terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

UMA NARRATIVA DO SER EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS


Um dos temas desse livro é a narrativa sobre a viagem do ser, não só como deslocamento físico, mas como transformações pessoais que os personagens e, principalmente Riobaldo, sofrem no decorrer dos acontecimentos. Estas transformações iniciam-se como conflitos frente aos aspectos contraditórios do sertão - enquanto espaço físico que abriga belezas e crueldades, vidas e mortes, aves, flores e bichos peçonhentos - e, deste mesmo sertão enquanto símbolo da amplitude e do estreitamento das relações humanas. Amplitudes de amores e estreitamentos de ódios e vinganças. A tessitura do livro se fará através da narrativa do personagem, o qual pretende transformar-se pela reconstrução de seu passado em texto, sendo esta uma maneira de compreender o ser, a vida e seus movimentos. É desta maneira que o personagem anuncia esta tarefa de transformar a ex-istência em um novo texto:

De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícil, peixe vivo no moquém: quem mói no aspro, não fantasêia. Mas agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos desassossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular ideia. (Rosa, 1985, p. 11)

A questão da narrativa dos movimentos do ser na busca pelo desvelar-se é, a todo momento, destacada no texto, e Riobaldo narrador-personagem tem a constante preocupação de buscar “o justo dizer dos acontecimentos”, ou seja, de ser capaz de se comprometer e avaliar cada acontecimento com sua exata importância, pois cada passagem da vida tem seu peso e seu significado enquanto experiência que fundou memórias e consciências.

Contar seguido, alinhavado, só mesmo coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe. (Rosa, 1985, p.95)

 Diante desta e de outras colocações no texto sobre a importância e a dificuldade do narrar (“Contar é muito, muito dificultoso”), é possível colocar-se em acordo com os dizeres: “O que determina o texto é a vida, mas o que explica a vida é o texto.” (Galvão, 1982, p.86). Assim,

pode-se pensar que a narrativa é a malha das letras que - no texto - enunciam as posicionalidades através das experiências do personagem nesta viagem do ser-viver: existir.

Durante sua narrativa, Riobaldo vai denunciando a existência dos contraditórios das experiências e marcando-os com exemplos da terra e das convivências. Estórias de mandioca boa que se torna brava e mata; de águas límpidas que destroem facas que ali caem; de lugares belos onde habitam animais peçonhentos, osgas. Estórias como a de Pedro Aleixo que mata um velho e por castigo vem a cegueira de seus filhos; do menino Valtêi que abre a perna de uma mulher e recebe sadicamente o castigo dos pais que o surram até a morte; de Maria Mutema que sem motivo aparente mata o marido e o padre com o chumbo físico e o simbólico - a palavra.

Guimarães Rosa constrói o texto a partir dos constantes contraditórios que habitam o ser e o viver e que impedem ao homem a unidade e coerência absoluta - próprios do pensamento totalitário iluminista. Quando o homem crê atingir a unidade, os sentimentos se misturam, os fatos alteram-se, os caminhos mudam de rumo, e é esta presença de sentidos e sentimentos outros que desconstroem organizações anteriores e movem as transformações do ser nessa viagem. É a dificuldade, senão impossibilidade de ser UM, que torna o viver perigoso e que traz o diabo na rua no meio do redemoinho.

 Ao desorganizar o organizado do raciocínio totalitário iluminista, o homem tem de reiniciar sua busca de sentidos, projetos e linguagens. E, só pode haver novos sentidos, projetos e significados onde houve deslocamento e desconstrução dos mesmos. Traduzindo em uma outra linguagem: a ordem dada do mundo fundado sob o racionalismo ocidental e sua hegemonia política e cultural - baseada na obrigatoriedade da uniformidade de pensar-sentir descrever-escrever o homem e a nação - é alterada pela emergência de uma pluralidade de discursos que tecem relações e percepções diversas em relação a esta mesma hegemonia, e

que traduzem formas de alteridades e de outros projetos para ser-se.

Na linguagem metafórica de Guimarães Rosa, Riobaldo e Diadorim são representações deste deslocamento desconstrutivo de sentidos, desta constante contradição textual tecida na narrativa da linguagem, dos gestos e dos gêneros. Como forma de garantir uma ilusão de unidades e universalidades a cultura construiu as categorias sexuais masculinas x femininas, as quais são um roteiro de signos específicos que determinam pelo gesto, pela linguagem, pelo comportamento e pelo corpo (textual ou não), a definição do que é ser homem e do que é ser mulher.

Na viagem do ser de Grande Sertão Veredas, Guimarães Rosa explicita a fragilidade destas categorias através da relação de Diadorim e Riobaldo. Justamente estas categorias que garantem uma segurança social e política pela ordenação de identidades, também são passíveis de desconstruções de sentidos, sentimentos e de significados, os quais aparecem através de gestos e sentimentos contraditórios que surgem e nutrem-se na relação entre os dois jagunços.

Nesse itinerário onde busca desvelar o ser, o travestimento de Diadorim é um signo denunciador da presença do duplo no suposto Uno. O amor de Riobaldo e Diadorim segue esta

mesma direção e traz nas entrelinhas do texto toda a dificuldade cultural de lidar-se com as desconstruções das categorias sexuais masculinas x femininas.

Isto aparece no constante ir-e-vir dos sentimentos de amor x vergonha e nojo tão presentes nas falas de Riobaldo. E, curiosamente os sentimentos de vergonha e nojo são sentimentos de apreciação do eu e expressam a depreciação que a pessoa sente por não estar escrevendo-se dentro dos cânones do dever ser e parecer ocidental. O dever parecer não suporta duplos, deslocamentos e sentidos outros que denunciem contraditórios, por ser ele a representação maior do pensamento iluminista da unidade pura e natural que garante a ordem do universo. É este pensamento iluminista que obstrui sentidos e significados outros ao ser, ao colocar como NATUREZA HUMANA determinados comportamentos e linguagens concebidas, escritas e lidas como masculinas e femininas. Assim, ele elimina o conceito de ser, de cultura e de sua constante transformação pelas teias de significados construídos em um determinado contexto histórico-econômico-social. Eliminando presenças, cultura e suas significações contextuais, ele escreve identidades imutáveis e cristalizadas, onde qualquer gesto contrário é destacado como desvio de conduta, doença e loucura.

A perspectiva da cultura como mecanismo de controle inicia-se com o pressuposto de que o pensamento humano é basicamente tanto social como público - que seu ambiente natural é o pátio familiar, o mercado e a praça da cidade. Pensar consiste não nos “acontecimentos na cabeça“ (embora seja necessário acontecimentos na cabeça e em outros lugares para que ele ocorra), mas num tráfego entre aquilo que foi chamado por G.H.Mead e outros de símbolos significantes - as palavras, para a maioria, mas também os gestos, desenhos, sons musicais, artifícios mecânicos como relógios, ou objetos naturais como jóias - na verdade, qualquer coisa que esteja afastada da simples realidade e que seja usada para impor um significado à experiência. (Geertz, 1978)

A afirmação de que o pensamento iluminista elimina o conceito de presença, ser e de cultura, tal como exposto anteriormente, implica que este modo de pensar atém-se à descrição dos fatos e ao relacionamento de causas e efeitos, onde os fatos não dizem mais do que autorizam por sua presença: eles dizem por si, independente de seus contextos culturais e históricos que lhes atribuem significados, por serem esses contextos construções humanas expressas através da linguagem. O fato em si, o signo em si, a observação do mundo em si, reduz a atividade reflexiva, fenomenológica e linguística do ser humano a meros sinais gráficos que ilustram e ecoam vozes já faladas, sem a possibilidade da dialogia e da polifonia de vozes que emergem em outros contextos de presenças, configurando modos outros de existência.

Em verdade, todo este problema se dá em função de uma questão de método.

Etimologicamente, método significa seguindo um caminho (do grego méta, junto, em companhia, e hodós, caminho) e, o pensamento iluminista seguiu o caminho da observação objetiva como regra fundamental, a qual excluía a imaginação e a possibilidade de transformação de significados nos processos construtivos do homem como um ser próprio e também histórico social e político.

De agora em diante o espírito humano renuncia de vez às pesquisas absolutas (...) Circunscreve seus esforços ao domínio (...) da verdadeira observação, única base possível de conhecimentos verdadeiramente acessíveis, sabiamente adaptados às nossas necessidades reais. (...) Reconhece de agora em diante, como regra fundamental, que toda proposição que não seja estritamente redutível ao simples enunciado de um fato, particular ou geral, não pode oferecer nenhum sentido real e inteligível. (...) A pura imaginação perde assim, irrevogavelmente, sua antiga supremacia e se subordina necessariamente à observação (...) (Augusto Comte. Discurso sobre o espírito positivo, Col. Os Pensadores, p.54).

Diante desta redução do imaginário à mera descrição de fatos, pode-se pensar que Guimarães Rosa busca denunciar que a mutabilidade humana implica a presença de contraditórios que deslocam, desconstroem e transformam signos, significados e definições, fazendo da identidade não uma couraça enrijecida na repetição do mesmo - homogeneidade dos deveres naturais, dos fatos em si, mas uma metamorfose fenomenologicamente nunca acabada que ocorre a cada novo comprometimento da pessoa em seu contexto histórico-pessoal. São estes deslocamentos e desconstruções de sentidos e desvelamentos do ser que este texto pretende analisar, utilizando para tal a narrativa de Riobaldo sobre sua relação com Diadorim.

No primeiro momento da narrativa, a posição ocupada por Riobaldo em relação a Diadorim é a de ser subalterno. Riobaldo, no início da atividade de jagunço, repete a relação de subserviência quando do encontro com o menino Diadorim nas margens do Rio São Francisco.

Ele, uma criatura assustada e temerosa, que veio sendo dito e escrito pela política de posições do contexto local, desde a morte de sua mãe.

Nesta condição de órfão de mãe e de um pai desconhecido, ele veio sendo nomeado pelo menino Diadorim como medroso; por seu padrinho Selorico Mendes como inábil para o jagunceio (tanto que alfabetizou-o por crer em sua incapacidade para a vida dura de jagunço);  por Zé Bebelo que contratou-o apenas para as escritas e as letras; e por seus companheiros de  bando que apelidaram-no de Riobaldo Tatarana (do tupi Tata rana: semelhante a fogo).

Enquanto ser nomeado pelo outro - dentro das necessidades e conveniências de cada um - ele  acreditava-se de menor posição, não existente, e assim submetia-se, indiferenciava-se, ocultava-se. Assim, ele narra-se: “Por mim, não sei que tontura de vexame, com ele calado eu a ele estava obedecendo quieto.” (Rosa, 1985, p.27).

Ocupando esta posição, Riobaldo teme ser, teme a vida e o nomear-se, a ponto de não discernir o que lhe ocorre, ou melhor, de ainda não ser capaz de imaginar e escrever seu próprio  texto e história. É este ser escrito por outrem que afirma:

Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas e no meio da travessia não vejo! - só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. (Rosa, 1985, p.33).

Riobaldo na condição de subalterno é ao pé-da-letra, apesar de ser letrado. E sua letra maior foi Diadorim: “Amor vem de amor. Em Diadorim, penso também - mas Diadorim é minha neblina...” (Rosa, 1985, p.23).

No Dicionário de Símbolos, a neblina (nevoeiro) é definida como:

Símbolo do INDETERMINADO, de uma fase de evolução: quando as formas não se distinguem ainda, ou quando as formas antigas que estão desaparecendo ainda não foram substituídas por formas novas precisas. (Chevalier, 1982,p.634).

Essa definição simbólica pode ser a reafirmação da condição de subalterno de Riobaldo, a qual implica uma escritura reduzida e simplificada do mundo dos acontecimentos, já que não pode ter acesso a um rol maior de informações e poderes de decisão. Enquanto posição política, ao subalterno resta a obediência às ordens e a disponibilidade constante de correr perigo para provar-se digno de confiança - porque corajoso. Apenas sob este enfoque o subalterno é visto, mas não reconhecido, por ainda ser determinado e nomeado por um outro hegemônico.

Walnice N. Galvão formula com enorme clareza o texto sobre quem é o subalterno:

Livre, e por isso mesmo dependente. Sem ter nada de seu, e por isso mesmo servidor pessoal de quem tem. Inconsciente de seu destino, e por isso mesmo tendo seu destino totalmente determinado por outrem.

Sem causas a defender, e por isso mesmo usado para defender causas alheias. Avulso e móvel, e por isso mesmo chefiado autoritariamente e fixado em sua posição de instrumento. Posto em disponibilidade pela organização econômica, que não necessita de sua força de trabalho, e por isso mesmo encontrando quem dele disponha para outras tarefas que não as da produção. Tal é a condição dessa imensa massa de sujeitos disponíveis em suas “existências avulsas”, que estavam aí para serem usados, e que o foram, ao longo de toda a história brasileira. (Galvão, 1972, p.41)

É sobre esta condição e posição que a vida será constituída, escrita e narrada por Riobaldo. Seu olhar é o olhar de:

um membro de um grupo armado a serviço de senhores em oposição ao governo, onde ao partilhar da condição jagunça partilha de um potencial de força manipulada por outrem para o exercício do poder.

Esta força é passível de ser utilizada para o trabalho como para a destruição, para impor a lei como para transgredi-la, para vingar ofensas como para praticá-las e as razões que decidem sua atuação num ou noutro sentido independe de sua escolha. Tudo o que se passa fora da imediatez das tarefas cotidianas está também fora do alcance de sua consciência. (Galvão,1972, p.47).

Inicialmente, são sob estes motivos e condições que Riobaldo escreverá Diadorim como significante do herói trovadoresco que inspira odes épicas e que encanta por suas bravuras e aventuras; bem como por suas delicadezas e primores no tato e trato para com a natureza e para com determinadas atividades.

O conhecimento que Riobaldo constrói de Diadorim vem de sua própria atitude passivo-contemplativa do mundo, já que indiferenciado ele não se sabia. O não saber-se - porque ainda misturado no mundo e na natureza, como Ulisses antes da fundação de Ítaca - implica uma ingênua tessitura do mundo e do outro que o desvela. Assim, Diadorim é também percebido por Riobaldo através desta ingênua visão que suporta em seu âmago tanto o surpreendente como o terrorífico. E é Diadorim que desvela o mundo para Riobaldo e, o sendo, é também concebido como maravilha e mistério, como esplendor e horror. Dado o mistério que envolve a pessoa de Diadorim - próprio de sua condição travestida - ele é, ao mesmo tempo, a não-resposta e a revelação para Riobaldo. Em outras palavras, é o elemento tensão que rompe com a ingenuidade e inocência do indiferenciado, ao suscitar-lhe a dúvida e ao colocar-lhe em angústias e indagações sem respostas:

Disse, me olhou. (...) Vi como é que olhos podem. Diadorim tinha uma luz. Reponho: entanto já estava noitinha, escurecendo; aquela escuridão queria mandar os outros embora. O que Diadorim reslumbrava, me lembro de hei-de de me lembrar, enquanto Deus dura. (Rosa, 1985, p.384).

Em relação à questão do feminino e do modo como Riobaldo percebe-o e relata, ele estará diretamente ligado à sua atitude passivo-contemplativa. Nesta como tudo é descoberta, desvelam-se o mundo da natureza, a cor e o cheiro das flores, os tipos e os cantos dos pássaros, o amanhecer e o anoitecer, enfim, a poesia com que todos estes fenômenos da natureza são percebidos, como algo essencialmente feminino em relação ao modo bruto e rasteiro do jagunço.

Esta é a primeira desconstrução de sentidos da categoria sexual como definidora de identidades que Guimarães Rosa nos impõe. No sertão é esperado que um jagunço não se afete  por estas percepções, a ponto de fazê-las poéticas. Através desta desconstrução surge o primeiro encanto e a primeira angústia-dúvida de Riobaldo em relação à Diadorim. Como  encanto, ele é percebido como doce, meigo, um convite ao amor e à paz, mas simultaneamente  - dado os sentimentos de vergonha e nojo de Riobaldo - ele é percebido como terrorífico e ameaçador, principalmente porque um jagunço não guarda este tipo de sentimento e amizade para com um outro.

Assim, pode-se dizer que um dos signos considerados como representantes do feminino é a poesia descritiva de uma realidade natural, que é acessível a todos, mas destacada e caracterizada com nuances de detalhes por um outro que não ocupa a posição de jagunço.

Vê-se que a percepção e descrição poética de uma realidade implica permissões e interdições de dado grupo social, bem como a posição ocupada pelo sujeito que fala. Entretanto, na polaridade estanque da cultura ocidental, as posições são confundidas com papéis únicos e modos de ser que determinam quem é e quem não pode ser o sujeito. Curiosamente, dentro desta concepção de papéis como identidades imutáveis, o feminino surge como aquele que possui o dom da poesia da terra. Será que esta não seria uma metáfora para dizer do feminino como indiferenciado ou o tão contraditório metaforizado pelos elementos naturais, já que guardam em si o mistério de gerar, criar e destruir?

Elaborando em outras palavras, Diadorim é símbolo do sertão interior de Riobaldo, ou seja, é a representação de sua luta com os mistérios, com o impenetrável, com o não saber do ser. Ele aparece para quebrar a indiferenciação de Riobaldo com o mundo da natureza e dos homens determinados pelo racionalismo positivista.

Frente à sua inocência que aceitou maravilhada o ser nas coisas, Diadorim surge como o enigma, a não-resposta. Talvez por isto, Henriqueta Lisboa apontou o caráter essencialmente simbólico dessa personagem. E cabe-lhe razão, pois ela age como angustiada interrogação em Riobaldo, que, a partir de então, caminha por uma fronteira quase indefinível, situada apenas entre o medo de ser o que quer ser e o apelo para ser o que deve ser. Diadorim, em sua indefinição homem-mulher, pureza-pecado, simboliza, imediatamente,  a oscilação de Riobaldo entre Deus e o Diabo. (Texto: Perfil de Riobaldo, Flávio Loureiro Chaves, Guimarães Rosa - Seleção de textos, organizado por Eduardo F. Coutinho, R.J., 1991)

Frente a estes parâmetros, Diadorim aparece como símbolo da luta travada por Riobaldo consigo mesmo, sendo esta não só uma luta entre valores éticos e morais, mas também entre categorias sexuais aprendidas como definidoras de sua identidade e, portanto, limitadoras de seus sentimentos e relações consigo, com o outro e com o mundo. Diante a estas colocações, pode ser possível dizer que Diadorim não é uma categoria sexual, mas um outro diversamente posicionado que altera e afeta uma linguagem dominante e obriga-a - através dos conflitos de Riobaldo - a instaurar-se sob outros significados.

Entretanto, a linguagem ordinária do cotidiano ou a linguagem do senso comum não comporta significados para indizíveis, ou seja, para o que não é permitido dizer-se e revelar-se em um dado contexto sócio-político, para o que não cabe nas aparências desse contexto.

Mediante esta limitação sócio-política e fenomenológica, o que é outro frente ao discurso hegemônico masculino acaba sendo definido como pertencente ao feminino.

Com Diadorim, Riobaldo aprende uma outra linguagem - que mediante a bipolaridade do mundo jagunço, somente pode ser associada com o ser feminino. Assim, a poesia dita e percebida por Diadorim no campo, nas flores, cores, pássaros, cantos, bem como em gestos de cuidados no tato para lavar as roupas, aparar os cabelos e organizar os instrumentos de uso na capanga, nada mais eram que uma linguagem proibida ao jagunço no que ele aprendeu e repetia automaticamente como ser homem. Em outras palavras, a poesia de Diadorim desconstrói e desloca a concepção do feminino como a negatividade do masculino, já que como representante da categoria masculina ele porta em si este símbolo da feminilidade como uma positividade admirada por Riobaldo.

Frente a tal exposição, pode-se dizer que o subalterno nada mais é que o sujeito oculto, emudecido pelos determinismos de um discurso hegemônico onde os significados são estabelecidos a priori - dado as conveniências sócio-cultural-econômicas - gerando os pré-conceitos que impossibilitam semelhanças e desvelamentos de sentidos renovados com o discurso do outro. Exemplificando: as dúvidas, vergonhas, nojos e temores de Riobaldo por seu amor a Diadorim são, na verdade, a revelação da impregnação de um discurso estéril - porque único - que limita o conhecimento e cria silêncios de interdições e de estigmas.

No caso de Riobaldo, dado sua indiferenciação, ocultamento ou mudez, não havia como ele perceber estas desconstruções. Subalterno ao discurso dominante, a ele restava a repetição passiva de lugares comuns sobre a identidade e sexualidade, tal como seu meio sociocultural e político definiam. Vendo em Diadorim - um homem jagunço - características, gestos e falas que retiravam a brutalidade opressora do mundo sertanejo, Riobaldo em sua posição não pode desconstruir sentidos. Foi este reducionismo que o levou a mistificar Diadorim como a musa inatingível e a definir a relação entre ambos através do olhar de categorias sexuais.

As categorias sexuais são representações de um discurso, o qual enuncia e anuncia as permissões, interdições e tabus nas formas de uso, apropriação e percepção dos seres e dos corpos. Em outras palavras, são as objetificações do corpo enquanto símbolo de um discurso e da pertencência a uma nação. É aqui utilizado o conceito de nação de Benedict Anderson:

As nações não se reduzem a territórios, povos e governo, mas são também “imaginadas”, isto é, elas articulam sentidos, criam narrativas exemplares e sistemas simbólicos que garantem a lealdade e o sacrifício de diversos indivíduos. (Citado no texto de Jean Franco - Sentido e sensualidade - Notas sobre a formação nacional, p.99).

A nação sertaneja com seu território árido e viril, seu povo oprimido pela parca condição econômica e seu governo baseado no coronelismo e na lei do mais forte, criou corpos femininos e masculinos que articulam os sentidos demarcadores dos espaços e papéis de cada um. Esses sentidos estruturavam os movimentos e as escrituras deste mundo e das pessoas que nele habitavam, bem como a leitura que era feita dos mesmos frente ao imaginário social sertanejo.

Na condição de subalterno, o jagunço era passivo, já que percebido como aquele que nada entende (a não ser da força bruta) e que precisa de um guia protetor que lhe traduza o mundo dos acontecimentos e ordene os movimentos e gestos do corpo. Este paternalismo para com o jagunço implicava uma nova concepção de estado: não mais o estado opressor, mas o estado benevolente para com aqueles que retribuíssem a generosidade através da fidelidade a seu chefe e a seus objetivos de fazer justiça com as próprias mãos.

Diante a esta nova nação imaginada, ao masculino eram reservados os papéis da luta, da bravura, da ousadia destemida, dos combates corpo-a-corpo, do desbravar espaços (travessia do Liso do Sussuarão), do ascetismo do corpo que depois era premiado com os carinhos de mãos femininas. Já ao feminino, eram reservados os papéis de acolher o guerreiro, satisfazê-lo em suas necessidades sexuais (como no caso de Nhorinha), ser uma imagem mítica de doçura e paz (como no caso de Otacília). A exceção de Diadorim, o feminino presente na narrativa de Grande Sertão Veredas (GVS), corresponde à escritura deste enquanto o outro do masculino; outro que deveria complementá-lo, satisfazê-lo em suas necessidades e fantasias, enfim ser a negatividade do masculino. Já Diadorim, aparece como o andrógino que, de certa forma, vem deslocar estes imaginários e estas narrativas construídas sobre as identidades do ser homem e do ser mulher.

Diadorim será o terceiro incluído na bipolaridade dos corpos, o qual tem a função de produzir outro fenômeno, outro viés de reflexão e de tessitura das identidades, já que porta em si tanto os comportamentos e gestos ditos masculinos como femininos. Sua androginia introduz no texto e no corpo de Riobaldo a dúvida: metáfora da diferença, mas não como negatividade, senão como alteridade. Entretanto, dado a condição misturada, ou melhor, os discursos plurais da alteridade onde coexistem textos tradicionais e novas posicionalidades de olhares, Diadorim é ora lido ao pé-da-letra, como o feminino negativo do masculino e ora lido como ser divino e misterioso que guardava segredos e que poetizava a realidade embrutecida do sertão.

Durante toda a narrativa de GSV, Riobaldo irá se angustiar, duvidar, perceber as diferenças e questioná-las, mas ainda ficará preso à escritura da nação imaginada sob o olhar sertanejo. Após assumir a chefia do bando e realizar o pacto com o Diabo - que nada mais é que o Outro dele mesmo - Riobaldo abandona a condição de subalterno, enquanto constantemente nomeado pelo exterior dominante, mas permanece na subalternidade do discurso masculino em relação ao feminino, do qual só sairá quando da morte de Diadorim, a qual surge como a revelação e reflexão sobre outros textos, sobre outras narrativas do que é o viver e o conviver

transformado em consciências de si como Outro.

E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor - e mercê peço: - mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube ... Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d'arma, da coronha...

Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer - mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero. (Rosa, 1985, p.560)

O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real.

(...) De Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins - que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor... (Rosa, 1985, p.561)

No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi.

Aqui a estória se acabou.

Aqui, a estória acabada.

Aqui a estória acaba. (Rosa, 1985, p.561)

Termina a estória e inicia-se a Narrativa: “reconstrução de um processo arqueológico do ser, restauração do ser que se encena nas malhas do texto pessoal e que revela as intertextualidades do texto nacional e da identidade que este constrói através de suas comunidades imaginadas. Entrelugar onde as posicionalidades do desvelamento podem ser reescritas, onde os silêncios encorpam vozes que anunciam outras verdades, outros dizeres, olhares e identificações que retiram subalternidades ao revelarem alteridades.”

 

Referências bibliográficas:

1. COUTINHO, Eduardo F. Guimarães Rosa - Seleção de Textos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.

2. FRANCO, Jean. Sentido e Sensualidade: Notas sobre a Formação Nacional in Tendências e Impasses. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.99.

3. GALVÃO, Walnice Nogueira. As Formas do Falso. São Paulo: Perspectiva, 1972.

4. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

5. ROSA, J. Guimarães. Grande Sertão Veredas. 18° ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

Nenhum comentário:

Postar um comentário