O Feudalismo - parte 1 - Gênese.
A GÊNESE
O processo de gestação do feudalismo foi bastante longo, remontando a crise romana do séc. III, passando pela constituição dos reinos germânicos nos séc. V-VI e pelos problemas do Império Carolíngio no séc. IX. Esse processo apresentou sete aspectos principais: a ruralização da sociedade, o enriquecimento da hierarquia social, a fragmentação do poder central, o desenvolvimento das relações de dependência social, a privatização das defesas, a clericalização da sociedade e as transformações da mentalidade, dos quais destacarei três que me parecem mais importantes, sendo os restantes consequência desses primeiros. Com exceção da clericalização da sociedade que também é consequência da generalização do cristianismo. E das transformações da mentalidade, processo muito mais lento, mas que também pode ser considerando como consequência da cristianização e da clericalização.
Se destacam como mais importantes:
Primeiramente a ruralização da sociedade, fenômeno que possuía raízes muito profundas, vindo desde o Império romano. Um grande crescimento do numero de escravos, o enfraquecimento da camada de pequenos e médios proprietários rurais e a concentração de terras nas mãos de poucos indivíduos. A contradição entre a necessidade de se renovar constantemente o estoque de mão-de-obra escrava, um estado dominado pelos cidadãos mais ricos via seus rendimentos decrescerem. Porque os poderosos fugiam aos impostos e os pobres não podiam paga- los. Assim não havia condições economias e sociais de prosseguirem as conquistas. Dessa forma o sistema imperialista/escravista não podia mais continuar a se auto-reproduzir.
Na sociedade urbana a crise se manifestava mais claramente com as lutas sociais, a contração do comércio, pressão do banditismo e dos bárbaros. Em consequência a isso os mais ricos passaram a se retirar para suas grandes propriedades rurais(villae), onde estariam mais seguros e poderiam produzir praticamente todo o necessário.
A questão da mão de obra rural foi solucionada por um regime de tripla origem que atendia aos interesses dos proprietários em ter mais trabalhadores, do estado em garantir suas rendas fiscais e dos mais humildes por segurança e estabilidade. Desse encontro nasceu o colonato.
As crescentes dificuldade de se obter mão-de-obra escrava quanto livre punha em xeque as possibilidades do grande proprietário explorar proveitosa mente suas terras. Buscou-se então um novo sistema. Por este a terra ficava dividida em duas partes: a reserva senhorial e os lotes dos camponeses. Esses lotes eram entregues a indivíduos em troca de uma parcela do que se produzisse ali e da obrigação de trabalhar na reserva senhorial.
Para o estado, vincular casa trabalhador a um lote de terra representava melhor controle do fisco imperial sobre os camponeses e uma forma de incentivara produção, para os marginalizados trabalhar nas terras de um grande proprietário significava casa, comida e proteção, para os escravos significava uma considerável melhoria de condições e para o proprietário era uma forma de aumentar a produtividade e diminuir os custos.
Assim, por um aviltamento da condição do trabalhador livre e um melhoria da condição do escravo, surgia o colono. Sua situação jurídica, já definida desde o séc IV expressa nitidamente a ruralização do império romano
Um segundo aspecto era o enrijecimento da hierarquia social. Enquanto na Roma clássica o critério para diferenciação social era a liberdade a partir do séc. III a condição econômica e a participação nos quadros diretivos do estado eram decisivas. Desde o séc. IV estabeleceu-se a vitaliciedade e hereditariedade das funções, da mesma forma que se vinculou os camponeses a terra também se vinculou os artesãos de cada especialidade a uma corporação submetida ao controle estatal.
A penetração dos bárbaros germânicos não alterou esse quadro. A quebra da unidade política romana acentuava as tendências regionalistas daquela aristocracia reforçaria seus privilégios. A vida da população urbana decadente continuava a evoluir nesse sentido e as camadas mais humildes não tiveram sua sorte alterada. Os invasores de maneira geral mantiveram as estruturas anteriores.
A própria sociedade germânica após sua instalação no ocidente começou a passar por transformações profundas. Por volta do ano 500, nos limites do império, vivia um milhão de bárbaros em uma população de trinta milhões. As sociedades romana e germânica, passando a ter estruturas semelhantes. As sociedades romana e germânica, passando a ter estruturas semelhantes e identidade de interesse ao nível das aristocracias aos poucos se fundindo numa nova sociedade.
Como terceiro aspecto temos a fragmentação do poder central. Processo resultante da ruralização, tendência a auto-suficiência de cada latifúndio, crescente dificuldade nas comunicações e os representantes do poder imperial foram perdendo poder de ação sobre vastos territórios. As invasões germânicas quebraram definitivamente frágil unidade política do ocidente no séc. V. Mais importante que isso é o fato de que em cada Reino Romano Germânico continuavam a se manifestar as mesmas forças centrifugas da época romana. A formação de uma aristocracia germânica contribua, reforçada pela decadência economia, comercial e monetária.
Assim, tendo esses aspectos como base, é possível ter uma idéia da origem do sistema feudal.
Bibliografia:
“O Feudalismo". FRANCO JR, Hilário Franco; Brasiliense; São Paulo; 4º edição.
sábado, 30 de julho de 2011
A IDADE MÉDIA E A MULHER - A RECUSA DO PRAZER
Resumo
Para uma melhor compreensão da situação da mulher na Idade Media é necessário o entendimento dos costumes dos grupos formadores da sociedade européia, pois estes, em certa medida, condicionaram as tradições vigentes no Ocidente medieval. A cultura cristã com os hábitos herdados dos germânicos, celtas e romanos teve peso considerável na concepção de mulher durante a idade média.
As mulheres, para os romanos, sempre foram “naturalmente inferiores”, sendo excluídas das funções publicas, políticas e administrativas, sendo restringidas ao ambiente doméstico, sempre governado por um homem. Mesmo quando era juridicamente livre a mulher tinha a autonomia limitada pela família, sendo extremamente presa aos seus interesses. Em Bizâncio a mulher também conheceu diversas limitações. Tais limitações foram comuns a maioria dos povos da Antiguidade, mas existiram exceções como é o caso das mulheres dos povos celtas. Depois do século X a mulher conheceu uma regressão no seu estatuto jurídico.
Com o condicionamento do tecido social entre os séc.X e XI, em algumas áreas da Europa, ocorreu uma substancial transformação nas estruturas familiares, transformações que visavam a manutenção do patrimônio. Até o séc.IX o parentesco era definido horizontalmente, mas lentamente esse sistema foi sendo substituído por outro, definido verticalmente, em que as relações familiares passaram a serem ordenadas por uma linhagem. Daí em diante o primogênito passou a receber a maior parte da herança. Evidentemente essa transformação beneficiou apenas os componentes do sexo masculino. Esta estratégia matrimonial permite a reprodução da ordem social e da ordem política dentro da própria família.
No final do séc.XII houve um grande crescimento na quantidade de estabelecimentos religiosos femininos, pois como as questões de transmissão dos bens determinavam o destino das mulheres, o “casamento com Deus” se tornou um bom negócio para os pais das jovens aristocráticas , pois diminuía o número de prováveis casamentos, diminuindo o risco de divisão do patrimônio e por outro lado diminuindo a oferta de jovens aptas a casar valorizava o arras. As mulheres viam na relação conjugal se reproduzir as formas de poder feudo-vassálicas. O único objetivo do casamento era dar continuidade a linhagem e se isso não fosse possível por qualquer motivo a relação perdia a sua razão de ser.
O casamento era para a Igreja um instrumento de controle sobre a sexualidade. Transformado com o decorrer dos séculos em um sacramento o casamento se tornaria uma forma de controle social. Não deveria ser realizado pela luxúria, mas sim pelo desejo da procriação. Quando casados o ato sexual tem apenas a utilidade reprodutiva, não podendo ser uma fonte de prazer.
As famílias ao se esforçarem para não ter seus patrimônios divididos incentivaram o casamento entre parentes relativamente próximos. A igreja passou a considerar incestuoso o casamento entre parentes até o sétimo grau, depois passou a ser considerado para parentes de quarto grau. A maior vitória da Igreja foi solidificar na cabeça dos homens que o casamento é indissolúvel!
Para os religiosos a mulher sempre foi vista como inferior, pois o homem foi feito a imagem e semelhança de Deus e a mulher era apenas um reflexo da imagem masculina, sendo de Deus uma imagem distorcida. O casamento garantia a estabilidade das relações determinadas pelo sexo masculino, apesar de unir os diferentes sexos não os punha em pé de igualdade. Pois a mulher é a responsável pela queda da humanidade no pecado, portanto a dominação do esposo sobre ela e as dores do parto eram vistos como o seu castigo. Havia no centro da moral cristã uma aguda desconfiança em relação ao prazer, pois ele aprisionava o espírito ao corpo, impedindo-o de se elevar à Deus.
Alguns religiosos descrevem certos traços da personalidade feminina como pérfidas, frívolas, luxuriosas, impulsionadas naturalmente a fornicação. Os moralistas procuravam limitar ao máximo a sexualidade. As relações sexuais eram severamente disciplinadas e os contraceptivos eram proibidos, haviam épocas proibidas para a relação sexual e a mulher não deveria nunca demonstrar sensação de prazer. A posição sexual em que o sexo era praticado revelava a situação de submissão da mulher. Sempre o marido em cima e a mulher em baixo, sendo qualquer outra posição condenada.
A posição dos homens em relação as mulheres não era muito diferente da dos clérigos, as atitudes de desprezo às mulheres, que eram consideradas ao mesmo tempo perigosas e frágeis, era justificada por todos os meios. Os homens, pais ou maridos, possuíam um direito de justiça inquestionável e fundamental de castigar as mulheres.
No meio familiar a mulher podia viver três situações, a esposa, a viúva e a mãe. A capacidade de ser mãe lhe garantia um lugar na família. Sendo mãe, quando viúva teria certa ascendência sobre os filhos. Não o sendo havia como caminho apenas o casamento com Cristo. Portanto não bastava ser esposa, nem viúva, era necessário ser mãe.
Para os cavalheiros o “sexo frágil” foi feito para obedecer. Não era bom que as mulheres soubessem ler e escrever a menos que isso interessasse a vida religiosa. Uma moça deveria saber fiar e bordar.
A sociedade medieval, que foi machista e guerreira, nutriu um desprezo generalizado pelas mulheres.
As diferenças sociais foram sempre tão forte quanto as diferenças de sexo, portanto não é possível alinhar, num mesmo plano, condessas e castelãs com servas e camponesas, ricas burguesas com artesãs, domesticas ou escravas. A estruturação da casa e das relações familiares lembrava uma pequena monarquia, em que a dama. a esposa do senhor, se comporta como o marido em relação aos seus dependentes, tiranizando as domesticas e no caso de ser sogra, menosprezando a nora.
Todas as mulheres da Idade Media foram donas-de-casa, mas em inúmeras vezes foram forçadas pelas dificuldades e pelo tempo a desempenhar ao lado do esposo ou mesmo sem ele diversas atividades fora do lar, participaram de quase todos os setores da atividade econômica.
Os documentos senhoriais registram a participação feminina em diversos serviços. Sabemos que uma camponesa deveria, quando casada, participar, ao lado do marido, de todas as atividades desempenhadas. Quando viúva trabalhava com os filhos ou sozinha.
Nas grandes abadias germânicas do séc.IX o trabalho de fiação do linho, de tecelagem, e a lavagem das roupas eram incumbência das esposas dos colonos dependentes. Nos grandes domínios da Alta Idade Média, uma parte considerável do trabalho artesanal lhes foi reservado.
Há documentos que demonstram que durante a Idade Média a força de trabalho das mulheres foi utilizada para mover pilão ou mó giratória uma atividade extremamente estafante e humilhante, muitas vezes como forma de punição.
As senhoras feudais enfrentaram muitas dificuldades na administração de suas posses, pois tiveram que sustentar pesados processos judiciais contra os homens para garantirem seus direitos. Em um ambiente em que o uso da força era a melhor forma para garantirem seus direitos, as mulheres tiveram que se adaptar às circunstâncias.
Precisavam, ainda, demonstrar autoridade suficiente para evitar a rebeldia dos vassalos e impedir os ataques vizinhos ambiciosos..
Nas cidades existiam criadas semilivres e escravas, diferentes juridicamente e na condição social. Seus serviços eram essencialmente domésticos. O grupo das criadas livres era composto por moças recrutadas nas cidades ou nas zonas rurais adjacentes. Essas mulheres eram engajadas por meio de um contrato que estipulava as obrigações recíprocas do amo e do servidor. O tempo do engajamento era consideravelmente longo e muitas moças aceitavam as condições previstas para garantir sua subsistência.
Outro grupo considerável era composto por escravas, seu número era superior ao das criadas semilivres. Constituíam o objeto de um lucrativo comércio. As escravas deveriam executar todo tipo de trabalho doméstico. Exploradas quase que unicamente pelas mulheres livres, que quando casavam ou ganhavam uma ou a trazia da casa paterna, a escrava era um elemento indispensável ao seu bem-estar e a sua categoria social. Quando se tornavam viúvas eram suas escravas que lhes garantiam segurança e uma vida confortável. A escravidão feminina foi dominada orientada e conduzida pelas mulheres burguesas, mas com o lucro dos mercadores.
Nas cidades o trabalho feminino teve incontestável significação na vida econômica. O excedente feminino da aristocracia era relegado aos conventos e o das camadas inferiores era relegado ao mundo do trabalho. A moça quando solteira ajudava os pais. Casada ajudava o marido, viúva trabalhava sozinha para sobreviver. Executavam tarefas ao lado dos homens nas oficinas artesanais. A esposa do mestre era responsável pela supervisão das aprendizes, quando acabava o período de aprendizagem as moças ganhavam um oficio de onde podiam tirar o seu sustento. Os ofícios de fiação eram essencialmente femininos. Várias profissões ligadas a indústria do vestuário foram dominadas pelas mulheres.
Em geral as mulheres não participavam das agremiações das corporações de oficio, pois um dos seus preceitos básicos era a exclusividade profissional e elas tinham que desempenhar duas e as vezes até três atividades. Algumas corporações de ofício chegavam a recomendar que não se empregassem mulheres. A razão dessa aversão pode ser explicada se considerarmos o valor da mão-de-obra feminina, que muito mais barata do que a masculina, isso diminuía os custos da produção gerando concorrência com a produção masculina a prejudicando, e os estatutos previam o monopólio da atividade. O trabalho feminino contrariava alguns pontos das disposições dos estatutos.
A atividade feminina não foi restrita à indústria têxtil. As mulheres tiveram participação nas profissões que lidavam com metais, à alimentação, trabalharam ate na produção de cerveja, ainda há registros de terem trabalhado como cabeleireiras, barbeiras, moleiras, boticárias e muitas praticaram medicina.
As mulheres de outra categoria social, parentes de pequenos ou grandes mercadores, foram levadas pelas circunstâncias a substituir ou auxiliar os homens. As esposas colaboravam com o companheiro, as filhas ajudavam o pai, as viúvas davam continuidade aos negócios dos falecidos. Algumas mulheres se envolveram em operações financeiras de todos os tipos inclusive com a usura ao substituir seus maridos.
A mão de obra feminina foi empregada nos trabalhos agrícolas, domestico, no comércio do vinho e de grãos. As mulheres da comunidade judaica se dedicaram essencialmente aos empréstimos. Elas encontraram nas operações financeiras o principal meio de sobrevivência.
As mulheres da alta burguesia não encontraram espaço para desempenhar atividades fora do lar.
A mulher na ausência do marido era sua substituta e não a proprietária dos bens. No caso da aristocracia rural a ausência abria a perspectiva para sua ação. Já no caso da aristocracia urbana não houve nenhuma possibilidade de ação social, pois a ausência do marido fazia parte da sua atividade. Portanto as possibilidades de substituição deixaram de ocorrer. As mulheres pobres das cidades sempre atuaram na vida profissional, mas nunca conseguiram se livrar da tutela do marido.
Na literatura religiosa é possível constatar alguns conceitos que os clérigos elaboraram a respeito da mulher. Nesse sentido coexistem dois conceitos diametralmente opostos um da mulher essencialmente má e outro da mulher perfeita.
A sensualidade feminina sempre esteve no centro das reprovações. A aversão declarada provinha da preocupação constante dos religiosos com a repressão sexualidade. Pois o desejo destrói o homem. A mulher é por excelência inspiradora do desejo, portanto é por excelência agente do mal e causadora do desespero, da morte, da danação eterna do sexo masculino.
A representação da “mulher perfeita” é simbolicamente encarnada em Maria que antes era “Mãe de Cristo” e que em 431 foi proclamada “Mãe de Deus” mulher-símbolo da pureza, da grandeza e da santidade, tida como “nova Eva” a fonte de redenção, já que Eva foi a responsável pelo pecado original. O ideal de perfeição é composto por castidade e virgindade.
A recusa do prazer não devia ser encarada como obrigação e sim como um ato de purificação.
Nos séc.XII e XIII nasce no Ocidente uma refinada cultura que foi essencialmente aristocrática, profana, cortês. As cortes abrigavam artistas de todas as espécies, que elaboraram uma arte que representava os costumes de seus protetores. Os literatos propuseram um modelo mental imbuído das boas maneiras aristocráticas, nascia o “amor cortês”. Nele o poeta canta o “bom amor”, que possui o fundamental caráter de ser estéril, inacabado, impossível, cantado a dama inatingível e inacessível.
Nesse gênero o tema central é o amor, o sujeito é o amante, a mulher aparentemente venerada é apenas uma referencia. O homem não se submete a mulher, mas ao seu amor, portanto o amor e não a dama engrandecia o amante.
A hipótese generalizada de uma mulher marginalizada é difícil de ser sustentada, pois o casamento responsável pela reprodução biológica da família dava a mulher o papel de relevo na estabilidade da ordem social.
Os processos de marginalização por vezes atingiam grupos de mulheres e feiticeiras, sendo as últimas mais visadas e perseguidas. No caso das prostitutas a marginalização dizia respeito apenas ao sexo feminino. Os hereges e bruxas foram sistematicamente perseguidos e eliminados. A exclusão se deu essencialmente, no caso das prostitutas e das bruxas, à práticas sexuais que feriam os preceitos cristãos.
As heresias, doutrinas contrárias as estabelecidas pela Igreja, possuíam uma proporção considerável de mulheres na composição dos movimentos, embora o número de homens tenha sido sempre superior ao de mulheres nesses movimentos.. Um exemplo desses movimentos foi as beguinas, que possuíam ate mesmo mulheres como lideres. As beguinas foram integradas as ordens franciscanas e dominicanas. As mulheres que resistiram a integração foram consideradas hereges, e por causa disso, excomungadas. Um outro exemplo de movimento herético foi o catarismo que não tinha lideranças femininas, mas que lhes permitia o possibilidade de ocupar qualquer posição de sua hierarquia.
Com as crises social e econômica muito comum nesse período surgiu uma nova concepção do mundo, de Deus, do demônio e dos males praticados em seu nome. O medo do demônio gerou o medo das feiticeiras. O medo de ambos gerou a perseguição e o extermínio do inimigo visível, as bruxas. Que seriam uma ligação entre a feitiçaria, o culto demoníaco e a depravação sexual. Temia-se não apenas a bruxa, mas a reunião delas: o sabat, representado por uma orgia. A bruxa era a serva do demônio. Portanto iniciou-se um combate feroz elas. Qualquer comportamento anormal era motivo para uma mulher arder em uma fogueira.
A prostituição existiu ao longo de toda a Idade Media, no meio rural era desorganizada, escapando ao controle das autoridades locais, mas no meio urbano se tornou organizada, sendo em muitas das vezes controlada pelos governos municipais. O povo errante, composto por apátridas sem miseráveis abastecia as localidades com raparigas e prostitutas. Muitas foram vendidas como escravas, sendo exportadas para o Oriente onde compunham a “mercadoria loira”. As que ficavam exerciam sua profissão a noite em estradas ou feiras, outras acompanhavam os bandos de peregrinos que se dirigiam a locais santos, ou os guerreiros para servirem de companhia e lazer nos intervalos das batalhas. Nas cidades francesas o meretrício não era apenas tolerado como incentivado, com a existência de prostíbulos públicos, espaços protegidos pelas autoridades locais onde a fornicação era exercida livre e oficialmente.
Portanto a prostituição, apesar de imoral, colaborava para a manutenção da sanidade da sociedade, atenuando as tensões e servindo de válvula de escape para as limitações impostas pela Igreja. O homem com a esposa cumpria suas obrigações de marido, com as prostitutas procuravam obter prazer. A prostituição servia ainda como remédio as fraquezas dos clérigos diante do prazer da carne.
Apenas o direito bizantino condenava a prostituição, sendo não a mulher mas sim o homem considerado culpado e cabendo a ele a punição.
A devoção e a religiosidade das mulheres aristocráticas serviu de apoio indispensável à implantação, sedimentação e sobreposição do cristianismo nas sociedades bárbaras e dada essa devoção, não é de se admirar o grande número de mulheres santificadas. O nome de inúmeras piedosas foi associado ao desenvolvimento do culto cristão. A piedade feminina foi marcante a ponto de influenciar politicamente os contemporâneos e a posteridade. Místicas, castas, ascéticas, as santas romperam a hierarquia imposta pelos homens da Igreja.
O envolvimento da mulher no desenvolvimento literário foi considerável, ocorreu tanto de forma indireta, com o patrocínio de artistas, quanto na criação e reprodução de obras literárias. O desenvolvimento da lírica amorosa deve muito ao apoio das mulheres nobres do século XIII. O envolvimento feminino com a literatura ocorria também no processo de reprodução dos textos, deixando no fim dos manuscritos o registro de sua participação.
A mais famosa poetisa da idade média foi Cristina de Pisan, nascida na Itália, mas criada na França, na corte de Carlos V onde teve acesso a biblioteca real teve acesso ao saber. Casada aos quinze anos se tornou viúva jovem, mas como não tinha conhecimento dos negócios do marido passou a escrever poesias para sobreviver. Nelas defendia as mulheres. Vivendo durante a época da Guerra dos Cem Anos sentiu as dificuldades de França no início do séc.XV.
No fim de sua vida teve ainda a alegria de ouvir falar de Joana D'Arc, que mulher e guerreira lutou pela unidade da França, mas que capturada acabou condenada e morta pela inquisição.
A Idade Média foi uma época em que a voz e as ações das mulheres foram extremamente limitadas, mas ainda sim algumas mulheres conseguiram superar as barreiras impostas pelo sexo e demonstrar aos seus contemporâneos seus desejos e aflições.
Bibliografia:
MACEDO, José Rivair; "A Mulher na Idade Média. " Contexto; São Paulo; 1999.
Para uma melhor compreensão da situação da mulher na Idade Media é necessário o entendimento dos costumes dos grupos formadores da sociedade européia, pois estes, em certa medida, condicionaram as tradições vigentes no Ocidente medieval. A cultura cristã com os hábitos herdados dos germânicos, celtas e romanos teve peso considerável na concepção de mulher durante a idade média.
As mulheres, para os romanos, sempre foram “naturalmente inferiores”, sendo excluídas das funções publicas, políticas e administrativas, sendo restringidas ao ambiente doméstico, sempre governado por um homem. Mesmo quando era juridicamente livre a mulher tinha a autonomia limitada pela família, sendo extremamente presa aos seus interesses. Em Bizâncio a mulher também conheceu diversas limitações. Tais limitações foram comuns a maioria dos povos da Antiguidade, mas existiram exceções como é o caso das mulheres dos povos celtas. Depois do século X a mulher conheceu uma regressão no seu estatuto jurídico.
Com o condicionamento do tecido social entre os séc.X e XI, em algumas áreas da Europa, ocorreu uma substancial transformação nas estruturas familiares, transformações que visavam a manutenção do patrimônio. Até o séc.IX o parentesco era definido horizontalmente, mas lentamente esse sistema foi sendo substituído por outro, definido verticalmente, em que as relações familiares passaram a serem ordenadas por uma linhagem. Daí em diante o primogênito passou a receber a maior parte da herança. Evidentemente essa transformação beneficiou apenas os componentes do sexo masculino. Esta estratégia matrimonial permite a reprodução da ordem social e da ordem política dentro da própria família.
No final do séc.XII houve um grande crescimento na quantidade de estabelecimentos religiosos femininos, pois como as questões de transmissão dos bens determinavam o destino das mulheres, o “casamento com Deus” se tornou um bom negócio para os pais das jovens aristocráticas , pois diminuía o número de prováveis casamentos, diminuindo o risco de divisão do patrimônio e por outro lado diminuindo a oferta de jovens aptas a casar valorizava o arras. As mulheres viam na relação conjugal se reproduzir as formas de poder feudo-vassálicas. O único objetivo do casamento era dar continuidade a linhagem e se isso não fosse possível por qualquer motivo a relação perdia a sua razão de ser.
O casamento era para a Igreja um instrumento de controle sobre a sexualidade. Transformado com o decorrer dos séculos em um sacramento o casamento se tornaria uma forma de controle social. Não deveria ser realizado pela luxúria, mas sim pelo desejo da procriação. Quando casados o ato sexual tem apenas a utilidade reprodutiva, não podendo ser uma fonte de prazer.
As famílias ao se esforçarem para não ter seus patrimônios divididos incentivaram o casamento entre parentes relativamente próximos. A igreja passou a considerar incestuoso o casamento entre parentes até o sétimo grau, depois passou a ser considerado para parentes de quarto grau. A maior vitória da Igreja foi solidificar na cabeça dos homens que o casamento é indissolúvel!
Para os religiosos a mulher sempre foi vista como inferior, pois o homem foi feito a imagem e semelhança de Deus e a mulher era apenas um reflexo da imagem masculina, sendo de Deus uma imagem distorcida. O casamento garantia a estabilidade das relações determinadas pelo sexo masculino, apesar de unir os diferentes sexos não os punha em pé de igualdade. Pois a mulher é a responsável pela queda da humanidade no pecado, portanto a dominação do esposo sobre ela e as dores do parto eram vistos como o seu castigo. Havia no centro da moral cristã uma aguda desconfiança em relação ao prazer, pois ele aprisionava o espírito ao corpo, impedindo-o de se elevar à Deus.
Alguns religiosos descrevem certos traços da personalidade feminina como pérfidas, frívolas, luxuriosas, impulsionadas naturalmente a fornicação. Os moralistas procuravam limitar ao máximo a sexualidade. As relações sexuais eram severamente disciplinadas e os contraceptivos eram proibidos, haviam épocas proibidas para a relação sexual e a mulher não deveria nunca demonstrar sensação de prazer. A posição sexual em que o sexo era praticado revelava a situação de submissão da mulher. Sempre o marido em cima e a mulher em baixo, sendo qualquer outra posição condenada.
A posição dos homens em relação as mulheres não era muito diferente da dos clérigos, as atitudes de desprezo às mulheres, que eram consideradas ao mesmo tempo perigosas e frágeis, era justificada por todos os meios. Os homens, pais ou maridos, possuíam um direito de justiça inquestionável e fundamental de castigar as mulheres.
No meio familiar a mulher podia viver três situações, a esposa, a viúva e a mãe. A capacidade de ser mãe lhe garantia um lugar na família. Sendo mãe, quando viúva teria certa ascendência sobre os filhos. Não o sendo havia como caminho apenas o casamento com Cristo. Portanto não bastava ser esposa, nem viúva, era necessário ser mãe.
Para os cavalheiros o “sexo frágil” foi feito para obedecer. Não era bom que as mulheres soubessem ler e escrever a menos que isso interessasse a vida religiosa. Uma moça deveria saber fiar e bordar.
A sociedade medieval, que foi machista e guerreira, nutriu um desprezo generalizado pelas mulheres.
As diferenças sociais foram sempre tão forte quanto as diferenças de sexo, portanto não é possível alinhar, num mesmo plano, condessas e castelãs com servas e camponesas, ricas burguesas com artesãs, domesticas ou escravas. A estruturação da casa e das relações familiares lembrava uma pequena monarquia, em que a dama. a esposa do senhor, se comporta como o marido em relação aos seus dependentes, tiranizando as domesticas e no caso de ser sogra, menosprezando a nora.
Todas as mulheres da Idade Media foram donas-de-casa, mas em inúmeras vezes foram forçadas pelas dificuldades e pelo tempo a desempenhar ao lado do esposo ou mesmo sem ele diversas atividades fora do lar, participaram de quase todos os setores da atividade econômica.
Os documentos senhoriais registram a participação feminina em diversos serviços. Sabemos que uma camponesa deveria, quando casada, participar, ao lado do marido, de todas as atividades desempenhadas. Quando viúva trabalhava com os filhos ou sozinha.
Nas grandes abadias germânicas do séc.IX o trabalho de fiação do linho, de tecelagem, e a lavagem das roupas eram incumbência das esposas dos colonos dependentes. Nos grandes domínios da Alta Idade Média, uma parte considerável do trabalho artesanal lhes foi reservado.
Há documentos que demonstram que durante a Idade Média a força de trabalho das mulheres foi utilizada para mover pilão ou mó giratória uma atividade extremamente estafante e humilhante, muitas vezes como forma de punição.
As senhoras feudais enfrentaram muitas dificuldades na administração de suas posses, pois tiveram que sustentar pesados processos judiciais contra os homens para garantirem seus direitos. Em um ambiente em que o uso da força era a melhor forma para garantirem seus direitos, as mulheres tiveram que se adaptar às circunstâncias.
Precisavam, ainda, demonstrar autoridade suficiente para evitar a rebeldia dos vassalos e impedir os ataques vizinhos ambiciosos..
Nas cidades existiam criadas semilivres e escravas, diferentes juridicamente e na condição social. Seus serviços eram essencialmente domésticos. O grupo das criadas livres era composto por moças recrutadas nas cidades ou nas zonas rurais adjacentes. Essas mulheres eram engajadas por meio de um contrato que estipulava as obrigações recíprocas do amo e do servidor. O tempo do engajamento era consideravelmente longo e muitas moças aceitavam as condições previstas para garantir sua subsistência.
Outro grupo considerável era composto por escravas, seu número era superior ao das criadas semilivres. Constituíam o objeto de um lucrativo comércio. As escravas deveriam executar todo tipo de trabalho doméstico. Exploradas quase que unicamente pelas mulheres livres, que quando casavam ou ganhavam uma ou a trazia da casa paterna, a escrava era um elemento indispensável ao seu bem-estar e a sua categoria social. Quando se tornavam viúvas eram suas escravas que lhes garantiam segurança e uma vida confortável. A escravidão feminina foi dominada orientada e conduzida pelas mulheres burguesas, mas com o lucro dos mercadores.
Nas cidades o trabalho feminino teve incontestável significação na vida econômica. O excedente feminino da aristocracia era relegado aos conventos e o das camadas inferiores era relegado ao mundo do trabalho. A moça quando solteira ajudava os pais. Casada ajudava o marido, viúva trabalhava sozinha para sobreviver. Executavam tarefas ao lado dos homens nas oficinas artesanais. A esposa do mestre era responsável pela supervisão das aprendizes, quando acabava o período de aprendizagem as moças ganhavam um oficio de onde podiam tirar o seu sustento. Os ofícios de fiação eram essencialmente femininos. Várias profissões ligadas a indústria do vestuário foram dominadas pelas mulheres.
Em geral as mulheres não participavam das agremiações das corporações de oficio, pois um dos seus preceitos básicos era a exclusividade profissional e elas tinham que desempenhar duas e as vezes até três atividades. Algumas corporações de ofício chegavam a recomendar que não se empregassem mulheres. A razão dessa aversão pode ser explicada se considerarmos o valor da mão-de-obra feminina, que muito mais barata do que a masculina, isso diminuía os custos da produção gerando concorrência com a produção masculina a prejudicando, e os estatutos previam o monopólio da atividade. O trabalho feminino contrariava alguns pontos das disposições dos estatutos.
A atividade feminina não foi restrita à indústria têxtil. As mulheres tiveram participação nas profissões que lidavam com metais, à alimentação, trabalharam ate na produção de cerveja, ainda há registros de terem trabalhado como cabeleireiras, barbeiras, moleiras, boticárias e muitas praticaram medicina.
As mulheres de outra categoria social, parentes de pequenos ou grandes mercadores, foram levadas pelas circunstâncias a substituir ou auxiliar os homens. As esposas colaboravam com o companheiro, as filhas ajudavam o pai, as viúvas davam continuidade aos negócios dos falecidos. Algumas mulheres se envolveram em operações financeiras de todos os tipos inclusive com a usura ao substituir seus maridos.
A mão de obra feminina foi empregada nos trabalhos agrícolas, domestico, no comércio do vinho e de grãos. As mulheres da comunidade judaica se dedicaram essencialmente aos empréstimos. Elas encontraram nas operações financeiras o principal meio de sobrevivência.
As mulheres da alta burguesia não encontraram espaço para desempenhar atividades fora do lar.
A mulher na ausência do marido era sua substituta e não a proprietária dos bens. No caso da aristocracia rural a ausência abria a perspectiva para sua ação. Já no caso da aristocracia urbana não houve nenhuma possibilidade de ação social, pois a ausência do marido fazia parte da sua atividade. Portanto as possibilidades de substituição deixaram de ocorrer. As mulheres pobres das cidades sempre atuaram na vida profissional, mas nunca conseguiram se livrar da tutela do marido.
Na literatura religiosa é possível constatar alguns conceitos que os clérigos elaboraram a respeito da mulher. Nesse sentido coexistem dois conceitos diametralmente opostos um da mulher essencialmente má e outro da mulher perfeita.
A sensualidade feminina sempre esteve no centro das reprovações. A aversão declarada provinha da preocupação constante dos religiosos com a repressão sexualidade. Pois o desejo destrói o homem. A mulher é por excelência inspiradora do desejo, portanto é por excelência agente do mal e causadora do desespero, da morte, da danação eterna do sexo masculino.
A representação da “mulher perfeita” é simbolicamente encarnada em Maria que antes era “Mãe de Cristo” e que em 431 foi proclamada “Mãe de Deus” mulher-símbolo da pureza, da grandeza e da santidade, tida como “nova Eva” a fonte de redenção, já que Eva foi a responsável pelo pecado original. O ideal de perfeição é composto por castidade e virgindade.
A recusa do prazer não devia ser encarada como obrigação e sim como um ato de purificação.
Nos séc.XII e XIII nasce no Ocidente uma refinada cultura que foi essencialmente aristocrática, profana, cortês. As cortes abrigavam artistas de todas as espécies, que elaboraram uma arte que representava os costumes de seus protetores. Os literatos propuseram um modelo mental imbuído das boas maneiras aristocráticas, nascia o “amor cortês”. Nele o poeta canta o “bom amor”, que possui o fundamental caráter de ser estéril, inacabado, impossível, cantado a dama inatingível e inacessível.
Nesse gênero o tema central é o amor, o sujeito é o amante, a mulher aparentemente venerada é apenas uma referencia. O homem não se submete a mulher, mas ao seu amor, portanto o amor e não a dama engrandecia o amante.
A hipótese generalizada de uma mulher marginalizada é difícil de ser sustentada, pois o casamento responsável pela reprodução biológica da família dava a mulher o papel de relevo na estabilidade da ordem social.
Os processos de marginalização por vezes atingiam grupos de mulheres e feiticeiras, sendo as últimas mais visadas e perseguidas. No caso das prostitutas a marginalização dizia respeito apenas ao sexo feminino. Os hereges e bruxas foram sistematicamente perseguidos e eliminados. A exclusão se deu essencialmente, no caso das prostitutas e das bruxas, à práticas sexuais que feriam os preceitos cristãos.
As heresias, doutrinas contrárias as estabelecidas pela Igreja, possuíam uma proporção considerável de mulheres na composição dos movimentos, embora o número de homens tenha sido sempre superior ao de mulheres nesses movimentos.. Um exemplo desses movimentos foi as beguinas, que possuíam ate mesmo mulheres como lideres. As beguinas foram integradas as ordens franciscanas e dominicanas. As mulheres que resistiram a integração foram consideradas hereges, e por causa disso, excomungadas. Um outro exemplo de movimento herético foi o catarismo que não tinha lideranças femininas, mas que lhes permitia o possibilidade de ocupar qualquer posição de sua hierarquia.
Com as crises social e econômica muito comum nesse período surgiu uma nova concepção do mundo, de Deus, do demônio e dos males praticados em seu nome. O medo do demônio gerou o medo das feiticeiras. O medo de ambos gerou a perseguição e o extermínio do inimigo visível, as bruxas. Que seriam uma ligação entre a feitiçaria, o culto demoníaco e a depravação sexual. Temia-se não apenas a bruxa, mas a reunião delas: o sabat, representado por uma orgia. A bruxa era a serva do demônio. Portanto iniciou-se um combate feroz elas. Qualquer comportamento anormal era motivo para uma mulher arder em uma fogueira.
A prostituição existiu ao longo de toda a Idade Media, no meio rural era desorganizada, escapando ao controle das autoridades locais, mas no meio urbano se tornou organizada, sendo em muitas das vezes controlada pelos governos municipais. O povo errante, composto por apátridas sem miseráveis abastecia as localidades com raparigas e prostitutas. Muitas foram vendidas como escravas, sendo exportadas para o Oriente onde compunham a “mercadoria loira”. As que ficavam exerciam sua profissão a noite em estradas ou feiras, outras acompanhavam os bandos de peregrinos que se dirigiam a locais santos, ou os guerreiros para servirem de companhia e lazer nos intervalos das batalhas. Nas cidades francesas o meretrício não era apenas tolerado como incentivado, com a existência de prostíbulos públicos, espaços protegidos pelas autoridades locais onde a fornicação era exercida livre e oficialmente.
Portanto a prostituição, apesar de imoral, colaborava para a manutenção da sanidade da sociedade, atenuando as tensões e servindo de válvula de escape para as limitações impostas pela Igreja. O homem com a esposa cumpria suas obrigações de marido, com as prostitutas procuravam obter prazer. A prostituição servia ainda como remédio as fraquezas dos clérigos diante do prazer da carne.
Apenas o direito bizantino condenava a prostituição, sendo não a mulher mas sim o homem considerado culpado e cabendo a ele a punição.
A devoção e a religiosidade das mulheres aristocráticas serviu de apoio indispensável à implantação, sedimentação e sobreposição do cristianismo nas sociedades bárbaras e dada essa devoção, não é de se admirar o grande número de mulheres santificadas. O nome de inúmeras piedosas foi associado ao desenvolvimento do culto cristão. A piedade feminina foi marcante a ponto de influenciar politicamente os contemporâneos e a posteridade. Místicas, castas, ascéticas, as santas romperam a hierarquia imposta pelos homens da Igreja.
O envolvimento da mulher no desenvolvimento literário foi considerável, ocorreu tanto de forma indireta, com o patrocínio de artistas, quanto na criação e reprodução de obras literárias. O desenvolvimento da lírica amorosa deve muito ao apoio das mulheres nobres do século XIII. O envolvimento feminino com a literatura ocorria também no processo de reprodução dos textos, deixando no fim dos manuscritos o registro de sua participação.
A mais famosa poetisa da idade média foi Cristina de Pisan, nascida na Itália, mas criada na França, na corte de Carlos V onde teve acesso a biblioteca real teve acesso ao saber. Casada aos quinze anos se tornou viúva jovem, mas como não tinha conhecimento dos negócios do marido passou a escrever poesias para sobreviver. Nelas defendia as mulheres. Vivendo durante a época da Guerra dos Cem Anos sentiu as dificuldades de França no início do séc.XV.
No fim de sua vida teve ainda a alegria de ouvir falar de Joana D'Arc, que mulher e guerreira lutou pela unidade da França, mas que capturada acabou condenada e morta pela inquisição.
A Idade Média foi uma época em que a voz e as ações das mulheres foram extremamente limitadas, mas ainda sim algumas mulheres conseguiram superar as barreiras impostas pelo sexo e demonstrar aos seus contemporâneos seus desejos e aflições.
Bibliografia:
MACEDO, José Rivair; "A Mulher na Idade Média. " Contexto; São Paulo; 1999.
sexta-feira, 29 de julho de 2011
Como o século XIX redescobriu o latim medieval e as lições da Roma eterna
“É nesta língua eterna que o catolicismo pronuncia seus oráculos, que sempre falou e ainda fala a todos os seus filhos dispersos sobre a superfície do globo. Nas escolas do Estado, estranhamente negligenciamos o latim. Eis algo que a Igreja não pode fazer, eis algo que ela não pode permitir. Eis o que não permitirá jamais em suas escolas. Daremos nossa vida, nosso sangue, se for preciso”
Monsenhor DUPANLOUP
Bispo de Orleans (1868)
Existe humor em alguns acontecimentos da História. Os homens da Renascença do século XV e seus imitadores tinham condenado o latim medieval, em nome da estética, antes de tudo.
Ora, é o culto da beleza, revivificado, que faria com que o latim da Igreja fosse redescoberto! Quando a ciência alemã tiver restabelecido a honra dos séculos da “Idade Média”; quando as reformas de Dom Guéranger tiverem reconduzido os católicos do século XIX à beleza dos ofícios em latim, veremos alguns diletantes subitamente tomados de paixão pelos hinos medievais. Este gosto é por vezes evidente entre aqueles capazes de estranhas alianças: “Marshall está ao órgão na grande sala, escreveu Georges Moore, jovem esteta inglês vindo a Paris, por volta de 1880, ele toca um canto gregoriano, este hino magnífico, o Vexilla Regis de São Fortunato, o grande poeta da Idade Média. E eu, depois de ter folheado as Festas Galantes, sento-me para escrever.”
Sim, estranhas vizinhanças...
Mas, depois de três séculos dedicados aos cultos pagãos da razão e da beleza, não era preciso, antes de mais nada, relembrar a imensa dívida da civilização ocidental com a Igreja, tanto no domínio das artes quanto no das conquistas intelectuais?
* * *
Em 1892, um letrado francês apresenta ao grande público uma obra reveladora. É Rémy de Gourmont. De sua parte, supõe que um número razoável de homens instruídos na França não ignora a importância da cultura greco-latina das idades clássicas. Mas ele quer fazer com que descubram outra coisa: o esplendor literário dos escritos da Idade Média latina ocidental, que há quatro séculos afetamos tratar de língua degenerada, de “latim de igreja”. Ele aponta grandes poetas desconhecidos entre os velhos bispos da Gália, que salvaram o latim no meio do triunfo geral dos bárbaros. E eis aqui evocada a extraordinária e insubstituível qualidade desta língua latina adotada na Cristandade: seu caráter universal.
Universal porque se enriquecera de todas as contribuições das nações reunidas sob a espada das legiões romanas: a qualidade elevadíssima do pensamento grego, as misteriosas confidências da Índia, a sabedoria milenar do Egito, os rudes costumes da África do Norte, a poesia cheia de assombro dos Celtas e Germanos — todos estes tesouros o latim medieval juntara sob as pregas da toga romana. Sua literatura ganhou em variedade, em curiosidade, em élan. O latim usado pela Igreja romana era uma língua verdadeiramente adaptada a todos os homens. A Igreja, que se proclamava católica, teve a providencial oportunidade de acolher uma linguagem conveniente ao seu principal objetivo: a universalidade.
Os cristãos, adotando este latim já universal, sublimaram-no ainda. Como a nova religião tinha a ensinar verdades espirituais que o mundo jamais ouvira, era preciso forjar palavras novas. Os grandes sábios gregos e romanos, os grandes filósofos que foram os primeiros padres da Igreja, eram também grandes retores, grandes lingüistas (tais como Santo Agostinho e São Jerônimo) ...eles fizeram o latim sujeitar-se a uma prodigiosa transmutação: deram-lhe um vocabulário que viajava, por assim dizer, entre o céu e a terra; martelaram esta língua de juristas, soldados e agricultores, para forçá-la a exprimir o mundo do invisível. E, como as religiões antigas eram quase todas impregnadas de naturalismo, os padres da Igreja deram à língua latina seu diploma de espiritualidade.
* * *
Para celebrar este latim, língua de uma civilização universal e língua da Igreja, davam-se as mãos, no século XIX, adversários de idéias como Joseph de Maistre e Monsenhor Dupanloup:
“Nada se iguala à majestade da língua latina, escrevia Joseph de Maistre. Ela foi falada pelo povo-rei que lhe imprimiu este caráter de grandeza único na história da linguagem humana e que mesmo as línguas mais perfeitas não puderam jamais alcançar. O termo majestoso pertence ao latim. A Grécia o ignora, e é por essa majestade somente que ela permanece abaixo de Roma, nas letras como nos campos de batalha.”
Monsenhor Dupanloup, em seu discurso de recepção na Academia Francesa: “Não, senhores, não é sem um designo providencial, diria mesmo sem uma inspiração do Altíssimo, que a língua de Platão e a de Virgilio adquiriram tais traços e prodigalizaram tantas obras-primas, uma vez que Deus decidiu que estas duas línguas seriam as de sua Igreja. O mundo antigo preparava o Mundo Novo e as duas mais belas línguas que os homens jamais falaram, recebiam antecipadamente sua missão e se formavam para um dia repetir na terra as coisas do céu”.
Monsenhor Gaume, prelado de Nivernais, celebrava o latim dos padres da Igreja e dos grandes prelados da Idade Média: “Dos elementos da língua latina antiga, modelada e disciplinada pelas mãos da Igreja, saiu uma língua nova, bela das graças da juventude, brilhante dos ardores da fé, dotada das promessas de eternidade e veloz para a conquista do mundo. Os mártires deram-lhe firmeza, os doutores inspirados deram-lhe elevação, os oradores transmitiram-lhe a fé que queimava suas almas, os dialéticos impiedosos martelaram-na em todos os sentidos com as pancadas de seus silogismos, a fim de fazê-la exprimir com precisão matemática uma verdade que não comporta imperfeições. Foi assim que se formou este idioma maravilhoso, que recebeu e que conserva tudo que há de verdade sobre a terra, que é a língua mesma pela qual a Igreja fala com Deus”.
* * *
Então os homens do final do século XIX, racionalista e laico, afinaram os ouvidos aos sons que escapavam das esquecidas catedrais. Viam-se sábios, infiéis, escutarem entusiasmados hinos conservados naqueles muros romanos e góticos que o romancista Huysmans logo exaltaria. Um grande músico exclamava que daria toda a sua obra para ter composto o Dies iræ, evocação poética e melódica do formidável tremor da terra e dos céus. Um poeta incréu sentia as lágrimas virem à audição do Adeste fideles de Natal. Os mais céticos, os menos religiosos, mas todos aqueles que possuíam algum senso da beleza, do mistério, do sagrado, admiravam secretamente o que, em nossos dias, a grande poetiza Marie Noël louvou: “os grandes Aleluias da Páscoa, sob os sinos a toda força; a lamentação extraterrena do ofício dos Mortos, seu formidável e suplicante “Dies iræ”; o “Parce Domine” implorando contra as calamidades públicas; o “Te Deum” fulgurante, sobre-humano das ações de graças com seu caráter épico, toda essa magnificência cantada, a Igreja Católica dá ao povo na magnificência monumental das catedrais, sob a magnificência radiosa dos vitrais” 1.
E a história, melhor conhecida, revela um outro fenômeno: que os mil anos de Idade Média tinham verdadeiramente vivido das recordações de Roma; que todo seu progresso, todas suas criações, toda sua busca de idéias tinha invocado Roma, nem sempre como ponto de partida, mas como reguladora e como defesa em face do Oriente e mesmo da Grécia, sempre tentada, desde o conquistador Alexandre, pelas vertigens do Oriente. Roma não era mais a descoberta da Renascença do século XVI: sabia-se agora que um milênio da história ocidental apegara-se a ela, do mesmo modo que Dante apegara-se à mão de Virgilio antes de explorar o mundo do invisível...
* * *
A erudição mostrava que a Idade Média cristã sempre considerara o império de Roma como um fenômeno providencial para a expansão do cristianismo. Os primeiros apóstolos abandonaram rapidamente o Oriente: é à cabeça do mundo, é a Roma que Pedro e Paulo vinham pregar o Cristo2. E os historiadores e geógrafos revelaram que os apóstolos não puderam senão seguir as rotas, as pistas, as cidades traçadas e estabelecidas pelo extraordinário sucesso do Império. O plano de cristianização do mundo fora inicialmente delimitado pelas vitórias romanas.
(O poeta Péguy exprimirá este fato em uma fórmula fulgurante: “Os pés das legiões marcharam pelo Cristo”.)
* * *
Sabemos que a Idade Média, seguindo os padres da Igreja, apresenta sinais de uma comovente piedade com respeito às recordações de Roma. Assinalava-se que, no Evangelho, um centurião romano mereceu este elogio do Cristo: “Nunca encontrei tamanha fé em Israel!” E que um outro centurião romano reconhecera — foi o primeiro — ao pé da Cruz, bem antes da Ressurreição, a divindade de Jesus: “Este homem era verdadeiramente o Filho de Deus!”.
O Cristo viera nascer em Belém, por ocasião de um decreto romano ordenando o recenseamento do mundo. E foi um governador romano, no momento de sua morte, que redigira a inscrição posta no topo da Cruz: “Jesus de Nazaré, rei dos Judeus!” Durante a cena dramática da Paixão, abandonado pelos discípulos, pelos amigos, pelo povo “eleito” que renegava sua missão, somente a administração de Roma pronunciava a palavra de Justiça: “Este homem é inocente... Dareis morte a um Justo...”(Apesar da covardia de Pilatos, esta dignidade devia-se a Roma, pois seu destino era proclamar a ordem e a justiça entre os homens.)
Mais tarde, São Paulo louvava sem parar, em meio às suas pregações, seu título de cidadão romano. No dia de seu martírio, ele lembrou que o deviam executar segundo o modo usual para os cidadãos do império.
Assim, por toda parte, os cristãos medievais reencontraram misteriosamente o destino de Roma cidade terrestre, entrelaçada ao caminho invisível da Cidade de Deus. Roma era a madrinha daqueles Gentios que substituíram o “povo eleito”, negador de sua Missão. Roma era o primeiro tutor terrestre da Igreja...
* * *
Ela sempre deu testemunho de que a ordem e a justiça humanas são um excelente e sem dúvida necessário prefácio à expansão da caridade do Cristo. “Não vim destruir o que era antes de mim, dizia o Cristo, mas cumpri-lo...”
A Roma humana era a moldura perene da Roma cristã, Cidade invisível.
* * *
Mas a erudição prosseguia em suas descobertas.
A organização formidável e sólida da Igreja romana antes era o decalque da do Império, genial administrador. O protestante Guizot honestamente constatava que uma Igreja unicamente ocupada a pregar às suas almas, sem procurar ter uma hierarquia, uma autoridade, uma disciplina, não poderia resistir nunca à dissolução da Europa no momento das invasões bárbaras. No seu curso de História moderna (1828-1830), Guizot destacava: “O cristianismo não era somente uma religião, era uma Igreja. Se não houvesse uma Igreja, não sei... o que teria acontecido durante a queda do império romano. Baseio-me somente em considerações puramente humanas... É claro que seria necessária uma sociedade fortemente organizada, governada, para lutar contra tal desastre, para sair vitoriosa de um tal furacão. Não creio exagerar, afirmando que no fim do século V fora a Igreja cristã que salvou o cristianismo. É a Igreja, com suas instituições, seus magistrados, seu poder, que se defendeu vigorosamente contra a dissolução interior do Império, contra a Barbárie que se apoderou dos Bárbaros, que se tornou o elo, o meio, o principio da civilização entre o mundo romano e o mundo bárbaro.”
* * *
E eis que outras reflexões, outros testemunhos, apontam para Roma, a partir de um país há muito tempo oriental, ou impregnado de influências bizantinas: Rússia. Na Revolução Francesa, muitos emigrantes foram para lá: aristocratas, como os amigos de Joseph de Maistre; jesuítas, que se tornaram preceptores na alta sociedade de Moscou e São Petersburgo. Sua influência durará.
Certos literatos russos do século XIX deram um excepcional testemunho: procurando analisar as diferenças entre sua nação e os estados europeus, descobriram que em grande parte se deviam ao cisma ortodoxo que, separando-os da Roma latina, fizeram com que perdessem para sempre os tesouros do pensamento ocidental. “Os povos da Europa ocidental, escrevia Pierre Tchaadaiev, possuem uma fisionomia comum, um ar de família... Mas, quanto a nós, relegados há dez séculos no nosso cisma, nada do que se passava na Europa chegava até nós...”
Assim, portanto, a latinidade era, durante séculos, o equivalente da civilização do Ocidente. E recordava-se, entre as guerras incessantemente renovadas, que somente Roma soube manter a paz, fazendo reinar em seu império a ordem e a justiça. A lembrança do Império fazia-se mais nostálgica. Ele tornava-se o modelo inigualável dos Estados, segundo a palavra do velho poeta gaulês de outrora:
De uma multidão de nações, soubeste fazer uma só cidade!
Ademais, era em latim que se redigiam as grandes obras do Direito, as leis que regiam a vida dos homens; em latim, redigiam-se tratados políticos onde as monarquias aprendiam as bases mesmas do governo; em latim, a ciência; em latim, a ordem; em latim, a força que faz a justiça.
* * *
Os espíritos cultos ajudados pelo progresso das ciências históricas reconhecem que a Igreja Católica Romana gozava de um extraordinário privilégio ao continuar a falar o latim. Ela guardava uma língua única por sua universalidade, por sua própria qualidade, por seu gênio. Manifestava uma gratidão fundamental, conservando uma herança civilizadora que servira de prefácio à sua fé; admitia, como o próprio Cristo, dar a César o que era de César. Testemunhava o formidável socorro que o cristianismo recebera, de súbito, no dia em que (depois de três séculos de perseguições e martírios) César pôde ser batizado!
Pois no império romano conquistado pelo batismo, a ordem da cidade terrestre viera então servir de abrigo à cidade de Deus.
(Le Latin Immortel, D.P.F., 1971, Chiré-en-Montreuil, cap. 8. Tradução: PERMANÊNCIA
Monsenhor DUPANLOUP
Bispo de Orleans (1868)
Existe humor em alguns acontecimentos da História. Os homens da Renascença do século XV e seus imitadores tinham condenado o latim medieval, em nome da estética, antes de tudo.
Ora, é o culto da beleza, revivificado, que faria com que o latim da Igreja fosse redescoberto! Quando a ciência alemã tiver restabelecido a honra dos séculos da “Idade Média”; quando as reformas de Dom Guéranger tiverem reconduzido os católicos do século XIX à beleza dos ofícios em latim, veremos alguns diletantes subitamente tomados de paixão pelos hinos medievais. Este gosto é por vezes evidente entre aqueles capazes de estranhas alianças: “Marshall está ao órgão na grande sala, escreveu Georges Moore, jovem esteta inglês vindo a Paris, por volta de 1880, ele toca um canto gregoriano, este hino magnífico, o Vexilla Regis de São Fortunato, o grande poeta da Idade Média. E eu, depois de ter folheado as Festas Galantes, sento-me para escrever.”
Sim, estranhas vizinhanças...
Mas, depois de três séculos dedicados aos cultos pagãos da razão e da beleza, não era preciso, antes de mais nada, relembrar a imensa dívida da civilização ocidental com a Igreja, tanto no domínio das artes quanto no das conquistas intelectuais?
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Em 1892, um letrado francês apresenta ao grande público uma obra reveladora. É Rémy de Gourmont. De sua parte, supõe que um número razoável de homens instruídos na França não ignora a importância da cultura greco-latina das idades clássicas. Mas ele quer fazer com que descubram outra coisa: o esplendor literário dos escritos da Idade Média latina ocidental, que há quatro séculos afetamos tratar de língua degenerada, de “latim de igreja”. Ele aponta grandes poetas desconhecidos entre os velhos bispos da Gália, que salvaram o latim no meio do triunfo geral dos bárbaros. E eis aqui evocada a extraordinária e insubstituível qualidade desta língua latina adotada na Cristandade: seu caráter universal.
Universal porque se enriquecera de todas as contribuições das nações reunidas sob a espada das legiões romanas: a qualidade elevadíssima do pensamento grego, as misteriosas confidências da Índia, a sabedoria milenar do Egito, os rudes costumes da África do Norte, a poesia cheia de assombro dos Celtas e Germanos — todos estes tesouros o latim medieval juntara sob as pregas da toga romana. Sua literatura ganhou em variedade, em curiosidade, em élan. O latim usado pela Igreja romana era uma língua verdadeiramente adaptada a todos os homens. A Igreja, que se proclamava católica, teve a providencial oportunidade de acolher uma linguagem conveniente ao seu principal objetivo: a universalidade.
Os cristãos, adotando este latim já universal, sublimaram-no ainda. Como a nova religião tinha a ensinar verdades espirituais que o mundo jamais ouvira, era preciso forjar palavras novas. Os grandes sábios gregos e romanos, os grandes filósofos que foram os primeiros padres da Igreja, eram também grandes retores, grandes lingüistas (tais como Santo Agostinho e São Jerônimo) ...eles fizeram o latim sujeitar-se a uma prodigiosa transmutação: deram-lhe um vocabulário que viajava, por assim dizer, entre o céu e a terra; martelaram esta língua de juristas, soldados e agricultores, para forçá-la a exprimir o mundo do invisível. E, como as religiões antigas eram quase todas impregnadas de naturalismo, os padres da Igreja deram à língua latina seu diploma de espiritualidade.
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Para celebrar este latim, língua de uma civilização universal e língua da Igreja, davam-se as mãos, no século XIX, adversários de idéias como Joseph de Maistre e Monsenhor Dupanloup:
“Nada se iguala à majestade da língua latina, escrevia Joseph de Maistre. Ela foi falada pelo povo-rei que lhe imprimiu este caráter de grandeza único na história da linguagem humana e que mesmo as línguas mais perfeitas não puderam jamais alcançar. O termo majestoso pertence ao latim. A Grécia o ignora, e é por essa majestade somente que ela permanece abaixo de Roma, nas letras como nos campos de batalha.”
Monsenhor Dupanloup, em seu discurso de recepção na Academia Francesa: “Não, senhores, não é sem um designo providencial, diria mesmo sem uma inspiração do Altíssimo, que a língua de Platão e a de Virgilio adquiriram tais traços e prodigalizaram tantas obras-primas, uma vez que Deus decidiu que estas duas línguas seriam as de sua Igreja. O mundo antigo preparava o Mundo Novo e as duas mais belas línguas que os homens jamais falaram, recebiam antecipadamente sua missão e se formavam para um dia repetir na terra as coisas do céu”.
Monsenhor Gaume, prelado de Nivernais, celebrava o latim dos padres da Igreja e dos grandes prelados da Idade Média: “Dos elementos da língua latina antiga, modelada e disciplinada pelas mãos da Igreja, saiu uma língua nova, bela das graças da juventude, brilhante dos ardores da fé, dotada das promessas de eternidade e veloz para a conquista do mundo. Os mártires deram-lhe firmeza, os doutores inspirados deram-lhe elevação, os oradores transmitiram-lhe a fé que queimava suas almas, os dialéticos impiedosos martelaram-na em todos os sentidos com as pancadas de seus silogismos, a fim de fazê-la exprimir com precisão matemática uma verdade que não comporta imperfeições. Foi assim que se formou este idioma maravilhoso, que recebeu e que conserva tudo que há de verdade sobre a terra, que é a língua mesma pela qual a Igreja fala com Deus”.
* * *
Então os homens do final do século XIX, racionalista e laico, afinaram os ouvidos aos sons que escapavam das esquecidas catedrais. Viam-se sábios, infiéis, escutarem entusiasmados hinos conservados naqueles muros romanos e góticos que o romancista Huysmans logo exaltaria. Um grande músico exclamava que daria toda a sua obra para ter composto o Dies iræ, evocação poética e melódica do formidável tremor da terra e dos céus. Um poeta incréu sentia as lágrimas virem à audição do Adeste fideles de Natal. Os mais céticos, os menos religiosos, mas todos aqueles que possuíam algum senso da beleza, do mistério, do sagrado, admiravam secretamente o que, em nossos dias, a grande poetiza Marie Noël louvou: “os grandes Aleluias da Páscoa, sob os sinos a toda força; a lamentação extraterrena do ofício dos Mortos, seu formidável e suplicante “Dies iræ”; o “Parce Domine” implorando contra as calamidades públicas; o “Te Deum” fulgurante, sobre-humano das ações de graças com seu caráter épico, toda essa magnificência cantada, a Igreja Católica dá ao povo na magnificência monumental das catedrais, sob a magnificência radiosa dos vitrais” 1.
E a história, melhor conhecida, revela um outro fenômeno: que os mil anos de Idade Média tinham verdadeiramente vivido das recordações de Roma; que todo seu progresso, todas suas criações, toda sua busca de idéias tinha invocado Roma, nem sempre como ponto de partida, mas como reguladora e como defesa em face do Oriente e mesmo da Grécia, sempre tentada, desde o conquistador Alexandre, pelas vertigens do Oriente. Roma não era mais a descoberta da Renascença do século XVI: sabia-se agora que um milênio da história ocidental apegara-se a ela, do mesmo modo que Dante apegara-se à mão de Virgilio antes de explorar o mundo do invisível...
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A erudição mostrava que a Idade Média cristã sempre considerara o império de Roma como um fenômeno providencial para a expansão do cristianismo. Os primeiros apóstolos abandonaram rapidamente o Oriente: é à cabeça do mundo, é a Roma que Pedro e Paulo vinham pregar o Cristo2. E os historiadores e geógrafos revelaram que os apóstolos não puderam senão seguir as rotas, as pistas, as cidades traçadas e estabelecidas pelo extraordinário sucesso do Império. O plano de cristianização do mundo fora inicialmente delimitado pelas vitórias romanas.
(O poeta Péguy exprimirá este fato em uma fórmula fulgurante: “Os pés das legiões marcharam pelo Cristo”.)
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Sabemos que a Idade Média, seguindo os padres da Igreja, apresenta sinais de uma comovente piedade com respeito às recordações de Roma. Assinalava-se que, no Evangelho, um centurião romano mereceu este elogio do Cristo: “Nunca encontrei tamanha fé em Israel!” E que um outro centurião romano reconhecera — foi o primeiro — ao pé da Cruz, bem antes da Ressurreição, a divindade de Jesus: “Este homem era verdadeiramente o Filho de Deus!”.
O Cristo viera nascer em Belém, por ocasião de um decreto romano ordenando o recenseamento do mundo. E foi um governador romano, no momento de sua morte, que redigira a inscrição posta no topo da Cruz: “Jesus de Nazaré, rei dos Judeus!” Durante a cena dramática da Paixão, abandonado pelos discípulos, pelos amigos, pelo povo “eleito” que renegava sua missão, somente a administração de Roma pronunciava a palavra de Justiça: “Este homem é inocente... Dareis morte a um Justo...”(Apesar da covardia de Pilatos, esta dignidade devia-se a Roma, pois seu destino era proclamar a ordem e a justiça entre os homens.)
Mais tarde, São Paulo louvava sem parar, em meio às suas pregações, seu título de cidadão romano. No dia de seu martírio, ele lembrou que o deviam executar segundo o modo usual para os cidadãos do império.
Assim, por toda parte, os cristãos medievais reencontraram misteriosamente o destino de Roma cidade terrestre, entrelaçada ao caminho invisível da Cidade de Deus. Roma era a madrinha daqueles Gentios que substituíram o “povo eleito”, negador de sua Missão. Roma era o primeiro tutor terrestre da Igreja...
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Ela sempre deu testemunho de que a ordem e a justiça humanas são um excelente e sem dúvida necessário prefácio à expansão da caridade do Cristo. “Não vim destruir o que era antes de mim, dizia o Cristo, mas cumpri-lo...”
A Roma humana era a moldura perene da Roma cristã, Cidade invisível.
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Mas a erudição prosseguia em suas descobertas.
A organização formidável e sólida da Igreja romana antes era o decalque da do Império, genial administrador. O protestante Guizot honestamente constatava que uma Igreja unicamente ocupada a pregar às suas almas, sem procurar ter uma hierarquia, uma autoridade, uma disciplina, não poderia resistir nunca à dissolução da Europa no momento das invasões bárbaras. No seu curso de História moderna (1828-1830), Guizot destacava: “O cristianismo não era somente uma religião, era uma Igreja. Se não houvesse uma Igreja, não sei... o que teria acontecido durante a queda do império romano. Baseio-me somente em considerações puramente humanas... É claro que seria necessária uma sociedade fortemente organizada, governada, para lutar contra tal desastre, para sair vitoriosa de um tal furacão. Não creio exagerar, afirmando que no fim do século V fora a Igreja cristã que salvou o cristianismo. É a Igreja, com suas instituições, seus magistrados, seu poder, que se defendeu vigorosamente contra a dissolução interior do Império, contra a Barbárie que se apoderou dos Bárbaros, que se tornou o elo, o meio, o principio da civilização entre o mundo romano e o mundo bárbaro.”
* * *
E eis que outras reflexões, outros testemunhos, apontam para Roma, a partir de um país há muito tempo oriental, ou impregnado de influências bizantinas: Rússia. Na Revolução Francesa, muitos emigrantes foram para lá: aristocratas, como os amigos de Joseph de Maistre; jesuítas, que se tornaram preceptores na alta sociedade de Moscou e São Petersburgo. Sua influência durará.
Certos literatos russos do século XIX deram um excepcional testemunho: procurando analisar as diferenças entre sua nação e os estados europeus, descobriram que em grande parte se deviam ao cisma ortodoxo que, separando-os da Roma latina, fizeram com que perdessem para sempre os tesouros do pensamento ocidental. “Os povos da Europa ocidental, escrevia Pierre Tchaadaiev, possuem uma fisionomia comum, um ar de família... Mas, quanto a nós, relegados há dez séculos no nosso cisma, nada do que se passava na Europa chegava até nós...”
Assim, portanto, a latinidade era, durante séculos, o equivalente da civilização do Ocidente. E recordava-se, entre as guerras incessantemente renovadas, que somente Roma soube manter a paz, fazendo reinar em seu império a ordem e a justiça. A lembrança do Império fazia-se mais nostálgica. Ele tornava-se o modelo inigualável dos Estados, segundo a palavra do velho poeta gaulês de outrora:
De uma multidão de nações, soubeste fazer uma só cidade!
Ademais, era em latim que se redigiam as grandes obras do Direito, as leis que regiam a vida dos homens; em latim, redigiam-se tratados políticos onde as monarquias aprendiam as bases mesmas do governo; em latim, a ciência; em latim, a ordem; em latim, a força que faz a justiça.
* * *
Os espíritos cultos ajudados pelo progresso das ciências históricas reconhecem que a Igreja Católica Romana gozava de um extraordinário privilégio ao continuar a falar o latim. Ela guardava uma língua única por sua universalidade, por sua própria qualidade, por seu gênio. Manifestava uma gratidão fundamental, conservando uma herança civilizadora que servira de prefácio à sua fé; admitia, como o próprio Cristo, dar a César o que era de César. Testemunhava o formidável socorro que o cristianismo recebera, de súbito, no dia em que (depois de três séculos de perseguições e martírios) César pôde ser batizado!
Pois no império romano conquistado pelo batismo, a ordem da cidade terrestre viera então servir de abrigo à cidade de Deus.
(Le Latin Immortel, D.P.F., 1971, Chiré-en-Montreuil, cap. 8. Tradução: PERMANÊNCIA
HISTORIOGRAFIA DA EDUCAÇÃO NA AMÉRICA PORTUGUESA
HISTORIOGRAFIA DA EDUCAÇÃO NA AMÉRICA PORTUGUESA: BALANÇO E PERSPECTIVAS
RESUMO
Privilegiado pela historiografia brasileira de uma forma geral, o período colonial não desperta muito interesse nos historiadores da educação há várias décadas, ao contrário do que ocorre com o Império e o período republicano. Predominam ainda estudos realizados anteriormente aos anos 80 do século XX, concentrados, na sua maior parte, em análises sobre a atuação educacional da Companhia de Jesus no Brasil e nas reformas promovidas pela administração do Marquês de Pombal, na segunda metade do século XVIII. Em ambos os casos, muito raramente os estudos afastam-se de uma abordagem tradicional, que concentra as atenções na ação do Estado ou da Igreja, sem considerar outras dimensões dos processos educacionais possíveis na América portuguesa. Poucos são os estudos mais recentes que, não obstante procurem explorar mais verticalmente as fontes, avançam sensivelmente nas abordagens. Neste texto, em desenvolvimento, pretendo apresentar um balanço da historiografia da educação na América portuguesa, discutindo as características da produção sobre o período, as abordagens predominantes e suas matrizes explicativas, as fontes disponíveis e as possíveis razões para o papel secundário que a educação no período colonial ocupa na historiografia, salvo o destaque para alguns estudos sobre a história dos livros e da leitura, mas que não tratam a educação como objeto central . Pretendo, também, discutir algumas possibilidades de investigação, a partir de pressupostos teórico-metodológicos que têm sido utilizados em outros campos da pesquisa histórica sobre o período. Muitos desses pressupostos têm permitido o estabelecimento de olhares críticos sobre concepções bastante arraigadas na historiografia, como aquelas que vêm as relações polarizadas entre metrópole e colônia como indicativos de uma dependência absoluta da última em relação à primeira. Essa é uma das razões pelas quais os estudos sobre a educação colonial concentram-se nas ações do Estado ou da Igreja, como instâncias unicamente impositivas, não considerando outras possibilidades de conexões no mundo colonial, que envolvessem, inclusive, aquelas duas instituições. Deriva daí, por exemplo, a preferência de muitos historiadores contemporâneos, pela denominação “América portuguesa”, ao invés de “Brasil Colônia”, que seria mais coerente com as abordagens menos deterministas. O balanço historiográfico aqui proposto considerará a produção que abrange os séculos XVI a XVIII, destacando as regiões do Brasil mais contempladas pelas pesquisas, mas dando-se destaque para a produção referente à Capitania de Minas Gerais. As fontes utilizadas para este levantamento são livros, artigos, monografias, dissertações e teses sobre história da educação no período colonial, associadas a comentários acerca das fontes documentais utilizadas pelos autores apreciados. Por fim, com base em estudos mais recentes sobre a educação colonial, nas tendências da produção historiográfica mais geral sobre o período e em minhas investigações atuais, farei algumas considerações sobre as possibilidades de avanço na pesquisa sobre a educação no século XVIII, quanto às possibilidades de análise, quanto à exploração das fontes, sobretudo as escritas e as iconográficas, e quanto à disponibilidade documental nos nossos arquivos.
TRABALHO COMPLETO
Nos últimos anos verifica-se uma tendência à produção de balanços e análises de conjunto sobre a historiografia brasileira, refletindo os rumos recentemente tomados pela pesquisa histórica no Brasil, trazendo à tona temas e abordagens passados despercebidos ou pouco valorizados durante muito tempo. Obras como Domínios da História (CARDOSO & VAINFAS, 1997); Historiografia brasileira em perspectiva (FREITAS, 1998); Introdução ao Brasil: um banquete no trópico (MOTA, 1999); As identidades do Brasil (REIS, 1999); Historiadores do Brasil (IGLÉSIAS, 2000) e Revisão do Paraíso (DEL PRIORE, 2000), entre outros livros e artigos, têm procurado analisar a produção historiográfica brasileira, desde o século XIX, apontando os caminhos por ela traçados e as influências consolidadas.
A História da Educação só aparece como campo de apreciação historiográfica na coletânea Historiografia brasileira em perspectiva, estando assim ausente dos balanços que analisam os vários campos da investigação histórica no Brasil. Por outro lado, inúmeras têm sido as publicações atinentes especificamente à História da Educação que procuram realizar análises de conjunto sobre a produção. Temos, assim, algumas obras como História e História da Educação: o debate teórico-metodológico atual (SAVIANI; LOMBARDI & SANFELICE, 1998); História da Educação: perspectivas para um intercâmbio internacional (SANFELICE; SAVIANI & LOMBARDI, 1999); Educação no Brasil: história e historiografia (SBHE, 2001) e História da Educação (LOPES & GALVÃO, 2001), além de inúmeros artigos publicados em outras coletâneas e em periódicos. Tem sido também profícua a publicação de obras coletivas que reúnem trabalhos sobre temas e períodos específicos e outras que apresentam estudos temática e temporalmente diversos, como os recentes 500 anos de Educação no Brasil (LOPES; FARIA FILHO & VEIGA, 2000) e Brasil 500 anos: tópicas em História da Educação (VIDAL & HILSDORF, 2001).
Nas obras analíticas sobre a historiografia brasileira de uma forma geral, o período colonial tem sido particularmente privilegiado, sobretudo quando se fala em novos temas e novas abordagens e, neste sentido, não se pode deixar de mencionar a influência de determinadas vertentes, sobretudo daquela denominada de Nova História e à qual está identificada a História Cultural, campo no qual têm sido feitas algumas das mais expressivas pesquisas sobre a história colonial. Privilegiado pela historiografia brasileira de uma forma geral, o período colonial não tem, contudo, despertado muito interesse nos historiadores da educação há várias décadas, ao contrário do que ocorre com o Império e o período republicano.
Nos balanços historiográficos e coletâneas são raros os trabalhos sobre a educação antes da independência e mais raras ainda obras inteiras a ela dedicadas. Como exemplo, veja-se a publicação de trabalhos em três importantes congressos da área realizados recentemente, o III Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação (Coimbra, 2000), o I Congresso de Ensino e Pesquisa em História da Educação em Minas Gerais (Belo Horizonte, 2001) e o II Congresso Brasileiro de História da Educação (Natal, 2002)1.
Neles a proporção de trabalhos sobre o período colonial em relação ao total de inscritos e/ou apresentados varia de 1,63% a 1,97%, uma parcela mínima, portanto. A mesma tendência já havia sido observada no levantamento feito por Denice Catani e Luciano Mendes de Faria Filho sobre a produção em História da Educação apresentada no GT de História da Educação, nas reuniões da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação entre 1985 e 2000. Os trabalhos abrangendo o período entre os séculos XVI e XVIII representaram apenas 3,2% do total de 156.2
No conjunto da produção historiográfica sobre o período colonial predominam estudos realizados anteriormente aos anos 80 do século XX, concentrados, na sua maior parte, em análises sobre a atuação educacional da Companhia de Jesus no Brasil e nas reformas promovidas pela administração do Marquês de Pombal, na segunda metade do século XVIII.
Em ambos os casos, muito raramente os estudos afastam-se de uma abordagem tradicional, que concentra as atenções na ação do Estado ou da Igreja, sem considerar outras dimensões dos processos educativos possíveis na América portuguesa. Poucos são os estudos mais recentes que, não obstante procurem explorar mais verticalmente as fontes, avançam sensivelmente nas abordagens. Neste texto pretendo apresentar um breve balanço da historiografia da educação na América portuguesa, discutindo as características da produção sobre o período, as abordagens predominantes e suas matrizes explicativas, as fontes disponíveis e as possíveis razões para o papel secundário que a educação no período colonial ocupa na historiografia, salvo o destaque para alguns estudos sobre a história dos livros e da leitura, mas que não tratam a educação como objeto central.
Pretendo, também, discutir algumas possibilidades de investigação, a partir de pressupostos teórico-metodológicos que têm sido utilizados em outros campos da pesquisa histórica sobre o período.
Muitos desses pressupostos têm permitido o estabelecimento de olhares críticos sobre concepções bastante arraigadas na historiografia, como aquelas que vêm as relações polarizadas entre metrópole e colônia como indicativos de uma dependência absoluta da última em relação à primeira. Essa é uma das razões pelas quais os estudos sobre a educação colonial concentram-se nas ações do Estado ou da Igreja, como instâncias unicamente impositivas, não considerando outras possibilidades de conexões no mundo colonial, que envolvessem, inclusive, aquelas duas instituições.
1 III CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: Escolas, culturas e identidades. Coimbra: Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação/Universidade de Coimbra, 2000; LOPES, Ana Amélia Borges de Magalhães et.al. (orgs). História da Educação em Minas Gerais. Belo Horizonte:
FCH/FUMEC, 2002; II CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: História e memória da educação brasileira. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2002.
2 CATANI, Denice Barbara & FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Um lugar de produção e a produção de um lugar: história e historiografia da educação brasileira nos anos 80 e 90 – a produção divulgada no GT História da Educação. Caxambu: 24a. Reunião Anual da ANPED, 2001.
Não obstante tenham sido produzidos em momentos distintos, apóiam-se nessas diretrizes os trabalhos já clássicos: Instrução pública no Brasil, 1500-1889 (ALMEIDA, 2000 – texto original de 1889); Instrução pública nos tempos coloniaes do Brazil (D’AZEVEDO, 1892); Instrução pública na colônia e no império, 1500-1889 (BRIQUET, 1944); A educação no Brasil colonial (VIANNA, 1945); A reforma pombalina dos estudos secundários no Brasil (ANDRADE, 1978); As reformas pombalinas da instrução pública (CARVALHO, 1978); O ensino de ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil escravocrata (CUNHA, 2000). A maioria deles analisa a estrutura da educação escolar em Portugal e em seus domínios – e especialmente no Brasil – do ponto de vista da legislação, dos projetos governamentais, da tributação. Por isso mesmo, as fontes privilegiadas são as escritas oficiais, emanadas no Estado ou da Igreja: alvarás; cartas régias; cartas e ofícios trocados entre as autoridades metropolitanas e seus representantes no Brasil; legislação. Os trabalhos desses autores tratam a educação colonial de forma bastante generalizada, pouco se detendo nas especificidades das várias partes do Brasil daquele período e nas condições concretas de realização das determinações governamentais a respeito da instrução. Considerando os pressupostos que os orientam – de procurar preferencialmente pela educação escolar e pelas iniciativas oficiais no sentido de organizar, minimamente que fosse, esse tipo de educação – fica a idéia de uma relação uniforme entre a metrópole e as várias partes de seus domínios.
Algumas linhas mestras podem ser notadas desde os mais antigos textos, como o de José Ricardo Pires de Almeida, publicado originalmente em francês, em 1889. O caráter brutal e despótico da colonização explicaria, em parte, o desprezo da coroa portuguesa para com a instrução no Brasil, deixando esta tarefa aos jesuítas, apresentados com indisfarçáveis elogios ao seu pioneirismo e eficácia. A ênfase no papel da Companhia de Jesus reforça a visão da sua expulsão como tendo provocado a decadência da instrução na colônia, situação que começaria a se modificar somente com a vinda da corte para o Brasil, em 1808. Essa abordagem está presente em muitos dos textos escritos posteriormente, inclusive alguns muito recentes, publicados em periódicos, repetindo questões já questionadas e revistas pela historiografia do período colonial, como por exemplo, a da dependência e da dominação absoluta na relação colônia-metrópole. Alguns textos posteriores, como os de Laerte Ramos de Carvalho e de Antônio Alberto Banha de Andrade, centrados nas políticas pombalinas e marcados por uma atenção mais cuidadosa com a documentação, acabaram por confluir para conclusões muito próximas de seus antecessores, no que diz respeito à relação entre o Estado e a Igreja no âmbito da educação no período colonial.
Outros autores adotam uma postura similar porém contrária, ao valorizar mais enfaticamente a ação do Estado, especialmente durante a administração do Marquês de Pombal, em detrimento da ação da Igreja, apontada como obstáculo ao progresso cultural, em vista de sua resistência às idéias ilustradas, na segunda metade do século XVIII. Os jesuítas teriam sido, assim, os instrumentos do atraso cultural de Portugal, justificativa mais que suficiente para sua expulsão em 1759. O fato de que as políticas pombalinas em relação à educação não tivessem alcançado os resultados esperados não diminuiria a sua importância como tentativa de promoção do desenvolvimento do Império português. É o que observamos, por exemplo, no texto de Hélio Vianna, de 1945, marcado além de tudo, por indisfarçável ufanismo e pela visão evolucionista de história.
São textos evidentemente datados e inscritos numa tradição historiográfica na qual as instituições dominantes – o Estado e a Igreja – são os principais sujeitos. Concentram-se nas áreas onde a atuação dos jesuítas foi mais acentuada, tanto no que diz respeito à sua ação catequética junto aos indígenas, quanto na organização dos colégios, freqüentados pelas elites coloniais e, em geral, responsabilizam o governo português pelas falhas no tocante à educação, por considerá-la em sua perspectiva quase exclusivamente institucional, isto é, a educação escolar. Além disso, deixam entrever que seu olhar sobre o passado está fincado em concepções do presente, pois atribuem ao Estado funções que ele, efetivamente só assumiria com o fim do Antigo Regime, com o liberalismo, como a da organização de um sistema público de educação, por exemplo. Mesmo textos como os de Luiz Antônio Cunha, publicados originalmente no final da década de 1970 e que tratam do ensino dos ofícios mecânicos, são fundados em estudos bastante tradicionais sobre a educação na colônia e sobre a colonização de uma forma geral.
Nos últimos anos, alguns poucos estudos têm procurado aprofundar a análise das fontes, mas raramente investem na diversificação documental, procedendo a novas leituras de fontes já conhecidas, sob perspectivas de análise mais afinadas com a historiografia contemporânea. Em um dos mais recentes, As luzes da educação: fundamentos, raízes históricas e prática das aulas régias no Rio de Janeiro, 1759-1834 (CARDOSO, 2002), a autora estuda as aulas régias implantadas a partir das reformas pombalinas analisando, além das fontes já conhecidas e bastante utilizadas sobre o tema, documentos que ampliam a visão acerca do problema das situações cotidianas decorrentes da criação e funcionamento das referidas aulas (como requerimentos e cartas de professores), nos quadros do reformismo ilustrado e das condições específicas do Brasil, no seu processo de implantação. Dessa forma, é um dos poucos trabalhos sobre o período colonial que procura aproximar-se das questões propostas pela historiografia contemporânea, sobretudo em relação aos sujeitos que não são o Estado ou a Igreja, embora a eles se relacionem, explicitando suas referências em alguns dos importantes autores da História cultural, como Roger Chartier e Robert Darnton.3
Quanto à ação dos jesuítas, outro tema prestigiado nos estudos sobre a educação colonial, alguns textos recentes têm deixado um pouco de lado a questão formal dos métodos de ensino e das idéias pedagógicas para tratar das relações culturais inerentes ao processo de catequese no Brasil. O encontro entre as culturas, os processos de adaptação, as diferentes apropriações de uma pela outra, as práticas decorrentes dessas apropriações, são elementos presentes em trabalhos como A civilização pela palavra e Ratio studiorum e política católica ibérica no século XVII (HANSEN, 2000 e 2001) e Educação jesuítica no Brasil colonial (PAIVA, 2000). Há também aqui referências às abordagens da História cultural, bem como de autores que têm produzido importantes reflexões sobre a cultura escolar, como Dominique Juliá, por exemplo.4
Não obstante alguns avanços, é nítida a predominância dos dois temas clássicos da História da Educação no Brasil colonial, ou seja, a atuação dos jesuítas e as reformas pombalinas. Ainda, portanto, a Igreja e o Estado. A diversidade temática tem, na verdade, ficado por conta de trabalhos de historiadores de outros campos, mas que fazem referência à educação quando tratam de questões tais como a história dos livros e da leitura, a história das crianças e a história das mulheres ou a sociedade escravista. São estudos referenciados na História Cultural e suas várias propostas de abordagem, sobretudo em relação às práticas culturais e às representações coletivas envolvidas nas relações cotidianas estabelecidas entre grupos e indivíduos, envolvendo, também, o Estado e a Igreja, mas não exclusivamente. Alguns trabalhos são mais conhecidos, como os de Leila Mezan Algranti e Maria Beatriz Nizza da Silva, a respeito da educação feminina e masculina vistas no contexto da história da família5, ou de Luiz Carlos Villalta sobre os livros e a leitura no século XVIII.6 A contribuição desses estudos tem sido largamente reconhecida, porém pouco aproveitada pelos historiadores da educação como inspiração ou referência para a pesquisa sobre a educação no período colonial. Há ainda estudos mais pontuais, praticamente desconhecidos dos historiadores da educação, mas que tocam em questões de interesse para este campo quando analisam o trabalho em colégios jesuítas no Pará nos séculos XVII e XVIII, a atuação de escravos letrados em Minas Gerais no século XVIII, ou o ensino de artes e ofícios nas missões guaranis nas fronteiras do atual Rio Grande do Sul, nos séculos XVII e XVIII.7
O rompimento, portanto, com a predominância das abordagens tradicionais, centradas nas ações do Estado ou da Igreja implica também na discussão sobre o caráter do processo colonizador, ou mais especificamente, das relações entre as várias partes do Império português e as dinâmicas próprias de cada uma. Isso tem orientado inclusive a reflexão sobre a denominação a ser dada a este período histórico. Questão semântica para uns, metodológica para outros, a discussão sobre o uso dos termos “América portuguesa” ou “Brasil colônia” acentuou-se nos últimos anos, estimulada por pesquisas que têm posto em xeque algumas concepções há muito sedimentadas na historiografia brasileira.
3 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990; DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da História Cultural francesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
4JULIÁ, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação. Campinas, SP: Sociedade Brasileira de História da Educação: Autores Associados, n.1, jan/jun. 2001. p. 9-43.
Trata-se, principalmente, da definição de posicionamentos em relação não somente ao Brasil em si, quanto de sua inserção no conjunto dos domínios portugueses na época chamada de colonial.8 Para a pesquisa sobre o período isso significa considerar as múltiplas possibilidades de atuação da população colonial, nas várias dimensões do que seria o “viver em colônias” – segundo a expressão de Luiz dos Santos Vilhena, professor de grego da Bahia no século XVIII – nem sempre de acordo com o que se imagina fosse a posição de um “colono”. Essas possibilidades têm sido pesquisadas por muitos historiadores dedicados ao período colonial, tratando de temas que vão desde as estratégias sociais e culturais desenvolvidas por escravos, libertos e brancos pobres, mulheres e mestiços, até as ações dos grupos mais favorecidos na busca de privilégios e de inserção social e política em seus enfrentamentos com o Estado português.9
5 ALGRANTI, Leila Mezan. Educação feminina: vozes dissonantes no século XVIII e prática colonial. In: MONTEIRO, John Manuel & BLAJ, Ilana (orgs). História & Utopias. São Paulo: ANPUH, 1996; SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo: T.A. Queiroz Editor: Editora de Universidade de São Paulo, 1984.
6 VILLALTA, Luis Carlos. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: SOUZA, Laura de Mello e (org). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; VILLALTA, Luis Carlos. Os clérigos e os livros nas Minas Gerais da segunda
metade do século XVIII. Revista Acervo, Rio de Janeiro, v.8, n.1-2, jan/dez. 1995.
7 Sobre esses temas, ver respectivamente: GUZMAN, Décio. Festa, preguiça e matulagem: o trabalho nas oficinas indígenas de pintura e escultura do Colégio Santo Alexandre (Grão-Pará, séculos XVII e XVIII). IV Congresso Mediadores Culturais: Relações de trabalho e mestiçagem: maneiras de pensar e formas de viver – séculos XVI a XIX. Tiradentes, MG: CERMA/EHESS/UFMG, 2001; PAIVA, Eduardo França. Negros letrados, mestiços ouvintes: livros e trânsito cultural nas Minas setecentistas. I Colóquio sobre o livro e a imagem. Universidade Federal de Ouro Preto, 2001; NEUMANN, Eduardo. O trabalho dos Guaranis nas reduções do Paraguai colonial. In: PAIVA, Eduardo França & ANASTASIA, Carla Maria Junho (orgs). O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de viver – séculos XVI a XIX. São Paulo: Annablume: PPGH/UFMG, 2002.
8 Ver, sobre este debate: NOVAIS, Fernando. Condições de privacidade na colônia. In: SOUZA, Laura de Mello e (org). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; SOUZA, Laura de Mello e. Entrevista. Pós-História. Revista de Pós-Graduação em História. Assis, SP: Universidade Estadual Paulista, v.6, 1998; VAINFAS, Ronaldo. Entrevista. Pós- História. Revista de Pós-Graduação em História. Assis, SP: Universidade Estadual Paulista, v.6, 1998.
É inegável que, a se pensar na existência de um projeto, ou projetos de educação no Brasil, durante o período colonial, deve-se considerar a análise das questões da presença dos jesuítas na América portuguesa e da política mais sistemática implementada pela administração pombalina, na segunda metade do século XVIII. Se a educação no Brasil no período colonial parece limitada em termos de escolarização formal e sobretudo pública, em qualquer nível de ensino, não se pode dizer o mesmo de processos educativos mais amplos que, realizados intencionalmente ou não, implicavam no estabelecimento de relações nas quais alguma forma de saber circulava e era apropriado. Este processo ocorria, em geral, mas não exclusivamente, entre as pessoas de grupos sociais subalternos, no amplo espectro que incluía os brancos livres pobres, os indígenas, os negros livres e escravos e a população mestiça. Essa população estava quase sempre afastada da escola, ou pelas restrições impostas pelas condições materiais ou pelo preconceito. Brancos pobres raramente podiam freqüentá-la pela falta de recursos para sustentar a mobilidade exigida pelo sistema de aulas avulsas ou mesmo para o pagamento dos professores, quando o Estado não o fazia; os negros e mestiços, livres ou escravos, eram raramente admitidos nas escolas, sobretudo porque estavam associados ao trabalho manual e não deveriam dele ser apartados a fim de não prejudicar a produção e não degradarem o trabalho intelectual; os indígenas, quando não vinculados às escolas missionárias, estavam diante da mesma situação de rejeição e preconceito.
Mas, não obstante a exclusão do espaço escolar, uma parcela dessas populações envolveu-se em alguma forma de processo educativo e de muitas maneiras soube dele se beneficiar. Algumas situações têm sido pesquisadas de maneira mais sistemática, como as diversas formas do aprendizado profissional, perceptível em contextos distintos, como é o caso da formação dos oficiais mecânicos, sobretudo nos centros urbanos, onde oficinas e ateliês transformavam-se em espaços de circulação de saberes e de formação profissional. Em Minas Gerais, por exemplo, é conhecido o desenvolvimento dessas atividades, movidas por um mercado consumidor cada vez mais dinâmico envolvendo o que hoje chamaríamos de bens culturais, e a grande mobilidade de artistas e artesãos pelo território das minas setecentistas, promovendo o trânsito de saberes, técnicas e objetos. Os mais requisitados – impossível não citar Aleijadinho – mantinham oficinas e ateliês com ajudantes, que acabavam por tornar-se espaços de formação. A inexistência entre nós das corporações de ofício à moda européia – e conseqüentemente dos processos mais rígidos de formação e de controle profissional – criava ambientes mais flexíveis e plásticos, favorecendo múltiplas apropriações dos conhecimentos técnicos ali ensinados.
Se estes eram processos educativos vividos na dimensão privada, mais ainda o eram quando se tratava das relações familiares, quando filhos aprendiam seus ofícios com os pais. O processo de aprendizagem também se fazia pela consulta a modelos vindos da Europa, aqui recriados com o concurso das múltiplas referências culturais em permanente contato. Esse quadro permite-nos refletir sobre o papel desses indivíduos dedicados aos ofícios mecânicos em suas atividades não somente de produtores, mas também de transmissores de saberes técnicos, e o significado que sua mobilidade possa ter tido na circulação desses saberes no universo cultural colonial. Essa é uma reflexão a ser feita mediante a noção de mediadores culturais, os passeurs culturels, como a chamam seus principais formuladores, como o historiador do México colonial Serge Gruzinski.10 Essa noção tem sido utilizada recentemente por historiadores interessados na análise das sociedades mestiças coloniais americanas, e os mediadores podem ser entendidos como pessoas ou objetos capazes de aproximar hábitos, práticas, conhecimentos, fazendo-os misturarem-se, adquirirem novos significados, novas funções. Entre muitos campos da pesquisa histórica, a educação, entendida num sentido mais amplo, é particularmente privilegiada para a investigação à luz dessa noção, e os exemplos aqui utilizados indicam essas possibilidades.
9 Sobre estes temas ver, principalmente: ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998; FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
Os processos educativos na América portuguesa podiam ocorrer ainda em outras dimensões, as quais pode-se apontar, mesmo que brevemente. Ainda em relação ao mundo do trabalho e da produção, a aprendizagem técnica se dava em intensa movimentação de coisas e de pessoas, com o contributo de tradições culturais diversas em sua dimensão mais informal, ou mesmo com a utilização de recursos advindos da formalidade da produção intelectual, como é o caso dos manuais agrícolas encontrados no Brasil, procurados pelos fazendeiros interessados em melhorias em suas lavouras e criações, mas nem sempre úteis diante do pragmatismo dos conhecimentos desenvolvidos na relação direta com as condições concretas da terra. Ou no desenvolvimento de técnicas de mineração originárias da África, aprendidas pelos colonizadores no emprego da mão-de-obra vinda daquele continente, em detrimento de seus próprios conhecimentos e materiais. Os indígenas foram também educadores, bastando lembrar a importância de todo um conjunto de saberes aprendidos com eles e que foram cruciais para os exploradores do sertão, nos séculos XVII e XVIII, situação registrada por inúmeros viajantes estrangeiros que aqui estiveram e magistralmente analisada por Sérgio Buarque de Holanda no seu Caminhos e fronteiras.11
Não se deve pensar, contudo, que a educação escolar estivesse totalmente apartada dessas práticas mais flexíveis, dinâmicas e plurais, freqüentes na sociedade colonial brasileira. Os jesuítas são disso exemplo, pois souberam aproveitar-se de elementos da cultura indígena na construção de seus programas de catequese e empreenderam a organização dos aldeamentos levando em conta não apenas os saberes trazidos e ensinados por eles, como também se apropriando dos saberes nativos, estratégia que facilitou, sem dúvida, o processo educativo junto àquelas populações. O Brasil no período colonial não era, na prática, administrado como uma unidade em si mesmo e pensar a questão de projetos de educação nesta perspectiva particularizada é correr o risco do anacronismo, não obstante existisse uma política administrativa emanada da metrópole e teoricamente válida para todos os domínios portugueses. Não parece ser esta a idéia de Império privilegiada pelas historiografias brasileira e portuguesa contemporâneas, mais atentas à noção de um império descontínuo do ponto de vista geográfico e culturalmente plural. Os projetos de educação possíveis no período colonial consideraram, ora a dominação por meio da evangelização do gentio e pela homogeneização cultural via religião católica, ora a integração da América portuguesa e de sua população – sobretudo as elites e segmentos médios mestiços – ao Império, como forma de mantê-lo e de fazê-lo render benefícios para a metrópole. Em ambos os casos, seus idealizadores defrontaram-se com uma realidade que em quase tudo escapava à sua capacidade de previsão e lhes dificultava o controle.
A investigação sobre a educação no período colonial deve, assim, levar em conta a diversidade e as particularidades da sociedade brasileira de então, considerando-se, também, suas especificidades regionais. Isso significa colocar no centro das problematizações possíveis a existência de idéias acerca de uma educação escolar de matriz européia, calcada em seus modelos de civilidade e progresso, em seus preceitos políticos e morais, e sua implantação numa sociedade mestiça, que relia e reelaborava os pressupostos europeizantes, no contexto de práticas híbridas. Desta maneira, muitas práticas podiam adquirir novos significados, mesmo quando mantinham suas formas originais, incorporando valores advindos tanto de suas matrizes européias quanto de outras referências culturais.
Neste sentido, o papel de grupos e de indivíduos é crucial para a compreensão desses movimentos na perspectiva de mudanças e de permanências, atuando como mediadores entre tempos, espaços e culturas.
Entendo que o avanço e a inovação no estudo da educação no período colonial resulte da investigação de tais processos e práticas neste duplo movimento, isto é, do encontro entre uma educação escolar de modelo europeu com as referências culturais de outras origens em diversas partes da América portuguesa. Daí a necessidade de uma maior diversificação das fontes, de um movimento em direção àquelas que, muito embora já recorrentes em outros campos da pesquisa histórica, não chamaram a atenção dos historiadores da educação. Esse movimento requer, neste momento, um trabalho árduo de levantamento e identificação de documentos nos principais arquivos depositários de fontes do período colonial, ação indispensável para retirar da sombra informações dispersas e não imediatamente identificadas ao tema da educação, se entendidas numa perspectiva historiográfica de cunho tradicional.
Essa perspectiva que, na verdade, justifica, segundo muitos, as dificuldades encontradas na pesquisa sobre o período colonial. Para alguns, o problema estaria no difícil acesso às fontes e para outros à sua simples inexistência. O fato de que, dadas as características da estrutura política e administrativa do período, não houvesse, como para o Império e a República, setores governamentais claramente responsáveis pela instrução, não implica que não existam fontes e informações sobre o tema. Como diria o célebre arqueólogo do cinema, Indiana Jones, o “x” nunca marca o local de uma descoberta. A nós, historiadores, cabe utilizar as ferramentas adequadas para localizar as fontes e saber fazer-lhes perguntas.
10 GRUZINSKI, Serge. La colonización de lo imaginario: sociedades indígenas y occidentalización en el México español – siglos XVI-XVIII. Mexico, DF: Fondo de Cultura Económica, 1991; GRUZINSKI, Serge. O
pensamento mestiço. São Paulo; Companhia das Letras, 2001; TACHOT, Louise Bénat & GRUZINSKI, Serge (dir).Passeurs Culturels: mécanismes de métissage. Marne-la-Vallée: Presses Universitaires; Paris: Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme, 2001.
11 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Este é o trabalho foi realizado, no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação (GEPHE-FAE/UFMG) e que pretende disponibilizar um Guia de Fontes sobre a educação na Capitania de Minas Gerais, além, é claro, de gerar estudos sobre o tema, tendo como eixo central os processos e práticas educativas vistos à luz da História Cultural. Circunscrita, num primeiro momento, à antiga Comarca do Rio das Velhas que tinha a Vila de Sabará como sede, a investigação pretende, ainda, estimular o interesse dos jovens pesquisadores no estudo do período colonial que ainda é, como vimos, marginalizado na historiografia da educação. Além das fontes escritas, emanadas ou não das instituições dominantes (inventários e testamentos; correspondências e atas de reuniões das câmaras; registros de patentes e provisões; registros de licenças e alvarás; registros de despesas e prestações de contas; registros do subsídio literário; correspondências de governadores; requerimentos e petições; cartas régias; processos criminais; relatos de viagens; diários), têm que ser consideradas também as fontes iconográficas produzidas regiamente em Minas Gerais no século XVIII e início do século XIX, manifestações incomparáveis da cultura mestiça aqui desenvolvida.
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RESUMO
Privilegiado pela historiografia brasileira de uma forma geral, o período colonial não desperta muito interesse nos historiadores da educação há várias décadas, ao contrário do que ocorre com o Império e o período republicano. Predominam ainda estudos realizados anteriormente aos anos 80 do século XX, concentrados, na sua maior parte, em análises sobre a atuação educacional da Companhia de Jesus no Brasil e nas reformas promovidas pela administração do Marquês de Pombal, na segunda metade do século XVIII. Em ambos os casos, muito raramente os estudos afastam-se de uma abordagem tradicional, que concentra as atenções na ação do Estado ou da Igreja, sem considerar outras dimensões dos processos educacionais possíveis na América portuguesa. Poucos são os estudos mais recentes que, não obstante procurem explorar mais verticalmente as fontes, avançam sensivelmente nas abordagens. Neste texto, em desenvolvimento, pretendo apresentar um balanço da historiografia da educação na América portuguesa, discutindo as características da produção sobre o período, as abordagens predominantes e suas matrizes explicativas, as fontes disponíveis e as possíveis razões para o papel secundário que a educação no período colonial ocupa na historiografia, salvo o destaque para alguns estudos sobre a história dos livros e da leitura, mas que não tratam a educação como objeto central . Pretendo, também, discutir algumas possibilidades de investigação, a partir de pressupostos teórico-metodológicos que têm sido utilizados em outros campos da pesquisa histórica sobre o período. Muitos desses pressupostos têm permitido o estabelecimento de olhares críticos sobre concepções bastante arraigadas na historiografia, como aquelas que vêm as relações polarizadas entre metrópole e colônia como indicativos de uma dependência absoluta da última em relação à primeira. Essa é uma das razões pelas quais os estudos sobre a educação colonial concentram-se nas ações do Estado ou da Igreja, como instâncias unicamente impositivas, não considerando outras possibilidades de conexões no mundo colonial, que envolvessem, inclusive, aquelas duas instituições. Deriva daí, por exemplo, a preferência de muitos historiadores contemporâneos, pela denominação “América portuguesa”, ao invés de “Brasil Colônia”, que seria mais coerente com as abordagens menos deterministas. O balanço historiográfico aqui proposto considerará a produção que abrange os séculos XVI a XVIII, destacando as regiões do Brasil mais contempladas pelas pesquisas, mas dando-se destaque para a produção referente à Capitania de Minas Gerais. As fontes utilizadas para este levantamento são livros, artigos, monografias, dissertações e teses sobre história da educação no período colonial, associadas a comentários acerca das fontes documentais utilizadas pelos autores apreciados. Por fim, com base em estudos mais recentes sobre a educação colonial, nas tendências da produção historiográfica mais geral sobre o período e em minhas investigações atuais, farei algumas considerações sobre as possibilidades de avanço na pesquisa sobre a educação no século XVIII, quanto às possibilidades de análise, quanto à exploração das fontes, sobretudo as escritas e as iconográficas, e quanto à disponibilidade documental nos nossos arquivos.
TRABALHO COMPLETO
Nos últimos anos verifica-se uma tendência à produção de balanços e análises de conjunto sobre a historiografia brasileira, refletindo os rumos recentemente tomados pela pesquisa histórica no Brasil, trazendo à tona temas e abordagens passados despercebidos ou pouco valorizados durante muito tempo. Obras como Domínios da História (CARDOSO & VAINFAS, 1997); Historiografia brasileira em perspectiva (FREITAS, 1998); Introdução ao Brasil: um banquete no trópico (MOTA, 1999); As identidades do Brasil (REIS, 1999); Historiadores do Brasil (IGLÉSIAS, 2000) e Revisão do Paraíso (DEL PRIORE, 2000), entre outros livros e artigos, têm procurado analisar a produção historiográfica brasileira, desde o século XIX, apontando os caminhos por ela traçados e as influências consolidadas.
A História da Educação só aparece como campo de apreciação historiográfica na coletânea Historiografia brasileira em perspectiva, estando assim ausente dos balanços que analisam os vários campos da investigação histórica no Brasil. Por outro lado, inúmeras têm sido as publicações atinentes especificamente à História da Educação que procuram realizar análises de conjunto sobre a produção. Temos, assim, algumas obras como História e História da Educação: o debate teórico-metodológico atual (SAVIANI; LOMBARDI & SANFELICE, 1998); História da Educação: perspectivas para um intercâmbio internacional (SANFELICE; SAVIANI & LOMBARDI, 1999); Educação no Brasil: história e historiografia (SBHE, 2001) e História da Educação (LOPES & GALVÃO, 2001), além de inúmeros artigos publicados em outras coletâneas e em periódicos. Tem sido também profícua a publicação de obras coletivas que reúnem trabalhos sobre temas e períodos específicos e outras que apresentam estudos temática e temporalmente diversos, como os recentes 500 anos de Educação no Brasil (LOPES; FARIA FILHO & VEIGA, 2000) e Brasil 500 anos: tópicas em História da Educação (VIDAL & HILSDORF, 2001).
Nas obras analíticas sobre a historiografia brasileira de uma forma geral, o período colonial tem sido particularmente privilegiado, sobretudo quando se fala em novos temas e novas abordagens e, neste sentido, não se pode deixar de mencionar a influência de determinadas vertentes, sobretudo daquela denominada de Nova História e à qual está identificada a História Cultural, campo no qual têm sido feitas algumas das mais expressivas pesquisas sobre a história colonial. Privilegiado pela historiografia brasileira de uma forma geral, o período colonial não tem, contudo, despertado muito interesse nos historiadores da educação há várias décadas, ao contrário do que ocorre com o Império e o período republicano.
Nos balanços historiográficos e coletâneas são raros os trabalhos sobre a educação antes da independência e mais raras ainda obras inteiras a ela dedicadas. Como exemplo, veja-se a publicação de trabalhos em três importantes congressos da área realizados recentemente, o III Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação (Coimbra, 2000), o I Congresso de Ensino e Pesquisa em História da Educação em Minas Gerais (Belo Horizonte, 2001) e o II Congresso Brasileiro de História da Educação (Natal, 2002)1.
Neles a proporção de trabalhos sobre o período colonial em relação ao total de inscritos e/ou apresentados varia de 1,63% a 1,97%, uma parcela mínima, portanto. A mesma tendência já havia sido observada no levantamento feito por Denice Catani e Luciano Mendes de Faria Filho sobre a produção em História da Educação apresentada no GT de História da Educação, nas reuniões da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação entre 1985 e 2000. Os trabalhos abrangendo o período entre os séculos XVI e XVIII representaram apenas 3,2% do total de 156.2
No conjunto da produção historiográfica sobre o período colonial predominam estudos realizados anteriormente aos anos 80 do século XX, concentrados, na sua maior parte, em análises sobre a atuação educacional da Companhia de Jesus no Brasil e nas reformas promovidas pela administração do Marquês de Pombal, na segunda metade do século XVIII.
Em ambos os casos, muito raramente os estudos afastam-se de uma abordagem tradicional, que concentra as atenções na ação do Estado ou da Igreja, sem considerar outras dimensões dos processos educativos possíveis na América portuguesa. Poucos são os estudos mais recentes que, não obstante procurem explorar mais verticalmente as fontes, avançam sensivelmente nas abordagens. Neste texto pretendo apresentar um breve balanço da historiografia da educação na América portuguesa, discutindo as características da produção sobre o período, as abordagens predominantes e suas matrizes explicativas, as fontes disponíveis e as possíveis razões para o papel secundário que a educação no período colonial ocupa na historiografia, salvo o destaque para alguns estudos sobre a história dos livros e da leitura, mas que não tratam a educação como objeto central.
Pretendo, também, discutir algumas possibilidades de investigação, a partir de pressupostos teórico-metodológicos que têm sido utilizados em outros campos da pesquisa histórica sobre o período.
Muitos desses pressupostos têm permitido o estabelecimento de olhares críticos sobre concepções bastante arraigadas na historiografia, como aquelas que vêm as relações polarizadas entre metrópole e colônia como indicativos de uma dependência absoluta da última em relação à primeira. Essa é uma das razões pelas quais os estudos sobre a educação colonial concentram-se nas ações do Estado ou da Igreja, como instâncias unicamente impositivas, não considerando outras possibilidades de conexões no mundo colonial, que envolvessem, inclusive, aquelas duas instituições.
1 III CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: Escolas, culturas e identidades. Coimbra: Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação/Universidade de Coimbra, 2000; LOPES, Ana Amélia Borges de Magalhães et.al. (orgs). História da Educação em Minas Gerais. Belo Horizonte:
FCH/FUMEC, 2002; II CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: História e memória da educação brasileira. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2002.
2 CATANI, Denice Barbara & FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Um lugar de produção e a produção de um lugar: história e historiografia da educação brasileira nos anos 80 e 90 – a produção divulgada no GT História da Educação. Caxambu: 24a. Reunião Anual da ANPED, 2001.
Não obstante tenham sido produzidos em momentos distintos, apóiam-se nessas diretrizes os trabalhos já clássicos: Instrução pública no Brasil, 1500-1889 (ALMEIDA, 2000 – texto original de 1889); Instrução pública nos tempos coloniaes do Brazil (D’AZEVEDO, 1892); Instrução pública na colônia e no império, 1500-1889 (BRIQUET, 1944); A educação no Brasil colonial (VIANNA, 1945); A reforma pombalina dos estudos secundários no Brasil (ANDRADE, 1978); As reformas pombalinas da instrução pública (CARVALHO, 1978); O ensino de ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil escravocrata (CUNHA, 2000). A maioria deles analisa a estrutura da educação escolar em Portugal e em seus domínios – e especialmente no Brasil – do ponto de vista da legislação, dos projetos governamentais, da tributação. Por isso mesmo, as fontes privilegiadas são as escritas oficiais, emanadas no Estado ou da Igreja: alvarás; cartas régias; cartas e ofícios trocados entre as autoridades metropolitanas e seus representantes no Brasil; legislação. Os trabalhos desses autores tratam a educação colonial de forma bastante generalizada, pouco se detendo nas especificidades das várias partes do Brasil daquele período e nas condições concretas de realização das determinações governamentais a respeito da instrução. Considerando os pressupostos que os orientam – de procurar preferencialmente pela educação escolar e pelas iniciativas oficiais no sentido de organizar, minimamente que fosse, esse tipo de educação – fica a idéia de uma relação uniforme entre a metrópole e as várias partes de seus domínios.
Algumas linhas mestras podem ser notadas desde os mais antigos textos, como o de José Ricardo Pires de Almeida, publicado originalmente em francês, em 1889. O caráter brutal e despótico da colonização explicaria, em parte, o desprezo da coroa portuguesa para com a instrução no Brasil, deixando esta tarefa aos jesuítas, apresentados com indisfarçáveis elogios ao seu pioneirismo e eficácia. A ênfase no papel da Companhia de Jesus reforça a visão da sua expulsão como tendo provocado a decadência da instrução na colônia, situação que começaria a se modificar somente com a vinda da corte para o Brasil, em 1808. Essa abordagem está presente em muitos dos textos escritos posteriormente, inclusive alguns muito recentes, publicados em periódicos, repetindo questões já questionadas e revistas pela historiografia do período colonial, como por exemplo, a da dependência e da dominação absoluta na relação colônia-metrópole. Alguns textos posteriores, como os de Laerte Ramos de Carvalho e de Antônio Alberto Banha de Andrade, centrados nas políticas pombalinas e marcados por uma atenção mais cuidadosa com a documentação, acabaram por confluir para conclusões muito próximas de seus antecessores, no que diz respeito à relação entre o Estado e a Igreja no âmbito da educação no período colonial.
Outros autores adotam uma postura similar porém contrária, ao valorizar mais enfaticamente a ação do Estado, especialmente durante a administração do Marquês de Pombal, em detrimento da ação da Igreja, apontada como obstáculo ao progresso cultural, em vista de sua resistência às idéias ilustradas, na segunda metade do século XVIII. Os jesuítas teriam sido, assim, os instrumentos do atraso cultural de Portugal, justificativa mais que suficiente para sua expulsão em 1759. O fato de que as políticas pombalinas em relação à educação não tivessem alcançado os resultados esperados não diminuiria a sua importância como tentativa de promoção do desenvolvimento do Império português. É o que observamos, por exemplo, no texto de Hélio Vianna, de 1945, marcado além de tudo, por indisfarçável ufanismo e pela visão evolucionista de história.
São textos evidentemente datados e inscritos numa tradição historiográfica na qual as instituições dominantes – o Estado e a Igreja – são os principais sujeitos. Concentram-se nas áreas onde a atuação dos jesuítas foi mais acentuada, tanto no que diz respeito à sua ação catequética junto aos indígenas, quanto na organização dos colégios, freqüentados pelas elites coloniais e, em geral, responsabilizam o governo português pelas falhas no tocante à educação, por considerá-la em sua perspectiva quase exclusivamente institucional, isto é, a educação escolar. Além disso, deixam entrever que seu olhar sobre o passado está fincado em concepções do presente, pois atribuem ao Estado funções que ele, efetivamente só assumiria com o fim do Antigo Regime, com o liberalismo, como a da organização de um sistema público de educação, por exemplo. Mesmo textos como os de Luiz Antônio Cunha, publicados originalmente no final da década de 1970 e que tratam do ensino dos ofícios mecânicos, são fundados em estudos bastante tradicionais sobre a educação na colônia e sobre a colonização de uma forma geral.
Nos últimos anos, alguns poucos estudos têm procurado aprofundar a análise das fontes, mas raramente investem na diversificação documental, procedendo a novas leituras de fontes já conhecidas, sob perspectivas de análise mais afinadas com a historiografia contemporânea. Em um dos mais recentes, As luzes da educação: fundamentos, raízes históricas e prática das aulas régias no Rio de Janeiro, 1759-1834 (CARDOSO, 2002), a autora estuda as aulas régias implantadas a partir das reformas pombalinas analisando, além das fontes já conhecidas e bastante utilizadas sobre o tema, documentos que ampliam a visão acerca do problema das situações cotidianas decorrentes da criação e funcionamento das referidas aulas (como requerimentos e cartas de professores), nos quadros do reformismo ilustrado e das condições específicas do Brasil, no seu processo de implantação. Dessa forma, é um dos poucos trabalhos sobre o período colonial que procura aproximar-se das questões propostas pela historiografia contemporânea, sobretudo em relação aos sujeitos que não são o Estado ou a Igreja, embora a eles se relacionem, explicitando suas referências em alguns dos importantes autores da História cultural, como Roger Chartier e Robert Darnton.3
Quanto à ação dos jesuítas, outro tema prestigiado nos estudos sobre a educação colonial, alguns textos recentes têm deixado um pouco de lado a questão formal dos métodos de ensino e das idéias pedagógicas para tratar das relações culturais inerentes ao processo de catequese no Brasil. O encontro entre as culturas, os processos de adaptação, as diferentes apropriações de uma pela outra, as práticas decorrentes dessas apropriações, são elementos presentes em trabalhos como A civilização pela palavra e Ratio studiorum e política católica ibérica no século XVII (HANSEN, 2000 e 2001) e Educação jesuítica no Brasil colonial (PAIVA, 2000). Há também aqui referências às abordagens da História cultural, bem como de autores que têm produzido importantes reflexões sobre a cultura escolar, como Dominique Juliá, por exemplo.4
Não obstante alguns avanços, é nítida a predominância dos dois temas clássicos da História da Educação no Brasil colonial, ou seja, a atuação dos jesuítas e as reformas pombalinas. Ainda, portanto, a Igreja e o Estado. A diversidade temática tem, na verdade, ficado por conta de trabalhos de historiadores de outros campos, mas que fazem referência à educação quando tratam de questões tais como a história dos livros e da leitura, a história das crianças e a história das mulheres ou a sociedade escravista. São estudos referenciados na História Cultural e suas várias propostas de abordagem, sobretudo em relação às práticas culturais e às representações coletivas envolvidas nas relações cotidianas estabelecidas entre grupos e indivíduos, envolvendo, também, o Estado e a Igreja, mas não exclusivamente. Alguns trabalhos são mais conhecidos, como os de Leila Mezan Algranti e Maria Beatriz Nizza da Silva, a respeito da educação feminina e masculina vistas no contexto da história da família5, ou de Luiz Carlos Villalta sobre os livros e a leitura no século XVIII.6 A contribuição desses estudos tem sido largamente reconhecida, porém pouco aproveitada pelos historiadores da educação como inspiração ou referência para a pesquisa sobre a educação no período colonial. Há ainda estudos mais pontuais, praticamente desconhecidos dos historiadores da educação, mas que tocam em questões de interesse para este campo quando analisam o trabalho em colégios jesuítas no Pará nos séculos XVII e XVIII, a atuação de escravos letrados em Minas Gerais no século XVIII, ou o ensino de artes e ofícios nas missões guaranis nas fronteiras do atual Rio Grande do Sul, nos séculos XVII e XVIII.7
O rompimento, portanto, com a predominância das abordagens tradicionais, centradas nas ações do Estado ou da Igreja implica também na discussão sobre o caráter do processo colonizador, ou mais especificamente, das relações entre as várias partes do Império português e as dinâmicas próprias de cada uma. Isso tem orientado inclusive a reflexão sobre a denominação a ser dada a este período histórico. Questão semântica para uns, metodológica para outros, a discussão sobre o uso dos termos “América portuguesa” ou “Brasil colônia” acentuou-se nos últimos anos, estimulada por pesquisas que têm posto em xeque algumas concepções há muito sedimentadas na historiografia brasileira.
3 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990; DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da História Cultural francesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
4JULIÁ, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação. Campinas, SP: Sociedade Brasileira de História da Educação: Autores Associados, n.1, jan/jun. 2001. p. 9-43.
Trata-se, principalmente, da definição de posicionamentos em relação não somente ao Brasil em si, quanto de sua inserção no conjunto dos domínios portugueses na época chamada de colonial.8 Para a pesquisa sobre o período isso significa considerar as múltiplas possibilidades de atuação da população colonial, nas várias dimensões do que seria o “viver em colônias” – segundo a expressão de Luiz dos Santos Vilhena, professor de grego da Bahia no século XVIII – nem sempre de acordo com o que se imagina fosse a posição de um “colono”. Essas possibilidades têm sido pesquisadas por muitos historiadores dedicados ao período colonial, tratando de temas que vão desde as estratégias sociais e culturais desenvolvidas por escravos, libertos e brancos pobres, mulheres e mestiços, até as ações dos grupos mais favorecidos na busca de privilégios e de inserção social e política em seus enfrentamentos com o Estado português.9
5 ALGRANTI, Leila Mezan. Educação feminina: vozes dissonantes no século XVIII e prática colonial. In: MONTEIRO, John Manuel & BLAJ, Ilana (orgs). História & Utopias. São Paulo: ANPUH, 1996; SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil colonial. São Paulo: T.A. Queiroz Editor: Editora de Universidade de São Paulo, 1984.
6 VILLALTA, Luis Carlos. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: SOUZA, Laura de Mello e (org). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; VILLALTA, Luis Carlos. Os clérigos e os livros nas Minas Gerais da segunda
metade do século XVIII. Revista Acervo, Rio de Janeiro, v.8, n.1-2, jan/dez. 1995.
7 Sobre esses temas, ver respectivamente: GUZMAN, Décio. Festa, preguiça e matulagem: o trabalho nas oficinas indígenas de pintura e escultura do Colégio Santo Alexandre (Grão-Pará, séculos XVII e XVIII). IV Congresso Mediadores Culturais: Relações de trabalho e mestiçagem: maneiras de pensar e formas de viver – séculos XVI a XIX. Tiradentes, MG: CERMA/EHESS/UFMG, 2001; PAIVA, Eduardo França. Negros letrados, mestiços ouvintes: livros e trânsito cultural nas Minas setecentistas. I Colóquio sobre o livro e a imagem. Universidade Federal de Ouro Preto, 2001; NEUMANN, Eduardo. O trabalho dos Guaranis nas reduções do Paraguai colonial. In: PAIVA, Eduardo França & ANASTASIA, Carla Maria Junho (orgs). O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de viver – séculos XVI a XIX. São Paulo: Annablume: PPGH/UFMG, 2002.
8 Ver, sobre este debate: NOVAIS, Fernando. Condições de privacidade na colônia. In: SOUZA, Laura de Mello e (org). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; SOUZA, Laura de Mello e. Entrevista. Pós-História. Revista de Pós-Graduação em História. Assis, SP: Universidade Estadual Paulista, v.6, 1998; VAINFAS, Ronaldo. Entrevista. Pós- História. Revista de Pós-Graduação em História. Assis, SP: Universidade Estadual Paulista, v.6, 1998.
É inegável que, a se pensar na existência de um projeto, ou projetos de educação no Brasil, durante o período colonial, deve-se considerar a análise das questões da presença dos jesuítas na América portuguesa e da política mais sistemática implementada pela administração pombalina, na segunda metade do século XVIII. Se a educação no Brasil no período colonial parece limitada em termos de escolarização formal e sobretudo pública, em qualquer nível de ensino, não se pode dizer o mesmo de processos educativos mais amplos que, realizados intencionalmente ou não, implicavam no estabelecimento de relações nas quais alguma forma de saber circulava e era apropriado. Este processo ocorria, em geral, mas não exclusivamente, entre as pessoas de grupos sociais subalternos, no amplo espectro que incluía os brancos livres pobres, os indígenas, os negros livres e escravos e a população mestiça. Essa população estava quase sempre afastada da escola, ou pelas restrições impostas pelas condições materiais ou pelo preconceito. Brancos pobres raramente podiam freqüentá-la pela falta de recursos para sustentar a mobilidade exigida pelo sistema de aulas avulsas ou mesmo para o pagamento dos professores, quando o Estado não o fazia; os negros e mestiços, livres ou escravos, eram raramente admitidos nas escolas, sobretudo porque estavam associados ao trabalho manual e não deveriam dele ser apartados a fim de não prejudicar a produção e não degradarem o trabalho intelectual; os indígenas, quando não vinculados às escolas missionárias, estavam diante da mesma situação de rejeição e preconceito.
Mas, não obstante a exclusão do espaço escolar, uma parcela dessas populações envolveu-se em alguma forma de processo educativo e de muitas maneiras soube dele se beneficiar. Algumas situações têm sido pesquisadas de maneira mais sistemática, como as diversas formas do aprendizado profissional, perceptível em contextos distintos, como é o caso da formação dos oficiais mecânicos, sobretudo nos centros urbanos, onde oficinas e ateliês transformavam-se em espaços de circulação de saberes e de formação profissional. Em Minas Gerais, por exemplo, é conhecido o desenvolvimento dessas atividades, movidas por um mercado consumidor cada vez mais dinâmico envolvendo o que hoje chamaríamos de bens culturais, e a grande mobilidade de artistas e artesãos pelo território das minas setecentistas, promovendo o trânsito de saberes, técnicas e objetos. Os mais requisitados – impossível não citar Aleijadinho – mantinham oficinas e ateliês com ajudantes, que acabavam por tornar-se espaços de formação. A inexistência entre nós das corporações de ofício à moda européia – e conseqüentemente dos processos mais rígidos de formação e de controle profissional – criava ambientes mais flexíveis e plásticos, favorecendo múltiplas apropriações dos conhecimentos técnicos ali ensinados.
Se estes eram processos educativos vividos na dimensão privada, mais ainda o eram quando se tratava das relações familiares, quando filhos aprendiam seus ofícios com os pais. O processo de aprendizagem também se fazia pela consulta a modelos vindos da Europa, aqui recriados com o concurso das múltiplas referências culturais em permanente contato. Esse quadro permite-nos refletir sobre o papel desses indivíduos dedicados aos ofícios mecânicos em suas atividades não somente de produtores, mas também de transmissores de saberes técnicos, e o significado que sua mobilidade possa ter tido na circulação desses saberes no universo cultural colonial. Essa é uma reflexão a ser feita mediante a noção de mediadores culturais, os passeurs culturels, como a chamam seus principais formuladores, como o historiador do México colonial Serge Gruzinski.10 Essa noção tem sido utilizada recentemente por historiadores interessados na análise das sociedades mestiças coloniais americanas, e os mediadores podem ser entendidos como pessoas ou objetos capazes de aproximar hábitos, práticas, conhecimentos, fazendo-os misturarem-se, adquirirem novos significados, novas funções. Entre muitos campos da pesquisa histórica, a educação, entendida num sentido mais amplo, é particularmente privilegiada para a investigação à luz dessa noção, e os exemplos aqui utilizados indicam essas possibilidades.
9 Sobre estes temas ver, principalmente: ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998; FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.
Os processos educativos na América portuguesa podiam ocorrer ainda em outras dimensões, as quais pode-se apontar, mesmo que brevemente. Ainda em relação ao mundo do trabalho e da produção, a aprendizagem técnica se dava em intensa movimentação de coisas e de pessoas, com o contributo de tradições culturais diversas em sua dimensão mais informal, ou mesmo com a utilização de recursos advindos da formalidade da produção intelectual, como é o caso dos manuais agrícolas encontrados no Brasil, procurados pelos fazendeiros interessados em melhorias em suas lavouras e criações, mas nem sempre úteis diante do pragmatismo dos conhecimentos desenvolvidos na relação direta com as condições concretas da terra. Ou no desenvolvimento de técnicas de mineração originárias da África, aprendidas pelos colonizadores no emprego da mão-de-obra vinda daquele continente, em detrimento de seus próprios conhecimentos e materiais. Os indígenas foram também educadores, bastando lembrar a importância de todo um conjunto de saberes aprendidos com eles e que foram cruciais para os exploradores do sertão, nos séculos XVII e XVIII, situação registrada por inúmeros viajantes estrangeiros que aqui estiveram e magistralmente analisada por Sérgio Buarque de Holanda no seu Caminhos e fronteiras.11
Não se deve pensar, contudo, que a educação escolar estivesse totalmente apartada dessas práticas mais flexíveis, dinâmicas e plurais, freqüentes na sociedade colonial brasileira. Os jesuítas são disso exemplo, pois souberam aproveitar-se de elementos da cultura indígena na construção de seus programas de catequese e empreenderam a organização dos aldeamentos levando em conta não apenas os saberes trazidos e ensinados por eles, como também se apropriando dos saberes nativos, estratégia que facilitou, sem dúvida, o processo educativo junto àquelas populações. O Brasil no período colonial não era, na prática, administrado como uma unidade em si mesmo e pensar a questão de projetos de educação nesta perspectiva particularizada é correr o risco do anacronismo, não obstante existisse uma política administrativa emanada da metrópole e teoricamente válida para todos os domínios portugueses. Não parece ser esta a idéia de Império privilegiada pelas historiografias brasileira e portuguesa contemporâneas, mais atentas à noção de um império descontínuo do ponto de vista geográfico e culturalmente plural. Os projetos de educação possíveis no período colonial consideraram, ora a dominação por meio da evangelização do gentio e pela homogeneização cultural via religião católica, ora a integração da América portuguesa e de sua população – sobretudo as elites e segmentos médios mestiços – ao Império, como forma de mantê-lo e de fazê-lo render benefícios para a metrópole. Em ambos os casos, seus idealizadores defrontaram-se com uma realidade que em quase tudo escapava à sua capacidade de previsão e lhes dificultava o controle.
A investigação sobre a educação no período colonial deve, assim, levar em conta a diversidade e as particularidades da sociedade brasileira de então, considerando-se, também, suas especificidades regionais. Isso significa colocar no centro das problematizações possíveis a existência de idéias acerca de uma educação escolar de matriz européia, calcada em seus modelos de civilidade e progresso, em seus preceitos políticos e morais, e sua implantação numa sociedade mestiça, que relia e reelaborava os pressupostos europeizantes, no contexto de práticas híbridas. Desta maneira, muitas práticas podiam adquirir novos significados, mesmo quando mantinham suas formas originais, incorporando valores advindos tanto de suas matrizes européias quanto de outras referências culturais.
Neste sentido, o papel de grupos e de indivíduos é crucial para a compreensão desses movimentos na perspectiva de mudanças e de permanências, atuando como mediadores entre tempos, espaços e culturas.
Entendo que o avanço e a inovação no estudo da educação no período colonial resulte da investigação de tais processos e práticas neste duplo movimento, isto é, do encontro entre uma educação escolar de modelo europeu com as referências culturais de outras origens em diversas partes da América portuguesa. Daí a necessidade de uma maior diversificação das fontes, de um movimento em direção àquelas que, muito embora já recorrentes em outros campos da pesquisa histórica, não chamaram a atenção dos historiadores da educação. Esse movimento requer, neste momento, um trabalho árduo de levantamento e identificação de documentos nos principais arquivos depositários de fontes do período colonial, ação indispensável para retirar da sombra informações dispersas e não imediatamente identificadas ao tema da educação, se entendidas numa perspectiva historiográfica de cunho tradicional.
Essa perspectiva que, na verdade, justifica, segundo muitos, as dificuldades encontradas na pesquisa sobre o período colonial. Para alguns, o problema estaria no difícil acesso às fontes e para outros à sua simples inexistência. O fato de que, dadas as características da estrutura política e administrativa do período, não houvesse, como para o Império e a República, setores governamentais claramente responsáveis pela instrução, não implica que não existam fontes e informações sobre o tema. Como diria o célebre arqueólogo do cinema, Indiana Jones, o “x” nunca marca o local de uma descoberta. A nós, historiadores, cabe utilizar as ferramentas adequadas para localizar as fontes e saber fazer-lhes perguntas.
10 GRUZINSKI, Serge. La colonización de lo imaginario: sociedades indígenas y occidentalización en el México español – siglos XVI-XVIII. Mexico, DF: Fondo de Cultura Económica, 1991; GRUZINSKI, Serge. O
pensamento mestiço. São Paulo; Companhia das Letras, 2001; TACHOT, Louise Bénat & GRUZINSKI, Serge (dir).Passeurs Culturels: mécanismes de métissage. Marne-la-Vallée: Presses Universitaires; Paris: Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme, 2001.
11 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Este é o trabalho foi realizado, no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação (GEPHE-FAE/UFMG) e que pretende disponibilizar um Guia de Fontes sobre a educação na Capitania de Minas Gerais, além, é claro, de gerar estudos sobre o tema, tendo como eixo central os processos e práticas educativas vistos à luz da História Cultural. Circunscrita, num primeiro momento, à antiga Comarca do Rio das Velhas que tinha a Vila de Sabará como sede, a investigação pretende, ainda, estimular o interesse dos jovens pesquisadores no estudo do período colonial que ainda é, como vimos, marginalizado na historiografia da educação. Além das fontes escritas, emanadas ou não das instituições dominantes (inventários e testamentos; correspondências e atas de reuniões das câmaras; registros de patentes e provisões; registros de licenças e alvarás; registros de despesas e prestações de contas; registros do subsídio literário; correspondências de governadores; requerimentos e petições; cartas régias; processos criminais; relatos de viagens; diários), têm que ser consideradas também as fontes iconográficas produzidas regiamente em Minas Gerais no século XVIII e início do século XIX, manifestações incomparáveis da cultura mestiça aqui desenvolvida.
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sexta-feira, 15 de julho de 2011
CARTA A UM ANJO
"Já nao tenho dedos pra contar de quantos barrancos despenquei, de quantas pedras me atiraram.. ou quantas atirei" Lulu Santos
A calada da noite,
É quando as lembranças mais doem.
A lembrança de um carinho, uma palavra, um afago,
A saudade de um abraço
Que nunca mais terá.
Aí vem a tristeza
De ter perdido o ser mais importante do mundo...
Um ser iluminado...
Que te deu a vida!
E junto vem a saudade
Do colinho, do consolo, do afeto.
De alguém que, por você,
A vida entregaria a Deus sem pensar.
Com tudo isso vem o remorso,
De não dizer coisas que precisavam ser ditas,
Na hora em que era possível se dizer.
De dizer: “-obrigada por tudo!”
Por um tempo que nunca,
Nunca mais vai voltar.
Então vem a lição de vida,
Coisas que a gente só percebe quando perde,
As broncas sem sentido,
As mágoas que pareciam exageradas,
Mas quando a gente cresce...
Aprende a reconhecer o peso dos gestos
E a dureza das palavras.
Palavras que magoam, que ferem,
Palavras suaves que doem mais do
Que as pronunciadas rispidamente.
O problema de se esperar que o tempo conserte tudo,
É que o tempo não volta atrás.
E deixa uma angústia...
Tantos “Eu te amo” poderiam ser ditos,
Quantos pedidos de perdão deveriam ser feitos,
E ficaram perdidos por aí... No tempo!
O tempo não foi feito para consertar nada,
As atitudes sim.
Fazer o que tiver de ser feito hoje,
E amanhã colher a sensação de dever cumprido.
É assim que funciona.
Ou então, conviver com o vazio, com o arrependimento.
Eu queria que você ainda estivesse aqui.
Eu queria que você pudesse ver que eu aprendi a lição.
Eu queria você aqui para um último abraço,
Uma última risada.
Uma última oportunidade de dizer: Eu te amo!
Eu queria apenas que você pudesse me ouvir
A calada da noite,
É quando as lembranças mais doem.
A lembrança de um carinho, uma palavra, um afago,
A saudade de um abraço
Que nunca mais terá.
Aí vem a tristeza
De ter perdido o ser mais importante do mundo...
Um ser iluminado...
Que te deu a vida!
E junto vem a saudade
Do colinho, do consolo, do afeto.
De alguém que, por você,
A vida entregaria a Deus sem pensar.
Com tudo isso vem o remorso,
De não dizer coisas que precisavam ser ditas,
Na hora em que era possível se dizer.
De dizer: “-obrigada por tudo!”
Por um tempo que nunca,
Nunca mais vai voltar.
Então vem a lição de vida,
Coisas que a gente só percebe quando perde,
As broncas sem sentido,
As mágoas que pareciam exageradas,
Mas quando a gente cresce...
Aprende a reconhecer o peso dos gestos
E a dureza das palavras.
Palavras que magoam, que ferem,
Palavras suaves que doem mais do
Que as pronunciadas rispidamente.
O problema de se esperar que o tempo conserte tudo,
É que o tempo não volta atrás.
E deixa uma angústia...
Tantos “Eu te amo” poderiam ser ditos,
Quantos pedidos de perdão deveriam ser feitos,
E ficaram perdidos por aí... No tempo!
O tempo não foi feito para consertar nada,
As atitudes sim.
Fazer o que tiver de ser feito hoje,
E amanhã colher a sensação de dever cumprido.
É assim que funciona.
Ou então, conviver com o vazio, com o arrependimento.
Eu queria que você ainda estivesse aqui.
Eu queria que você pudesse ver que eu aprendi a lição.
Eu queria você aqui para um último abraço,
Uma última risada.
Uma última oportunidade de dizer: Eu te amo!
Eu queria apenas que você pudesse me ouvir
SUPERSTIÇÕES, PECADO E NÍVEIS DE CULTURA NA IDADE MÉDIA
O CASO DA ADORAÇÃO DO CÃO GUINEFORT (FRANÇA, SÉCULO XIII)
Gisele Finatti Baraglio
Resumo: O artigo examina um excerto escrito pelo bispo dominicano Étienne de Bourbon que narra a adoração do Cão de Guinefort. Para a interpretação do que é descrito pelo clérigo são expostas noções das diferentes concepções do que era superstição, utilizando principalmente Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. A procedência do culto e das superstições é discutida, assim como os níveis de cultura envolvidos, com a identificação de um nível comum e intermediário e das relações constituídas. Também é estabelecida uma relação entre as superstições e o pecado, e algumas das consequências da obrigatoriedade das confissões. Com estas análises, este trabalho retrata certas características da religiosidade e da religião no século XIII.
Palavras-chave: Século XIII; Dominicanos; Superstição ou Crença; Santidade oficial ou local.
Neste texto vamos tratar do excerto “Da adoração do cão Guinefort”, escrito por Étienne de Bourbon, um bispo dominicano, inquisidor e pregador, durante o século XIII. Nele é narrada uma história que envolve superstição e uma dita idolatria, condenada pela Igreja e pelos padres. Porém, o conceito de superstição, assim como a prática do que era concebido como tal, teve profundas alterações no tempo, sendo necessária uma noção destas mudanças.
Segundo Schmitt, de um modo geral, superstição poderia ser concebida como relacionar uma causalidade com atos considerados significativos noção que sobrevive até com as atuais concepções científicas e técnicas. Émile Benveniste considera que a palavra superstitio teria origem em super-stare (estar acima de), que designaria uma condição de testemunha (superstes), “quem, por ter ‘sobrevivido’ a um acontecimento passado, pode atestar que este teve realmente lugar” (BENVENISTE, apud, SCHMITT, 1997, p.15). Esta palavra adquire significado religioso somente a partir da era romana, com o registro da concepção de Cícero, para quem supersticiosos seriam pessoas que todos os dias dedicavam orações ou sacrifícios para garantir a sobrevivência dos filhos (SCHMITT, 1997, p.16).
Seu significado torna-se aposto a religio, a maneira apropriada de se reunir, segundo as regras, em contraposição à superstição, supérflua e exagerada.
O cristianismo herda a palavra, noções e valores que esta carregava. Lactâncio, porém, nega as etimologias de Cícero - defende que todos esperam que seus filhos sobrevivam – considerando que os supersticiosos seriam, na verdade, aqueles que veneram a memória de defuntos ou prestam culto doméstico à imagem de seus pais. Esta concepção acabava por condenar (ainda mais) práticas pagãs, pois, tradicionalmente, em Roma o pater famílias era o encarregado do culto dos antepassados (sacra familae) e, segundo Geza Alföldy (1989), “eram seus antepassados, e a sua glória garantia o prestígio dos seus descendentes” (p.51). Após Lactâncio, permanece somente o significado negativo de superstição, que seria a adoração do falso, oposta a religião, a adoração do verdadeiro Deus. Sua condenação bíblica está na Epístola aos Colossenses (2, 23), da Vulgata, tradução de São Jerônimo da Bíblia, quando São Paulo adverte os batizados para não irem para o caminho errado da religiosidade, ou “in superstitione” (apud SCHMITT, 1997, p.17).
Um importante teórico para entender a concepção e condenação da superstição é Santo Agostinho. Para ele, as superstições seriam as sobrevivências de práticas e crenças que o cristianismo aboliu, podendo ser pagãs, como a idolatria (adoração de ídolos e criaturas), ou judaicas, como a circuncisão. Ele também é o responsável pela ligação entre a demonologia e a superstição, a sedução diabólica (que seria até mesmo a causa do pecado original). Satã, expulso do paraíso, ressentido com os homens, que foram criados para ocupar o lugar vago neste, esforça-se para incitar os homens ao pecado, à idolatria e às superstições, com o propósito de voltar Adão contra seu criador.
Para Agostinho, as últimas seriam códigos, signos convencionais usados entre os homens e o demônio para se comunicarem, com a noção de um pacto entre ambos. A partir disso, o clérigo faz uma lista das superstições que devem ser evitadas e repudiadas. Segundo Agostinho, estas poderiam ocorrer por defeito (um culto prestado a Deus que seria indigno) ou excesso (idolatria), e o pacto com o demônio poderia ocorrer de uma forma “passiva”, por conivência na falta de precaução, ou por um pacto consciente.
A Igreja condena as superstições, inicialmente, por serem uma sobrevivência pagã. Havia uma grande oposição entre meios “culturalmente privilegiados”, que eram minoritários e a massa do povo, questão que no seu âmbito cultural será abordada adiante. O povo, “entregue a si mesmo” nos campos, acaba vivenciando a recuperação da vitalidade das religiões antigas, como a Celta, marcando uma oposição entre urbani e rustici. O exemplo disto é a palavra paganus, que origina, em francês, simultaneamente, paysan (camponês) e païen (pagão).
No ano de 1215, a obrigação da confissão auricular anual, decidida pelo cânone 21 do Concílio de Latrão IV, dá aos padres “um meio de controle pessoal, íntimo, de cada fiel” (SCHMITT, 1997, p.105). Neste contexto, surgem especialista na penitência e pregação, entre eles os dominicanos, que estabelecem, entre 1222 e 1233, junto com outras ordens, o novo procedimento da Inquisição, ordenados pelo Papa. A reflexão teológica e canônica das superstições foi colocada na prática com o sacramento da penitência, e há uma multiplicação dos manuais de confessores. O excerto analisado é posterior a este cânone, e o próprio Étienne de Bourbon descobriu o caso de superstição relatado através de uma confissão.
São Tomás de Aquino também é importante para entender esse novo contexto do século XIII e suas implicações no campo religioso. No campo das superstições, ele conserva somente aquela que, segundo Agostinho, ocorre por excesso (idolatria), e defende que aquele que cai nas armadilhas do Diabo é porque as procurou, abandonando o pacto por conivências. São Tomás de Aquino considera supersticiosas pessoas que fazem o pacto intencionalmente, o que, deste modo, contribui para justificar e conduzir ao desenvolvimento de uma maior repressão aos casos mais graves.
O escritor da fonte aqui analisada pertencia à ordem dominicana, criada por São Domingos de Gusmão, em 1216, aprovada pelo Papa Inocêncio III. O pontífice máximo, mesmo limitado pelo então recente Concílio de Latrão (que proibia a aprovação de novas ordens), apoiou o projeto de Domingos de criação de uma ordem, desde que seus membros adotassem a regra de Santo Agostinho. Tal projeto surgiu quando o último e seu bispo, Diego, passavam pelo sul da França e depararam-se com uma guerra civil, proporcionada pelas influências heréticas dos albigienses e cátaros.
Nem mesmo a pregação dos legados do Papa solucionara tal problema, uma vez que se apresentavam com todas as suas honras, mordomias e autoridades perante heréticos que pregavam e viviam uma vida de simplicidade, informalismo e cujas teorias consistiam num cristianismo com base na humildade e vida comunitária. Assim, Diego e Domingos iniciaram a pregação utilizando-se destes mesmos princípios, e obtiveram sucesso. Esta pregação deveria se basear numa formação teológica e ser apresentada na forma de um discurso racional.
Neste contexto do século XIII, Étienne de Bourbon, como pregador e inquisidor dominicano, lutou contra as superstições e foi responsável por diversos exempla que tratavam destas na vida cotidiana. Ele faz parte do grupo de clérigos que contribuíram com testemunhos escritos de práticas concretas, observadas ou contadas por testemunhas ditas de “boa fé”. O autor não acreditava em adivinhos, nem que estes tinham poderes diabólicos. Porém, tudo indica que o clérigo (assim como a maior parte dos membros eclesiásticos) acreditava no caráter demoníaco das superstições, do pacto com o demônio. Na época de Étienne, a questão já não é mais condenar as sobrevivências (excessivas) do paganismo, mas perseguir as superstições nas práticas legítimas: nos sacramentos, nos cemitérios, e na própria instituição (Igreja). Entre os fiéis havia uma “ânsia pela santidade”, segundo Schmitt (1997, p.128), em que os mais
supersticiosos seriam cristãos.
A adoração do cão de Guinefort seria um “culto selvagem”, a adoração de um santo local, configurando um rito diabólico, (supostamente) uma “sobrevivência do paganismo”, mas possui uma estreita relação com a superstição dentro da Igreja. O culto, na descrição de Étienne, se baseava na crença de que os espíritos da floresta (changelings, faunos) substituíam uma criança sã por uma enferma e demoníaca (assim explicando a doença das crianças, a adversidade biológica). Para devolver a criança roubada era necessário um ritual que obrigasse os espíritos a fazer a troca. A prática era muito semelhante a uma cristã, da “humilhação dos santos”, especificamente a do constrangimento da Virgem. Ao ter seu filho raptado, uma fiel censura a Virgem, dirigindo-se à estátua desta, que não protegeu a criança mesmo com a devoção da mãe, que toma o Menino Jesus da estátua. A Virgem aparece ao filho prisioneiro, o liberta, e manda este dizer à sua mãe que devolva o Menino Jesus. Jean Claude Schmitt (1997) discorda de uma sobrevivência pagã do culto ao Santo Guinefort, defendendo que este teria surgido entre os séculos XI-XII, “no momento em que se estabeleceram as estruturas sociais e o povoamento característico do período feudal” (p.129).
As semelhanças entre as duas práticas têm relação direta com o embate entre a cultura clerical e outra vulgar, com uma excelente explicação feita por Hilário Fraco Júnior: “religiosidade popular não é aquela que se identifica com um grupo social, ou que teve origem nele, mas sim aquela que nas suas manifestações popularizou elementos de diversas procedências” (FRANCO JÚNIOR, 1990, p.41). No caso apresentado pelo excerto, observam-se facilmente as manifestações popularizadas que possuem uma procedência cristã de idolatria e superstição dentro da própria Igreja, no exagero do culto aos santos, imagens e relíquias.
As práticas são descritas por Étienne de Bourbon como populares (por mais que ele não utilize o termo), e as personagens são caracterizadas de forma caricata, como era típico na Idade Média, com traços gerais de um grupo. São representantes de uma cultura vulgar, mas que possuem claramente elementos de uma cultura eclesiástica, que por sua vez, também tem elementos “populares”. Novamente, recorremos a uma passagem elucidativa de Hilário Franco Júnior: “Mas percebe então claramente que cultura erudita e cultura popular não podem ser vistas como elementos opostos e impermeáveis” (FRANCO JÚNIOR, 1996, p.34). Ou seja, a distinção entre superstição e liturgia oficial da Igreja é polarizada, entre vulgar e eclesiástica, mas estas possuem um grande “núcleo comum”, trocas e relações muito mais complexas do que este sistema binário aparenta. Este núcleo comum seria um “nível intermediário”, onde
elementos de diversos polos culturais se encontram, demonstrando que suas características não são exclusivas de um determinado grupo social ou povo. A necessidade de um ato mágico para a cura, o uso de ervas acompanhado de uma manifestação religiosa, por exemplo, era aceita pelo clero e pelos ditos supersticiosos; porém, para o clero esta devia ser uma prece, enquanto na cultura vulgar seriam “encantações”. O papel enquanto religião seria igual, mas a ideologia seria diferente, segundo conceitos de Hilário Franco Júnior (1996, p.37).
Havia uma concorrência entre a cultura folclórica e a eclesiástica pelos lugares sagrados, principalmente o espaço dos mortos, e o controle destes, e também dos santos e sua adoração. O constrangimento da Virgem foi condenado no concílio de Lyon de 1247, e tal fato provavelmente impulsionou a procura de feiticeiras no objetivo de resolver as adversidades biológicas, como doenças, mesmo havendo práticas para estas proporcionadas pelo clero.
“Da adoração do cão Guinefort” exemplifica satisfatoriamente os métodos utilizados para combater a superstição. Ao destruir o local de culto, o clérigo cumpre seu papel de inquisidor e pregador, proibindo a prática, exumando o cachorro, tomando medidas junto com os “senhores da terra” para evitar a continuidade do rito e pregando contra tudo o que foi dito. Ficam explícitos os procedimentos utilizados, a pregação para convencer e persuadir os supersticiosos, a destruição do local de culto, e medidas junto a estâncias temporais do poder.
Durante a etapa anterior, o combate ao paganismo, ocorria, além da destruição do templo ou ídolo pagão, a construção de uma igreja católica para substituir o antigo culto. Conforme o excerto, o cão é tratado como um santo, tendo diversas analogias com o rito ecumênico, sendo condenado por ser um animal, elemento que é próximo da idolatria pagã e, obviamente, por não ser oficializado pela Igreja. Deus destruiu o castelo e tornou a área deserta, mas nem mesmo isso, nem as medidas tomadas pelo clérigo, impediram os camponeses de irem ao local e realizarem práticas supersticiosas. Segundo Jean Claude Schmitt, o culto foi verificado até mesmo no início do século XX! O rito lembra muito a concepção de Cícero, por mais afastada e fora de contexto que se encontre em relação à época. O ocorrido realmente é a tentativa de salvação dos filhos, o que reforça a impressão de que o conceito dado por Lactâncio era restrito somente à condenação do paganismo. Porém, a superstição no século XIII não era uma prática somente com este intento, podendo ser vista como uma contestação do monopólio eclesiástico (e masculino) dos atos mágicos para a cura e uma resposta para a abolição do Constrangimento da Virgem.
Vale ressaltar que os supersticiosos eram pecadores. Qual o pecado que cometiam? A soberba, consistindo em colocar os demônios e ídolos acima de Deus, e os interesses individuais acima dos divinos. Como relata Étienne, referindo-se às superstições: “São ultrajantes a Deus as superstições que atribuem honras divinas aos demônios ou a outra criatura qualquer” (BOURBON apud DUBY, 1990, p. 37). Os supersticiosos, na concepção eclesiástica, se considerariam dignos de receberem honras divinas de criaturas demoníacas, sendo este um ato de arrogância, de soberba. Além disso, segundo as tradições, este pecado estaria relacionado ao original. Como já foi dito acima, nas narrativas e origens da superstição, o pecado original é colocado como uma tentação de Lúcifer, invejoso da posição do homem no paraíso, que o tenta para as superstições.
As superstições passaram por diversas compreensões e ações combativas por parte da Igreja durante a Idade Média e a partir da breve noção de como esta era concebida em momentos distintos, podemos dizer que o relato de Ètienne é mais do que uma história sobre idolatria. Trata-se de uma acusação da soberba, o pecado dos supersticiosos, e uma afirmação das pregações moralistas que ocorreram no século XIII, principalmente com as ordens dominicanas e franciscanas, e uma prova de que a divisão binária e simplista da cultura pode esconder uma interrelação e complexidade enormes.
O excerto demonstra a manifestação de um nível cultural intermediário, a ação dos dominicanos de aculturação e imposição ideológica, que esconde uma identificação nas concepções e sentimentos comuns entre o que era tido como supersticioso e o que era canonizado.
Superstitions, sin and cultural levels in the Middle Age: The case of the Guinefort’s
dog worship (France, XIII Century)
Abstract: The article examines an excerpt written by the Dominican bishop Étienne de Bourbon, that tells the worship of the Dog from Guinefort. For the interpretation of what the priest described, slight knowledge of the different conceptions of what were the concept of superstition, using mainly Saint Augustin and Saint Thomas Aquinas. The origin of the cult and the superstitions is argued, as well as the involved levels of culture, with the identification of a common and intermediate cultural level and of the established relations. Also it is established a relation between the superstitions and the sin, and some of the consequences of the obligatoriness of the confessions. With these analyses, the article portrays certain characteristics of the religiosity and the religion in XIII century.
Keywords: XIII Century; Dominicans; Superstition/Faith; Official/Local Sanctity.
Referências
ALFÖLDY, G. A História social de Roma. Lisboa: Presença, 1989.
DUBY, Georges. A Europa na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
FRANCO JÚNIOR, H. A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São Paulo:
Edusc, 1996.
FRANCO JÚNIOR, H. Peregrinos, monges e guerreiros. São Paulo: Hucitec, 1990.
SCHMITT, J.C. História das superstições. Lisboa: Europa-América, 1997.
Gisele Finatti Baraglio
Resumo: O artigo examina um excerto escrito pelo bispo dominicano Étienne de Bourbon que narra a adoração do Cão de Guinefort. Para a interpretação do que é descrito pelo clérigo são expostas noções das diferentes concepções do que era superstição, utilizando principalmente Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. A procedência do culto e das superstições é discutida, assim como os níveis de cultura envolvidos, com a identificação de um nível comum e intermediário e das relações constituídas. Também é estabelecida uma relação entre as superstições e o pecado, e algumas das consequências da obrigatoriedade das confissões. Com estas análises, este trabalho retrata certas características da religiosidade e da religião no século XIII.
Palavras-chave: Século XIII; Dominicanos; Superstição ou Crença; Santidade oficial ou local.
Neste texto vamos tratar do excerto “Da adoração do cão Guinefort”, escrito por Étienne de Bourbon, um bispo dominicano, inquisidor e pregador, durante o século XIII. Nele é narrada uma história que envolve superstição e uma dita idolatria, condenada pela Igreja e pelos padres. Porém, o conceito de superstição, assim como a prática do que era concebido como tal, teve profundas alterações no tempo, sendo necessária uma noção destas mudanças.
Segundo Schmitt, de um modo geral, superstição poderia ser concebida como relacionar uma causalidade com atos considerados significativos noção que sobrevive até com as atuais concepções científicas e técnicas. Émile Benveniste considera que a palavra superstitio teria origem em super-stare (estar acima de), que designaria uma condição de testemunha (superstes), “quem, por ter ‘sobrevivido’ a um acontecimento passado, pode atestar que este teve realmente lugar” (BENVENISTE, apud, SCHMITT, 1997, p.15). Esta palavra adquire significado religioso somente a partir da era romana, com o registro da concepção de Cícero, para quem supersticiosos seriam pessoas que todos os dias dedicavam orações ou sacrifícios para garantir a sobrevivência dos filhos (SCHMITT, 1997, p.16).
Seu significado torna-se aposto a religio, a maneira apropriada de se reunir, segundo as regras, em contraposição à superstição, supérflua e exagerada.
O cristianismo herda a palavra, noções e valores que esta carregava. Lactâncio, porém, nega as etimologias de Cícero - defende que todos esperam que seus filhos sobrevivam – considerando que os supersticiosos seriam, na verdade, aqueles que veneram a memória de defuntos ou prestam culto doméstico à imagem de seus pais. Esta concepção acabava por condenar (ainda mais) práticas pagãs, pois, tradicionalmente, em Roma o pater famílias era o encarregado do culto dos antepassados (sacra familae) e, segundo Geza Alföldy (1989), “eram seus antepassados, e a sua glória garantia o prestígio dos seus descendentes” (p.51). Após Lactâncio, permanece somente o significado negativo de superstição, que seria a adoração do falso, oposta a religião, a adoração do verdadeiro Deus. Sua condenação bíblica está na Epístola aos Colossenses (2, 23), da Vulgata, tradução de São Jerônimo da Bíblia, quando São Paulo adverte os batizados para não irem para o caminho errado da religiosidade, ou “in superstitione” (apud SCHMITT, 1997, p.17).
Um importante teórico para entender a concepção e condenação da superstição é Santo Agostinho. Para ele, as superstições seriam as sobrevivências de práticas e crenças que o cristianismo aboliu, podendo ser pagãs, como a idolatria (adoração de ídolos e criaturas), ou judaicas, como a circuncisão. Ele também é o responsável pela ligação entre a demonologia e a superstição, a sedução diabólica (que seria até mesmo a causa do pecado original). Satã, expulso do paraíso, ressentido com os homens, que foram criados para ocupar o lugar vago neste, esforça-se para incitar os homens ao pecado, à idolatria e às superstições, com o propósito de voltar Adão contra seu criador.
Para Agostinho, as últimas seriam códigos, signos convencionais usados entre os homens e o demônio para se comunicarem, com a noção de um pacto entre ambos. A partir disso, o clérigo faz uma lista das superstições que devem ser evitadas e repudiadas. Segundo Agostinho, estas poderiam ocorrer por defeito (um culto prestado a Deus que seria indigno) ou excesso (idolatria), e o pacto com o demônio poderia ocorrer de uma forma “passiva”, por conivência na falta de precaução, ou por um pacto consciente.
A Igreja condena as superstições, inicialmente, por serem uma sobrevivência pagã. Havia uma grande oposição entre meios “culturalmente privilegiados”, que eram minoritários e a massa do povo, questão que no seu âmbito cultural será abordada adiante. O povo, “entregue a si mesmo” nos campos, acaba vivenciando a recuperação da vitalidade das religiões antigas, como a Celta, marcando uma oposição entre urbani e rustici. O exemplo disto é a palavra paganus, que origina, em francês, simultaneamente, paysan (camponês) e païen (pagão).
No ano de 1215, a obrigação da confissão auricular anual, decidida pelo cânone 21 do Concílio de Latrão IV, dá aos padres “um meio de controle pessoal, íntimo, de cada fiel” (SCHMITT, 1997, p.105). Neste contexto, surgem especialista na penitência e pregação, entre eles os dominicanos, que estabelecem, entre 1222 e 1233, junto com outras ordens, o novo procedimento da Inquisição, ordenados pelo Papa. A reflexão teológica e canônica das superstições foi colocada na prática com o sacramento da penitência, e há uma multiplicação dos manuais de confessores. O excerto analisado é posterior a este cânone, e o próprio Étienne de Bourbon descobriu o caso de superstição relatado através de uma confissão.
São Tomás de Aquino também é importante para entender esse novo contexto do século XIII e suas implicações no campo religioso. No campo das superstições, ele conserva somente aquela que, segundo Agostinho, ocorre por excesso (idolatria), e defende que aquele que cai nas armadilhas do Diabo é porque as procurou, abandonando o pacto por conivências. São Tomás de Aquino considera supersticiosas pessoas que fazem o pacto intencionalmente, o que, deste modo, contribui para justificar e conduzir ao desenvolvimento de uma maior repressão aos casos mais graves.
O escritor da fonte aqui analisada pertencia à ordem dominicana, criada por São Domingos de Gusmão, em 1216, aprovada pelo Papa Inocêncio III. O pontífice máximo, mesmo limitado pelo então recente Concílio de Latrão (que proibia a aprovação de novas ordens), apoiou o projeto de Domingos de criação de uma ordem, desde que seus membros adotassem a regra de Santo Agostinho. Tal projeto surgiu quando o último e seu bispo, Diego, passavam pelo sul da França e depararam-se com uma guerra civil, proporcionada pelas influências heréticas dos albigienses e cátaros.
Nem mesmo a pregação dos legados do Papa solucionara tal problema, uma vez que se apresentavam com todas as suas honras, mordomias e autoridades perante heréticos que pregavam e viviam uma vida de simplicidade, informalismo e cujas teorias consistiam num cristianismo com base na humildade e vida comunitária. Assim, Diego e Domingos iniciaram a pregação utilizando-se destes mesmos princípios, e obtiveram sucesso. Esta pregação deveria se basear numa formação teológica e ser apresentada na forma de um discurso racional.
Neste contexto do século XIII, Étienne de Bourbon, como pregador e inquisidor dominicano, lutou contra as superstições e foi responsável por diversos exempla que tratavam destas na vida cotidiana. Ele faz parte do grupo de clérigos que contribuíram com testemunhos escritos de práticas concretas, observadas ou contadas por testemunhas ditas de “boa fé”. O autor não acreditava em adivinhos, nem que estes tinham poderes diabólicos. Porém, tudo indica que o clérigo (assim como a maior parte dos membros eclesiásticos) acreditava no caráter demoníaco das superstições, do pacto com o demônio. Na época de Étienne, a questão já não é mais condenar as sobrevivências (excessivas) do paganismo, mas perseguir as superstições nas práticas legítimas: nos sacramentos, nos cemitérios, e na própria instituição (Igreja). Entre os fiéis havia uma “ânsia pela santidade”, segundo Schmitt (1997, p.128), em que os mais
supersticiosos seriam cristãos.
A adoração do cão de Guinefort seria um “culto selvagem”, a adoração de um santo local, configurando um rito diabólico, (supostamente) uma “sobrevivência do paganismo”, mas possui uma estreita relação com a superstição dentro da Igreja. O culto, na descrição de Étienne, se baseava na crença de que os espíritos da floresta (changelings, faunos) substituíam uma criança sã por uma enferma e demoníaca (assim explicando a doença das crianças, a adversidade biológica). Para devolver a criança roubada era necessário um ritual que obrigasse os espíritos a fazer a troca. A prática era muito semelhante a uma cristã, da “humilhação dos santos”, especificamente a do constrangimento da Virgem. Ao ter seu filho raptado, uma fiel censura a Virgem, dirigindo-se à estátua desta, que não protegeu a criança mesmo com a devoção da mãe, que toma o Menino Jesus da estátua. A Virgem aparece ao filho prisioneiro, o liberta, e manda este dizer à sua mãe que devolva o Menino Jesus. Jean Claude Schmitt (1997) discorda de uma sobrevivência pagã do culto ao Santo Guinefort, defendendo que este teria surgido entre os séculos XI-XII, “no momento em que se estabeleceram as estruturas sociais e o povoamento característico do período feudal” (p.129).
As semelhanças entre as duas práticas têm relação direta com o embate entre a cultura clerical e outra vulgar, com uma excelente explicação feita por Hilário Fraco Júnior: “religiosidade popular não é aquela que se identifica com um grupo social, ou que teve origem nele, mas sim aquela que nas suas manifestações popularizou elementos de diversas procedências” (FRANCO JÚNIOR, 1990, p.41). No caso apresentado pelo excerto, observam-se facilmente as manifestações popularizadas que possuem uma procedência cristã de idolatria e superstição dentro da própria Igreja, no exagero do culto aos santos, imagens e relíquias.
As práticas são descritas por Étienne de Bourbon como populares (por mais que ele não utilize o termo), e as personagens são caracterizadas de forma caricata, como era típico na Idade Média, com traços gerais de um grupo. São representantes de uma cultura vulgar, mas que possuem claramente elementos de uma cultura eclesiástica, que por sua vez, também tem elementos “populares”. Novamente, recorremos a uma passagem elucidativa de Hilário Franco Júnior: “Mas percebe então claramente que cultura erudita e cultura popular não podem ser vistas como elementos opostos e impermeáveis” (FRANCO JÚNIOR, 1996, p.34). Ou seja, a distinção entre superstição e liturgia oficial da Igreja é polarizada, entre vulgar e eclesiástica, mas estas possuem um grande “núcleo comum”, trocas e relações muito mais complexas do que este sistema binário aparenta. Este núcleo comum seria um “nível intermediário”, onde
elementos de diversos polos culturais se encontram, demonstrando que suas características não são exclusivas de um determinado grupo social ou povo. A necessidade de um ato mágico para a cura, o uso de ervas acompanhado de uma manifestação religiosa, por exemplo, era aceita pelo clero e pelos ditos supersticiosos; porém, para o clero esta devia ser uma prece, enquanto na cultura vulgar seriam “encantações”. O papel enquanto religião seria igual, mas a ideologia seria diferente, segundo conceitos de Hilário Franco Júnior (1996, p.37).
Havia uma concorrência entre a cultura folclórica e a eclesiástica pelos lugares sagrados, principalmente o espaço dos mortos, e o controle destes, e também dos santos e sua adoração. O constrangimento da Virgem foi condenado no concílio de Lyon de 1247, e tal fato provavelmente impulsionou a procura de feiticeiras no objetivo de resolver as adversidades biológicas, como doenças, mesmo havendo práticas para estas proporcionadas pelo clero.
“Da adoração do cão Guinefort” exemplifica satisfatoriamente os métodos utilizados para combater a superstição. Ao destruir o local de culto, o clérigo cumpre seu papel de inquisidor e pregador, proibindo a prática, exumando o cachorro, tomando medidas junto com os “senhores da terra” para evitar a continuidade do rito e pregando contra tudo o que foi dito. Ficam explícitos os procedimentos utilizados, a pregação para convencer e persuadir os supersticiosos, a destruição do local de culto, e medidas junto a estâncias temporais do poder.
Durante a etapa anterior, o combate ao paganismo, ocorria, além da destruição do templo ou ídolo pagão, a construção de uma igreja católica para substituir o antigo culto. Conforme o excerto, o cão é tratado como um santo, tendo diversas analogias com o rito ecumênico, sendo condenado por ser um animal, elemento que é próximo da idolatria pagã e, obviamente, por não ser oficializado pela Igreja. Deus destruiu o castelo e tornou a área deserta, mas nem mesmo isso, nem as medidas tomadas pelo clérigo, impediram os camponeses de irem ao local e realizarem práticas supersticiosas. Segundo Jean Claude Schmitt, o culto foi verificado até mesmo no início do século XX! O rito lembra muito a concepção de Cícero, por mais afastada e fora de contexto que se encontre em relação à época. O ocorrido realmente é a tentativa de salvação dos filhos, o que reforça a impressão de que o conceito dado por Lactâncio era restrito somente à condenação do paganismo. Porém, a superstição no século XIII não era uma prática somente com este intento, podendo ser vista como uma contestação do monopólio eclesiástico (e masculino) dos atos mágicos para a cura e uma resposta para a abolição do Constrangimento da Virgem.
Vale ressaltar que os supersticiosos eram pecadores. Qual o pecado que cometiam? A soberba, consistindo em colocar os demônios e ídolos acima de Deus, e os interesses individuais acima dos divinos. Como relata Étienne, referindo-se às superstições: “São ultrajantes a Deus as superstições que atribuem honras divinas aos demônios ou a outra criatura qualquer” (BOURBON apud DUBY, 1990, p. 37). Os supersticiosos, na concepção eclesiástica, se considerariam dignos de receberem honras divinas de criaturas demoníacas, sendo este um ato de arrogância, de soberba. Além disso, segundo as tradições, este pecado estaria relacionado ao original. Como já foi dito acima, nas narrativas e origens da superstição, o pecado original é colocado como uma tentação de Lúcifer, invejoso da posição do homem no paraíso, que o tenta para as superstições.
As superstições passaram por diversas compreensões e ações combativas por parte da Igreja durante a Idade Média e a partir da breve noção de como esta era concebida em momentos distintos, podemos dizer que o relato de Ètienne é mais do que uma história sobre idolatria. Trata-se de uma acusação da soberba, o pecado dos supersticiosos, e uma afirmação das pregações moralistas que ocorreram no século XIII, principalmente com as ordens dominicanas e franciscanas, e uma prova de que a divisão binária e simplista da cultura pode esconder uma interrelação e complexidade enormes.
O excerto demonstra a manifestação de um nível cultural intermediário, a ação dos dominicanos de aculturação e imposição ideológica, que esconde uma identificação nas concepções e sentimentos comuns entre o que era tido como supersticioso e o que era canonizado.
Superstitions, sin and cultural levels in the Middle Age: The case of the Guinefort’s
dog worship (France, XIII Century)
Abstract: The article examines an excerpt written by the Dominican bishop Étienne de Bourbon, that tells the worship of the Dog from Guinefort. For the interpretation of what the priest described, slight knowledge of the different conceptions of what were the concept of superstition, using mainly Saint Augustin and Saint Thomas Aquinas. The origin of the cult and the superstitions is argued, as well as the involved levels of culture, with the identification of a common and intermediate cultural level and of the established relations. Also it is established a relation between the superstitions and the sin, and some of the consequences of the obligatoriness of the confessions. With these analyses, the article portrays certain characteristics of the religiosity and the religion in XIII century.
Keywords: XIII Century; Dominicans; Superstition/Faith; Official/Local Sanctity.
Referências
ALFÖLDY, G. A História social de Roma. Lisboa: Presença, 1989.
DUBY, Georges. A Europa na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
FRANCO JÚNIOR, H. A Eva barbada: ensaios de mitologia medieval. São Paulo:
Edusc, 1996.
FRANCO JÚNIOR, H. Peregrinos, monges e guerreiros. São Paulo: Hucitec, 1990.
SCHMITT, J.C. História das superstições. Lisboa: Europa-América, 1997.
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