domingo, 23 de agosto de 2015

VIOLÊNCIA, EXCLUSÃO SOCIOESPACIAL E A FUNÇÃO DO ESTADO

1. Introdução
O problema da violência e da criminalidade é um fenômeno mundial. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, as mortes por causas externas correspondem a grande parcela de óbitos em, praticamente, todos os países do mundo, ocupando, quase sempre, a segunda ou terceira colocação (WHO, 2003).[1] Porém a distribuição dos crimes quanto aos locais de concentração e ao tipo de causa é diversa.
No Brasil, a violência e a criminalidade violenta[2] cresceram muito a partir de meados da década de 1980. A insegurança pública passou a se constituir um grande obstáculo ao exercício dos direitos de cidadania, principalmente nas grandes metrópoles brasileiras.
Além dos homicídios, milhares de pessoas perdem suas vidas no Brasil por outras causas.
O total de causas externas (que, além de homicídios, inclui também acidentes, suicídios e outras causas não naturais) provocou no país cerca de dois milhões de mortes de 1980 a 2000 — o equivalente à população de Brasília. Em 82,2% dos casos (1,7 milhões), as vítimas foram homens. Em 2000, as causas externas foram a segunda maior causa de morte no país (14,5% do total de mortes), junto com as neoplasias malignas (14,9%). Na distribuição dos tipos de causas externas, os homicídios vêm aumentando sua participação, enquanto a dos acidentes de trânsito vem caindo. Entre 1991 e 2000, a proporção de mortes por acidentes de transporte, no total de causas externas, caiu 10,4%, passando a 25% do total, enquanto a de homicídios cresceu 27,2% e chegou a 38,3% do total. (Síntese dos Indicadores Sociais, 2003 – IBGE).
Há que se registrar uma enormidade de violências, muitas delas não computadas pelas estatísticas oficiais, mas que geram danos incalculáveis e muitas vezes irreparáveis às vidas das pessoas e das comunidades. Isso sem contar os custos da criminalidade.
Com medo da violência urbana e não confiando nas instituições do poder público encarregadas na implementação e execução das políticas de segurança, percebe-se uma evidente diminuição da coesão social, o que implica, entre outros problemas, na diminuição do acesso dos cidadãos aos espaços públicos; na criminalização da pobreza (à medida que setores da opinião pública estigmatizam os moradores dos aglomerados urbanos das grandes cidades como os responsáveis pela criminalidade e violência); na desconfiança generalizada entre as pessoas, corroendo laços de reciprocidade e solidariedade social; na ampliação de um mercado paralelo de segurança privada, dentre outros dilemas sociais.


Várias pesquisas têm demonstrado que o recrudescimento da violência e da criminalidade no Brasil tomou contornos perigosos, com repercussões das mais diversas na sociedade. “A violência tem se tornado um flagelo para toda a sociedade, difundindo sofrimento, generalizando o medo e produzindo danos profundos na economia” (Soares, 2004, p. 130).
2. Um olhar retrospectivo
Três problemas, entre outros, podem ser apontados como variáveis importantes na relação entre criminalidade, segregação socioespacial e a concentração dos crimes nas grandes cidades: (a) as deficiências do sistema de justiça criminal brasileiro; (b) o adensamento populacional das metrópoles num curto espaço temporal; (c) o exponencial aumento do tráfico de drogas.
É preciso considerar, ainda, que o sistema de justiça criminal brasileiro (judiciário, polícias, sistema prisional) foi montado dentro de uma perspectiva punitiva e liberal que, historicamente, age de forma autoritária, privilegiando o patrimônio das elites sociais e econômicas, criminalizando a pobreza, limitando o acesso à Justiça de forma seletiva e excludente.
A sociedade brasileira é, historicamente, uma sociedade impotente, cimentada com uma cidadania precária e de superfície. Sociologicamente, é nesses cenários que a violência se difunde. Não devemos esquecer que esta sociedade foi edificada sobre a desigualdade profunda das três escravidões que tivemos: a escravidão indígena, oficialmente extinta em meados do século 18; a escravidão negra, oficialmente extinta em 1888; e a escravidão por dívida, ou peonagem, que nasceu e proliferou em conexão com o fim da escravidão negra e que se arrasta até hoje (temos cerca de 20 mil escravos reconhecidos). As escravidões, no nosso caso, foram possíveis unicamente através da violência física, por meio da qual os cativos eram e são subjugados. A sociedade brasileira se dividiu historicamente entre os que batiam e os que apanhavam. Na escravidão que ainda persiste tem havido casos comprovados de coação física por meio da chibata, da tortura, da humilhação física e até da morte exemplar para aterrorizar os demais trabalhadores. A violência no Brasil não é endêmica, é estrutural, constitutiva. Não é uma doença. É uma anomalia histórica. Mesmo brasileiros que acham que não têm nada com isso usam cotidianamente um vocabulário no trato pessoal que vem da cultura da violência e do passado. Os mecanismos sociais que requerem elos sociais violentos sobrevivem do passado e se atualizam. Todos, sem exceção, foram educados nessa cultura de minimização física do outro. Nossa mentalidade nacional e nossa identidade estão impregnadas de violência. (Martins, 2007).
Entre as décadas de 1950 a 1980, houve uma radical inversão na estrutura social brasileira: em 1950, 80% da população estava no campo e 20% nas cidades. Hoje, os indicadores apontam o contrário. Em 1970 éramos “90 milhões em ação”. Hoje, somos mais de 200 milhões de brasileiros, quase 80% morando nas cidades. Esse enorme aumento da população, somado ao inchaço das cidades, principalmente das regiões metropolitanas, causou uma evidente saturação da coesão social nos grandes centros urbanos, facilmente visível quando observamos, por exemplo, a frágil estrutura do estado na execução das políticas públicas e sociais nas periferias das metrópoles.
A análise do espaço urbano, principalmente das grandes cidades, Gomes (2005) pondera que a questão da criminalidade merece especial atenção na medida em que o aumento da violência e dos crimes se refletiu na configuração espacial, transformando consideravelmente a paisagem urbana.
De acordo com Maricato (2000), um dos indicadores mais expressivos da piora nas condições de vida urbana é o aumento da criminalidade a patamares antes nunca vividos no Brasil.
Ramão, referindo-se a Souza (2004), aponta que
as condições de conquista de uma maior autonomia individual e coletiva, pré-requisitos para um desenvolvimento socioespacial autêntico, têm sido minadas pela violência, pelo crescente sentimento de insegurança e por aquilo que é o vetor resultante disso tudo, que é a deterioração do clima social no cotidiano, com a disseminação da desconfiança, do medo e de agressividade. As grandes disparidades sociais e espaciais (concentração de renda, segregação e auto-segregação) ajudam a formar o caldo de cultura da criminalidade urbana violenta, ainda que não a expliquem de modo simples e linear. A associação entre exclusão e criminalidade com o processo de urbanização demonstram que esta gera a impessoalidade das relações urbanas (Ramão, 2010, p. 211).
Em relação ao tráfico de drogas, responsável por significativa vitimização nas grandes cidades brasileiras, Zaluar (2007) resume bem o que aconteceu no Brasil, nos últimos anos:
A demanda por drogas seria decorrente de mudanças nos estilos de vida, que, por sua vez, teriam modificado o “consumo de estilo”, que é muito mais caro do que o consumo familiar, ou seja, as despesas familiares relacionadas aos modelos seguros das famílias de trabalhadores e de classe média (Sassen, 1991). O comércio de drogas pode ser considerado o setor ilegal da distribuição de bens e serviços do que se denominou “consumo maciço de estilo”. Isso favoreceu igualmente o aumento impressionante verificado em certos crimes contra a propriedade (furtos e roubos) e contra a vida (agressões e homicídios) (UNDCP, 1997). (…) De fato, uma revolução nos modelos de consumo também chegou ao Brasil. Uma pletora de bens de consumo, estilos de consumo sempre renovados e imensos centros de lazer e de consumo foi a principal mudança visível. Os valores culturais acompanharam tais mudanças nas formações subjetivas: valores individualistas e mercantis selvagens se disseminaram durante os anos 1970 e 1980, traduzidos pelas expressões corriqueiras “fazer dinheiro fácil” e “tirar vantagem de tudo”. Ou seja, a sociedade brasileira, pode-se dizer, foi colonizada pelo mercado que passou a carecer dos limites morais usualmente fornecidos pelo social. Como uma atividade ilegal e invisível, que favorece isso, o comércio de drogas faz parte desse novo ambiente social, econômico e cultural. (…) As conseqüências do florescimento de tais negócios ilegais no Brasil, assim como os estilos que aqui adquiriram não são explicados apenas pelas modificações havidas no consumo nem pela pobreza. Visto que as desigualdades nos planos social, econômico e institucional continuam, essas novas formas mundiais de atividades econômicas ilegais e violentas não podem ser consideradas estratégias de sobrevivência para os jovens que morrem antes de ter 25 anos. Os efeitos combinados da pobreza e da urbanização acelerada, sem que houvesse um desenvolvimento econômico necessário para oferecer emprego urbano aos migrantes e aos trabalhadores pobres, não são suficientes para compreender os conflitos armados que matam homens jovens (p.34 – 35 – grifo nosso).
Analisando os problemas das metrópoles brasileiras, Ribeiro (2004) nos alerta que,
(as metrópoles) estão concentrando hoje a questão social, cujo aspecto mais evidente e dramático é a exacerbação da violência. Há dez anos, a violência nas periferias era outra. Havia cerca de 30 homicídios por 100 mil habitantes. Hoje, nas áreas mais violentas, o número de homicídios já atinge índices similares aos verificados em países em guerra. O aumento da violência nas metrópoles guarda fortes relações com o processo de segmentação sócio-territorial em curso – que separam as classes e os grupos sociais em espaços da abundância e da integração e em espaços da concentração da população vivendo múltiplas situações de exclusão social – e acaba por constituir-se hoje em desvantagens locacionais de algumas metrópoles, ao produzir condições econômicas e institucionais que bloqueiam sua capacidade produtiva, com impactos no emprego e na renda. Estima-se, por exemplo, que a violência gera um custo anual de 13,4 bilhões de reais nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, o que representa aproximadamente 6% do PIB dos respectivos estados (p. 9-10).
Ao destacar o adensamento populacional das metrópoles brasileiras estamos simplificando um problema que parece ser comum nos grandes centros urbanos de países em desenvolvimento. Segundo reportagem da Revista Época[3], “as cidades não param de crescer – e as que mais crescem são as do Terceiro Mundo. De acordo com projeções da agência Habitat, órgão da ONU que estuda as questões de habitação, das dez maiores metrópoles do mundo em 2010, apenas duas – Tóquio e Nova York – estão situadas em países desenvolvidos. (…) Em todo o planeta, aproximadamente um bilhão de pessoas vivem hoje em barracos sem água potável e saneamento básico nos subúrbios das grandes cidades – desse total, cerca de 200 milhões tornaram-se favelados há menos de dez anos. Em 2030, serão dois bilhões de pessoas vivendo em bolsões de pobreza”.
3. Criminalidade e segregação socioespacial
Enquanto a criminalidade violenta, principalmente aquela associada ao incremento do tráfico de drogas nas favelas das grandes cidades, não atinge os segmentos médios e abastados, o problema não repercute com tanta urgência na agenda pública das prioridades governamentais.
Não obstante, os estudos sobre segregação socioespacial têm apontado não somente para o problema da criminalidade na grandes cidades, mas também para as desigualdades como fator que diminui as oportunidades de mobilidade social, acesso ao emprego, estreitamento dos horizontes de oportunidades para os pobres e o aumento da violência urbana.  Portanto, os estudos sobre a relação entre criminalidade e segregação socioespacial são de grande utilidade para o planejamento e implementação de políticas públicas que atuariam na distribuição de renda, no provimento de moradias populares em diferentes áreas das cidades, com políticas focalizadas para os grupos mais vulneráveis que, por exemplo, legalizem os espaços urbanos das favelas com melhorias de infraestrutura e provimento de equipamentos públicos, entre outras ações.


4. O que o Estado pode fazer?
Analisando políticas estruturais, que interfiram nas dinâmicas da criminalidade associadas à segregação e exclusão social, Torres e outros (2003, p. 21) ponderam que “é muito importante entender que, se a segregação pode ser gerada por ações governamentais, também é verdade que o Estado tem condições de mitigar esse efeito, criando políticas públicas de integração social e espacial.” Estes autores apresentam dois grupos de ações governamentais que podem se constituir como estratégias de intervenção sobre o espaço urbano. São elas:
(a) políticas governamentais relativas ao espaço construído (regulação urbana, investimento em infraestrutura urbana nas partes da cidade habitadas pelos pobres). Essas políticas podem
incentivar processos de mobilidade espacial que operam na direção oposta dos padrões de segregação, misturando as pessoas; também podem dirigir as futuras ações governamentais para determinadas regiões da cidade que são consideradas prioridades sociais, melhorando as condições das periferias, favelas e cortiços e, assim, reduzindo a diferença entre os grupos sociais (Fernandes, 1998; apud Torres e outros, 2003, p. 21).
(b) políticas sociais “espacialmente organizadas”- incluem um conjunto de políticas públicas (educação, saúde, assistência social, esportes, cultura e lazer), “criando e transformando o espaço social, pois a localização de seus equipamentos (e suas diferentes características de inserções no espaço) definem as condições de acesso dos vários grupos sociais que habitam na cidade” (Torres e outros, 2003, p. 22).
Kaztman (2001), num estudo sobre transformações na estrutura social de países latinoamericanos, aponta para a questão do isolamento social dos pobres urbanos. Para este autor, o resultado dessas transformações
debilitam os vínculos dos pobres urbanos com o mercado de trabalho e se estreitam os âmbitos de sociabilidade informal com pessoas de outras classes sociais, o que conduziria a seu progressivo isolamento (Kaztman, 2001, p. 171, tradução nossa).
Este autor afirma que “a pobreza urbana socialmente isolada se constitui no caso paradigmático da exclusão social”. Há um tripé que propicia o isolamento social dos pobres urbanos: segregação residencial, do trabalho e educacional. A exclusão dos pobres fica patente na segmentação do trabalho (precarização do emprego); segmentação educativa: “se os ricos vão aos colégios dos ricos, se a classe média vai aos colégios da classe média e os pobres aos colégios dos pobres, parece claro que o sistema educativo pouco pode fazer para promover a integração social e evitar a marginalidade, pese os seus esforços para melhorar as oportunidades educativas dos que têm menos recursos” (p. 177). Ademais, “crer unicamente que os méritos vão ajudar a mobilidade social é um ficção que só se cumpre em situações extraordinárias” (p. 177). Há, ainda, a segregação residencial “que se refere ao processo pelo qual a população das cidades vão se localizando em espaços de composição homogênea”, com verificável “concentração dos pobres em determinados bairros das cidades” (p. 178).


O Estado tem o poder de intervir no espaço urbano com obras públicas como investimentos na construção e melhoria das habitações populares o que poderia atuar fortemente sobre a formação de guetos urbanos (tanto os condomínios que segregam os ricos, quanto as favelas, que segregam e marginalizam os pobres).
O Estado também pode incentivar ou não incentivar a universalidade no uso de serviços básicos como o transporte, a segurança pública, a saúde e a educação, fazendo maiores ou menores esforços para manter sua qualidade e deixando mais ou menos liberado ao jogo da oferta e da demanda a possibilidade de adquirir esses serviços no mercado, opções que têm óbvias implicações sobre a probabilidade de deserção das classes médias e altas do âmbito público (Kaztman, 2001, p. 183).
Este autor apresenta como conclusão de suas investigações um rol de experiências bem sucedidas que podem intervir na tendência segregacionista das grandes cidades. São iniciativas de integração social, desenhadas para este fim com elaboração de políticas públicas setoriais que
afetam as medidas do ordenamento urbano, a seleção de beneficiários de conjuntos habitacionais subsidiados, a defesa da qualidade dos serviços públicos e a promoção de espaços que estimulem os contatos informais entre as classes. Seu exame minucioso permitirá selecionar aquelas que melhor se ajustem aos recursos e as características singulares de cada sociedade (Kaztman, 2001, p. 188).
Assim, fica claro que os investimentos das políticas públicas voltadas para o enfrentamento da questão da violência associada à segregação socioespacial nas cidades brasileiras deveria considerar um rol de ações (projetos e programas) que enfrentem os dilemas da exclusão socioespacial dos pobres, atentando, também, para o aperfeiçoamento das agências do sistema da justiça criminal. Ou seja, políticas públicas de segurança e políticas sociais conjugadas com intervenções nos espaços urbanos segregados das cidades.

5. Referências Bibliográficas
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[1] “A violência é um dos eternos problemas da teoria social e da prática política e relacional da humanidade. Não se conhece nenhuma sociedade onde a violência não tenha estado presente. Pelo contrário, a dialética do desenvolvimento social traz à tona os problemas mais vitais e angustiantes do ser humano, levando filósofos, como Engels, a afirmar que “a história é, talvez, a mais cruel das deusas que arrasta sua carruagem triunfal sobre montões de cadáveres, tanto durante as guerras como em período de desenvolvimento pacífico” (Engels, 1981: 187).” (Minayo, M. C, 1994, p.07).
[2] A classificação de crimes violentos que adotamos se refere aos seguintes delitos: homicídio, homicídio tentado, estupro, roubo, roubo a mão armada, roubo de veículos, roubo de veículos a mão armada e sequestro. Especificamente, estamos preocupados com o impacto do aumento dos homicídios.

[3] Revista Época, nº 339, de 15 de novembro de 2004, páginas 62 – 63.

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