As sociedades
modernas têm, como principal característica, a
diferenciação social. Isto
significa que seus
membros não apenas
possuem atributos diferenciados (idade, sexo, religião, estado
civil, escolaridade, renda, setor de atuação profissional, etc), como também
possuem ideias, valores,
interesses e aspirações
diferentes e desempenham papéis diferentes no decorrer da sua existência. Tudo isso faz com que a vida em sociedade
seja complexa e frequentemente envolva conflito: de opinião, de interesses, de
valores, etc. Entretanto, para que a sociedade possa sobreviver e progredir, o
conflito deve ser mantido dentro de limites administráveis. Para isto, existem
apenas dois meios: a coerção pura e simples
e a política.
O problema com o uso da
coerção é que, quanto mais é utilizada, mais reduzido
se torna o seu impacto e mais elevado se
torna o seu custo.
Resta, então, a
política. Esta envolve
coerção - principalmente como possibilidade - mas que não se limita a
ela. Cabe indagar, então, o que é a política. Uma definição bastante
simples é oferecida
por Schmitter: política
é a resolução
pacífica de conflitos. Entretanto,
este conceito é
demasiado amplo, restringe
pouco. E' possível delimitar um
pouco mais e
estabelecer que a
política consiste no
conjunto de procedimentos formais
e informais que expressam relações de poder e que se destinam à resolução
pacífica dos conflitos quanto a bens públicos.
As políticas públicas
(policies), por sua
vez, são outputs,
resultantes da atividades política
(politics) : compreendem
o conjunto das
decisões e ações
relativas à alocação imperativa
de valores. Nesse sentido é necessário distinguir entre política pública e decisão
política. Uma política
pública geralmente envolve
mais do que
uma decisão e a noção de lei e ordem incrustrada na
cultura sociopolítica brasileira apontam estritamente, e de forma intencional,
para uma tendência autoritária desse conceito. O discurso e a prática das
agências encarregadas de implementação da lei e da ordem (polícias, Ministério
Público, Judiciário) utilizam o conceito (e o transforma em práticas),
comumente, enfatizando e sobrevalorizando o caráter punitivo do Estado
(influenciando, assim, políticas penais), em detrimento do caráter mais amplo
da noção de lei e ordem que está relacionada com o controle da ordem
pública numa perspectiva democrática.
Por isso é necessário problematizar as demandas por ordem,
como nos alerta o sociólogo do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Sérgio
Adorno (1995):
Trata-se de problematizar a “demanda por ordem” que se
encontra presentemente nas falas do cidadão comum e das autoridades, falas
frequentemente veiculadas pela imprensa escrita e pela mídia eletrônica e que
inclusive não se encontram ausentes do debate acadêmico e da produção de
conhecimento científico. Ao problematizá-la está-se, em
verdade, liberando-as de suas raízes conservadoras e liberais que de regra
inspiram e influenciam políticas públicas penais. Um propósito dessa ordem
reclama uma perspectiva teórico-metodológica que amplie o escopo da análise para
além dos estreitos limites ditados pelas instituições de controle social
e seu modo de funcionamento. Um empreendimento dessa natureza supõe como
objetivo: pensar o estatuto do controle social na contemporaneidade. O
controle social, algo mais amplo do que o controle da ordem pública, parece ter
esgotado, na contemporaneidade, suas funções e modelos tradicionais. (Adorno,
1995, grifo nosso).
Ainda segundo Adorno (1995), o tratamento acerca da lei e da
ordem a partir de uma nova perspectiva de abordagem enseja pensar o estatuto do
Estado no controle da ordem pública. O papel do Estado no controle dos
comportamentos sociais e no controle da ordem pública não pode mais ser
examinado, apenas, em termos de eficácia e fracasso.
Neste sentido, para compreender os dilemas da segurança
pública na contemporaneidade, é preciso refletir para além das funções
convencionais do modelo contratual de organização societária, num Estado que é
cada vez mais caracterizado pelo pluralismo jurídico e pela coexistência de
mais de uma ordem jurídica no mesmo espaço geopolítico.
Acrescente-se, ainda, nesta breve análise as relações
imbricadas e muitas vezes “promíscuas” entre as esferas públicas e privadas no
provimento e na definição das políticas de controle social, via ampliação do
mercado de segurança privada.
Neste tópico, o “paradigma” de análise será representado
pelo exame de um processo em curso: a privatização dos serviços de segurança,
seja dos serviços de vigilância policial, seja a das prisões cujo debate marcha
com certa intensidade. Sob essa ética, acrescenta-se à análise um dado novo: a
tradicional indistinção entre as esferas pública e privada da existência
social, uma das mais destacadas características da sociedade brasileira, é
acentuada por um progressivo processo de privatização dos serviços públicos de
segurança. (Adorno, 1995).
Esses elementos apresentados por Adorno (1995) são
fundamentais para a compreensão de alguns dos traços de nossa cultura
sociopolítica sobre a segurança pública, no que diz respeito à utilização
inadequada da noção de lei e ordem para justificar a violência do Estado contra
o cidadão, notadamente aqueles que, limitados pela condição socioeconômica, não
têm meios de acesso à Justiça.
Ademais, mostra que a demanda por proteção individual privada,
diferentemente de segurança pública (para todos) é uma estratégia que favorece
os segmentos socioeconômicos que, historicamente, defendem e se beneficiam das
soluções privadas para problemas de foro público. Em outras palavras, a
fragilização do segurança pública, respaldada no discurso do medo, da
ineficiência do Estado e da eficiência da segurança privada, é um jogo de
interesses nada democráticos e republicanos.
O fato é que o autoritarismo – que tradicionalmente
atravessa e define as relações sociais e a cultura política no Brasil – ainda
consolida muitas das ações de segurança pública, a partir das demandas por lei
e ordem.
A construção histórico-cultural na sociedade brasileira
acerca do que vem a ser lei e ordem evidencia, portanto, uma tendência de
minimizar os problemas da segurança pública, reduzindo-os a uma questão
estritamente policial, voltada para o controle das chamadas “classes
perigosas”, possibilitando a “emergência de propostas, provenientes de
distintos grupos, classes e categorias sociais, favoráveis a um rigoroso,
rígido e mesmo autoritário controle repressivo da ordem pública” (ADORNO,
1995).
A partir dos conceitos apresentados por Adorno (1995)
percebemos que as noções de lei e ordem ultrapassam a compreensão segundo a
qual o Estado, detentor legítimo do monopólio do uso da violência, deve,
unilateralmente, ampliar os mecanismos de controle social tendo em vista a
garantia da paz e da segurança. Pergunta-se, então: paz e segurança para quem?
A qual custo?
Apesar de aparente incompatibilidade entre respeito aos
direitos humanos com lei e ordem, o antropólogo e cientista político Luiz
Eduardo Soares (2000) afirma ser possível construir uma “terceira via entre a
truculência seletiva da direita e o denuncismo abúlico da esquerda”. Para
tanto, no campo da segurança pública, é preciso alcançar, entre outros
objetivos, um modelo de polícia que alie eficiência com o respeito às leis que
protegem os direitos do cidadão, em particular o direito à segurança. Daí
o imperativo de “valorização das instituições policiais, como protetoras da
vida e da liberdade e promotoras do direito de todos a uma vida pacífica, que
é, afinal de contas, o significado último da segurança pública num contexto
verdadeiramente democrático” (SOARES, 2000, p.48-49).
O fato: é preciso erradicar, da segurança pública, suas
heranças autoritárias e conservadoras. Isso só será possível com uma ampla
reforma de todo o sistema de justiça criminal brasileiro.
Bibliografia:
ADORNO, S. Criminalidade violenta, Estado de Direito e controle
social. Relatório de pesquisa. Programa de Pós-Doutorado, Paris/França,
1994-1995. São Paulo, 1995, mimeo. 72p. (CNPq).
SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de general: 500 dias
no front da Segurança Pública do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
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