Falar
em história das mulheres é algo um tanto novo no meio acadêmico brasileiro, mas
a questão, aos poucos, vem tomando corpo e invadindo espaços variados de
investigação. Maior novidade ainda é falar nos temas "mulheres",
"gênero" e "feminino" como conceitos, o que remete ao campo
próprio da filosofia. O significado desses termos tem plena atualidade
filosófica e crítica. Em primeiro lugar, as mulheres são um tema ou mesmo um
tópos de uma história da filosofia escrita por homens. É raro encontrar um
filósofo que não tenha se ocupado da questão sempre tratada na intenção da
delimitação do lugar do humano em sua relação com as mulheres. Enquanto tema, e
em segundo lugar, elas são um assunto que entrelaça motivos políticos,
estéticos e metafísicos. É nesse território que aparece o conceito do feminino.
Os filósofos homens tentaram construir uma geografia onde situar o feminino
que, como símbolo, é o locus específico eleito para as mulheres, para definir
sua natureza e ditar-lhes uma lei, uma inscrição no universo previamente tecido
da tradição. Gênero é o termo usado há algumas décadas para falar dessa
produção de identidade segundo a cultura, a sociedade e os mecanismo de poder
nela envolvidos. Gênero, portanto, para o feminismo, é um conceito crítico. Do
mesmo modo, os outros dois conceitos devem ser vistos de modo crítico, considerando
o aspecto retórico, a função e o uso que tentam fazer valer a verdade histórica
contida na palavra.
O
feminismo filosófico surge diante dessas questões. Um de seus aspectos
fundamentais - que poderá qualificar o feminismo em filosofia em relação aos
movimentos feministas de teor eminentemente prático - é a questão da relação
entre teoria e prática, do conhecimento e da ação, que fundam o sentido do que
chamamos, ainda hoje, de filosofia. O feminismo ajuda a questionar o discurso
filosófico em seus pressupostos fundamentais e mesmo arcaicos, tendo a
filosofia como uma teoria da ação. É preciso ter em vista que a atualidade das
questões políticas que envolvem as mulheres em tantos setores da atividade
humana (problema sério em países inteiros) não pode ser compreendida sem
atenção aos aspectos de fundo, ao espaço da fundamentação
metafísica/ética/estética, que pode orientar para a recuperação da vocação
prática da filosofia. A questão feminina é atual e dispõe-se na urgência da
produção da solidariedade com o passado, o presente e o futuro da humanidade.
As mulheres compõem a história violentada sob o decreto da exclusão da mulher;
do mesmo modo, a história da filosofia que, como qualificação do pensamento e
da razão, determina os conceitos fundamentais que estão na base da estrutura da
sociedade, participa dessa violência. O feminismo filosófico, lembremos, em sua
exposição especial com Mary Wollstonecraft, no século XVIII, era a defesa do
bom senso da humanidade. Portanto, uma causa voltada para a construção de uma
sociedade para todos, não apenas de homens, nem apenas de mulheres. O feminismo
filosófico vem levantar essa questão que é ainda atual e que diz respeito à
fundação de uma sociedade justa em que a violência e a dominação sejam expostas
em seus elementos constitutivos.
A
definição filosófica do feminismo, todavia, é tão complexa quanto a história da
filosofia. É preciso uma definição apropriada do que se entende por essa
história para que o conceito do feminismo e os movimentos que ele permite
possam ter validade filosófica. Enquanto história, a filosofia constitui-se
como tradição e cânone do qual as mulheres não participaram de modo relevante.
O feminismo filosófico é a teoria que procura investigar a fundamentação dessa
falta. É um modo de teorização que surge com a já citada Wollstonecraft, em
seus Escritos Políticos, nos quais critica o sexismo dos filósofos homens (de
Rousseau ao seu contemporâneo Burke), e que evolui até o século XX, com
filósofas como Simone de Beauvoir em seu O Segundo Sexo, alertando para os
direitos das mulheres na base de uma reivindicação a ser e a pensar, à vida
pública e ao universo do discurso e do poder. De meados do século XX até hoje,
o feminismo cresce como filosofia que tenta rever o posicionamento da mulher
diante da estrutura social e da produção do conhecimento. Se as mulheres
constróem um lugar de filósofas no século XX, é porque participaram de uma
revolução real que altera as micro e macro estruturas da sociedade ao
confirmarem sua presença. Esse é o avanço do feminismo para a filosofia:
produzir a entrada das mulheres na cena ontológica - o poder ser - que redunda
na cada vez mais crescente cena política e pública consituindo as mulheres como
cidadãs, ou seja, seres que participam da constituição política como
participantes - que não seja uma mera tautologia dizer - da "pólis".
A
ausência histórica das mulheres da filosofia pode ser explicada de muitos
modos. O primeiro motivo a ser levantado é, portanto, o silêncio feminino
facilmente observável na um tanto escassa produção de livros e textos. As
mulheres filósofas são poucas e de produção quase rara relativamente aos
homens. É claro que falo aqui em termos quantitativos. Não é possível dizer que
as mulheres escreveram muito para acobertar uma acusação de inferioridade
intelectual - argumento que, mesmo comum, não encontraria sustentação -, nem é
possível dizer, entretanto, que não escrevessem ou participassem da fundação da
tradição da filosofia. É preciso enfrentar a questão do silenciamento. Apenas a
desmontagem desse processo histórico, por meio de uma genealogia que procura
verificar seus elementos originários sempre presentes e renascentes na
atualidade, permitirá compreender, pela via negativa, a verdade oculta na
produção do silêncio imposto. As mulheres, é certo, participaram da filosofia,
mas pela porta dos fundos, assim como de todos os setores da vida produtiva e
ativa das sociedades. A improdutividade das mulheres - que não se esqueça - não
pode ser avaliada sem a procura por aspectos que tocam na fundamentação dos
movimentos da história. A alegação de que as mulheres tenham sido, ao longo do
tempo, seres do silêncio por sua própria natureza ou que, na divisão do
trabalho, tenham ficado com as tarefas do corpo, da procriação, da casa, da
agricultura, da domesticação dos animais, por questões sempre naturais, perde
sua validade. A produção do ideal da "natureza feminina", assim como
de uma "natureza do homem" ou mesmo uma "natureza humana"
serve à delimitação do humano segundo a utilidade necessária à constituição e
ao interesse do poder e seus guardiões. Os filósofos sempre tocaram com essa
questão na produção do humano por meio de sua definição. As mulheres sempre
representaram mais do que a cultura excluída da cultura, ou da cena dos meios
de produção e do conhecimento: as mulheres representam a humanidade excluída da
humanidade.
O
segundo motivo da ausência é, pois, a construção de um ideal feminino que
mascara o recalque do corpo, da natureza, da vida nua - na expressão de Walter
Benjamin - da qual coube às mulheres serem os estranhos porta-vozes: toda fala
das mulheres, a partir desse pressuposto, precisa ser compreendida sob o signo
do silêncio que a revela. Se o silêncio apareceu na história como um atributo
feminino, que constituía parte do suposto mistério constitutivo da mulher - e
mesmo do feminino enquanto ideal - é preciso rever seu lugar e pensar a
construção do lugar do silêncio no qual as mulheres foram trancadas, assim como
o foram em casas, escolas, conventos e manicômios para histéricas. O
silenciamento das mulheres ocorreu em momentos específicos da história e
concomitante a um processo que teve vítimas em setores variados. O
silenciamento teve seu modo pérfido, quando mulheres foram levadas à fogueira,
e teve seu modo cínico: as mulheres foram transformadas no "belo
sexo" produzido pela cultura com o apoio da filosofia e das artes. A
produção do ideal do belo sexo, a propósito, é uma marca da modernidade: sua
função sempre foi a de afastar as mulheres do conhecimento e da política, mais
do que protegê-las da imagem do mal com que foram desenhadas.
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