O grau de urbanização de Rondônia é um dos menores
da região amazônica, mas com a maior densidade demográfica, ou seja, uma boa
parte da população rondoniense ainda está na área rural e representa baixo
índice de pobreza extrema, fenômeno mais presente entre ribeirinhos e na
periferia das cidades.
As ocupações e os assentamentos na Amazônia,
principalmente em Rondônia, são prova dos equívocos da estrutura agrária e dos
modelos econômicos que subsistem no Brasil há séculos, que não permitem a
convivência entre agronegócio, produção familiar e sustentabilidade. Esse
sistema está gerando, só em Rondônia, 92 focos de conflitos, com 2.920 famílias
envolvidas, segundo números atualizados da Comissão Pastoral da Terra.
modelo de agricultura familiar às margens do rio Mamoré
Foto Wilson Dias/ABR
O modelo de colonização – “amansamento” – das novas
fronteiras onde floresta, índios e povos tradicionais eram as únicas ameaças à
“segurança do colonizador” foi, sem dúvida, um grande achado. Semelhante ao
ocorrido no Paraná dos anos 1930 a 1970, aliviou as pressões por terras nos
grandes centros (Sul, Sudeste e Nordeste).
O capitalismo agrário chegou para ficar. Ao Estado
militar coube “resolver os conflitos” sem reforma agrária, com grande incentivo
à implantação de agropecuária e serrarias na Amazônia por meio da Sudam e com
os Projetos Integrados de Colonização (PICs) administrados pelo Incra. É
importante lembrar que não temos histórico de conflito por terra nesses
projetos, pois havia ali estrutura mínima de estradas e créditos para realizar
o corte raso da floresta. Tais incentivos não existiram para capixabas,
nordestinos e sulistas, que trabalhavam em suas pequenas propriedades apenas
para o sustento familiar. Meeiro, peonatos, mulheres e crianças que compunham a
força de trabalho no campo (os escravos brancos) representavam também um
elemento a mais na pressão das lutas dos pequenos proprietários para ficar na
terra e por um pedaço de terra para eles próprios.
Há ainda as famílias que, por alguma “sorte”,
saíram do peonato no campo para se transformar em operários das madeireiras,
nas mesmas condições de explorados. Com a escassez de madeira no Paraná, Santa
Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul, aumentam nas pequenas cidades
o desemprego, a tensão social e a criminalidade. Esses são motivos a mais para
buscar matéria-prima nas novas fronteiras e gerar emprego e renda, fenômeno que
ocorre até os dias de hoje, em todos os estados do Norte, pela manutenção do
modelo secular de exploração dessa matéria-prima no país: predatória,
concentradora de renda, com vastas fronteiras a “desbravar”. As serrarias
servem como ponta de lança para avançar nas terras devolutas, indígenas, da
União, áreas de conservação, reservas e parques.
Na década de 1970, as atividades econômicas no
campo e nas cidades foram impulsionadas pelo “milagre”, e uma fronteira
reconhecidamente rica, disputada há séculos, teria de ser aberta à exploração
econômica. Os governos militares criaram os grandes projetos para a Amazônia,
com enfoque em três vieses: o econômico, o “social” (promover a paz no campo) e
a segurança nacional. Guerra fria em alta, o perigo iminente com Allende no
Chile, Che Guevara rondando pela Bolívia, Peru instável politicamente, Golbery
do Couto e Silva vaticinava a nova geopolítica. Instrumento para a abertura das
veias para o avanço e a expansão capitalista, o modelo visava à ocupação dos “vazios
demográficos” nas regiões de fronteira entre nações soberanas e as nações
indígenas, vide Raposa Serra do Sol, representavam um estorvo para os
interesses econômicos onde minérios, madeira e pedras preciosas foram explorada
sem deixar recompensa alguma para Rondônia. As terras das seringueiras,
castanheiras, essências e óleos, deram lugar ao pé de café e pastagem para
criar gado.
Primeira ocupação
Os “estrangeiros” chegaram aos milhares nas terras
(hoje) rondonienses na segunda metade do século 18 para edificar o Real Forte
Príncipe da Beira, iniciado em 1776, fruto da política “pombalina”, no Rio
Guaporé, fronteira com a Bolívia. Centenas de escravos, presos e militares
povoaram o rio em toda a sua extensão navegável, de Guajará-Mirim (RO) a Vila
Bela da Santíssima Trindade (MT). “Misturados” aos índios, adensaram a
população ribeirinha. Tornaram-se os povos tradicionais de hoje (caboclos
ribeirinhos), que ainda sofrem com os efeitos da colonização e o modelo de
produção fortemente introduzido no sul de Rondônia e oeste de Mato Grosso.
Muitas áreas indígenas foram invadidas por fazendas, madeireiros e usina
hidrelétrica. Sete localidades tradicionais e quilombolas estão em conflito com
os “invasores”. Não assimilaram a invasão cultural que já se reflete na
centenária manifestação cultural dos povos tradicionais brasileiros e
bolivianos, que é a festa do Divino Espírito Santo no Guaporé. Pouco ou quase
nada foi feito em termos de políticas afirmativas para estancar os efeitos
perversos da colonização. Os conflitos culturais e de terras se multiplicam ao
longo do rio.
Outra leva de “estrangeiros” aportou na segunda
metade do século 19 e início do século 20, fruto do tratado de Ayacucho
(tratado de amizade Brasil-Bolívia), quando a construção da Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré foi acertada entre os dois países. A partir de 1905, milhares de
operários de diversas nacionalidades afluíram a Santo Antônio, hoje Porto
Velho, para trabalhar na ferrovia, muitos até a morte, vítimas de malária,
tifo, febre amarela, picadas de cobras, acidentes. Os primeiros operários da
história de Rondônia protagonizam também os primeiros conflitos sangrentos
entre índios e brancos, amarelos e negros, trabalhadores e seguranças do
empreendimento capitalista E.F.M.M. Railway Co., em Rondônia, para a construção
da ferrovia. Em seguida, os seringalistas completaram o trabalho de dizimação
de nações indígenas no primeiro e no segundo ciclo da borracha, do início do
século 20 até a Segunda Guerra Mundial.
Seringueiros x índios
O látex espalhou seringueiros nordestinos,
principalmente cearenses, nas margens dos rios de Rondônia, desde o Cabixi,
afluente do Mamoré que faz divisa de Rondônia com Mato Grosso e Bolívia,
principais “estradas” para Guajará-Mirim. O Rio Machado, que faz divisa de Rondônia
com Mato Grosso e Amazonas, os “fundos” de Rondônia à época, hoje faz parte do
hall de entrada para o estado. Rios coletores da borracha para Calama, Porto
Velho e Humaitá no Amazonas, além do Vale do Rio Jamari. Para ilustrar o
desastre que representou para as nações indígenas o contato com seringueiros e
seringalistas, citamos dois povos extintos: os Ariken e Jarus. Em cinco anos de
aproximação e contato com a Comissão Rondon, que implantou o serviço
telegráfico Cuiabá-Porto Velho, e em seguida com o Serviço de Proteção ao Índio
(SPI), de 1909 a 1914, pereceram 90% dos Ariken. Mulheres e crianças foram
roubadas para servir de escravas, prostitutas e esposas de seringueiros. Hoje,
resta apenas a Cidade de Ariquemes às margens do Rio Jamari, “homenageando”
essa nação de gente dócil, afeita às amizades, que por isso mesmo não resistiu
ao primeiro ciclo da borracha.
Os conflitos entre índios e seringueiros,
garimpeiros, mineradoras, madeireiros e grileiros acontecem até hoje nessa
grande região que compõe o arco da exploração predatória da BR-421. Onze
homicídios sem esclarecimento de 2001 a 2009, dezoito áreas de conflitos e
nenhuma vontade política de resolvê-los.
Ainda existem dezessete nações indígenas em
Rondônia, segundo a Funai, além das fusões de troncos étnicos de várias tribos
que ocupavam áreas distintas ou nômades, resistindo a muita pressão em
Rondônia. A tensão é constante em todos os segmentos da economia em operação no
campo. A população indígena vem crescendo, mas o ceticismo da Funai e do Conselho
Indigenista Missionário (Cimi) é grande quanto ao fim dos conflitos. Ambas as
instituições acreditam na existência de índios não contatados em pelo menos
duas regiões, sul e no norte do estado – inclusive na região da Hidrelétrica de
Jirau, em construção.
Distribuição das terras
As grandes propriedades rurais do estado estão
concentradas basicamente em Porto Velho, Machadinho, Guajará-Mirim e na grande
região de Buritis. Só no município de Porto Velho, por exemplo, 38 imóveis com
1,3 milhão de hectares estão nas mãos de 29 pessoas devidamente cadastradas e
codificadas no Incra-RO. Rondônia têm 91 imóveis que medem de dez a
quatrocentas mil hectares juntas concentram 2.579.437,1. Não foi
sem motivo. Seringa, castanha, cassiterita, ouro e outros minerais, terras
devolutas, acesso fácil fizeram da região, no início do século 20, o paraíso
dos seringalistas. Ainda hoje há 300 mil hectares de seringais registrados em
Rondônia. O Incra ainda luta para retomar 9,6 milhões de hectares de terras
públicas ocupadas, invadidas, fraudadas no estado. Outra correção necessária é
a definição de propriedade dos Contratos de Alienação de Terras Públicas
(CATPs), aberração praticada pelo Incra de 1978 a 1982 que distribuiu 535 CATPs
com 2 mil hectares cada um, “pequenos mimos” dos militares para aliados e
simpatizantes. No total, 1,070 milhão de hectares, concentrados no centro-sul
do estado, hoje foco de conflitos.
Rondônia tem 193 projetos de assentamentos do Incra
com quase 6 milhões de hectares para 63.994 famílias assentadas e apenas 1.716
propriedades tituladas. Aí está a dificuldade para contratar financiamentos.
Das propriedades rurais, 93% têm até 200 hectares, 37% da área agricultável. Os
7% restantes ocupam 63% dessas terras, verdadeiros oligopólios. Vamos dar como
exemplo duas famílias: Y. B. Sabba, com sete espólios em Porto Velho e
Guajará-Mirim, é dono de 368.012 hectares; e Otavio Reis, em Bom Futuro, de
255.246 hectares. Não haverá paz com tamanha desigualdade. Terras com
produtividade duvidosa, e o Incra sem condições de dar celeridade aos processos
de retomada e definição de propriedade. São apenas três os procuradores no
Incra para cuidar de aproximadamente 19 milhões de hectares, 270 ações
peticionadas, um único “proprietário”, que geralmente é político, magistrado ou
testa de ferro, que contrata quatro ou cinco advogados para defender as terras
que originariamente pertencem à União. Nessas condições, em um século – para os
otimistas – teremos Rondônia pacificado, os acampados devidamente assentados, todas
as terras indígenas demarcadas, parques e reservas respeitados, enfim, o
Eldorado. Há forte questionamento de líderes camponeses e juristas quanto ao
ordenamento jurídico e a aplicabilidade dos artigos 184 a 191 da Constituição,
principalmente o artigo 187.
Modelo econômico no novo “Eldorado”
As serrarias e a agricultura familiar aquecem a
economia nas primeiras décadas de ocupação. Vilas e distritos se expandem. Mas
a terra fica exaurida no máximo em cinco anos sem o uso de tecnologias,
rotatividade, assistência e planejamento. Os pequenos produtores plantam o
capim em busca da “rentabilidade” do leite e da carne bovina. Novas derrubadas
avançam até onde são ou não permitidas pela legislação, a “fiscalização” aperta
e invariavelmente sofrem pressão e até extorsão. A burocracia e o custo de uma
licença para manejos são impraticáveis para os pequenos proprietários. Estes
vendem suas propriedades (muitas delas frutos de assentamentos do Incra),
arriscam-se em busca de novas fronteiras, adquirem áreas maiores em regiões de
conflito.
Essa é a forma que se dão as reconcentrações das
terras, que se transformam em fazendas de gado. Grandes plantações. Já o
agricultor familiar nas suas novas áreas substitui a roça pela vaca leiteira,
não cria mais animais de pequeno porte nem aves. A monocultura avança.
Encolhem-se as cidades pequenas do entorno, o comércio varejista de bens não
voltado para insumos da pecuária fecha. Esse é um modelo que anda em círculo e
mantém nossos índices de produtividade de alimentos lá na década de 1970.
Os quadros abaixo ilustram a perversidade do modelo
capitalista agrário para Rondônia e seu agricultor familiar. Cabe debater a
durabilidade desse modelo, já que a reforma agrária e a sustentabilidade não
estão na agenda dos entes federativos como prioridade.
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