domingo, 9 de agosto de 2015

ALGUNS PARADIGMAS DO DIREITO - LEI E ORDEM

As sociedades  modernas  têm,  como principal  característica,  a  diferenciação social.  Isto significa  que  seus  membros  não  apenas  possuem  atributos  diferenciados (idade, sexo, religião, estado civil, escolaridade, renda, setor de atuação profissional, etc), como  também  possuem  ideias,  valores,  interesses  e  aspirações  diferentes  e desempenham  papéis diferentes no decorrer da sua  existência. Tudo isso faz com que a vida em sociedade seja complexa e frequentemente envolva conflito: de opinião, de interesses, de valores, etc. Entretanto, para que a sociedade possa sobreviver e progredir, o conflito deve ser mantido dentro de limites administráveis. Para isto, existem apenas dois meios: a coerção pura e simples  e  a  política.  O  problema com o  uso da  coerção  é  que, quanto mais é utilizada, mais reduzido se torna o  seu impacto e mais elevado se torna o seu custo. 
Resta,  então,  a  política.  Esta  envolve  coerção  -  principalmente  como possibilidade - mas que não se limita a ela. Cabe indagar, então, o que é a política. Uma definição  bastante  simples  é  oferecida  por  Schmitter:  política  é  a  resolução  pacífica  de conflitos.  Entretanto,  este  conceito  é  demasiado  amplo,  restringe  pouco.  E'  possível delimitar  um  pouco  mais  e  estabelecer  que  a  política  consiste  no  conjunto  de procedimentos formais e informais que expressam relações de poder e que se destinam à resolução pacífica dos conflitos quanto a bens públicos. 
As  políticas  públicas  (policies),  por  sua  vez,  são  outputs,  resultantes  da atividades  política  (politics)  :  compreendem  o  conjunto  das  decisões  e  ações  relativas  à alocação imperativa de valores. Nesse sentido é necessário distinguir entre política pública e  decisão  política.  Uma  política  pública  geralmente  envolve  mais  do  que  uma  decisão  e a noção de lei e ordem incrustrada na cultura sociopolítica brasileira apontam estritamente, e de forma intencional, para uma tendência autoritária desse conceito. O discurso e a prática das agências encarregadas de implementação da lei e da ordem (polícias, Ministério Público, Judiciário) utilizam o conceito (e o transforma em práticas), comumente, enfatizando e sobrevalorizando o caráter punitivo do Estado (influenciando, assim, políticas penais), em detrimento do caráter mais amplo da noção de lei e ordem que está relacionada com o controle da ordem pública numa perspectiva democrática.
Por isso é necessário problematizar as demandas por ordem, como nos alerta o sociólogo do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Sérgio Adorno (1995):
Trata-se de problematizar a “demanda por ordem” que se encontra presentemente nas falas do cidadão comum e das autoridades, falas frequentemente veiculadas pela imprensa escrita e pela mídia eletrônica e que inclusive não se encontram ausentes do debate acadêmico e da produção de conhecimento científico. Ao problematizá-la está-se, em verdade, liberando-as de suas raízes conservadoras e liberais que de regra inspiram e influenciam políticas públicas penais. Um propósito dessa ordem reclama uma perspectiva teórico-metodológica que amplie o escopo da análise para além dos estreitos limites ditados pelas instituições de controle social  e seu modo de funcionamento. Um empreendimento dessa natureza supõe como objetivo: pensar o estatuto do controle social na contemporaneidade. O controle social, algo mais amplo do que o controle da ordem pública, parece ter esgotado, na contemporaneidade, suas funções e modelos tradicionais. (Adorno, 1995, grifo nosso).
Ainda segundo Adorno (1995), o tratamento acerca da lei e da ordem a partir de uma nova perspectiva de abordagem enseja pensar o estatuto do Estado no controle da ordem pública. O papel do Estado no controle dos comportamentos sociais e no controle da ordem pública não pode mais ser examinado, apenas, em termos de eficácia e fracasso.
Neste sentido, para compreender os dilemas da segurança pública na contemporaneidade, é preciso refletir para além das funções convencionais do modelo contratual de organização societária, num Estado que é cada vez mais caracterizado pelo pluralismo jurídico e pela coexistência de mais de uma ordem jurídica no mesmo espaço geopolítico.
Acrescente-se, ainda, nesta breve análise as relações imbricadas e muitas vezes “promíscuas” entre as esferas públicas e privadas no provimento e na definição das políticas de controle social, via ampliação do mercado de segurança privada.
Neste tópico, o “paradigma” de análise será representado pelo exame de um processo em curso: a privatização dos serviços de segurança, seja dos serviços de vigilância policial, seja a das prisões cujo debate marcha com certa intensidade. Sob essa ética, acrescenta-se à análise um dado novo: a tradicional indistinção entre as esferas pública e privada da existência social, uma das mais destacadas características da sociedade brasileira, é acentuada por um progressivo processo de privatização dos serviços públicos de segurança. (Adorno, 1995).
Esses elementos apresentados por Adorno (1995) são fundamentais para a compreensão de alguns dos traços de nossa cultura sociopolítica sobre a segurança pública, no que diz respeito à utilização inadequada da noção de lei e ordem para justificar a violência do Estado contra o cidadão, notadamente aqueles que, limitados pela condição socioeconômica, não têm meios de acesso à Justiça.
Ademais, mostra que a demanda por proteção individual privada, diferentemente de segurança pública (para todos) é uma estratégia que favorece os segmentos socioeconômicos que, historicamente, defendem e se beneficiam das soluções privadas para problemas de foro público. Em outras palavras, a fragilização do segurança pública, respaldada no discurso do medo, da ineficiência do Estado e da eficiência da segurança privada, é um jogo de interesses nada democráticos e republicanos.
O fato é que o autoritarismo – que tradicionalmente atravessa e define as relações sociais e a cultura política no Brasil – ainda consolida muitas das ações de segurança pública, a partir das demandas por lei e ordem.
A construção histórico-cultural na sociedade brasileira acerca do que vem a ser lei e ordem evidencia, portanto, uma tendência de minimizar os problemas da segurança pública, reduzindo-os a uma questão estritamente policial, voltada para o controle das chamadas “classes perigosas”, possibilitando a “emergência de propostas, provenientes de distintos grupos, classes e categorias sociais, favoráveis a um rigoroso, rígido e mesmo autoritário controle repressivo da ordem pública” (ADORNO, 1995).
A partir dos conceitos apresentados por Adorno (1995) percebemos que as noções de lei e ordem ultrapassam a compreensão segundo a qual o Estado, detentor legítimo do monopólio do uso da violência, deve, unilateralmente, ampliar os mecanismos de controle social tendo em vista a garantia da paz e da segurança. Pergunta-se, então: paz e segurança para quem? A qual custo?
Apesar de aparente incompatibilidade entre respeito aos direitos humanos com lei e ordem, o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares (2000) afirma ser possível construir uma “terceira via entre a truculência seletiva da direita e o denuncismo abúlico da esquerda”. Para tanto, no campo da segurança pública, é preciso alcançar, entre outros objetivos, um modelo de polícia que alie eficiência com o respeito às leis que protegem os direitos do cidadão, em particular o direito à segurança. Daí o imperativo de “valorização das instituições policiais, como protetoras da vida e da liberdade e promotoras do direito de todos a uma vida pacífica, que é, afinal de contas, o significado último da segurança pública num contexto verdadeiramente democrático” (SOARES, 2000, p.48-49).
O fato: é preciso erradicar, da segurança pública, suas heranças autoritárias e conservadoras. Isso só será possível com uma ampla reforma de todo o sistema de justiça criminal brasileiro.
Bibliografia:
ADORNO, S. Criminalidade violenta, Estado de Direito e controle social. Relatório de pesquisa. Programa de Pós-Doutorado, Paris/França, 1994-1995. São Paulo, 1995, mimeo. 72p. (CNPq).
SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de general: 500 dias no front da Segurança Pública do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Nenhum comentário:

Postar um comentário