sábado, 1 de fevereiro de 2014

A QUESTÃO INDÍGENA - CONFLITOS E SUSTENTABILIDADE

O grau de urbanização de Rondônia é um dos menores da região amazônica, mas com a maior densidade demográfica, ou seja, uma boa parte da população rondoniense ainda está na área rural e representa baixo índice de pobreza extrema, fenômeno mais presente entre ribeirinhos e na periferia das cidades.
As ocupações e os assentamentos na Amazônia, principalmente em Rondônia, são prova dos equívocos da estrutura agrária e dos modelos econômicos que subsistem no Brasil há séculos, que não permitem a convivência entre agronegócio, produção familiar e sustentabilidade. Esse sistema está gerando, só em Rondônia, 92 focos de conflitos, com 2.920 famílias envolvidas, segundo números atualizados da Comissão Pastoral da Terra.

modelo de agricultura familiar às margens do rio Mamoré
Foto Wilson Dias/ABR

O modelo de colonização – “amansamento” – das novas fronteiras onde floresta, índios e povos tradicionais eram as únicas ameaças à “segurança do colonizador” foi, sem dúvida, um grande achado. Semelhante ao ocorrido no Paraná dos anos 1930 a 1970, aliviou as pressões por terras nos grandes centros (Sul, Sudeste e Nordeste).
O capitalismo agrário chegou para ficar. Ao Estado militar coube “resolver os conflitos” sem reforma agrária, com grande incentivo à implantação de agropecuária e serrarias na Amazônia por meio da Sudam e com os Projetos Integrados de Colonização (PICs) administrados pelo Incra. É importante lembrar que não temos histórico de conflito por terra nesses projetos, pois havia ali estrutura mínima de estradas e créditos para realizar o corte raso da floresta. Tais incentivos não existiram para capixabas, nordestinos e sulistas, que trabalhavam em suas pequenas propriedades apenas para o sustento familiar. Meeiro, peonatos, mulheres e crianças que compunham a força de trabalho no campo (os escravos brancos) representavam também um elemento a mais na pressão das lutas dos pequenos proprietários para ficar na terra e por um pedaço de terra para eles próprios.
Há ainda as famílias que, por alguma “sorte”, saíram do peonato no campo para se transformar em operários das madeireiras, nas mesmas condições de explorados. Com a escassez de madeira no Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul, aumentam nas pequenas cidades o desemprego, a tensão social e a criminalidade. Esses são motivos a mais para buscar matéria-prima nas novas fronteiras e gerar emprego e renda, fenômeno que ocorre até os dias de hoje, em todos os estados do Norte, pela manutenção do modelo secular de exploração dessa matéria-prima no país: predatória, concentradora de renda, com vastas fronteiras a “desbravar”. As serrarias servem como ponta de lança para avançar nas terras devolutas, indígenas, da União, áreas de conservação, reservas e parques.
Na década de 1970, as atividades econômicas no campo e nas cidades foram impulsionadas pelo “milagre”, e uma fronteira reconhecidamente rica, disputada há séculos, teria de ser aberta à exploração econômica. Os governos militares criaram os grandes projetos para a Amazônia, com enfoque em três vieses: o econômico, o “social” (promover a paz no campo) e a segurança nacional. Guerra fria em alta, o perigo iminente com Allende no Chile, Che Guevara rondando pela Bolívia, Peru instável politicamente, Golbery do Couto e Silva vaticinava a nova geopolítica. Instrumento para a abertura das veias para o avanço e a expansão capitalista, o modelo visava à ocupação dos “vazios demográficos” nas regiões de fronteira entre nações soberanas e as nações indígenas, vide Raposa Serra do Sol, representavam um estorvo para os interesses econômicos onde minérios, madeira e pedras preciosas foram explorada sem deixar recompensa alguma para Rondônia. As terras das seringueiras, castanheiras, essências e óleos, deram lugar ao pé de café e pastagem para criar gado.
Primeira ocupação
Os “estrangeiros” chegaram aos milhares nas terras (hoje) rondonienses na segunda metade do século 18 para edificar o Real Forte Príncipe da Beira, iniciado em 1776, fruto da política “pombalina”, no Rio Guaporé, fronteira com a Bolívia. Centenas de escravos, presos e militares povoaram o rio em toda a sua extensão navegável, de Guajará-Mirim (RO) a Vila Bela da Santíssima Trindade (MT). “Misturados” aos índios, adensaram a população ribeirinha. Tornaram-se os povos tradicionais de hoje (caboclos ribeirinhos), que ainda sofrem com os efeitos da colonização e o modelo de produção fortemente introduzido no sul de Rondônia e oeste de Mato Grosso. Muitas áreas indígenas foram invadidas por fazendas, madeireiros e usina hidrelétrica. Sete localidades tradicionais e quilombolas estão em conflito com os “invasores”. Não assimilaram a invasão cultural que já se reflete na centenária manifestação cultural dos povos tradicionais brasileiros e bolivianos, que é a festa do Divino Espírito Santo no Guaporé. Pouco ou quase nada foi feito em termos de políticas afirmativas para estancar os efeitos perversos da colonização. Os conflitos culturais e de terras se multiplicam ao longo do rio.
Outra leva de “estrangeiros” aportou na segunda metade do século 19 e início do século 20, fruto do tratado de Ayacucho (tratado de amizade Brasil-Bolívia), quando a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré foi acertada entre os dois países. A partir de 1905, milhares de operários de diversas nacionalidades afluíram a Santo Antônio, hoje Porto Velho, para trabalhar na ferrovia, muitos até a morte, vítimas de malária, tifo, febre amarela, picadas de cobras, acidentes. Os primeiros operários da história de Rondônia protagonizam também os primeiros conflitos sangrentos entre índios e brancos, amarelos e negros, trabalhadores e seguranças do empreendimento capitalista E.F.M.M. Railway Co., em Rondônia, para a construção da ferrovia. Em seguida, os seringalistas completaram o trabalho de dizimação de nações indígenas no primeiro e no segundo ciclo da borracha, do início do século 20 até a Segunda Guerra Mundial.
Seringueiros x índios
O látex espalhou seringueiros nordestinos, principalmente cearenses, nas margens dos rios de Rondônia, desde o Cabixi, afluente do Mamoré que faz divisa de Rondônia com Mato Grosso e Bolívia, principais “estradas” para Guajará-Mirim. O Rio Machado, que faz divisa de Rondônia com Mato Grosso e Amazonas, os “fundos” de Rondônia à época, hoje faz parte do hall de entrada para o estado. Rios coletores da borracha para Calama, Porto Velho e Humaitá no Amazonas, além do Vale do Rio Jamari. Para ilustrar o desastre que representou para as nações indígenas o contato com seringueiros e seringalistas, citamos dois povos extintos: os Ariken e Jarus. Em cinco anos de aproximação e contato com a Comissão Rondon, que implantou o serviço telegráfico Cuiabá-Porto Velho, e em seguida com o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), de 1909 a 1914, pereceram 90% dos Ariken. Mulheres e crianças foram roubadas para servir de escravas, prostitutas e esposas de seringueiros. Hoje, resta apenas a Cidade de Ariquemes às margens do Rio Jamari, “homenageando” essa nação de gente dócil, afeita às amizades, que por isso mesmo não resistiu ao primeiro ciclo da borracha.
Os conflitos entre índios e seringueiros, garimpeiros, mineradoras, madeireiros e grileiros acontecem até hoje nessa grande região que compõe o arco da exploração predatória da BR-421. Onze homicídios sem esclarecimento de 2001 a 2009, dezoito áreas de conflitos e nenhuma vontade política de resolvê-los.
Ainda existem dezessete nações indígenas em Rondônia, segundo a Funai, além das fusões de troncos étnicos de várias tribos que ocupavam áreas distintas ou nômades, resistindo a muita pressão em Rondônia. A tensão é constante em todos os segmentos da economia em operação no campo. A população indígena vem crescendo, mas o ceticismo da Funai e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) é grande quanto ao fim dos conflitos. Ambas as instituições acreditam na existência de índios não contatados em pelo menos duas regiões, sul e no norte do estado – inclusive na região da Hidrelétrica de Jirau, em construção.
Distribuição das terras
As grandes propriedades rurais do estado estão concentradas basicamente em Porto Velho, Machadinho, Guajará-Mirim e na grande região de Buritis. Só no município de Porto Velho, por exemplo, 38 imóveis com 1,3 milhão de hectares estão nas mãos de 29 pessoas devidamente cadastradas e codificadas no Incra-RO. Rondônia têm 91 imóveis que medem de dez a quatrocentas mil hectares juntas concentram  2.579.437,1. Não foi  sem motivo. Seringa, castanha, cassiterita, ouro e outros minerais, terras devolutas, acesso fácil fizeram da região, no início do século 20, o paraíso dos seringalistas. Ainda hoje há 300 mil hectares de seringais registrados em Rondônia. O Incra ainda luta para retomar 9,6 milhões de hectares de terras públicas ocupadas, invadidas, fraudadas no estado. Outra correção necessária é a definição de propriedade dos Contratos de Alienação de Terras Públicas (CATPs), aberração praticada pelo Incra de 1978 a 1982 que distribuiu 535 CATPs com 2 mil hectares cada um, “pequenos mimos” dos militares para aliados e simpatizantes. No total, 1,070 milhão de hectares, concentrados no centro-sul do estado, hoje foco de conflitos.
Rondônia tem 193 projetos de assentamentos do Incra com quase 6 milhões de hectares para 63.994 famílias assentadas e apenas 1.716 propriedades tituladas. Aí está a dificuldade para contratar financiamentos. Das propriedades rurais, 93% têm até 200 hectares, 37% da área agricultável. Os 7% restantes ocupam 63% dessas terras, verdadeiros oligopólios. Vamos dar como exemplo duas famílias: Y. B. Sabba, com sete espólios em Porto Velho e Guajará-Mirim, é dono de 368.012 hectares; e Otavio Reis, em Bom Futuro, de 255.246 hectares. Não haverá paz com tamanha desigualdade. Terras com produtividade duvidosa, e o Incra sem condições de dar celeridade aos processos de retomada e definição de propriedade. São apenas três os procuradores no Incra para cuidar de aproximadamente 19 milhões de hectares, 270 ações peticionadas, um único “proprietário”, que geralmente é político, magistrado ou testa de ferro, que contrata quatro ou cinco advogados para defender as terras que originariamente pertencem à União. Nessas condições, em um século – para os otimistas – teremos Rondônia pacificado, os acampados devidamente assentados, todas as terras indígenas demarcadas, parques e reservas respeitados, enfim, o Eldorado. Há forte questionamento de líderes camponeses e juristas quanto ao ordenamento jurídico e a aplicabilidade dos artigos 184 a 191 da Constituição, principalmente o artigo 187.
Modelo econômico no novo “Eldorado”
As serrarias e a agricultura familiar aquecem a economia nas primeiras décadas de ocupação. Vilas e distritos se expandem. Mas a terra fica exaurida no máximo em cinco anos sem o uso de tecnologias, rotatividade, assistência e planejamento. Os pequenos produtores plantam o capim em busca da “rentabilidade” do leite e da carne bovina. Novas derrubadas avançam até onde são ou não permitidas pela legislação, a “fiscalização” aperta e invariavelmente sofrem pressão e até extorsão. A burocracia e o custo de uma licença para manejos são impraticáveis para os pequenos proprietários. Estes vendem suas propriedades (muitas delas frutos de assentamentos do Incra), arriscam-se em busca de novas fronteiras, adquirem áreas maiores em regiões de conflito.
Essa é a forma que se dão as reconcentrações das terras, que se transformam em fazendas de gado. Grandes plantações. Já o agricultor familiar nas suas novas áreas substitui a roça pela vaca leiteira, não cria mais animais de pequeno porte nem aves. A monocultura avança. Encolhem-se as cidades pequenas do entorno, o comércio varejista de bens não voltado para insumos da pecuária fecha. Esse é um modelo que anda em círculo e mantém nossos índices de produtividade de alimentos lá na década de 1970.
Os quadros abaixo ilustram a perversidade do modelo capitalista agrário para Rondônia e seu agricultor familiar. Cabe debater a durabilidade desse modelo, já que a reforma agrária e a sustentabilidade não estão na agenda dos entes federativos como prioridade.



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