Um
dos temas desse livro é a narrativa sobre a viagem do ser, não só como deslocamento
físico, mas como transformações pessoais que os personagens e, principalmente Riobaldo,
sofrem no decorrer dos acontecimentos. Estas transformações iniciam-se como conflitos
frente aos aspectos contraditórios do sertão - enquanto espaço físico que
abriga belezas e crueldades, vidas e mortes, aves, flores e bichos peçonhentos
- e, deste mesmo sertão enquanto símbolo da amplitude e do estreitamento das
relações humanas. Amplitudes de amores e estreitamentos de ódios e vinganças. A
tessitura do livro se fará através da narrativa do personagem, o qual pretende
transformar-se pela reconstrução de seu passado em texto, sendo esta uma
maneira de compreender o ser, a vida e seus movimentos. É desta maneira que o
personagem anuncia esta tarefa de transformar a ex-istência em um novo texto:
De primeiro, eu fazia e mexia, e
pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícil,
peixe vivo no moquém: quem mói no aspro, não fantasêia. Mas agora, feita a
folga que me vem, e sem pequenos desassossegos, estou de range rede. E me
inventei neste gosto, de especular ideia. (Rosa, 1985, p. 11)
A
questão da narrativa dos movimentos do ser na busca pelo desvelar-se é, a todo momento,
destacada no texto, e Riobaldo narrador-personagem tem a constante preocupação de
buscar “o justo dizer dos acontecimentos”, ou seja, de ser capaz de se
comprometer e avaliar cada acontecimento com sua exata importância, pois cada
passagem da vida tem seu peso e seu significado enquanto experiência que fundou
memórias e consciências.
Contar
seguido, alinhavado, só mesmo coisas de rasa importância. De cada vivimento que
eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era
como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é
que conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito
mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe. (Rosa,
1985, p.95)
Diante desta e de outras colocações no texto
sobre a importância e a dificuldade do narrar (“Contar é muito, muito
dificultoso”), é possível colocar-se em acordo com os dizeres: “O que determina
o texto é a vida, mas o que explica a vida é o texto.” (Galvão, 1982, p.86).
Assim,
pode-se
pensar que a narrativa é a malha das letras que - no texto - enunciam as posicionalidades
através das experiências do personagem nesta viagem do ser-viver: existir.
Durante
sua narrativa, Riobaldo vai denunciando a existência dos contraditórios das experiências
e marcando-os com exemplos da terra e das convivências. Estórias de mandioca boa
que se torna brava e mata; de águas límpidas que destroem facas que ali caem;
de lugares belos onde habitam animais peçonhentos, osgas. Estórias como a de
Pedro Aleixo que mata um velho e por castigo vem a cegueira de seus filhos; do
menino Valtêi que abre a perna de uma mulher e recebe sadicamente o castigo dos
pais que o surram até a morte; de Maria Mutema que sem motivo aparente mata o
marido e o padre com o chumbo físico e o simbólico - a palavra.
Guimarães
Rosa constrói o texto a partir dos constantes contraditórios que habitam o ser e
o viver e que impedem ao homem a unidade e coerência absoluta - próprios do
pensamento totalitário iluminista. Quando o homem crê atingir a unidade, os
sentimentos se misturam, os fatos alteram-se, os caminhos mudam de rumo, e é
esta presença de sentidos e sentimentos outros que desconstroem organizações
anteriores e movem as transformações do ser nessa viagem. É a dificuldade,
senão impossibilidade de ser UM, que torna o viver perigoso e que traz o diabo
na rua no meio do redemoinho.
Ao desorganizar o organizado do raciocínio
totalitário iluminista, o homem tem de reiniciar sua busca de sentidos,
projetos e linguagens. E, só pode haver novos sentidos, projetos e significados
onde houve deslocamento e desconstrução dos mesmos. Traduzindo em uma outra
linguagem: a ordem dada do mundo fundado sob o racionalismo ocidental e sua hegemonia
política e cultural - baseada na obrigatoriedade da uniformidade de
pensar-sentir descrever-escrever o homem e a nação - é alterada pela emergência
de uma pluralidade de discursos que tecem relações e percepções diversas em
relação a esta mesma hegemonia, e
que
traduzem formas de alteridades e de outros projetos para ser-se.
Na
linguagem metafórica de Guimarães Rosa, Riobaldo e Diadorim são representações deste
deslocamento desconstrutivo de sentidos, desta constante contradição textual
tecida na narrativa da linguagem, dos gestos e dos gêneros. Como forma de
garantir uma ilusão de unidades e universalidades a cultura construiu as
categorias sexuais masculinas x femininas, as quais são um roteiro de signos
específicos que determinam pelo gesto, pela linguagem, pelo comportamento e
pelo corpo (textual ou não), a definição do que é ser homem e do que é ser mulher.
Na
viagem do ser de Grande Sertão Veredas, Guimarães Rosa explicita a fragilidade destas
categorias através da relação de Diadorim e Riobaldo. Justamente estas
categorias que garantem uma segurança social e política pela ordenação de
identidades, também são passíveis de desconstruções de sentidos, sentimentos e
de significados, os quais aparecem através de gestos e sentimentos
contraditórios que surgem e nutrem-se na relação entre os dois jagunços.
Nesse
itinerário onde busca desvelar o ser, o travestimento de Diadorim é um signo denunciador
da presença do duplo no suposto Uno. O amor de Riobaldo e Diadorim segue esta
mesma
direção e traz nas entrelinhas do texto toda a dificuldade cultural de lidar-se
com as desconstruções das categorias sexuais masculinas x femininas.
Isto
aparece no constante ir-e-vir dos sentimentos de amor x vergonha e nojo tão presentes
nas falas de Riobaldo. E, curiosamente os sentimentos de vergonha e nojo são sentimentos
de apreciação do eu e expressam a depreciação que a pessoa sente por não estar escrevendo-se
dentro dos cânones do dever ser e parecer ocidental. O dever parecer não suporta
duplos, deslocamentos e sentidos outros que denunciem contraditórios, por ser
ele a representação maior do pensamento iluminista da unidade pura e natural
que garante a ordem do universo. É este pensamento iluminista que obstrui
sentidos e significados outros ao ser, ao colocar como NATUREZA HUMANA
determinados comportamentos e linguagens concebidas, escritas e lidas como
masculinas e femininas. Assim, ele elimina o conceito de ser, de cultura e de
sua constante transformação pelas teias de significados construídos em um
determinado contexto histórico-econômico-social. Eliminando presenças, cultura
e suas significações contextuais, ele escreve identidades imutáveis e
cristalizadas, onde qualquer gesto contrário é destacado como desvio de
conduta, doença e loucura.
A perspectiva da cultura como
mecanismo de controle inicia-se com o pressuposto de que o pensamento humano é
basicamente tanto social como público - que seu ambiente natural é o pátio
familiar, o mercado e a praça da cidade. Pensar consiste não nos
“acontecimentos na cabeça“ (embora seja necessário acontecimentos na cabeça e
em outros lugares para que ele ocorra), mas num tráfego entre aquilo que foi
chamado por G.H.Mead e outros de símbolos significantes - as palavras, para a
maioria, mas também os gestos, desenhos, sons musicais, artifícios mecânicos
como relógios, ou objetos naturais como jóias - na verdade, qualquer coisa que
esteja afastada da simples realidade e que seja usada para impor um significado
à experiência. (Geertz, 1978)
A
afirmação de que o pensamento iluminista elimina o conceito de presença, ser e
de cultura, tal como exposto anteriormente, implica que este modo de pensar
atém-se à descrição dos fatos e ao relacionamento de causas e efeitos, onde os
fatos não dizem mais do que autorizam por sua presença: eles dizem por si,
independente de seus contextos culturais e históricos que lhes atribuem
significados, por serem esses contextos construções humanas expressas através
da linguagem. O fato em si, o signo em si, a observação do mundo em si, reduz a
atividade reflexiva, fenomenológica e linguística do ser humano a meros sinais
gráficos que ilustram e ecoam vozes já faladas, sem a possibilidade da dialogia
e da polifonia de vozes que emergem em outros contextos de presenças,
configurando modos outros de existência.
Em
verdade, todo este problema se dá em função de uma questão de método.
Etimologicamente,
método significa seguindo um caminho (do grego méta, junto, em companhia, e hodós,
caminho) e, o pensamento iluminista seguiu o caminho da observação objetiva
como regra fundamental, a qual excluía a imaginação e a possibilidade de
transformação de significados nos processos construtivos do homem como um ser
próprio e também histórico social e político.
De agora em diante o espírito
humano renuncia de vez às pesquisas absolutas (...) Circunscreve seus esforços
ao domínio (...) da verdadeira observação, única base possível de conhecimentos
verdadeiramente acessíveis, sabiamente adaptados às nossas necessidades reais.
(...) Reconhece de agora em diante, como regra fundamental, que toda proposição
que não seja estritamente redutível ao simples enunciado de um fato, particular
ou geral, não pode oferecer nenhum sentido real e inteligível. (...) A pura
imaginação perde assim, irrevogavelmente, sua antiga supremacia e se subordina necessariamente
à observação (...) (Augusto Comte. Discurso sobre o espírito positivo, Col. Os
Pensadores, p.54).
Diante
desta redução do imaginário à mera descrição de fatos, pode-se pensar que Guimarães
Rosa busca denunciar que a mutabilidade humana implica a presença de contraditórios
que deslocam, desconstroem e transformam signos, significados e definições, fazendo
da identidade não uma couraça enrijecida na repetição do mesmo - homogeneidade
dos deveres naturais, dos fatos em si, mas uma metamorfose fenomenologicamente
nunca acabada que ocorre a cada novo comprometimento da pessoa em seu contexto
histórico-pessoal. São estes deslocamentos e desconstruções de sentidos e
desvelamentos do ser que este texto pretende analisar, utilizando para tal a
narrativa de Riobaldo sobre sua relação com Diadorim.
No
primeiro momento da narrativa, a posição ocupada por Riobaldo em relação a Diadorim
é a de ser subalterno. Riobaldo, no início da atividade de jagunço, repete a
relação de subserviência quando do encontro com o menino Diadorim nas margens
do Rio São Francisco.
Ele,
uma criatura assustada e temerosa, que veio sendo dito e escrito pela política
de posições do contexto local, desde a morte de sua mãe.
Nesta
condição de órfão de mãe e de um pai desconhecido, ele veio sendo nomeado pelo
menino Diadorim como medroso; por seu padrinho Selorico Mendes como inábil para
o jagunceio (tanto que alfabetizou-o por crer em sua incapacidade para a vida
dura de jagunço); por Zé Bebelo que
contratou-o apenas para as escritas e as letras; e por seus companheiros de bando que apelidaram-no de Riobaldo Tatarana
(do tupi Tata rana: semelhante a fogo).
Enquanto
ser nomeado pelo outro - dentro das necessidades e conveniências de cada um -
ele acreditava-se de menor posição, não
existente, e assim submetia-se, indiferenciava-se, ocultava-se. Assim, ele
narra-se: “Por mim, não sei que tontura de vexame, com ele calado eu a ele estava
obedecendo quieto.” (Rosa, 1985, p.27).
Ocupando
esta posição, Riobaldo teme ser, teme a vida e o nomear-se, a ponto de não discernir
o que lhe ocorre, ou melhor, de ainda não ser capaz de imaginar e escrever seu
próprio texto e história. É este ser
escrito por outrem que afirma:
Ah, tem uma repetição, que sempre
outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas e no meio da
travessia não vejo! - só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e
de chegada. (Rosa, 1985, p.33).
Riobaldo
na condição de subalterno é ao pé-da-letra, apesar de ser letrado. E sua letra maior
foi Diadorim: “Amor vem de amor. Em Diadorim, penso também - mas Diadorim é
minha neblina...” (Rosa, 1985, p.23).
No
Dicionário de Símbolos, a neblina (nevoeiro) é definida como:
Símbolo do INDETERMINADO, de uma
fase de evolução: quando as formas não se distinguem ainda, ou quando as formas
antigas que estão desaparecendo ainda não foram substituídas por formas novas precisas.
(Chevalier, 1982,p.634).
Essa
definição simbólica pode ser a reafirmação da condição de subalterno de Riobaldo,
a qual implica uma escritura reduzida e simplificada do mundo dos
acontecimentos, já que não pode ter acesso a um rol maior de informações e
poderes de decisão. Enquanto posição política, ao subalterno resta a obediência
às ordens e a disponibilidade constante de correr perigo para provar-se digno
de confiança - porque corajoso. Apenas sob este enfoque o subalterno é visto,
mas não reconhecido, por ainda ser determinado e nomeado por um outro hegemônico.
Walnice
N. Galvão formula com enorme clareza o texto sobre quem é o subalterno:
Livre, e por isso mesmo
dependente. Sem ter nada de seu, e por isso mesmo servidor pessoal de quem tem.
Inconsciente de seu destino, e por isso mesmo tendo seu destino totalmente
determinado por outrem.
Sem causas a defender, e por isso
mesmo usado para defender causas alheias. Avulso e móvel, e por isso mesmo
chefiado autoritariamente e fixado em sua posição de instrumento. Posto em disponibilidade
pela organização econômica, que não necessita de sua força de trabalho, e por
isso mesmo encontrando quem dele disponha para outras tarefas que não as da
produção. Tal é a condição dessa imensa massa de sujeitos disponíveis em suas
“existências avulsas”, que estavam aí para serem usados, e que o foram, ao
longo de toda a história brasileira. (Galvão, 1972, p.41)
É
sobre esta condição e posição que a vida será constituída, escrita e narrada
por Riobaldo. Seu olhar é o olhar de:
um
membro de um grupo armado a serviço de senhores em oposição ao governo, onde ao
partilhar da condição jagunça partilha de um potencial de força manipulada por
outrem para o exercício do poder.
Esta
força é passível de ser utilizada para o trabalho como para a destruição, para
impor a lei como para transgredi-la, para vingar ofensas como para praticá-las
e as razões que decidem sua atuação num ou noutro sentido independe de sua
escolha. Tudo o que se passa fora da imediatez das tarefas cotidianas está
também fora do alcance de sua consciência. (Galvão,1972, p.47).
Inicialmente,
são sob estes motivos e condições que Riobaldo escreverá Diadorim como significante
do herói trovadoresco que inspira odes épicas e que encanta por suas bravuras e
aventuras; bem como por suas delicadezas e primores no tato e trato para com a
natureza e para com determinadas atividades.
O
conhecimento que Riobaldo constrói de Diadorim vem de sua própria atitude passivo-contemplativa
do mundo, já que indiferenciado ele não se sabia. O não saber-se - porque ainda
misturado no mundo e na natureza, como Ulisses antes da fundação de Ítaca -
implica uma ingênua tessitura do mundo e do outro que o desvela. Assim,
Diadorim é também percebido por Riobaldo através desta ingênua visão que
suporta em seu âmago tanto o surpreendente como o terrorífico. E é Diadorim que
desvela o mundo para Riobaldo e, o sendo, é também concebido como maravilha e
mistério, como esplendor e horror. Dado o mistério que envolve a pessoa de Diadorim
- próprio de sua condição travestida - ele é, ao mesmo tempo, a não-resposta e
a revelação para Riobaldo. Em outras palavras, é o elemento tensão que rompe
com a ingenuidade e inocência do indiferenciado, ao suscitar-lhe a dúvida e ao
colocar-lhe em angústias e indagações sem respostas:
Disse, me olhou. (...) Vi como é
que olhos podem. Diadorim tinha uma luz. Reponho: entanto já estava noitinha,
escurecendo; aquela escuridão queria mandar os outros embora. O que Diadorim reslumbrava,
me lembro de hei-de de me lembrar, enquanto Deus dura. (Rosa, 1985, p.384).
Em
relação à questão do feminino e do modo como Riobaldo percebe-o e relata, ele estará
diretamente ligado à sua atitude passivo-contemplativa. Nesta como tudo é
descoberta, desvelam-se o mundo da natureza, a cor e o cheiro das flores, os
tipos e os cantos dos pássaros, o amanhecer e o anoitecer, enfim, a poesia com
que todos estes fenômenos da natureza são percebidos, como algo essencialmente
feminino em relação ao modo bruto e rasteiro do jagunço.
Esta
é a primeira desconstrução de sentidos da categoria sexual como definidora de identidades
que Guimarães Rosa nos impõe. No sertão é esperado que um jagunço não se afete por estas percepções, a ponto de fazê-las
poéticas. Através desta desconstrução surge o primeiro encanto e a primeira
angústia-dúvida de Riobaldo em relação à Diadorim. Como encanto, ele é percebido como doce, meigo, um
convite ao amor e à paz, mas simultaneamente - dado os sentimentos de vergonha e nojo de
Riobaldo - ele é percebido como terrorífico e ameaçador, principalmente porque
um jagunço não guarda este tipo de sentimento e amizade para com um outro.
Assim,
pode-se dizer que um dos signos considerados como representantes do feminino é
a poesia descritiva de uma realidade natural, que é acessível a todos, mas
destacada e caracterizada com nuances de detalhes por um outro que não ocupa a
posição de jagunço.
Vê-se
que a percepção e descrição poética de uma realidade implica permissões e interdições
de dado grupo social, bem como a posição ocupada pelo sujeito que fala. Entretanto,
na polaridade estanque da cultura ocidental, as posições são confundidas com
papéis únicos e modos de ser que determinam quem é e quem não pode ser o
sujeito. Curiosamente, dentro desta concepção de papéis como identidades
imutáveis, o feminino surge como aquele que possui o dom da poesia da terra.
Será que esta não seria uma metáfora para dizer do feminino como indiferenciado
ou o tão contraditório metaforizado pelos elementos naturais, já que guardam em
si o mistério de gerar, criar e destruir?
Elaborando
em outras palavras, Diadorim é símbolo do sertão interior de Riobaldo, ou seja,
é a representação de sua luta com os mistérios, com o impenetrável, com o não
saber do ser. Ele aparece para quebrar a indiferenciação de Riobaldo com o mundo
da natureza e dos homens determinados pelo racionalismo positivista.
Frente à sua inocência que
aceitou maravilhada o ser nas coisas, Diadorim surge como o enigma, a
não-resposta. Talvez por isto, Henriqueta Lisboa apontou o caráter
essencialmente simbólico dessa personagem. E cabe-lhe razão, pois ela age como
angustiada interrogação em Riobaldo, que, a partir de então, caminha por uma fronteira
quase indefinível, situada apenas entre o medo de ser o que quer ser e o apelo
para ser o que deve ser. Diadorim, em sua indefinição homem-mulher,
pureza-pecado, simboliza, imediatamente, a oscilação de Riobaldo entre Deus e o Diabo.
(Texto: Perfil de Riobaldo, Flávio Loureiro Chaves, Guimarães Rosa - Seleção de
textos, organizado por Eduardo F. Coutinho, R.J., 1991)
Frente
a estes parâmetros, Diadorim aparece como símbolo da luta travada por Riobaldo consigo
mesmo, sendo esta não só uma luta entre valores éticos e morais, mas também
entre categorias sexuais aprendidas como definidoras de sua identidade e,
portanto, limitadoras de seus sentimentos e relações consigo, com o outro e com
o mundo. Diante a estas colocações, pode ser possível dizer que Diadorim não é
uma categoria sexual, mas um outro diversamente posicionado que altera e afeta
uma linguagem dominante e obriga-a - através dos conflitos de Riobaldo - a
instaurar-se sob outros significados.
Entretanto,
a linguagem ordinária do cotidiano ou a linguagem do senso comum não comporta
significados para indizíveis, ou seja, para o que não é permitido dizer-se e
revelar-se em um dado contexto sócio-político, para o que não cabe nas
aparências desse contexto.
Mediante
esta limitação sócio-política e fenomenológica, o que é outro frente ao discurso
hegemônico masculino acaba sendo definido como pertencente ao feminino.
Com
Diadorim, Riobaldo aprende uma outra linguagem - que mediante a bipolaridade do
mundo jagunço, somente pode ser associada com o ser feminino. Assim, a poesia
dita e percebida por Diadorim no campo, nas flores, cores, pássaros, cantos,
bem como em gestos de cuidados no tato para lavar as roupas, aparar os cabelos
e organizar os instrumentos de uso na capanga, nada mais eram que uma linguagem
proibida ao jagunço no que ele aprendeu e repetia automaticamente como ser
homem. Em outras palavras, a poesia de Diadorim desconstrói e desloca a
concepção do feminino como a negatividade do masculino, já que como representante
da categoria masculina ele porta em si este símbolo da feminilidade como uma positividade
admirada por Riobaldo.
Frente
a tal exposição, pode-se dizer que o subalterno nada mais é que o sujeito
oculto, emudecido pelos determinismos de um discurso hegemônico onde os
significados são estabelecidos a priori - dado as conveniências
sócio-cultural-econômicas - gerando os pré-conceitos que impossibilitam
semelhanças e desvelamentos de sentidos renovados com o discurso do outro.
Exemplificando: as dúvidas, vergonhas, nojos e temores de Riobaldo por seu amor
a Diadorim são, na verdade, a revelação da impregnação de um discurso estéril -
porque único - que limita o conhecimento e cria silêncios de interdições e de
estigmas.
No
caso de Riobaldo, dado sua indiferenciação, ocultamento ou mudez, não havia
como ele perceber estas desconstruções. Subalterno ao discurso dominante, a ele
restava a repetição passiva de lugares comuns sobre a identidade e sexualidade,
tal como seu meio sociocultural e político definiam. Vendo em Diadorim - um
homem jagunço - características, gestos e falas que retiravam a brutalidade
opressora do mundo sertanejo, Riobaldo em sua posição não pode desconstruir
sentidos. Foi este reducionismo que o levou a mistificar Diadorim como a musa inatingível
e a definir a relação entre ambos através do olhar de categorias sexuais.
As
categorias sexuais são representações de um discurso, o qual enuncia e anuncia
as permissões, interdições e tabus nas formas de uso, apropriação e percepção
dos seres e dos corpos. Em outras palavras, são as objetificações do corpo
enquanto símbolo de um discurso e da pertencência a uma nação. É aqui utilizado
o conceito de nação de Benedict Anderson:
As nações não se reduzem a
territórios, povos e governo, mas são também “imaginadas”, isto é, elas
articulam sentidos, criam narrativas exemplares e sistemas simbólicos que
garantem a lealdade e o sacrifício de diversos indivíduos. (Citado no texto de
Jean Franco - Sentido e sensualidade - Notas sobre a formação nacional, p.99).
A
nação sertaneja com seu território árido e viril, seu povo oprimido pela parca
condição econômica e seu governo baseado no coronelismo e na lei do mais forte,
criou corpos femininos e masculinos que articulam os sentidos demarcadores dos
espaços e papéis de cada um. Esses sentidos estruturavam os movimentos e as
escrituras deste mundo e das pessoas que nele habitavam, bem como a leitura que
era feita dos mesmos frente ao imaginário social sertanejo.
Na
condição de subalterno, o jagunço era passivo, já que percebido como aquele que
nada entende (a não ser da força bruta) e que precisa de um guia protetor que
lhe traduza o mundo dos acontecimentos e ordene os movimentos e gestos do
corpo. Este paternalismo para com o jagunço implicava uma nova concepção de
estado: não mais o estado opressor, mas o estado benevolente para com aqueles
que retribuíssem a generosidade através da fidelidade a seu chefe e a seus
objetivos de fazer justiça com as próprias mãos.
Diante
a esta nova nação imaginada, ao masculino eram reservados os papéis da luta, da
bravura, da ousadia destemida, dos combates corpo-a-corpo, do desbravar espaços
(travessia do Liso do Sussuarão), do ascetismo do corpo que depois era premiado
com os carinhos de mãos femininas. Já ao feminino, eram reservados os papéis de
acolher o guerreiro, satisfazê-lo em suas necessidades sexuais (como no caso de
Nhorinha), ser uma imagem mítica de doçura e paz (como no caso de Otacília). A
exceção de Diadorim, o feminino presente na narrativa de Grande Sertão Veredas
(GVS), corresponde à escritura deste enquanto o outro do masculino; outro que
deveria complementá-lo, satisfazê-lo em suas necessidades e fantasias, enfim
ser a negatividade do masculino. Já Diadorim, aparece como o andrógino que, de
certa forma, vem deslocar estes imaginários e estas narrativas construídas
sobre as identidades do ser homem e do ser mulher.
Diadorim
será o terceiro incluído na bipolaridade dos corpos, o qual tem a função de produzir
outro fenômeno, outro viés de reflexão e de tessitura das identidades, já que
porta em si tanto os comportamentos e gestos ditos masculinos como femininos.
Sua androginia introduz no texto e no corpo de Riobaldo a dúvida: metáfora da
diferença, mas não como negatividade, senão como alteridade. Entretanto, dado a
condição misturada, ou melhor, os discursos plurais da alteridade onde
coexistem textos tradicionais e novas posicionalidades de olhares, Diadorim é ora
lido ao pé-da-letra, como o feminino negativo do masculino e ora lido como ser
divino e misterioso que guardava segredos e que poetizava a realidade
embrutecida do sertão.
Durante
toda a narrativa de GSV, Riobaldo irá se angustiar, duvidar, perceber as diferenças
e questioná-las, mas ainda ficará preso à escritura da nação imaginada sob o
olhar sertanejo. Após assumir a chefia do bando e realizar o pacto com o Diabo
- que nada mais é que o Outro dele mesmo - Riobaldo abandona a condição de
subalterno, enquanto constantemente nomeado pelo exterior dominante, mas
permanece na subalternidade do discurso masculino em relação ao feminino, do
qual só sairá quando da morte de Diadorim, a qual surge como a revelação e
reflexão sobre outros textos, sobre outras narrativas do que é o viver e o conviver
transformado
em consciências de si como Outro.
E disse. Eu conheci! Como em todo
o tempo antes eu não contei ao senhor - e mercê peço: - mas para o senhor
divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo
em que eu também só soube ... Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita...
Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d'arma,
da coronha...
Ela era. Tal que assim se
desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer - mas com
ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim!
Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do
rio Urucuia, como eu solucei meu desespero. (Rosa, 1985, p.560)
O senhor não repare. Demore, que
eu conto. A vida da gente nunca tem termo real.
(...) De Maria Deodorina da Fé
Bettancourt Marins - que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e
mais para muito amar, sem gozo de amor... (Rosa, 1985, p.561)
No que narrei, o senhor talvez
até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi.
Aqui a estória se acabou.
Aqui, a estória acabada.
Aqui a estória acaba. (Rosa,
1985, p.561)
Termina
a estória e inicia-se a Narrativa: “reconstrução de um processo arqueológico do
ser, restauração do ser que se encena nas malhas do texto pessoal e que revela
as intertextualidades do texto nacional e da identidade que este constrói
através de suas comunidades imaginadas. Entrelugar onde as posicionalidades do
desvelamento podem ser reescritas, onde os silêncios encorpam vozes que
anunciam outras verdades, outros dizeres, olhares e identificações que retiram
subalternidades ao revelarem alteridades.”
Referências
bibliográficas:
1.
COUTINHO, Eduardo F. Guimarães Rosa - Seleção de Textos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1991.
2.
FRANCO, Jean. Sentido e Sensualidade: Notas sobre a Formação Nacional in
Tendências e Impasses. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.99.
3.
GALVÃO, Walnice Nogueira. As Formas do Falso. São Paulo: Perspectiva, 1972.
4.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
5.
ROSA, J. Guimarães. Grande Sertão Veredas. 18° ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.
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