacão. Não creio exagerar, afirmando que no fim do século V fora a Igreja cristã que salvou o cristianismo. É a Igreja, com suas instituições, seus magistrados, seu poder, que se defendeu vigorosamente contra a dissolução interior do Império, contra a Barbárie que se apoderou dos Bárbaros, que se tornou o elo, o meio, o principio da civilização entre o mundo romano e o mundo bárbaro.”
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E eis que outras reflexões, outros testemunhos, apontam para Roma, a partir de um país há muito tempo oriental, ou impregnado de influências bizantinas: Rússia. Na Revolução Francesa, muitos emigrantes foram para lá: aristocratas, como os amigos de Joseph de Maistre; jesuítas, que se tornaram preceptores na alta sociedade de Moscou e São Petersburgo. Sua influência durará.
Certos literatos russos do século XIX deram um excepcional testemunho: procurando analisar as diferenças entre sua nação e os estados europeus, descobriram que em grande parte se deviam ao cisma ortodoxo que, separando-os da Roma latina, fizeram com que perdessem para sempre os tesouros do pensamento ocidental. “Os povos da Europa ocidental, escrevia Pierre Tchaadaiev, possuem uma fisionomia comum, um ar de família... Mas, quanto a nós, relegados há dez séculos no nosso cisma, nada do que se passava na Europa chegava até nós...”
Assim, portanto, a latinidade era, durante séculos, o equivalente da civilização do Ocidente. E recordava-se, entre as guerras incessantemente renovadas, que somente Roma soube manter a paz, fazendo reinar em seu império a ordem e a justiça. A lembrança do Império fazia-se mais nostálgica. Ele tornava-se o modelo inigualável dos Estados, segundo a palavra do velho poeta gaulês de outrora:
De uma multidão de nações, soubeste fazer uma só cidade!
Ademais, era em latim que se redigiam as grandes obras do Direito, as leis que regiam a vida dos homens; em latim, redigiam-se tratados políticos onde as monarquias aprendiam as bases mesmas do governo; em latim, a ciência; em latim, a ordem; em latim, a força que faz a justiça.
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Os espíritos cultos ajudados pelo progresso das ciências históricas reconhecem que a Igreja Católica Romana gozava de um extraordinário privilégio ao continuar a falar o latim. Ela guardava uma língua única por sua universalidade, por sua própria qualidade, por seu gênio. Manifestava uma gratidão fundamental, conservando uma herança civilizadora que servira de prefácio à sua fé; admitia, como o próprio Cristo, dar a César o que era de César. Testemunhava o formidável socorro que o cristianismo recebera, de súbito, no dia em que (depois de três séculos de perseguições e martírios) César pôde ser batizado!
Pois no império romano conquistado pelo batismo, a ordem da cidade terrestre viera então servir de abrigo à cidade de Deus.
(Le Latin Immortel, D.P.F., 1971, Chiré-en-Montreuil, cap. 8. Tradução: PERMANÊNCIA
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