Ética
Deontológica
"A ética
deontológica valoriza primeiramente o conceito de dever e só posteriormente o
conceito de bem e as consequências das ações. Significa, portanto, que os
juízos morais da ação humana não têm como justificação a obtenção de bons
resultados ou a sua utilidade. Esta teoria avalia as ações do homem em função
do seu princípio implícito e independentemente dos seus efeitos, tratando-se
assim de uma ética formal, de uma ética do dever. Esta teoria ética ganha
particular expressão em Immanuel Kant com o seu imperativo categórico
(imperativo porque ordena e categórico por oposição a hipotético ou
condicional), com o qual determina a moralidade dos atos. Essa lei fundamental
assegura a sua universalidade pelo seu carácter formal e não se faz depender de
qualquer fim concreto ou empírico. Kant enunciou-o deste modo: “Age de tal modo
que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de
uma legislação universal”. Devido à sua universalidade, as regras consideram o
agir como baseado no puro dever, constituindo-se numa ética pura que não dita
conteúdos, mas normas formais, não se deixando contaminar pelo empirismo nem
por exigências exteriores. É uma ética autónoma visto que o imperativo não pode
ser exterior à própria vontade, nem se deixar contaminar por motivos
extrínsecos. Trata-se, portanto, de uma ética própria do homem, não sendo,
contudo uma ética particular ou pessoal, pois não contempla interesses
particulares mas universais. O agir deve, todavia, ser conformado com a boa
vontade, isto é, a pessoa tem a boa vontade e age com base naquilo que é correto,
independentemente das consequências de sua decisão, sendo o correto o que está
em conformidade com o imperativo categórico. A autonomia do agir, leva a que
Kant reconheça direitos universais, tal como a liberdade de expressão, a
liberdade de escolha, o direito à privacidade ou a liberdade de consciência e
como tal é inaceitável a instrumentalização do homem, entendendo-o como fim e
nunca como meio. “Kant foi um dos expoentes da exaltação do respeito pelo
homem, diríamos hoje, da dignidade humana.”
A ética
deontológica kantiana explicada por Nigel Warburton
”Immanuel
Kant estava interessado na questão de saber o que é uma ação moral”. A resposta
que deu tem sido muito importante para a filosofia. Nesta secção, esboçarei as
suas características principais. Para Kant era óbvio que uma ação moral teria
de ser executada por sentido do dever e não apenas como resultado de uma
inclinação, de um sentimento ou da possibilidade de qualquer tipo de benefício
para o seu autor. Assim, por exemplo, se eu doar dinheiro para ações de
caridade por ter profundos sentimentos de compaixão pelos mais necessitados, a
minha ação não será necessariamente moral, segundo Kant: se eu agir apenas
em função dos meus sentimentos de compaixão e não em função de um sentido do
dever, não terei agido moralmente. Se eu doar dinheiro para ações de caridade
por pensar que isso irá aumentar a minha popularidade entre os meus amigos, não
estarei, uma vez mais, a agir moralmente, mas em função do benefício em termos
de estatuto social.
Assim, para
Kant a motivação de uma ação era muito mais importante do que a própria ação e
as suas consequências. Ele pensava que, para saber se alguém está a agir
moralmente ou não, temos de saber a intenção dessa pessoa. Não é
suficiente saber apenas se o Bom Samaritano ajudou o homem que precisava de
assistência. O samaritano poderia ter agido em função do seu interesse-próprio,
com a expectativa de receber uma recompensa pelo seu incómodo. Ou então poderá
tê-lo feito só porque sentiu uma ponta de compaixão: neste caso, a sua ação
teria uma motivação emocional e não uma motivação baseada num sentido do
dever.
A maior parte
dos filósofos morais concordaria com a ideia de Kant de que o interesse-próprio
não é uma motivação própria para a ação moral. Mas muitos discordariam da sua
ideia de que o facto de alguém sentir ou não uma emoção como a compaixão é
irrelevante para a nossa avaliação das suas ações.
Contudo, para
Kant, a única motivação aceitável para a ação moral era o sentido do dever. Uma
razão pela qual Kant se concentrou tanto nas motivações das ações, em vez de se
concentrar nas suas consequências, foi o facto de acreditar que todas as
pessoas podiam ser morais.
Uma vez que só é
razoável ser moralmente responsável por coisas sobre as quais se exerce algum
controlo -- ou, na formulação de Kant, uma vez que «o dever implica o poder» --
e porque as consequências das ações estão muitas vezes fora do nosso controlo,
estas consequências não podem ser cruciais para a moral. Por exemplo, se, ao
agir em função do meu sentido do dever, eu tentar salvar uma criança que está a
afogar-se, mas acabar por, acidentalmente, afogar a criança, pode ainda
considerar-se que agi moralmente uma vez que os meus motivos eram do tipo
apropriado: as consequências da minha ação teriam sido, neste caso, trágicas,
mas irrelevantes no que respeita ao valor moral do que fiz.
Analogamente,
como não temos necessariamente um controlo completo sobre as nossas reações
emocionais, estas também não podem ser essenciais para a moral. Se queremos uma
moral acessível a todos os seres humanos conscientes, então, pensava Kant, a
moral terá de apoiar-se na vontade e, sobretudo, no nosso sentido do dever.
Máximas Kant descreveu as intenções que subjazem a qualquer cato humano como a
máxima. A máxima é o princípio geral subjacente à ação. Por exemplo, o Bom
Samaritano poderia ter agido segundo a máxima «Ajuda sempre os que precisam se
esperas ser recompensado pelo teu incómodo». Ou poderia ter agido segundo a
máxima «Ajuda sempre os que precisam quando tens um sentimento de compaixão».
Contudo, se o Bom Samaritano agisse moralmente, teria agido provavelmente
segundo a máxima «ajuda sempre os que precisam porque é esse o teu dever».
O imperativo
categórico
Kant acreditava
que, como seres humanos racionais, temos certos deveres. Estes deveres são
categóricos: por outras palavras, são absolutos e incondicionais -- deveres
como «deves sempre dizer a verdade» ou «nunca deves matar ninguém». Estes
deveres são válidos sejam quais forem as consequências que possam advir da sua
obediência. Kant pensava que a moral era um sistema de imperativos
categóricos: mandamentos para agir de determinadas maneiras. Este é um dos
aspectos mais distintivos da sua ética.
Ele contrastou
os deveres categóricos com os hipotéticos. Um dever hipotético é um dever como
«se queres ser respeitado, deves dizer a verdade» ou «se não queres ir para a
prisão, não deves matar ninguém». Os deveres hipotéticos dizem-nos o que
devemos ou não fazer se quisermos alcançar ou evitar um dado objetivo. Kant
pensava que só existia um imperativo categórico básico: «age apenas segundo as
máximas que possas ao mesmo tempo querer como leis universais». Por outras
palavras, age apenas segundo uma máxima que quererias aplicar a toda a gente.
Este princípio é conhecido como princípio da universalisabilidade.
Apesar de Kant
ter dado várias versões diferentes do imperativo categórico, esta formulação é
a mais importante e tem sido extraordinariamente influente. Iremos examiná-la
mais detalhadamente.
Universalisabilidade
Kant pensava
que, para que uma ação seja moral, a máxima subjacente teria de ser
universalizável. Teria de ser uma máxima que se aplicaria a todas as outras
pessoas em circunstâncias análogas. Não devemos erigir-nos como uma exceção,
mas antes ser imparciais. Assim, por exemplo, se o leitor roubar um livro,
agindo segundo a máxima «Rouba sempre que fores demasiado pobre para comprar o
que queres», e para que este seja um cato moral, esta máxima teria de
aplicar-se a qualquer outra pessoa que estivesse na sua situação.
Claro que isto
não significa que qualquer máxima que possa ser universalizável é, por essa
razão, uma máxima moral. É óbvio que muitas máximas triviais, tais como «Deita
sempre a língua de fora a pessoas mais altas do que tu», podem facilmente ser
universalizáveis, apesar de terem pouco ou nada a ver com a moral. Outras
máximas universalizáveis, como a máxima sobre o roubo que usei no parágrafo
anterior, podem mesmo assim ser consideradas imorais.
Esta noção de Universalisabilidade
é uma versão da chamada Regra de Ouro do cristianismo: «faz aos outros o que
gostarias que te fizessem a ti». Alguém que agisse segundo a máxima «sê um
parasita, vive sempre à custa de outras pessoas», não estaria a agir moralmente
uma vez que seria impossível universalizar a máxima. Tentá-lo seria enfrentar a
questão: «e se toda a gente fizesse isso?» Se todas as pessoas fossem
parasitas, não sobraria ninguém para ser parasitado. A máxima não passa o teste
de Kant e por isso não pode ser uma máxima moral.
Por outro lado,
podemos facilmente universalizar a máxima «nunca tortures bebés». É certamente
possível e desejável que todos obedeçam a esta ordem, apesar de poderem não o
fazer. Aqueles que não lhe obedecerem e torturarem bebés estarão a agir
imoralmente.
Com máximas como
esta, a noção de Universalisabilidade de Kant dá claramente uma resposta
consonante com as intuições incontestadas da maior parte das pessoas acerca da retidão.
Meios e fins
Outra das
versões de Kant do imperativo categórico era «trata as outras pessoas como fins
em si, nunca como meios». Esta é outra forma de dizer que não devemos usar as
outras pessoas e que devemos, ao invés, reconhecer a sua humanidade: o facto de
serem pessoas com arbítrio e desejos próprios. Se alguém for simpático consigo
só porque sabe que o leitor pode dar-lhe um emprego, estará a tratá-lo como um
meio de obter esse emprego e não como uma pessoa, um fim em si. É claro que, se
alguém for simpático consigo porque acontece gostar de si, isso nada teria a
ver com a moral.
Críticas à ética
kantiana
É vazia
A teoria ética
de Kant, e sobretudo a sua noção de Universalisabilidade dos juízos morais, é
por vezes criticada por ser vazia. Isto significa que a sua teoria só nos
oferece um enquadramento que revela a estrutura dos juízos morais sem ajudar em
nada os que estão perante tomadas de decisão morais efetivas. Dá pouca ajuda às
pessoas que tentam decidir o que devem fazer.
Esta crítica
negligencia a versão do imperativo categórico que nos ensina a tratar as
pessoas como fins e nunca como meios. Nesta última formulação, Kant dá, sem
dúvida, algum conteúdo à sua teoria moral. Mas, mesmo combinando a tese da Universalisabilidade
com a formulação dos meios e dos fins, a teoria de Kant não oferece soluções
satisfatórias para muitas questões morais.
Por exemplo, a
teoria de Kant não consegue dar facilmente conta dos conflitos entre deveres.
Se, por exemplo, eu tenho o dever de dizer sempre a verdade, e também o dever
de proteger os meus amigos, a teoria de Kant não me poderia mostrar o que
deveria fazer quando estes deveres entram em conflito. Se um louco com um
machado me perguntasse onde está o meu amigo, a minha primeira reação seria
mentir-lhe. Dizer a verdade seria fugir ao meu dever de proteger o meu amigo.
Mas, por outro lado, segundo Kant, dizer uma mentira, mesmo numa situação
limite como esta, seria uma ação imoral: tenho o dever absoluto de nunca
mentir.
Atos imorais
universalizáveis
Outro ponto
fraco, relacionado com o anterior, que algumas pessoas detectam na teoria de
Kant é o facto de, aparentemente, permitir algumas ações obviamente imorais.
Por exemplo, aparentemente, uma máxima como «mata qualquer pessoa que te
estorve» poderia ser consistentemente universalizada. E, no entanto, esta
máxima é claramente imoral.
Mas este tipo de
crítica não consegue ser uma crítica a Kant: ignora a versão do imperativo
categórico em termos de meios e fins, uma vez que a contradiz claramente. Matar
alguém que nos estorva dificilmente é tratar essa pessoa como um fim em si: não
mostra consideração pelos seus interesses.
Aspectos
implausíveis
Apesar de grande
parte da teoria de Kant ser plausível -- especialmente a ideia de respeitar os
interesses das outras pessoas --, tem alguns aspectos implausíveis. Em primeiro
lugar, parece justificar algumas ações absurdas, tal como dizer a um louco com
um machado onde o nosso amigo se encontra, em vez de afastá-lo,
mentindo-lhe.
Em segundo
lugar, o papel que a teoria dá a emoções tais como a compaixão, a simpatia e a
piedade parece inadequado. Kant afasta tais emoções como irrelevantes para a
moral: a única motivação apropriada para a ação moral é o sentido do
dever.
Sentir compaixão
pelos mais necessitados -- apesar de, de certos pontos de vista, poder ser
digno de louvor -- não tem, para Kant, nada a ver com a moral. Pelo contrário,
muitas pessoas pensam que há emoções distintamente morais -- tais como a
compaixão, a simpatia e o remorso -- e separá-las da moral, como Kant tentou
fazer, será ignorar um aspecto central do comportamento moral.
Em terceiro
lugar, a teoria não dá atenção às consequências da ação. Isto significa que
idiotas bem intencionados que, involuntariamente, causem várias mortes em
consequência da sua incompetência, podem ser moralmente inocentes à luz da
teoria de Kant, uma vez que seriam primariamente julgados pelas suas
intenções.
Mas, em alguns
casos, as consequências das ações parecem relevantes para uma apreciação do seu
valor moral: pense como se sentiria em relação a uma baby-sitter que tentasse
secar o seu gato no micro-ondas. Contudo, para ser justo com Kant a este
respeito, é verdade que ele considera condenáveis alguns tipos de
incompetência".
Referência:
Nigel Warburton, Elementos
básicos de Filosofia
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