Retórica
e argumentação
“A
argumentação não age sobre evidências. O que é evidente não necessita nem de
demonstração nem de apresentação de argumentos a favor ou contra. A
argumentação não pode ser a afirmação da verdade, porque todo o verdadeiro
diálogo nunca esgota a possibilidade de investigação da verdade.”
(Carlos
Ceia)
“Argumentar
é, em última análise, convencer ou tentar convencer mediante a apresentação de
razões, em face da evidência das provas e à luz de um raciocínio coerente e
consistente.”
(Othon
M. Garcia)
A
Retórica é a ciência que reúne técnicas de organização do discurso utilizadas
com o intuito de convencer um interlocutor por meio de estratégias
linguísticas, argumentativas e estruturais (recursos retóricos) que fazem
determinado conteúdo ou informação mais potente e persuasivo. Ainda que na
Antiguidade Clássica, em especial na Grécia, esteja a origem dessa ciência e o
uso consciente e predominantemente oral dessas técnicas, na maioria das vezes,
em favor da dialética e da democracia, posteriormente, ela passou a ser vista
como sinônimo de discursos empolados, vazios ou mal intencionados.
Essa
concepção equivocada era frequentemente associada aos estudos retóricos até o
início do século XX, quando princípios dessa ciência passaram a ser estudados
com mais seriedade e menos afetação. Hoje, além de ser amplamente estudada na
academia, ela pode ser percebida também com grande intensidade no discurso
escrito, ou mesmo em discursos que contenham linguagem verbal e não verbal ao
mesmo tempo, como é o caso muito frequentemente estudado do discurso da
propaganda.
Assim,
a Retórica manifesta-se em diversos contextos e por muitos meios na sociedade
atual, são exemplos os casos de letras de bandas como O Rappa e Rage Against
the Machine, como “Lado B Lado A” e “Freedom” respectivamente. Grande parte da
obra de Chico Buarque também pode ser vista como detentora de uma intenção, às
vezes, velada, de argumentar em favor de uma causa ou de uma ideologia, são
exemplos as músicas “Deus lhe Pague”, “Construção”, “Cálice”, etc. Ainda que,
pode-se entender que quaisquer textos carregam uma intencionalidade, o que faz
deles mesmo que de forma sutil ou quase imperceptível argumentativos, o que
muitas vezes inclusive os torna ainda mais potentes, justamente por serem
reconhecidos popularmente como não providos de argumentos ou de defesas de uma
dada e determinada concepção de mundo, são exemplos a maioria das narrativas
literárias que para muitos são desprovidas de argumentação, mas são, ao
contrário, carregadas de concepções de mundo e de argumentação como é o caso do
machismo e do maniqueísmo típicos dos contos de fadas.
Nas
artes visuais, foram vários os artistas que tiveram o objetivo de com suas
obras expor um ponto de vista acerca de um fato, um acontecimento histórico ou
mesmo uma pessoa, são os casos da série de quadros “Judith” de Artemisia
Gentileschi; do quadro “Guernica”, de Picasso; da arte pop de Andy Warhol, etc.
artemisia
Guernica
Athlete
A Retórica (a dialética e a gramática) era uma
das "três artes liberais" ou "trivium" ensinadas em
diversas faculdades da Idade Média. Atualmente, um dos espaços mais
privilegiados da Retórica é a publicidade, já que ela é um elemento crucial
para alcançar o objetivo de uma propaganda e mesmo da linguagem publicitária. A
Retórica, nesta área do conhecimento humano, é usada amplamente no sentido de
tornar produtos ou ideologias mais atraentes para seus consumidores, ainda que
que alguns processos de construção de argumentos para se justificar o consumo
sejam construídos por meio de exageros, falácias, mentiras ou manipulações,
como é o caso das propagandas de sabões em pó até o início do século XXI. É
importante ressaltar que, quando empregada de forma eticamente responsável, ela
pode ajudar tanto a construir mensagens muito persuasivas quanto ricas estética
e ideologicamente, como é o caso das polêmicas e instigantes campanhas da
Benetton a seguir:
Importante
também é ressaltar que a imagem, dessa forma, pode constituir uma peça retórica
em virtude das ideias que implícita ou explicitamente ela defende ou evoca. O
século XX é chamado por muitos de “século da imagem” graças a certa popularização
de tecnologias como a fotografia, o cinema e a televisão, que foram
responsáveis por ampliar o universo da imagem reproduzida para além do escopo
da arte. Assim, popularizaram-se também imagens como veículos de contestação,
denúncia ou inspiração, provenientes primordialmente do jornalismo, o qual foi
acrescido de grande força em função do poder persuasivo e sedutor da imagem,
como é o caso dos exemplos abaixo:
Malcolm
W. Browne, USA, The Associated Press.
Saigon, Vietnã do
Sul, 11 de junho de 1963
(Nick) Ut Cong Huynh,
Vietnam, The Associated Press
Jean-Marc
Bouju, França, The Associated Press.
An Najaf, Iraque, 31
de Março de 2003.
Dessa
forma, a Retórica é uma ciência fundamental para se entender não só as
intenções e os argumentos que constroem a maior parte dos discursos com os
quais se pode ter contato em sociedade, mas também fornece elementos para que
seja possível o debate de maneira civilizada e pacífica. Com isso, o domínio de
recursos argumentativos ou retóricos faz não só o produtor/leitor dos mais
variados textos mais atento aos recursos usados linguísticos ou não usados de
forma argumentativa, mas também garante que as pessoas se socializem sem
perderem a autonomia intelectual, estética e ética que as faz indivíduos únicos
e hábeis produtores/decodificadores de discursos.
Como
processo retórico elementar entende-se a argumentação, que é um grupo de
processos pelos quais um locutor, por meio do discurso e de estratégias
objetivas ou subjetivas, almeja convencer um interlocutor sobre um ponto de
vista. A maioria dos processos argumentativos eficientes sustenta-se na solidez
do raciocínio e na confiabilidade das comprovações dele. Tais recursos são
entendidos como todos os fatos, os exemplos, as ilustrações, os dados
estatísticos (tabelas, números, mapas, etc.) e os testemunhos que sirvam para
auxiliar a validação de argumentos que visem confirmar uma determinada
hipótese; as relações de causa e consequência; as considerações históricas; as
analogias; os discursos de autoridade; as enumerações; etc.
Portanto, a Retórica,
sustentada por uma série de mecanismos argumentativos, é uma ciência não só
atual, mas necessária para a construção de uma sociedade mais justa. Por outro
lado, também é conhecimento indispensável para candidatos a vagas em
universidade, tendo em vista que não mais só nas redações, mas também nas
provas de Língua Portuguesa são exigidos conhecimentos apurados sobre como se
constrói um processo argumentativo.
ALGUNS RECURSOS RETÓRICOS
“Pensamentos
valem e vivem pela observação exata ou nova, pela reflexão aguda ou profunda;
não menos querem a originalidade, a simplicidade e a graça do dizer.”
(Machado
de Assis)
“Argumentar
é, pois, em última análise, a arte de, gerenciando informação, convencer o
outro de alguma coisa no plano das ideias e de, gerenciando relação,
persuadi-lo, no plano das emoções, a fazer alguma coisa que nós desejamos que
ele faça.”
(“A
arte de argumentar”, Antônio Suárez Abreu)
Recursos
retóricos (tipos de argumentos) são ferramentas empregadas especificamente para
tornar o discurso mais convincente e eficaz, servem também como mecanismos
capazes de moldar uma ideia de forma que ela se torne mais razoável, lógica,
palpável, etc., para seus receptores.
Vale
lembrar que são muitos os recursos retóricos fundamentados na razão e na
lógica, além disso, vários deles são fundamentados em ferramentas subjetivas
como emoções, no contexto da enunciação, nos costumes, na intenção
comunicativa, no conhecimento dos interlocutores, etc. Diante dessa grande
diversidade, é importante informar que os recursos retóricos listados a seguir
são aqueles mais utilizados no âmbito científico, jornalístico, artístico e
mesmo no cotidiano. Tal amplitude da argumentação é muito bem lembrada no
“Sermão da Sexagésima” em que o Padre Antônio Vieira teoriza categoricamente
sobre quais os recursos e ferramentas que garantem a criação de um sermão
vigoroso e convincente, em última instância e com senão, de um texto
argumentativo eficiente e capaz de convencer os interlocutores.
“Há-de
tomar o pregador uma só matéria; há-de defini-la, para que se conheça; há-de
dividi-la, para que se distinga; há-de prová-la com a Escritura; há-de
declará-la com a razão; há-de confirmá-la com o exemplo; há-de amplificá-la com
as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que
hão-de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há-de responder às
dúvidas, há-de satisfazer as dificuldades; há-de impugnar e refutar com toda a
força da eloquência os argumentos contrários; e depois disto há-de colher,
há-de apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de acabar. Isto é sermão,
isto é pregar; e o que não é isto, é falar de mais alto.”
1
– Emprego de variações linguísticas (competência linguística)
Os
recursos retóricos linguísticos são determinados pelo uso consciente que se faz
do respeito ou não às normas gramaticais brasileiras, ou seja, são estratégias
qualificadoras do discurso por meio do emprego de variação linguística adequada
a uma dada situação comunicativa em função das condições de enunciação e dos
interlocutores típicos dela. Isso é fato mesmo porque o simples uso da norma
padrão é um meio de se afirmar e, muitas vezes, potencializar um discurso em
função da forma como ele é comunicado, de forma alheia ou até independente do
seu conteúdo. Contudo, a junção de variação linguística adequada e conteúdo
pertinente, lógico e bem referenciado é razão de existência de textos não
apenas eficientes quanto às suas intenções, mas valiosos para a sociedade como
veículos de debates, novas ideias e desenvolvimento.
Por
outro lado, diversos poemas de autores modernistas brasileiros, por exemplo,
foram transgressores em relação às regras gramaticais para defender uma arte
menos controlada por regras e imposições estéticas, mesmo as da Gramática. Para
tanto, conscientemente, autores como Oswald de Andrade e Mário de Andrade
romperam com a norma padrão da língua em muitas de suas criações, especialmente
com o discurso erudito, que dominou a poesia do século XIX, em especial a
parnasiana, a qual é - de forma sistemática - criticada pelos poetas
modernistas brasileiros em seus poemas escritos com palavras oriundas do
discurso da oralidade ou dos padrões linguísticos típicos das classes sociais
mais humildes e menos abastadas. Eis um exemplo desse recurso linguístico e
argumentativo:
Vício
da fala
Para
dizerem milho dizem mio
Para
melhor dizem mió
Para
pior pió
Para
telha dizem teia
Para
telhado dizem teiado
E
vão fazendo telhados. (Oswald de Andrade)
2
– Ordenação das ideias, informações e percepções
A
forma como as ideias são ordenadas mostra uma série de intenções
argumentativas. Esse processo pode se dar de variadas formas, seguem algumas
possibilidades de ordenação do discurso por razões argumentativas.
No plano
sintático, pode-se entender que a escolha por colocar as ideias na ordem direta
pode sugerir intenções de se construir um texto de forma clara e precisa com o
intuito de favorecer o entendimento da maior parte possível de interlocutores a
respeito dele. Por outro lado, a ordem indireta, que pode ocorrer em diversos
níveis de intensidade, sugere certa preocupação do autor em dizer ou escrever
de modo menos convencional do que o usual, o que pode produzir desde alguma
dificuldade por parte do interlocutor para decodificar o texto até a completa
incompreensão do enunciado. Tais escolhas podem sugerir diversas intenções por
parte do locutor, as quais incluem o desejo de mostrar erudição para submeter
pela forma do discurso seus interlocutores ou a orquestração de um meio de
selecionar aqueles que podem ou devem compreender um texto daqueles que não
podem ou ainda dar destaque maior a uma parte de uma sentença. Como no caso das
seguintes sentenças:
Mario
Quintana nunca teve em vida o reconhecimento merecido, embora fosse um
extraordinário poeta.
Embora
fosse um extraordinário poeta, Mario Quintana nunca teve em vida o
reconhecimento merecido.
A
ordem do discurso pode ser também temporal, quando as ideias são
organizadas de modo cronológico com o intuito de propiciar ao leitor mais
facilidade e conforto para compreender uma determinada tese. Esse recurso pode
configurar o início de um processo de convencimento calcado no didatismo e na
historicidade da ideia ou conceito a ser defendido ou questionado.
“As
Copas do Mundo são ricos observatórios. Em 1938, o goleiro das Índias
Holandesas Orientais, futura Indonésia, pretendeu proteger seu gol do ataque
húngaro amarrando na rede uma boneca como amuleto. Como parte do equipamento
que a Escócia levou para a Copa da Argentina, estavam 456 garrafas de uísque.
Na Espanha, em 1982, a seleção do Kwait queria que, antes da partida de
estreia, seu mascote, um dromedário, desse a volta em torno do campo.” (H.
Franco Jr.)
“Na
era pós-moderna, a configuração da identidade pessoal é num sentido decisivo,
um projeto corporal. Podemos observar que o corpo tende a se tornar cada vez
mais seminal para uma compreensão da identidade pessoal. O ego é constituído em
grande parte por meio da apresentação do corpo. E possível ver isto em relação
a varias práticas, como o ascetismo ou uma dieta, que outrora tinham uma
finalidade mais espiritual, mas agora tem a ver principalmente com a moldagem
do corpo. Foi só no fim do período vitoriano que as pessoas começaram a fazer
dietas com o objetivo de alcançar um ideal especificamente estético. Sem
dúvida, na cultura helênica, a aristocracia mantinha um ideal de moderação de
consumo de alimentos porque isso indicava autocontrole. De maneira semelhante,
jejuar era uma prática cristã central na Idade Média, indicando que o espírito era
mais forte que a carne. Mas a diferença decisiva era que essas práticas tinham
menos a ver com o corpo por si só que com o espírito nele alojado. Além disso,
elas eram observadas sobretudo nos escalões mais altos da sociedade. A dieta do
final do período vitoriano, por outro lado, foi um fenômeno que se difundiu na
classe média e estava relacionada com a regulação do consumo de alimentos, de
tal modo que disso resultasse um corpo idealizado, esbelto. Seus aspectos
‘espirituais’ eram claramente secundários. Isso não quer dizer que conotações
‘espirituais’ estivessem de todo ausentes. A obesidade era considerada, e em
grande medida ainda é, um indicador de qualidades morais e mentais como
preguiça e falta de força de vontade. O importante é que não era para combater
essas qualidades mentais que a dieta era empreendida: o que a motivava era o
desejo de moldar o corpo, não a alma. Desde então, essa tendência só se
intensificou.” (Lars Svendsen em "Moda: uma filosofia")
Um
discurso pode ser argumentativo em função de uma ordem lógica construída em
torno de relações de causa e consequência como meio de explicitar as ações
e as reações de indivíduos, grupos e instituições em determinados contextos.
Tal estratégia, que é uma das mais utilizadas em variada sorte de
argumentações, pode servir para tornar determinada tese mais potente em função
das relações causais estabelecidas para defendê-la ou refutá-la, o que pode
facilitar o convencimento do interlocutor a respeito de determinado ponto de
vista por causa do pragmatismo desse recurso retórico. Exemplos interessantes
desse uso são o trecho do discurso de posse do presidente dos EUA Barack Obama
e os aforismos extraídos das obras de Fernando Pessoa e Herbert Blumer
respectivamente.
“Que
estamos no meio de uma crise agora já se sabe muito bem. Nossa nação está em
guerra contra uma extensa rede de ódio e violência. Nossa economia está muito
enfraquecida, uma consequência da ganância e irresponsabilidade por parte de
alguns, mas também de nossa falha coletiva em fazer escolhas difíceis e em
preparar a nação para uma nova era. Lares foram perdidos; empregos cortados;
empresas fechadas. Nosso sistema de saúde é caro demais; nossas escolas falham
demais; e cada dia traz mais provas de que a maneira como utilizamos energia
fortalece nossos adversários e ameaça nosso planeta.”
“O
pensamento pode ter elevação sem ter elegância, e, na proporção em que não
tiver elegância, perderá a ação sobre os outros. A força sem a destreza é uma
simples massa.”
“Os
esforços de uma classe de elite para se diferenciar na aparência não são a
causa do movimento da moda, mas ocorrem dentro dele. O prestígio de grupos de
elite, em vez de estabelecer a direção do movimento da moda, só é eficaz na
medida em que esses grupos são reconhecidos como representando e retratando
esse movimento. As pessoas de outras classes que seguem conscientemente a moda
o fazem porque ela é a moda e não por causa do prestígio distinto do grupo de
elite. A moda morre não por ter sido rejeitada pelo grupo de elite, mas por ter
dado lugar a um novo modelo mais de acordo com o gosto em desenvolvimento. O
mecanismo da moda aparece não em resposta a uma necessidade de diferenciação e
emulação, mas em resposta a uma necessidade de estar na moda, de estar em dia
com o que é bem-visto, de expressar novos gostos que estão emergindo num mundo
em mudança.”
A
ordem também pode ser estabelecida por força de uma figura de linguagem chamada
gradação que, quando ascendente, também é conhecida como clímax, ou como anticlímax,
quando descendente. Assim, ao apresentar os argumentos de forma que, em função
de algum fator comum a eles, seja dada a impressão de aumento ou perda de
intensidade, produz-se a sensação de que a argumentação cresce em importância
ou força. Exemplos dessa prática são muito comuns em sermões, em que a
intensidade aumenta em função do fervor religioso e do conteúdo emotivo do
discurso; em textos argumentativos nos quais a ordem dos argumentos respeita
variáveis como grandeza e abrangência dos exemplos que ilustram e fundamentam
os argumentos; entre muitas outras possibilidades. Eis dois exemplos desse
recurso:
"(...)
um monstro tão dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão
conhecidamente traidor!" (“Sermão de Santo Antônio aos peixes”, Padre
Antônio Vieira)
"Chamo
de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a
igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo,
socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social,
cooperativismo... tudo isso. Esse pessoal começou a lutar, para o operário não
ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que doze horas, depois para
não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar,
para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas
que hoje são banais. Conversando com um antigo aluno meu, que é um rapaz rico,
industrial, ele disse: “o senhor não pode negar que o capitalismo tem uma face
humana”. O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é baseado na
mais-valia e no exército de reserva, como Marx definiu. É preciso ter sempre
miseráveis para tirar o excesso que o capital precisar. E a mais-valia não tem
limite. Marx diz na “Ideologia Alemã”: as necessidades humanas são cumulativas
e irreversíveis. Quando você anda descalço, você anda descalço. Quando você
descobre a sandália, não quer mais andar descalço. Quando descobre o sapato,
não quer mais a sandália. Quando descobre a meia, quer sapato com meia e por aí
não tem mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se pensa que é
face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor,
lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias...
tudo é conquista do socialismo. O socialismo só não deu certo na Rússia."
(Antônio Candido)
3
– Antítese e paradoxo
Usar
ou opor ideias contrárias é uma forma clássica de construir um discurso
argumentativo. Pela oposição de ideias confrontam-se abertamente conceitos com
o intuito, na maioria das vezes, de defender um deles, mesmo que, para isso,
valorize-se um a partir da denúncia e do apontamento das falhas ou
incongruências do outro.
No
caso da antítese, o uso de ideias opostas ou a oposição delas resulta num
recurso retórico de mais fácil entendimento, já que são confrontadas ideias de
forma verossímil e conciliável com a realidade imediata comum à maioria das
pessoas. Esse recurso é muito empregado no discurso religioso cristão, quando
as ideias de bem e mal, céu e inferno são confrontadas de forma moralista e
rígida. A partir desse dualismo religioso, mas antes retórico, construiu-se o
maniqueísmo, que foi e é ainda importante para referenciar a moral, as escolhas
e os pontos de vista de milhões de religiosos cristãos do passado e na
atualidade. Contudo, argumentos fundados na antítese são usados também com
frequência em ambientes acadêmicos e científicos. São exemplos desse recurso os
seguintes trechos:
“Os
ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de
Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o
temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul
exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também,
mas secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e
frutificou com grande multiplicação: Et natum fecit fructum centuplum. De
maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que
caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão
funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não
faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até
nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os
piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos.” (Padre
Antônio Vieira)
''Aquele
que está disposto a matar pela sua fé é um crente falso. Persegue os outros
porque não tem certeza em sua crença. Um cientista nunca se disporá a lutar
pelos fatos que aponta. Nenhuma guerra foi originada pela solução de um teorema
geométrico. Mas existe a arrogância de se assassinar semelhantes por um sistema
de teologia que não passa de um mito e por um conjunto de dogmas que não são
mais que opiniões.” (Voltaire)
“A
argumentação deve basear-se nos sãos princípios da lógica. Entretanto, nos
debates, nas polêmicas, nas discussões que se travam a todo instante, na
simples conversação, na imprensa, nas assembleias ou agrupamentos de qualquer
ordem, nos Parlamentos, a argumentação não raro se desvirtua, degenerando em
‘bate boca’ estéril, falacioso ou sofismático. Em vez de lidar apenas com ideias,
princípios ou fatos, o orador descamba para o insulto, o xingamento, a ironia,
o sarcasmo, enfim, para invectivas de toda ordem, que constituem o que se
costuma chamar de argumento ad hominem; ou então revela o propósito de expor ao
ridículo ou à execração pública os que se opõem às suas ideias ou princípios,
recorrendo assim ao argumento ad populum. Ora, o insulto, os doestos, a ironia,
o sarcasmo por mais brilhantes que sejam, por mais que irritem ou perturbem o
oponente, jamais constituem argumentos, antes revelam a falta deles. Tampouco
valem como argumentos os preconceitos, as superstições ou as generalizações
apressadas que se baseiam naquilo que a lógica chama, como já vimos, juízos de
simples inspeção.” (Othon M. Garcia)
“Todo
homem nasce original e morre plágio.” (Millôr Fernandes)
Quanto
ao paradoxo, é outra figura de linguagem associada à oposição de ideias,
ainda que, nesse caso, elas sejam empregadas de forma inconciliável, impossível
ou irrealizável. A intenção dessa associação de termos imprevisível, porque
absurda ou inverossímil, é atrair a atenção do interlocutor em função do
desafio da decifração do paradoxo, que é, por meios estéticos e refinados, um
mecanismo importante de argumentação que auxilia no convencimento do outro por
meio das suposições oriundas da decodificação da contradição estabelecida no
paradoxo.
“O
polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios
estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a
mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou
desta hipocrisia tão santa, (...) o dito polvo é o maior traidor do mar.
Consiste esta traição do polvo primeiramente em se vestir ou pintar das mesmas
cores de todas aquelas cores a que está pegado. As cores, que no camaleão são
gala, no polvo são malícia; as figuras, que em Proteu são fábula, no polvo são
verdade e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se
branco; se está no lodo, faz-se pardo: e se está em alguma pedra, como mais
ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra. (...) O polvo,
escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a primeira traição e roubo que
faz, é a luz, para que não distinga as cores. (...) E que neste mesmo elemento
se crie, se conserve e se exercite com tanto dano do bem público um monstro tão
dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão conhecidamente
traidor.” (“Sermão de Santo Antônio aos peixes”, Padre Antônio Vieira)
4
– Comparação ou analogia
A
comparação, seja objetiva ou subjetiva, é um meio comum de, ao aproximar duas
realidades, pessoas ou situações, pelas similaridades e disparidades
encontradas, argumentar em favor de um ponto de vista. É um recurso de fácil
uso, presente desde a comparação entre a atuação do crime organizado na Itália
confrontada com a do crime organizado brasileiro até a construção de metáforas
para se enfatizar uma ideia pelo viés conotativo, como é o caso do
posicionamento de Albert Einstein sobre o nacionalismo, clara e enfaticamente
exposto na expressão: “O nacionalismo é uma doença infantil. É o sarampo da
humanidade.”. São exemplos desse tipo de recurso:
“Se
naturezas grosseiras e embrutecidas pelo trabalho diário e sem encanto
encontram no ópio grande consolo qual não será então o seu efeito num espírito
sutil e letrado, numa imaginação ardente e cultivada?” (Charles Baudelaire,
“Paraísos artificiais”)
“É
tão absurdo dizer que um homem não pode amar a mesma mulher toda a vida, quanto
dizer que um violinista precisa de diversos violinos para tocar a mesma
música.” (Honoré de Balzac)
"Como
a fotografia é capaz de reproduzir a realidade com mais precisão do que nunca
para mostrar a verdade, esse novo meio é inimigo mortal da arte, e, na medida
em que o desenvolvimento da fotografia é produto do processo tecnológico,
poesia e progresso são como dois homens ambiciosos que se odeiam. Quando seus
caminhos se cruzam, um deles deve dar passagem ao outro." (Marshall
Berman)
“Ninguém
nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico
define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da
civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado
que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um
indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a criança não pode
apreender-se como sexualmente diferenciada. Entre meninas e meninos, o corpo é,
primeiramente, a irradiação de uma subjetividade, o instrumento que efetua a
compreensão do mundo: é através dos olhos, das mãos e não das partes sexuais
que apreendem o universo. O drama do nascimento, o da desmama desenvolvem-se da
mesma maneira para as crianças dos dois sexos; têm elas os mesmos interesses,
os mesmos prazeres; a sucção é, inicialmente, a fonte de suas sensações mais
agradáveis; passam depois por uma fase anal em que tiram, das funções
excretórias que lhe são comuns, as maiores satisfações; seu desenvolvimento
genital é análogo; exploram o corpo com a mesma curiosidade e a mesma
indiferença; do clitóris e do pênis tiram o mesmo prazer incerto; na medida em
que já se objetiva sua sensibilidade, voltam–se para a mãe: é a carne feminina,
suave, lisa, elástica que suscita desejos sexuais e esses desejos são
preensivos; é de uma maneira agressiva que a menina, como o menino, beija a
mãe, acaricia-a, apalpa-a; têm o mesmo ciúme se nasce outra criança;
manifestam-no da mesma maneira: cólera, emburramento, distúrbios urinários;
recorrem aos mesmos ardis para captar o amor dos adultos.
Até
os doze anos a menina é tão robusta quanto os irmãos e manifesta as mesmas
capacidades intelectuais; não há terreno em que lhe seja proibido rivalizar com
eles. Se, bem antes da puberdade e, às vezes, mesmo desde a primeira infância,
ela já se apresenta como sexualmente especificada, não é porque misteriosos
instintos a destinem imediatamente à passividade, ao coquetismo, à maternidade:
é porque a intervenção de outrem na vida da criança é quase original e desde
seus primeiros anos sua vocação lhe é imperiosamente insuflada.” (Simone de
Beauvoir em “O Segundo Sexo”, volume 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro,
1967, 2ª edição, pp. 9-10.)
5
– Intertextualidade
Formas
de intertextualidade explícita como a epígrafe, a citação, a alusão, a
epígrafe, a paráfrase e a paródia são recursos retóricos muito eficientes e,
por isso, muito usados principalmente porque produzem argumentos de autoridade
amparados em afirmações tidas como verossímeis e merecedoras de respeito.
Quanto
à citação (argumento de autoridade) e à alusão, é perceptível o
emprego delas mais frequentemente em textos de caráter científico, visto que
eles são construídos com o amparo de argumentos e descobertas anteriores
tornados pontos de partida de pesquisas e textos subsequentes. Por isso,
especialmente a citação é um pilar do pensamento científico.
"Em
apresentações de utopias, a moda em geral está ausente. Já podemos ver isso na
'Utopia" de Thomas More, em que todos usam o mesmo tipo de roupas funcionais
que não foram tingidas e não mudaram de forma por séculos. More frisa também
que todas as roupas são usadas até que se estraguem. Regimes totalitários
também tenderam a levar todos os cidadãos do país a usar uniformes. O 'termo
Mao' é um exemplo típico. Borus Goys descreve a moda como antiutópica e
antiautoritária porque sua constante mudança solapa a possibilidade da
existência de verdades universais que seriam capazes de determinar o
futuro." (Lars Svendsen em "Moda: uma filosofia")
O
velho Marx tinha razão quando disse: “A religião é o ópio do povo”. Fiéis, no
seu fundamentalismo bíblico, encobrem o rosto com o véu do fanatismo e da
alienação e ainda acham que tudo não passa de uma tramóia... É lamentável. O
neopentecostalismo com a Teologia da Prosperidade não venceu a desilusão do
mundo pós-moderno, onde ainda imperam poder, ganância e corrupção." (Celmo
Antônio de Araújo, Veja cartas, 24/01/07, p.32)
"Sou
contra a descriminalização do aborto porque entendo que a vida humana começa
com a fecundação e que, por isso mesmo, é um direito natural que deve ser
juridicamente protegida e garantida. Portanto, a descriminalização seria uma
legalização às avessas, pois, o que o ordenamento jurídico não tipifica como
crime passa a ser permitido. E o que passa a ser permitido? A prática do
aborto. E o que é pior: sem nenhuma limitação. Seria o pior dos mundos para os
nascituros que, sem defesa, estariam sujeitos a serem eliminados em qualquer
fase de sua gestação. Sou contra esta proposta de plebiscito sobre o aborto
porque entendo que é inconstitucional uma vez que a Constituição Brasileira, em
seu art. 5°, dispõe que o direito à vida é inviolável." (Jaime Ferreira
Lopes, Coordenador nacional do Movimento Brasil Sem Aborto)
Quanto
à epígrafe, percebe-se que a intertextualidade entre esse texto
introdutório e o que ele introduz diz sobre uma compreensão do autor sobre a
sua própria obra e sobre como, a partir da intertextualidade, ela pode ser
entendida. É um recurso possível em todos os tipos de texto, ainda que mais
presente na Literatura, em especial em contos e poemas.
Sobre
a paráfrase (argumento de autoridade), entendem-se as razões
justificadoras do seu uso de forma muito semelhante às da citação, já que o
procedimento de transpor as ideias de alguém para um discurso diferente no
mesmo idioma do texto original é um meio de ratificar que as afirmações de
alguém sobre um determinado assunto são razoáveis e pertinentes para que esses
argumentos sejam recebidos pelos interlocutores de forma mais respeitosa e
aberta. A paráfrase pode ser usada ainda como um mecanismo de adaptação de uma
mensagem a um novo contexto para atualizá-la ou torná-la mais adequada a ele.
"O
desenvolvimento da moda foi um dos eventos mais decisivos da história mundial,
porque indicou a direção da modernidade. Há na moda um traço vital da
modernidade: a abolição de tradições. Nietzche a enfatizou como uma
característica do moderno porque ela é uma indicação da emancipação, entre
outras coisas, de autoridades. Mas a moda encerra também em elemento que a
modernidade não teria gostado de reconhecer. Ela é irracional. Consiste na
mudança pela mudança, ao passo que a modernidade se vê como constituída por
mudanças que conduzem a uma autodeterminação cada vez mais racional."
(Lars Svendsen)
"Sou
pessimista diante da ideia de que o homem, quando nasce, já começa a morrer,
como notou Jean Paul Sartre. Mas, na vida, caminhamos rindo e chorando o tempo
todo: é preciso, então, aproveitar o lado bom da vida, usufruir o melhor
possível e aceitar os outros como eles são. Sempre digo: o importante é o homem
sentir como é insignificante, é o homem olhar para o céu e ver como somos
pequeninos. Ultimamente, no entanto, tenho me espantado como a inteligência do
homem é fantástica! Tenho conversado sobre astronomia. Como é imprevisível o
que ele pode criar!" (Oscar Niemeyer)
Já
no caso da paródia, há uma intenção humorística, ou até sarcástica, na
escolha de produzir um texto sob uma perspectiva intertextual, que é de
criticar, satirizar as ideias e as concepções do autor de um filme, uma música,
um livro, etc. Bandas como Língua de Trapo e Mamonas Assassinas, grupos
humorísticos como o Casseta e Planeta, TV Pirata, Porta dos Fundos,
Parafernalha, entre outros, usam a paródia para demarcarem posicionamentos
sobre diversos assuntos, em especial os costumes de um povo, a vida política de
um país, as celebridades, etc. Uma paródia pode ser usada para produzir uma
caricatura de alguém com a ajuda de uma figura de linguagem chamada hipérbole
ou mesmo para criticar discurso preexistente ao recriá-lo numa versão que
hipertrofia, maximiza, ignora, extrapola ou agrava determinada característica
com o objetivo de conseguir um efeito ao mesmo tempo cômico, difamatório e
crítico em diferentes intensidades que dependem de um lado do interesse do
autor de um texto em relação á intensidade com que quer criticar o texto, a
pessoa ou a manifestação a ser parodiada e, de outro lado, da capacidade do
interlocutor de percebê-los e relacioná-los com a obra parodiada.
6
– Retificação e ratificação
A retificação é
um recurso argumentativo mais comum ao discurso espontâneo e oral, como meio de
mostrar atenção ao que se diz, ou mesmo como forma de corrigir a si mesmo antes
que outros o façam e enfraqueçam ainda mais a tese defendida em um texto.
“Se
foi tão nobre a invenção do barco que leva de um lugar a outro as riquezas e os
prazeres da vida e comunica entre si as regiões mais distantes para que
compartilhem seus diversos produtos, muito mais se deve exaltar aos livros que,
como os navios, atravessam os extensos mares do tempo e permitem aos homens
participar da sabedoria, das luzes e dos descobrimentos das idades mais
remotas.” (Francis Bacon)
Quanto
à ratificação, é um recurso mais contundente e acertado de produzir
impressões positivas em relação a determinado posicionamento, que, por ser
reforçado e confirmado, ganha maior chance de alcançar confiabilidade por parte
dos seus receptores.