segunda-feira, 6 de maio de 2013

REVOLUÇÃO NICARAGUENSE


RESUMO

De 1978 a 1987, a vida política nicaraguense foi marcada pela predominância dos afrontamentos armados. Longe de serem momentos atípicos na história nicaraguense do século passado, essas duas guerras, muitas vezes, parecem a sequência ou a retomada de gestos, cujas primeiras manifestações são atestadas desde o começo do citado século, por ocasião dos afrontamentos entre liberais e conservadores, particularmente no curso do levante de Augusto César Sandino, de 1927 a 1934, contra o general Emiliano Chamorro. A análise das guerras da América Central, na segunda metade do século XX, durante muito tempo, apresenta a oposição da práxis dos grupos de guerrilhas àquela das forças armadas regulares. Esta nascia da recusa dos grupos dominantes de que os grupos subalternos pudessem aceder aos postos mais altos. Aquela outra guerrilha visava stricto sensu à conservação da ordem estabelecida. Uma e outra seriam desde então perfeitamente antagônicas. O estudo das guerras civis nicaraguenses convida a outras aproximações e abordagens. Desde o começo do século XX, além das referências constitucionais de modelo democrático liberal, as referências à ordem e à violência estão no coração da experiência política nicaraguense.

Palavras-chave: Nicarágua, Sandinismo, Democracia, Soberania, guerrilha.

 

Introdução

De 1978 a 1987, a vida política nicaraguense foi marcada pela predominância dos afrontamentos armados. Com efeito, o país conheceu duas guerras civis. Na primeira, de 1978 a julho de 1979, a Frente sandinista de libertação nacional, FSLN, o Conselho Superior da empresa privada, COSEP, o Partido conservador, os sociais cristãos e os comunistas enfrentaram todos os sindicalistas ligados a Anastasio Somoza Debayle e aos seus partidários, o que acabou com a derrota do Ditador. Na segunda, de 1982 a 1987, o novo Estado, dominado pelos sandinistas, teve de enfrentar certa nebulosa de opositores: os Contras, composta de dissidentes do sandinismo, de antigos partidários de Somoza e da organização indígena da Costa Caraíba. Essas duas guerras se traduziram por afrontamentos particularmente mortíferos entre os grupos armados; mas a população civil nunca esteve livre de crueldades perpetradas por diferentes clãs combatentes; muito pelo contrário. Em cada uma das guerras, as partes confrontantes fizeram largo apelo à ajuda estrangeira. Ademais, os motivos religiosos permearam-se estreitamente de motivos políticos.

Duas interpretações dessas guerras foram apresentadas. Uma enfatiza os fatores internos, tanto sociais quanto políticos; a outra sublinha o papel decisivo das intervenções exteriores. A primeira, à qual se associa o nome de Edelberto Torres Rivas1, insiste na desestruturação das relações sociais, induzida pelo desenvolvimento socioeconômico, que a Nicarágua conheceu, a partir do decênio de 1960.

Ela vê nesses fenômenos o motor dos movimentos reivindicativos e revoltas que se multiplicam, a partir do final do decênio de 1970. Ela sublinha também os transtornos e desequilíbrios reinantes no seio das classes dominantes, o que favoreceu “a fuga para frente” de uma tirania incapaz de se reformar. A partir de 1982, houve a escolha da opção armada pela “oposição burguesa” aos sandinistas, que estavam no poder desde 1979. Essas explicações se combinam com certo raciocínio inspirado pelo funcionalismo. Os atores sociopolíticos teriam sido levados a “radicalizar” as suas opções pela incapacidade do “sistema político” de absorver as demandas que vinham da sociedade, tanto na época de Anastasio Somoza como naquela de rito sandinista de Daniel Ortega. Tal incapacidade dos governos de Somoza e de Sandino no atendimento dos atores sociais não lhes deixou outra escolha que não fosse aliarem-se às alternativas armadas mais radicais, seja a FSLN no fim dos anos 1970, seja a dos Contras no começo dos anos 1980. Outra interpretação explica as duas guerras civis pelo jogo das rivalidades imperiais2. Como sublinha Alain Touraine, a luta armada, levada a efeito pela Frente sandinista, a partir de 1974, teria sido “guerra de libertação nacional ou até mesmo guerra de criação nacional”3. A guerra entre os contras e os sandinistas testemunharia a vontade do Presidente Reagan, e dos seus conselheiros, de enquadrar uma nação que aspira à soberania plena e completa, em região que esteve sob o seu controle direto desde o começo do século XX. Assumem tal interpretação aqueles que, ademais, sublinham a vontade expansionista soviética “na parte dos fundos” da República Imperial, na expressão de Raymond Aron, pelo seu apoio à Cuba de Fidel Castro4.

Sem dúvida, essas explicações não tiveram o mérito de sublinhar os fenômenos no plano de fundo dessas duas guerras civis. As estruturas sociais nicaraguenses foram transtornadas no curso de dois decênios de modernização acelerada. Ainda assim, contrariamente àquilo que asseguram não poucas explicações dependentistas, essas transformações não conduziram somente ao “empobrecimento das classes populares e à sua marginalização” e, conseguintemente, à sua revolta; elas caminharam no sentido do aparecimento de sentimentos de injustiça que, obviamente, exerceram papel decisivo na mobilização de largos setores da sociedade nicaraguense, seja nos afrontamentos contra Somoza em 1979, seja contra os sandinistas, a partir de 1981. Do mesmo modo, se a tese da “radicalização” ou aquela dos conflitos imperiais entre o nacionalismo emergente e os objetivos dos Estados Unidos, evidentemente, têm alguns fundamentos; ainda assim, não se saberia explicar essas duas guerras civis nicaraguenses apenas pelos termos de “bloqueio “ do jogo político ou de luta de “libertação nacional”.

Proponho-me, pois, separar-me dessas explicações, para tentar outra interpretação das duas guerras5. Sejam quais forem as suas especificidades sociopolíticas, elas parecem inscrever-se também na continuidade de uma série de afrontamentos armados, que marcaram a vida política de todo o século XX nicaraguense. Esses afrontamentos, cujas especificidades representam formas paroxísmicas e, assim agindo, constituem, sem dúvida, o terminus ad quem, termo a que se dirigem. Com efeito, longe de serem momentos atípicos na história nicaraguense do século passado, essas duas guerras, muitas vezes, parecem a sequência ou a retomada de gestos, cujas primeiras manifestações são atestadas desde o começo do citado século, por ocasião dos afrontamentos entre liberais e conservadores, particularmente no curso do levante de Augusto César Sandino, de 1927 a 1934, contra o general Emiliano Chamorro e a ocupação norte-americana do país. Importa, portanto, começar por retraçar o continuum das ações guerreiras, em que se inscreve a guerra civil de 1978-1979, bem como os afrontamentos de sandinistas e contras, no período 1979-1987. A ancoragem dessas duas guerras, em certo “tempo longo” da violência nicaraguense, na sua sequência ao longo do século XX, vai permitir a análise de como a violência constituiu modalidade de ação legítima e codificada; e como esta permitiu, simultaneamente, a aparição de novos atores sociopolíticos e o acesso legítimo a esses recursos econômicos. Mostram-se quais foram os tipos de estruturação interna desses atores. Tenta-se também distinguir a “cultura política” na qual se inscreveu essa sucessão de episódios de violência. Fica por marcar a especificidade dos dois conflitos no concernente ao tal continuum guerreiro. Haverá perguntas que terminarão por desequilibrar o que apareceu no fim do afrontamento de contras e sandinistas e durante o mandato presidencial de Violeta Barrios de Chamorro, no período 1990-1996.

 

 

Um guerreiro

Para além dos aparentes períodos de estabilidade, que foram os do governo do general Zelaya (1893-1909), na primeira ocupação norte-americana (1912-1925); o longo reinado de Somoza García, depois o dos seus filhos e de René Schick Gutiérrez (1956-1979); os afrontamentos armados e as provas de força entre diferentes facções políticas e os seus aliados estrangeiros, tudo isso não somente escandiu em permanência o século XX nicaraguense; mas, em muitos respeitos, lhe constituíram a trama. Os períodos de paz civil nunca estiveram isentos de demonstrações de força das partes em confronto, que fizeram apelo muito regular às potências estrangeiras, em particular aos Estados Unidos. Isso significa dizer até que ponto, do começo do século ao decênio de 1980, o jogo político nicaraguense se inscreve em fundo guerreiro continuado, em que a intromissão das potências estrangeiras foi a norma.

Tomemos o primeiro sinal, examinando os dezesseis anos da presidência do general Zelaya. Sem dúvida, ele logrou impedir as guerras entre os liberais de León e os conservadores de Granada, guerras incessantes no século XIX. Sem dúvida, ele conseguiu, de igual modo, enfrentar os britânicos e pôde estabelecer a soberania da Nicarágua na costa atlântica, que estivera sob o seu protetorado desde o século XVII6. Sem dúvida, em suma, ele logrou apoiar militarmente os seus homólogos liberais, seja em Honduras seja no Salvador e na Costa Rica, começando por lançar as bases, em 1905, de uma República maior na América Central. Mas tanto essa última tentativa quanto o seu projeto dede construir uma futura via por água entre o Atlântico e o Pacífico, passando pela Nicarágua, com apelo aos capitais alemães, encontraram a oposição decidida dos Estados Unidos. Além disso, por ocasião do revés de William Walker de transformar a Nicarágua em Estado escravista, integrado à confederação do sul norte-americano (1860), quando os Estados Unidos estavam implicados no cenário político nicaraguense, eles souberam imiscuir-se durante longo tempo no jogo político nacional; apoiaram mais de cinco levantes armados dos conservadores ou dos opositores liberais contra Zelaya. Apesar de que o general liberal pôde esmagar essas tentativas de golpes de força, não conseguiu evitar de ser derrubado por maquinação conjurada dos conservadores, que lograram mais facilmente o apoio do governo norte-americano, até porque este estava, outra vez, em luta com a Nicarágua, por causa da decisão de Zelaya de pôr fim a certas concessões fiscais feitas a companhias norte-americanas.

Em 1911, Adolfo Díaz, presidente conservador interino, em consequência de iniciativa infeliz, tornou a deflagrar a guerra civil entre conservadores e liberais; no ensejo, os Estados Unidos intervieram pela primeira vez militarmente, despachando um contingente de infantaria da marinha, cujos efetivos passaram rapidamente de algumas centenas de homens a dois mil e setecentos. Este “protetorado7” dos Estados Unidos (1912-1925) permitiu que os conservadores mantivessem provisoriamente a sua hegemonia. O corolário disso foi a assinatura. em 1913, do tratado entre os Secretários de Estado: o norte-americano William Jennings Bryan e o nicaraguense Emiliano Chamorro; esse tratado concedia aos Estados Unidos a exclusividade dos direitos sobre o Río San Juan, assim como o uso das ilhas do Maïs e do golfo de Fonseca para a sua marinha de guerra. Os Estados Unidos, paralelamente, obtiveram influência nas finanças nicaraguenses, de igual modo na redação de um projeto de lei eleitoral, aprovada em 1924, que vigeu até 1960.

Em 1925, a retirada das forças norte-americanas catalisou imediata a guerra entre liberais e conservadores, seguida do golpe de força do general conservador Emiliano Chamorro contra o candidato liberal nas eleições, Juan Bautista Sacasa. Os liberais receberam o apoio do presidente mexicano Plutarco Elias Calles, então em conflito com os Estados Unidos. Com o reforço deste socorro diplomático e militar do México e do incontestável apoio popular, os liberais tomaram logo a vantagem militar sobre os rivais conservadores, que tornaram a fazer apelo aos Estados Unidos; estes enviaram um corpo expedicionário. Em 1928, depois da assinatura do pacto entre liberais e conservadores, o general liberal José Maria Moncada foi eleito presidente da República. Não por isso a força norte-americana deixou o país; mantiveram-se nele até 1933, isto é, até

depois das eleições de 1932, que deram a vitória ao candidato liberal Juan Bautista Sacasa8.

Por ocasião da primeira ocupação, os Estados Unidos não tiveram oposição maior; mas a segunda ocupação suscitou vigorosa protestação em plano internacional e oposição armada do general liberal dissidente, Augusto César Sandino. O nome dele virou símbolo da luta anti-imperialista, porque o seu combate não terminou com a saída dos fuzileiros navais. Com efeito, até então, as guerras internas da Nicarágua e as intervenções dos Estados Unidos nesse país tinham, por certo, atraído a atenção dos povos da América Central; haja vista o eco do poema de Rubén Dario “A Roosevelt”. Haja vista ainda as elites políticas e financeiras europeias e norte-americanas. Agora, pela primeira vez, o combate de Sandino mobilizou a inteligência de esquerda, tanto na Europa como no continente americano. Assim, por algum tempo, houve o auxílio vermelho internacional, organização satélite da Internacional comunista. Depois, denunciado por ela, após a sua ruptura com o secretário salvadorenho Farabundo Martí, uma das figuras do partido comunista salvadorenho. Nesse contexto, o punhado de combatentes do caudilho se transformou, a pouco e pouco, no ”exército de defesa da soberania nacional”, com mais de mil homens, composto principalmente de gente do campo e das minas da região de Nueva Segovia, nas montanhas situadas no norte do país. A tais recrutas nicaraguenses juntaram-se voluntários da América Latina, sobremodo da América Central, vindos em apoio do “Davi nicaraguense”. O governo da Nicarágua e os seus mentores norte-americanos mobilizaram contra “os bandidos de Segovia” até doze mil fuzileiros navais, substituídos, a pouco e pouco, pelos soldados do novo exército nicaraguense, a guarda nacional, organizada com o apoio dos Estados Unidos. Esta guerra de sete anos fez vários milhares de mortos nos departamentos centrais de um país de seiscentos e oitenta mil habitantes, em 1930; aproximadamente eram cento e cinquenta mil nas zonas onde houve o grosso dos combates9. A segunda ocupação militar se encerrou com o acordo do presidente Juan Bautista Sacasa com o general Sandino que, diante da vontade dos Estados Unidos de retirar as suas forças no quadro de nova política da “boa vizinhança” de Roosevelt, assinou o pacto com o governo nicaraguense (1933). Ele desarmou mil e oitocentos soldados, ficando apenas com a guarda de uma centena de homens; mas os afrontamentos entre os membros das suas antigas forças e a Guarda nacional continuaram. Ele próprio foi assassinado em 1934, às ordens do novo comandante da Guarda nacional, Anastasio Somoza García, quando vinha de novo negociar com o presidente Sacasa10.

A presidência de Somoza e dos seus dois filhos, Luis e Anastasio, durou mais de quarenta anos e foi de inesperada estabilidade, pelo que os três Somozas não dirigiram apenas o país, multiplicando os pactos com certos ramos do partido conservador. Ocorre que eles multiplicaram também os golpes de força e se valeram do terror contra os seus opositores. A primeira eleição de Somoza García como chefe de Estado, em 1936, começou pela derrubada de Sacasa. Em 1944, ele reduziu pela força as manifestações civilistas que, fortalecidas pela esperança que suscitava a derrota das potências do Eixo e da nova “Carta das Nações Unidas”, denunciavam a vontade dele de pretender o segundo mandato presidencial. Apesar de tão poderoso, teve de ceder aos desejos norte-americanos, que lhe fizeram saber que o seu continuísmo não era conveniente, e que devia aceitar de não se candidatar. Ainda assim, ele derrubou o presidente eleito, Leonardo Argüello, em 1947, por um golpe de Estado, quando este tentava tirá-lo do seu comando das forças armadas. Com isso, a título passageiro, atraiu a reprovação dos Estados Unidos, que suspenderam a sua ajuda militar e esperaram o ano de 1948, para reconhecer o novo presidente, Victor Román y Reyes, tio de Somoza, eleito na sequência do golpe. Somoza reprimiu, sem se valer de golpe, os dois levantes armados, lançados pelos conservadores e oficiais da Guarda nacional em 1947 e 1948; lançou na prisão ou fixou residência vigiada a muitas personalidades da oposição, geralmente não incursas nos movimentos insurrecionais. O seu assassínio em 1956 causou repressão particularmente brutal contra todos os chefes da oposição11.

As presidências de Luis Somoza (1957-1962) e de René Schick (1963-1967) tiveram de afrontar diferentes levantes armados, tanto dos conservadores como dos dissidentes liberais ou dos antigos partidários de Sandino. Tiveram de fazer face também às ações de nova organização armada, a Frente sandinista de libertação nacional, FSLN, fundada por um núcleo de velhos membros do antigo partido socialista nicaraguense, em 1961, na esteira da revolução cubana. Os dois presidentes liberais deixaram as mãos livres ao novo comandante chefe da Guarda nacional, Anastasio Somoza Debayle, que virou presidente da República em 1967, na sua vez; ele teve de enfrentar uma oposição reorganizada, no seio da União democrática libertação, UDEL, como parte da iniciativa de Pedro Joaquín Chamorro, diretor do cotidiano La Prensa. O terremoto de 1972, que feriu Manágua, marcou o começo da sua queda. Depois de quarenta e oito horas de caos, Somoza, com apoio do embaixador dos Estados Unidos, restabeleceu certo simulacro de ordem. Ele ficou sendo, desde então, o alvo dos ataques que cresceram vigorosamente, tanto da parte da Igreja Católica quanto de Pedro Joaquín Chamorro. Com apoio da Igreja, a oposição entrou em campanha em favor da abstenção nas eleições de 1974. Reeleito fraudulentamente, o chefe do Estado enfrentou, em dezembro desse mesmo ano, a tomada de reféns organizada pela FSLN, na casa de um dos seus ministros. Então, ele teve

de cumprir vários gestos de conciliação, nunca vistos na história do seu pai e do seu irmão. Não somente aceitou a mediação da Igreja, mas libertou prisioneiros e os deixou partir para Cuba, com o comando sandinista e os seus reféns, como fez ainda em 1978, após a tomada do Palácio nacional. O ano de 1975 foi assinalado pela retomada das atividades militares da Frente sandinista no departamento de Matagalpa e, além disso, por uma campanha de contrainsurreição, particularmente brutal, da Guarda nacional12.

A nova política do presidente Jimmy Carter, que condicionou a ajuda estadunidense ao respeito dos direitos do homem, levou o conjunto da oposição a multiplicar os gestos de desafiar o poder. O assassínio de Pedro Joaquín Chamorro, em 10 de janeiro de 1978, fez prevalecer, em compensação, a opção armada sobre qualquer outra e, a partir daí, a insurreição sandinista se beneficiou de largo apoio popular. A oposição contra Somoza, daí por diante unida à FSLN, não cessou de ganhar terreno, lucrando com o apoio da opinião pública internacional, até a derrubada de Somoza, em julho de 1979. A guerra afetou sobremodo as cidades da parte oriental do país e, no todo, chegou a cinquenta mil mortos. Celebrada por um Te Deum na catedral de Manágua, a revolução reuniu o conjunto da população, com todos os estratos sociais misturados. A vitória se traduziu pela instauração de uma Junta de governo de reconstrução nacional, JGRN, de maioria sandinista; no Conselho de Estado, tomavam assento os representantes dos partidários da coalizão contra Somoza. O programa da junta apelou para excluir Somoza e os seus partidários, bem como para dar lugar a um regime liberal democrático. Previa-se também o confisco dos bens “mal adquiridos” por Somoza e os seus partidários, ademais da criação de uma economia mista. Instalado o governo revolucionário, empreendeu-se a reforma agrária, com base na criação de cooperativas e na transformação dos latifúndios de Somoza em fazendas do Estado. Desde o primeiro ano, o governo se lançou em “cruzada nacional de alfabetização”. Se os afrontamentos armados contra os sandinistas começaram a partir do final de 1979, os seus primeiros oponentes não foram apenas os contrarrevolucionários, mas irromperam no seio das suas próprias fileiras. A partir de 1982, esses diferentes núcleos de opositores obtiveram auxílio militar direto e indireto estadunidense; e os sandinistas não souberam evitar a guerra aos contras, custosa em termos políticos e em termos econômicos. O processo de paz só foi possível graças aos acordos de paz regionais, postos a funcionar em 1987. O plano de Esquipulas permitiu, simultaneamente, a assinatura do acordo de paz entre o governo sandinista e os contras, incontestável liberalização e a organização de eleições democráticas, em que os sandinistas foram derrotados. Enfim, eleita Violeta Barrios de Chamorro presidente da República, ela conseguiu desmobilizar os vinte mil guerrilheiros dos contras, ao passo que os oitenta e cinco mil do exército popular sandinista se viram reduzidos a catorze mil13.

Não há dúvida de que esse sobrevoo na história nicaraguense apresenta o inconveniente de apagar as diferenças entre os projetos políticos dos atores em competição: entre Sandino e Somoza García; entre os próceres da revolução de 19 de julho de 1979 e Anastasio Somoza Debayle e, para terminar, entre os sandinistas e os contras. Não há dúvida de que tal sobrevoo propende a esmagar programas, reformas e práticas políticas, que se inscrevem em registros por inteiro dissemelhantes. Esta vista a cavaleiro dos acontecimentos é, porém, indispensável para aquele que quer reinscrever os acontecimentos e os atores em contexto e temporalidade que favoreçam certas ações e bloqueiem outras. Esse sumário permite compreender como a violência e a presença das potências estrangeiras constituíram dados centrais da vida política nicaraguense no século XX, e isto até ao decênio de 1980, de modo especial nos períodos de aparente estabilidade.

 

Terror e contraterror

Lembremo-nos das imagens mais de uma vez difundidas na imprensa internacional: prisioneiros sandinistas torturados e abatidos pela Guarda nacional, no começo da insurreição de 1979; a justiça sumária dos moços sandinistas contra as “orelhas” dos de Somoza; o assassínio de Pedro Joaquín Chamorro em janeiro de 1979; depois aquele de Anastasio Somoza Debayle, em setembro de 1980, no Paraguai. Recordemos ainda os excessos dos afrontamentos entre sandinistas e contras: torturas, assassínios, estupros cometidos por estes, como pelos sandinistas, nas zonas rurais supostas como aquisições dos contrarrevolucionários e nas prisões da zona do Pacífico14. Essas imagens são incompreensíveis, se não são aproximadas das demais violências, praticamente idênticas, perpetradas por ocasião dos afrontamentos de Sandino e dos seus partidários com os fuzileiros navais estadunidenses e os da Guarda nacional; ou, ainda, os excessos anteriores das guerras entre conservadores e liberais15. Tais atos, para serem compreendidos, devem ser considerados não como simples excessos que suscitam a condenação, mas como outros tantos gestos conformes a todo um código de procedimento e de representação, tacitamente aceito pelo conjunto dos atores sociopolíticos.

As crueldades evocadas acima constituem um modo de dizer a superioridade hierárquica dos seus autores sobre as vítimas. Os primeiros são apresentados como “heróis civilizadores”; os segundos como a encarnação da barbárie. As cobranças exageradas da Guarda nacional contra os militantes sandinistas e contra os jovens combatentes que se juntam à insurreição, as matanças de supostos espiões de Somoza ou de guardas aprisionados, os assassínios cometidos pelos contras, colaboradores da Frente sandinista: são atos de vingança contra adversários, cujo poder destruidor se temia. Ainda assim, para além desses impulsos imediatos, tais exações constituíram outros tantos gestos legítimos contra aqueles que encarnaram a barbárie. Fazendo isso, eles tornam a juntar os cenários macabros de Sandino e dos seus lugar-tenentes contra “os imperialistas” e os seus aliados, como no caso de Somoza García contra Sandino e os seus companheiros ou Pedro Joaquín Chamorro. O selo do primeiro representa um soldado do exército de defesa da soberania nacional da Nicarágua, EDSNN, preparando-se a decapitar a machado um fuzileiro aterrado: o patriota nicaraguense, encarnação da civilização indoamericana contra a hidra imperialista. Tais imagens não se inscrevem apenas em retórica contraimperialista, mas se encarnam também em gestos repetidos e justificados pelo próprio Sandino contra os “traidores” e outros partidários do “governo fantoche”. O seu “manifesto aos capitalistas” pauta-se por este ponto de vista perfeitamente explícito16. Por ocasião de uma intervenção estrangeira, a ocupação do país pelos Estados Unidos, para apoiar um governo vassalo, não interessava que dessem garantias aos aliados deles. Tendo “salvo a honra da família nicaraguense, em face dos homens livres da terra”, pouco importa que o EDSNN e o seu general devessem, às vezes, “dar ordens drásticas em benefício da salvação da nação “. E daí se passa a concluir: “A liberdade não se conquista com flores, senão com balas, pelo que tivemos de recorrer até mesmo a gestos brutos de retalhar a vítima”17.

Gestos desse jaez no encontro dos oponentes a este contraestado dos Segovias, que era o exército sandinista, sublinham um tipo de terror funcional e traçam muito bem a fronteira entre o polo da civilização, “os homens livres”, e aquele da barbárie, “os vendilhões da pátria”. A mutilação e a subsequente exposição dos corpos colocam as vítimas fora humanidade. O informe que Somoza García fez publicar em 1936, com o título o verdadeiro Sandino ou o calvário das Segovias, traduz as mesmas pressuposições, mas de sentido inverso. Relatando os fatos e gestos do “bandido” Sandino, esse livro se comprazia em exibir as exações deste e dos seus partidários, publicando de tropel as provas das suas atrocidades, as fotos das vítimas de mutilações e as cópias dos documentos provindos de Sandino. Aqui ainda, e no momento mesmo da tomada de posse do poder por Somoza, convinha estigmatizar a bestialidade do inimigo, modo como outro de justificar o assassínio de Sandino e dezenas dos seus partidários, bem assim de membros das suas famílias, alguns anos antes.

Vinte anos depois, o comportamento de Somoza García no encontro do líder dos “jovens turcos” conservadores, Pedro Joaquín Chamorro, testemunham o mesmo cenário. Na obra Estirpe sangrenta, este narra, com efeito, como o ditador o torturou pessoalmente, no “quarto de costura”, uma das peças da residência presidencial, antes de encerrá-lo no seu jardim, durante semanas, numa jaula. Esta estava dividida em dois espaços: um para ele, outro para um casal de jaguares, doados pelo ditador guatemalteco Ubico. A peça das sessões das suas torturas redigida pelo futuro diretor do jornal La Prensa obedece aos mesmos recursos narrativos que aqueles de Somoza na obra O verdadero Sandino: toda a retórica visa mostrar que o outro se situa fora da humanidade. Ele próprio ousou torturar; o ditador praticava esses atos ignóbeis no espaço da própria casa. Em suma, ele agia com Pedro Joaquín Chamorro da maneira como os imperadores romanos haviam tratado os cristãos. Os fatos, que não parecem exagerados, são susceptíveis de leitura de espelho. Para os somozistas, Pedro Joaquín Chamorro não é o herdeiro de uma linhagem de antepassados, em que dois foram presidentes do país; ele é a encarnação do caos, como o prova a sua recusa do pacto entre conservadores e liberais e a sua participação em levante armado. Os golpes que recebeu do ditador e de um dos seus filhos, Anastasio Somoza Debayle, auxiliados por diversos guardas, fazem ver esse novo estatuto, tudo como o seu aprisionamento em companhia de animais selvagens. E as torturas que o filho do ditador fez infligir, nos anos 1970, a alguns prisioneiros sandinistas, como os assassínios de gente do campo tidos como colaboradores da Frente, participaram dos mesmos desígnios.

Toda uma série de ações, realizadas pelos sandinistas na mesma época, beberam das mesmas fontes. A mais conhecida é a armadilha na qual caiu, em 1977, o chefe do estado maior da Guarda nacional, general Reynaldo Perez Veja. Nora Astorga, jovem de boa sociedade, tornada militante sandinista, o atraiu, sob pretexto de encontro amoroso, para que dois guerrilheiros o pudessem assassinar. A cena parece copiada de história bíblica; Nora Astorga tornou-se uma como Judite moderna; a sua vítima é o carrasco dos seus irmãos de armas: bárbaro brutal, escravo da sua sensualidade. Os termos empregados por Eden Pastora, por ocasião da sua ação brilhante de 1978, para designar os parlamentares retidos como reféns, “porcos”, e o Parlamento, “a porcaria”: não tomam o seu sentido senão com respeito a esse díptico, isto é, barbárie e civilização; e não sublinham apenas o caráter destemido de Pastora. Empregando esses termos, ele rejeitou o somozismo como o lado da animalidade. Apossando-se da bandeira nacional e declarando que ele somente o restituiria, quando o país ficar “livre” e quando ele tiver “verdadeiros representantes do povo”. Ele se apresentava como herói civilizador, assinalando a fronteira entre o mundo infra-humano e o mundo livre”18. Essa denegação da humanidade do inimigo e essa situação de onipotência dos civilizadores em armas tomaram também atitudes mais brutais, como a justiça sumária contra os “sapos”, os supostos informantes da Guarda nacional durante a insurreição sandinista. Depois, após a vitória, certas execuções sumárias de prisioneiros da Guarda nacional, cujos corpos, muitas vezes, foram abandonados sem sepultura, nos barrancos dos pobres caminhos19. Aí ainda o imaginário de tais gestos é aquele da carniça em face das feras. O proselitismo dos militantes sandinistas, em geral membros das novas forças armadas, nas Segovias como em Moskitia nos dias subsequentes da revolução, foi pensado de igual modo como verdadeira empresa de “civilização” de gente do campo e de indígenas bárbaros. Pouco importa que nas Segovias muitos campesinos tenham sido colaboradores da Frente, como membros das milícias populares antissomozistas (Milpas). Para muitos membros dos quadros sandinistas, eles eram pessoas sem razão, que importava enquadrar, até mesmo pela força. Muitos dos que manifestaram, nos dias seguintes de 19 de julho de 1979, as suas reticências no atinente às comissões de defesa sandinista e de outras organizações de massa, foram golpeados, torturados e humilhados publicamente20. As torturas contra um sindicalista comunista independente, el Chaguitillo, ou aquelas de que foi vítima o comandante Comanche, por ocasião da sua campanha em favor de Eden Pastora em 1982, obedeceram aos mesmos princípios: desaprumar os adversários reputados bárbaros, visto que eles aparentaram ser obstáculo, dado que se opunham à construção do novo povo, tornado uno pela ação dos sandinistas. As exações sangrentas, cometidas pelos contras, foram também tomadas nesse mesmo díptico de barbárie e civilização21.

Há ainda outro tipo de crueldade, largamente admitido pelas partes em combate: o estupro. Tanto é banalizado quanto negado, mas se atesta por numerosos testemunhos, sem que se disponha de estudos sistemáticos deles. Isto implica, evidentemente, o machismo da sociedade nicaraguense. Este machismo, embora combatido por certas militantes sandinistas e pelas organizações de mulheres, mantém-se como traço dos costumes nicaraguenses até nos nossos dias22. Inscreve-se, ademais, na vontade de humilhar o adversário e de lhe impor uma como mancha. As colaboradoras e as militantes da Frente foram também sistematicamente estupradas pelos membros da Guarda nacional, quando elas caíram nas mãos do inimigo. Muitas mulheres dos guardas nacionais ou pertencentes a famílias acusadas de somozismo sofreram este tipo de injúria, depois do 19 de julho. Enfim, os contras, tanto Miskitu quanto os de língua castelhana, ninguém ficou livre desse gênero de exação23.

Poucos foram os responsáveis políticos, militares e outros próceres que se opuseram a essas práticas24. Os estupros foram largamente tolerados pelas forças armadas sandinistas, como pelos contras. Um dos sinais dessa “normalidade” dos estupros é que tais fatos foram pouco utilizados na propaganda dos sandinistas e dos contras ou na crítica mútua. Essas exações eram consideradas como da esfera e domínio privados. Tendo em conta o esquema de tal guerra de amigo/inimigo, em que a humanidade da parte adversa era oficialmente denegada, os estupros foram assemelhados à mutilação dos corpos, ou a certos assassínios, como a manifestação da denegação da humanidade do adversário. Para além das vítimas, essas exações foram pensadas como ofensas dirigidas contra os chefes das redes familiares, únicos habilitados a exigir reparação, no espaço de transação privada, decidida pela eliminação do ofensor, ou obrigá-lo a despender alguma reparação material25. Na mesma ordem de ideias, na guerra civil de 1912, toda uma violência antielitista se desenvolveu em Granada contra as grandes famílias conservadoras. Os seus

chefes foram chicoteados em público, depois foram obrigados a desfilar de nádegas nuas pela cidade. Alguns dias mais tarde, mulheres e filhas dessas boas famílias da burguesia foram aprisionadas pelos revolucionários e constrangidas a se unir aos seus aprisionadores. Ademais, houve até mesmo verdadeiras expedições de estupros coletivos nos colégios das jovens da cidade e nas moradias conservadoras.

 

A formação de novos atores

No continuum guerrilheiro do século XX, o emprego raciocinado da violência e o seu respectivo controle ofereceram a possibilidade de que indivíduos, considerados à margem das posições de influência, acedessem à posições do primeiro escalão. As guerras civis recentes, como aquelas do começo do século, nutriram-se tanto dessa vontade dos plebeus de chegar a um escalão elevado, quanto da luta entre atores sociopolíticos já bem estabelecidos. Esse tipo de ascensão e promoção pelas armas é visível em todos os escalões da hierarquia administrativa e política. Conseguintemente, no irromper de cada um desses conflitos, a vontade dos chefes da guerrilha de adquirir novo estatuto pesou no procedimento das próprias operações militares.

No decênio 1980, muitos desses recém-chegados à política foram incontestavelmente personagens saídas das filas das guerrilhas; a sua influência eclipsou aquelas dos notáveis mais antigos. No seio da primeira Junta do governo, Alfonso Robelo e Violeta Barrios de Chamorro fizeram pálida figura em comparação do comandante Daniel Ortega, coordenador da Junta, e dos seus subalternos provindos da nebulosa sandinista, Moisés Hassán e Sergio Ramírez. Sem tardar, o aparelho de Estado foi povoado de certo pessoal provindo da esteira da Frente, muitos dos quais se deram ares de guerrilheiros veteranos, mesmo que nunca houvessem sido tais. Se alguns membros das famílias conservadoras guardaram lugares eminentes, eles não os lograram pelos seus laços de família ou por alianças matrimoniais com os recém-chegados ao mundo da política, que eram os sandinistas. De igual modo, no seio dos contras, os homens de maior peso foram todos soldados, ou procuraram aparentá-lo. Eden Pastora constitui bom exemplo, como também Enrique Bermudez, antigo oficial da Guarda nacional. Alguns, que nunca participaram de ação armada, assumiram postura de comandantes. Em face de todos esses condottieri, as elites civis reescapadas do antigo regime de Somoza, ou os antigos companheiros de rota dos sandinistas, como Adolfo Calero Arturo Cruz ou Alfonso Robelo ficaram geralmente com quinhão apoucado, não muito diferente na Nicarágua do começo do século. Sandino e Somoza, ambos homens chaves no decênio de 1930, não apareceram diferentemente. Tanto um como outro, de começo, não eram senão obscuros generais liberais. O primeiro tomou por título de glória a sua recusa do pacto entre liberais e conservadores, captando para a sua vantagem o apoio mexicano e toda uma corrente de simpatia latino-americana26. Somoza construiu a sua ascensão tornando-se responsável de novo corpo militar, no caso a Guarda nacional, ademais do apoio estadunidense.

Durante a revolução sandinista, essa mobilidade social abrangeu também a multidão de homens e mulheres que povoaram a organização de massa do novo poder e ocuparam posições de responsabilidade: comissões de defesa sandinista, CDS; confederação sandinista do trabalho; associação de mulheres e jovens. Os antigos guerrilheiros obtiveram postos vistosos nas novas organizações, como no seio do exército popular sandinista, EPS, ou na polícia sandinista. Heróis da guerra contra Somoza, os chamados muchachos, originários de famílias as mais modestas, foram por vezes elevados a altas funções no exército ou na polícia e se tornaram personagens públicas do primeiro escalão, como el Zorro, comandante Francisco Rivera Quintero27. Se a maioria não logrou senão responsabilidades medianas, pelo menos conseguiu beneficiar-se de promoção social muita rápida. A história de Charrasca, moço de León, que fez tremer os guardas nacionais por ocasião da insurreição nessa cidade, neste ponto de vista, é figura emblemática. Menino de rua, na margem da delinquência, como adolescente assumiu o comando de um grupo de combatentes, provindos do seu bando de amigos; ficou famoso pela sua louca bravura diante dos soldados da Guarda. Charrasca e os seus companheiros foram forçados a integrar o exército sandinista. Ele foi assassinado em razão da sua indisciplina, enquanto os seus companheiros foram enviados a Cuba, para certo estágio de “formação”28. As guerras entre conservadores e liberais, depois daquelas de Sandino, ofereceram exatamente as mesmas oportunidades de mobilidade social. Durante todos esses anos de maquinações e intrigas que foi o regime de Zelaya, como depois da sua derrubada, apareceram novas redes de caciques. Zelosos na defesa das suas famílias, os seus membros filiavam-se a um ou outro partido, em função das circunstâncias locais e das benesses que esperavam extrair daí. Eles respondiam às ofertas dos pequenos notáveis, que recrutavam partidários para os seus feudos de origem, para em seguida negociar em boa posição com os chefes liberais ou conservadores. O exército de Sandino foi assim um conglomerado dessa natureza. Para além do círculo dos seus partidários da primeira hora e dos veteranos dos afrontamentos de conservadores e liberais, surgiram centenas de soldados improvisados, muitas vezes também ansiosos em fazer fortuna ou de se proteger das exações dos potentados locais, mais do que em participar da defesa da soberania nicaraguense. De igual modo, as ofertas de recrutamento da Guarda nacional representaram tanto oportunidades para o campesino melhorar a sua sorte, como de aceder a posições de responsabilidade local: por exemplo, como juízes de paz, nomeados para presidirem as zonas rurais.

A nota própria de todos esses fenômenos é que eles se levaram a termo em contextos em que a concorrência entre os aliados constituiu a regra tacitamente aceitada. Nos anos 1980, os contras em vão multiplicaram as alianças oficiais, como União nacional de oposição, UNO, em 1985; Resistência nicaraguense, em 1987; os diferentes grupos armados continuaram sempre fundamentalmente rivais. A lógica de unificação ficou sempre contrabalançada pelas forças centrífugas de afirmação dos diferentes grupos, uns às custas dos outros. Os Milpas nunca foram uma organização unificada, mas um conglomerado de grupos armados independentes29. Os achegados a Pastora, sandinistas dissidentes da Frente revolucionária Sandino, sempre se opuseram aos comandos30 da Frente norte, reorganizada por Enrique Bermudez. Para os primeiros, os segundos não passavam de antigos guardas nacionais que, na sua vez, os consideravam como sandinistas mal arrependidos. Mesmo no interior desses dois blocos da oposição armada, as rivalidades eram manifestas: no sul, entre partidários fiéis a Negro Chamorro e pastoristas; no norte, entre antigos Milpas e antigos guardas nacionais. Ademais, essas tropas hispanofônicas nunca conseguirarm atrair os combatentes Miskitu e Mayangna, os quais também hesitavam entre dois estados maiores: um instalado na Costa Rica, aquele de Brooklin Rivera; o outro tinha os seus dirigentes maiores na Moskitia hondurenha. Para muitos contras, a pertença a essas organizações armadas significava tanto a participação da luta política quanto a forma de se proteger das arbitrariedades e exações do novo poder sandinista: em suma, era a maneira de adquirir maior peso no jogo político, em muitos níveis.

Na história dos contras, essas rivalidades não foram, de forma alguma, anedóticas, mas obedeceram sempre a um desígnio político perfeitamente pensado: obter prebendas nas organizações centrais, posições de influência para aceder aos arrendadores de fundos estadunidenses e assegurar postos no jogo político nicaraguense. Houve muitos momentos em que o jogo de tais rivalidades internas superou a ação puramente militar contra os sandinistas. A atitude vira-casaca de Eden Pastora, como a paralisia da Frente sul não se explicam de outro modo. Pastora, não poucas vezes, foi mais preocupado em ameaçar os sandinistas, para obrigá-los a negociar com ele, do que combatê-los verdadeiramente no seio de uma aliança com a Força democrática nicaraguense, FDN, que ele considerava fagocitada por antigos partidários de Somoza. Ele esteve também paralisado em certo tempo pela falta da ajuda estadunidense, e isto a pedido do diretório da FDN, a fim de que ele não pudesse comparecer omo figura de proa dos contras. A escolha de Pastora de abandonar a luta armada em 1987 e integrar a oposição cívica foi também uma tentativa de recuperar melhor posição, em face do seu enfraquecimento no seio da Resistência Nicaraguense. Enfim, as diferentes tensões que existiram entre os comandantes de base dos diferentes grupos guerrilheiros e dos estados maiores respectivos explicam-se, mais de uma vez, por razões de rivalidades internas. Os comandantes entravam em concorrência, seja para assegurarem melhores recursos, seja para lograrem posições de menor perigo. Tais fricções, não poucas vezes, levaram os círculos dirigentes das organizações guerrilheiras a expulsarem certas personalidades mais ciosas de conservar o seu poder e das prebendas que ele comporta.

Observa-se o mesmo tipo de dinâmicas, por ocasião da guerra contra Somoza. A concorrência entre opositores de Somoza foi também feroz, não apenas entre a oposição “burguesa” civilista e a FSLN, mas também entre grupos armados da própria Frente sandinista. Tais rivalidades no seio do feudo sandinista expunham as fendas quanto à estratégia revolucionária que importava adotar: proletária, guerra popular prolongada e terceirista31; tanto quanto, porque dobravam as querelas de pessoa, de precedência e mesmo de posições táticas. Os golpes de brilho dos terceiristas, como na tomada de reféns do Palácio nacional de 1978, o que permitiu a libertação de numerosos prisioneiros sandinistas, foram reprovados pelos membros da tendência de guerra popular prolongada, GPP. Como narrou Hugo Torres, nas suas memórias, certos membros dessa tendência se recusaram a integrar as frentes militares dos terceiristas depois da libertação, preferindo partir para Cuba, onde se preparou a reunificação da FSLN, por instigação de Fidel Castro. Eden Pastora ficou enfurecido de não ser nomeado membro da nova Direção nacional da Frente. Para ele como para alguns dos seus companheiros, o seu papel na tomada do Palácio nacional tinha de lhe valer tal promoção32. Orgulhosos da sua nova cotação internacional e da ajuda panamenha, venezolana e costarriquenha, os terceiristas privilegiaram também o reforço das suas unidades militares, às custas dos outros. O seu objetivo, graças aos seus feitos militares, era assegurar posições estratégicas no novo aparelho do Estado, notadamente no seio das forças armadas, cujo maior responsável há pouco foi um dos seus, Humberto Ortega. Certos momentos chaves da luta contra Somoza, como por ocasião dos combates na região de Esteli, foram marcados pela vontade de vários membros da tendência “guerra popular prolongada”, que se recusaram a levar assistência a guerrilheiros terceiristas, tomados sob o fogo da Guarda nacional33.

Por vezes, as tensões foram tais que provocaram o assassínio de certos adversários. Se esses crimes ou essas tentativas de assassínios foram relativamente pouco numerosos, eles foram a explicação privilegiada de todos os reveses da guerra, tanto na época dos contras como por ocasião da guerra contra Somoza. Assim, no atentado de Penca, que quase custou a vida a Pastora, em 1984, ele e os seus subalternos pensaram que havia sido tramado pela FDN e não como isto se demonstrou, em seguida, pelos sandinistas. Igualmente, todo o atraso na entrega de armas prometida pelos “aliados” em perseguição dos contras levava a suspeitar de certa maquinação de algum contingente rival. Essas práticas não eram desconhecidas da FSLN. Jaime Wheelock, chefe da “tendência proletária”, foi ameaçado de morte por Tomás Borge e julgou mais prudente fugir. A morte de Danto, isto é, Germán Pomares, durante o ataque de Jinotega, em maio de 1979, não foi considerado acidente por muitos dos seus companheiros; foi considerado assassínio, ordenado por certos dirigentes da Frente, em razão das suas posições sociodemocráticas e da sua vontade de promover uma revolução à imagem da revolução da Costa Rica de 1948, e não daquela da Cuba castrista34. Pura conjectura ou fato comprovado, esse assassínio, em todo o caso, é a origem da primeira dissidência no seio das guerrilhas da Frente, dissidência que forneceu, mais tarde, um dos primeiros núcleos dos contras, isto é, os Milpas35.

Aqui, ainda, essas práticas inscrevem-se no traçado daquelas que têm estado em uso desde o começo do século XX. As guerras entre

liberais e conservadores foram, de igual modo, guerras pessoais entre caudilhos dessas duas nebulosas36. Sandino, “general dos homens livres”, como prova a sua correspondência, passou boa parte do seu tempo em negociar com os chefes do bando, para que estes não somente lhe manifestassem apoio e pusessem em surdina as suas rivalidades, mas se dobrassem efetivamente às suas ordens; e até mesmo coordenassem as suas ações, em função dos seus planos de batalha. Somoza García e os filhos, eles também, tiveram de fazer face a fenômenos análogos no seio da Guarda nacional, na qual conjurações e lutas de influência em ligação com os chefes do partido conservador foram constantes37.

 

Enriquecimentos e prebendas

Para muitos guerrilheiros a participação nas operações armadas não constituiu apenas o meio de chegar às novas responsabilidades políticas, senão também à via de acesso a recursos econômicos, e isso, por vezes, desde os anos de guerra. O fato é evidente, considerando as trajetórias de numerosos sandinistas como de certos contras. É depois de 19 de julho que muitos combatentes gozaram de bens adquiridos graças às operações, que oscilam entre a pura e simples pilhagem e a atribuição muito oficial de “bens vacantes”. Grande número de moradias, com efeito, se encontraram abandonadas, seja porque os seus proprietários eram ligados ao regime de Somoza, seja porque tenham fugido ao estrangeiro, seja porque os seus ocupantes tenham procurado outro refúgio para se proteger dos combates razoavelmente mortíferos e destrutivos. Assim, casas se acharam vacantes com os bens que elas continham. Alguns deles, pertencentes a partidários de Somoza ou a membros da família do ditador, muito oficialmente foram confiscados e atribuídos a responsáveis políticos e militares recentemente entronizados pela JGRN; outros foram objetos de apropriação de fato, especialmente os automóveis ou aparelhos elétricos do lar. O fato implica dizer que se assiste a transferências de propriedade que, sob a coberta da socialização, não foram senão simples roubos em prejuízo dos particulares ausentes. Os bens de “função” foram, não raro, objeto de apropriação particular38. Na véspera da renovação da Assembleia nacional, que selou a derrota eleitoral dos sandinistas em 1989, as leis ditas da piñata, ou panela, legalizaram, “em razão dos serviços prestados à revolução”, essas transferências de propriedade. Tal enriquecimento da maioria do pessoal político e militar foi para os seus beneficiários efêmero e pouco importante; para outros foi durável e vultoso. Vários membros da Direção nacional da FSLN, em cujo primeiro escalão estavam os irmãos Ortega e Tomás Borge, e respeitável série de oficiais das forças armadas, tornaram-se poderosos homens de negócios, à testa de patrimônios imóveis em Manágua ou na costa do Pacífico, tanto nos domínios de terras como de empresas industriais nacionalizadas pela revolução39. Esse enriquecimento, por vezes, foi o resultado de espoliação dobrada: em prejuízo dos antigos proprietários e do próprio Estado; mas, às vezes, também dos seus subalternos. Muitos militares, oficiais e suboficiais, aposentados por ocasião da chegada à posse dos negócios da UNO, em 1990, nunca receberam indenização do licenciamento que os oficiais superiores deviam repartir, o que causou muitas ações de protesto no seu dissídio de 1991 e 199240. Esta piñata sandinista teve o seu equivalente nas fileiras dos contras. Quando a grande massa de soldados volveu à vida civil, com ajuda mínima, no quadro de diferentes programas de reinserção, geralmente administrados pela Organização dos Estados Americanos, OEA; diferentes comandantes se fizeram atribuir ajudas especiais a uns, enquanto outros receberiam terras ou liquidações. Outros imitaram certos altos responsáveis sandinistas, e roubaram sem vergonha dos próprios antigos companheiros de armas, em nome dos quais negociavam diferentes subsídios41. Essas indébitas apropriações foram denunciadas publicamente e suscitaram diversos movimentos de revolta entre os desmobilizados de todos os lados, contra aqueles que os haviam espoliado, como da parte de certas pessoas, cujos bens haviam sido confiscados. Cumpre constatar que nunca se pôs em causa o princípio de tais indenizações. A questão, pelo contrário, foi a de saber como elas poderiam ser estendidas ou atribuídas com mais justiça. O jogo consistia, pois, em avalizar as prevaricações do adversário para justificar as próprias. Muitos contras apresentaram o argumento de que eles não faziam senão repetir o que haviam feito os sandinistas. Estes sustentaram o argumento da necessidade de recompensar os “serviços prestados à revolução”. Enfim, os pequenos piñateros não lograram abrigar-se atrás das práticas dos grandes. Os grandes em geral tiveram a inteligência de fazer beneficiários os seus dependentes diretos com a mesma largueza. Mais de uma vez, fez-se crer que os “ deixados por conta” acabariam por ter a sua parte e quinhão.

Ocorre que tais práticas são diretamente herdadas de um passado mais ou menos próximo, mas muito presente na memória coletiva; e o argumento subjacente foi muita vez alegado em numerosos debates políticos. Desde o começo do decênio de 1980, o paralelo se estabelecera entre a “voracidade” do clã de Somoza e a “rapacidade” de certos dirigentes sandinistas. Havia piadas sobre a mesma capacidade de cada um deles de se “apropriar da maior parte do bolo”. Prevaleceu a ideia de que se atividade político-militar comportava inegavelmente direitos de contrapartidas materiais, tais exigências deveriam ser “decentes”. Desse modo, certas “confiscações” da revolução, por injustas que possam ter sido, apareceram como inevitáveis, ainda que não conformes a um tipo de justiça. Os críticos do procedimento de Anastasio Somoza García e, depois, do seu segundo filho, Anastasio Somoza Debayle, participaram do mesmo espírito; estigmatizou-se não a preocupação de bons negócios, mas a propensão imoderada para eles. Qualificou-se, assim, de “ditadura omnívora” o regime de Somoza Debayle depois do terremoto de 1972, em razão das suas operações imobiliárias e dos roubos cometidos pela Guarda nacional, nessa ocasião. Havia-se feito observação análoga contra Somoza García, por ocasião da declaração de guerra à Alemanha nazista em 1944, e da confiscação dos bens dos cafeicultores alemães, que haviam chegado à Nicarágua no século XIX. Semelhantemente, as tratativas de Sandino para que lhe fossem concedidas terras, a fim de que pudesse formar uma cooperativa com os seus companheiros de armas: tais terras pareciam um modo normal de recompensá-lo e aos seus companheiros. Em suma, as guerras entre conservadores e liberais do começo do século XX, como aquelas do século precedente, haviam feito espoliações dos vencidos, como se fora na base de certa regra de procedimento. Os membros do partido derrotado eram espoliados da totalidade ou da maior parte dos seus bens. Sem dúvida, não raro, houve o cuidado de deixar uma porção condizente às grandes famílias do partido adverso; mas poucas vezes houve a mesma consideração com os líderes do grupo derrotado42.

Todas essas guerras foram também ocasião de consideráveis enriquecimentos ou de melhoramentos notáveis no modo de vida dos homens de armas, ao longo de todas as hostilidades. Sem dúvida, porém, as condições de existência dos guerrilheiros sandinistas, muitas vezes, eram de extrema precariedade, como comprova a narrativa de Omar Cabezas Quintero ou de Hugo Torres43. A justo título, eles põem o acento na fome e no desnudamento em que se encontraram, mais de uma vez, mormente no decênio de 1970, quando tiveram de andar nômades nas montanhas centrais do país. Ainda assim, cumpre notar que essa experiência, que igualmente foi para os primeiros núcleos dos contras, não era geral. Foi tal para pequeno número de pioneiros desses dois movimentos. Muitos deles, em contraposição, ficaram beneficiários de formação militar profissional e política, em Cuba e nos países socialistas, ou nos exércitos centro-americanos, até mesmo na Argentina para alguns poucos. O grosso dos batalhões guerrilheiros foi integrado em contexto em que a abundância nunca foi geral; as condições materiais eram antes espartanas ou de mediania. Este fenômeno evidencia-se, considerando as condições de vida dos ambientes sociais de onde provinha a maioria dos guerrilheiros. Haja vista o caso dos assim chamados muchachos: improvisados combatentes da Frente, por ocasião da insurreição final de 1979 na cidade de Manágua ou de León. Charrasca é emblemático quanto a isso. Ele próprio e muitos companheiros de armas viviam em extrema pobreza e faziam parte do setor dito informal. Os trabalhadores do campo, não raro, eram operários diaristas, que se reuniam aos soldados das cidades da zona cafeeira; todos viviam muito pobremente. É o que podem contar os que trabalhavam na colheita do café. A participação na insurreição deu-lhes acesso a uma alimentação mais variada, melhor daquela que consumiam antes. Puderam também vestir-se melhor e melhorar o calçado. O fenômeno fica mais claro, se é ponderada a vida material dos contras. Tanto eles como as suas famílias eram beneficiários de diversas vantagens. Havia ajuda do HCR nos campos de refugiados hondurenhos e cuidados médicos como eles não tinham antes. Esses fatos têm a sua importância, considerando a penúria que sofriam os nicaraguenses no tempo do sandinismo, especialmente para a gente rural, no período dito “comunismo de guerra”, de 1985 a 1987. No atinente aos dirigentes da oposição armada, os soldados tiveram acesso a salários e a prebendas que fizeram deles homens ricos. A aliança deles com os antissandinistas foi excelente negócio, em termos econômicos. Aqui também os desvios de fundos e os abusos constituíram moeda corrente. Houve roubo sem vergonha: mobília material das famílias dos combatentes, fundos destinados à compra de alimentos e equipamento. Conheceram-se fenômenos análogos nas fileiras sandinistas; aí havia ainda a concussão e o enriquecimento sob o embargo estadunidense. Muitos chefes de guerra de ambos os campos rivalizavam nas despesas de luxo: casas reservadas aos diplomatas de Manágua, restaurantes, lugares de prazer em Tegucigalpa, San José ou Miami44.

No atinente às experiências passadas, a melhora das condições materiais durante as próprias guerras não é novidade; elas diferem, porém, em ponto capital: o modo de financiamento das guerras. Quaisquer que fossem os aportes estrangeiros em homens e armas, nas guerras do decênio de 1910 e por ocasião dos afrontamentos entre Sandino e a Guarda nacional, ele foi muito reduzido e não dizia respeito senão a pequeno número de atores45. Essas guerras foram fundamentalmente financiadas por recursos e dinheiro obtidos à força nas populações das regiões em operação do exército em campanha. Sandino se apropriou assim de uma mina de ouro e recorreu regularmente ao sistema das “garantias”, o que vigorava nas guerras precedentes. O sistema consistia em exigir um imposto de guerra em troca de proteção contra possíveis prejuízos, sob pena de haver represálias as mais severas46. Acrescentou-se a esse sistema a apropriação de rebanhos, grandes e pequenos, para alimento, vestimenta e transporte. Isto implica que os exércitos viviam às custas da população civil, forçada a cooperar para salvar a vida e, para os ricos, parte dos seus bens. Inversamente, a guerra contra Somoza, na sua última fase, tudo como na guerra entre sandinistas e contras, tudo foi financiado pelas potências estrangeiras. Os sandinistas tiveram o apoio financeiro e militar da Costa Rica, Cuba, Panamá e da Venezuela. Desde 1980, a ajuda fornecida aos sandinistas pelos países comunistas foi tanto maciça quanto decisiva, como sucedeu com os americanos, a partir de 1982, e de alguns dos seus aliados, para os diferentes grupos da oposição armada. O volume de tais ajudas, como a ausência quase completa do controle sobre o seu emprego facilitaram grandemente todas as operações de enriquecimento pessoal. Mais ainda, a vontade dos protetores de cada um dos clãs combatentes de sustentar, a qualquer preço, os seus protegidos permitiu a ditas práticas de não serem postas em discussão. Se as operações dos velhacos não desapareceram totalmente, foi muito mais eficaz e lucrativo desviar o dinheiro dos empréstimos de fundos estrangeiros que de fazer pressão sobre as populações civis.

 

A ordem e a barbárie

O lugar eminente da violência e da guerra na história nicaraguense é, contudo, incompreensível, se não se leva em conta as concepções do assunto político em voga ao longo da maior parte do século XX. A ideia de uma nação nicaraguense foi pelo menos problemática. Como o escreveu Sarmiento, num ensaio sobre a América Central: “A América Central fez um Estado soberano de cada vila47”. O melhor observador da Nicarágua, no decênio de 1960, foi o politólogo estadunidense Charles Anderson, que qualificou esse país de “nação desintegrada48”. De fato, dos anos de Zelaya àqueles dos sandinistas, os nicaraguenses não se percebiam, de forma alguma, como membros de uma nação composta de indivíduos iguais perante a lei; eles se sentiam, primeiro, como membros de uma linhagem familiar; depois, de uma cidade ou vila; assim faziam disso uma facção política. Granada e o seu interior eram as terras da eleição dos conservadores, ao passo que León e os territórios que o cercam eram liberais. Aliás, as pessoas não eram propriamente membros do partido liberal ou do partido conservador; elas eram ligadas a alguma das suas numerosas facções. Daí o complexo e dificultoso da fidelidade partidária e eleitoral. A fidelidade ia para a família e para o nascimento; ou, depois, para as ações ao serviço do patrão. Tal localismo e tais relações de dependência do protetor ficavam como modos de definição de si e não foram, de forma alguma, o apanágio dos campônios deserdados da modernização e do progresso. A marca de tais definições foi sentida em setores sociais os mais em contato com a modernidade. As observações formuladas por François Chevalier sobre a onipresença dos “laços pessoais”, no jogo político da Nicarágua de Anastasio Somoza García, podem aplicar-se, sem risco de erro, até ao fim da guerra sandinista e dos contras49. Os nicaraguenses conceberam o seu país como uma justaposição de corpos heterogêneos, cada um reagrupado atrás dos seus chefes e dos seus achegados que deviam assistência aos seus dependentes. A sua administração e o Estado ficaram embrionários até às empresas modernizadoras de Anastasio Somoza García, de 1934 a 195650. O aparelho do Estado fica em mãos de rarefeita elite, partilhada entre os clãs conservadores e liberais. Os postos da função pública eram repartidos em função das afinidades políticas, após acordos dos chefes de facção. O primeiro exército nacional, a Guarda de mesmo nome, não foi formado senão no decênio de 1930; e ficou como grupo pretoriano a serviço da família Somoza. A ideia de uma nação formada de cidadãos, tudo como aquela do território nacional, onde o Estado estaria presente e marcaria o seu domínio, de forma uniforme, não tinha sentido ou muito pouco, até à revolução sandinista. A muitos respeitos, a revolução sandinista, com o seu projeto de transformação social do país, constituiu um acelerador da integração nacional e, paradoxalmente, a vontade de sair de um ciclo de violência selou a unidade nacional que, até aí, não passava de invocação.

O lugar eminente da violência no jogo sociopolítico se liga também a concepções do político, que lhe dão lugar nuclear. Diferentemente dos europeus e estadunidenses e na imagem dos demais latino-americanos, os nicaraguenses se nutrem de dúvidas quanto à capacidade do social de regular-se, seja mediante mecanismos do mercado, seja por meio da expressão da vontade geral. Para retomar os termos de Daniel Pécaut, por muito tempo prevaleceu a ideia de que o social, entregue a si mesmo, era votado à incompetência e à barbárie51. Daí decorre o corolário de que não haveria social que não fosse organizado “do alto”. As concepções do político outorgariam à ordem e à violência os lugares centrais e complementares. Os atores políticos, portanto, têm a incumbência de pôr em forma o social. A violência, evidentemente, em tal contexto, constitui uma das modalidades de ação legítima, a fim de evitar o caos bárbaro e responder-lhe. Discerne-se a força deste imaginário na pintura que fizeram os nicaraguenses da sua história. Numerosos escritores e historiadores demonstram predileção pelas narrativas de batalhas e pelos heróis guerreiros e civilizadores, mesmo se eles visam a também estigmatizar tais costumes bárbaros. Eles questionam-se, igualmente de modo lancinante, sobre a decomposição social que, ao seu olhar, ameaça as classes populares, por pouco que elas sejam entregues a si próprias52.

Essas concorrências não implicam apenas os partidos políticos; mas, como indica C. Anderson, “todo o indivíduo ou grupo que procura ver realizadas as suas demandas e controlada a designação dos valores para a sociedade mediante a maquinaria do Estado, ou legitimada a fonte de poder, em face da sociedade, por meio do exercício de uma capacidade de poder”. Assim, negociam, lado a lado, atores muito heterogênios: instituições como as forças armadas; a Igreja, ou frações da Igreja; partidos políticos; associações profissionais ou agrupamentos de interesses econômicos; comunidades territoriais ou étnicas ou linhagens; sem contar os grupamentos estrangeiros, como firmas transnacionais, partidos políticos e as forças armadas dos países vizinhos, até mesmo representantes de diferentes administrações estadunidenses. Esses modos de ação oferecem não poucos paralelos com aqueles dados à luz por François-Xavier Guerra, na sua análise dos pronunciamentos no México do século53 XIX. O levante armado, de certa forma, sempre se negocia e anuncia. Ele é precedido de verdadeiras consultas, para significar ou que se deseja obter retificações da política em curso, ou que se quer tomar pé na cena política.

Essa visão do político como sistema de negociação entre concorrentes pelo poder vai na linha do acordo implícito, no atinente ao fato de que esse sistema pode acolher novos concorrentes, por pouco que eles façam prova da sua “capacidade de poder”. Em contraposição, é impossível deixar de fora um desses associados rivais, mesmo no caso em que os recursos dele venham a diminuir ou a desaparecer. Há apenas duas exceções a esta regra tácita: quando o recém-vindo pretende eliminar do jogo das negociações o concorrente mais velho, ou quando um dos concorrentes tenta derrubar algum ou a totalidade dos seus rivais. Nesses casos, os diferentes associados se ligam para excluir, pelo menos momentaneamente e por vezes durante tempo suficiente, o recém-vindo ou o concorrente que pretende a hegemonia, sem partilhar, sem respeitar o código da vida política54.

Essas concepções são endossadas por dois outros esquemas, cada um deles não necessariamente uno. Há o partido provindo do direito natural, ius naturalis; o outro procede da concepção agostiniana da autoridade. Não se concebem direitos abstratos, assegurados por um Estado neutro e imparcial; em contraposição, prevalece a ideia de que existe um tipo de lei natural que os governos devem respeitar. Todo o descumprimento dela é ressentido como intolerável agressão contra a pessoa e atentado contra a honra. Todo o atentado desse tipo requer reparação. Assim, as vítimas de tais descumprimentos sentem-se justificadas para apelar ao respeito do “seu direito” e ao restabelecimento da sua honra, se necessário, pelas armas. Em suma, como em toda a cidade cristã bem ordenada, a parte maior deve auxiliar a parte menor; mas também a libido de dominação precisa ser controlada55.

A ponderação dessas particularidades políticas e sociológicas facilita a avaliação tanto da guerra contra Somoza quanto os afrontamentos entre os sandinistas e os contras. A primeira como os segundos correspondem ao caso de figura, em que um dos concorrentes do poder entende reinar sem partilha, afastando os seus rivais; os paralelos com outros momentos da história nicaraguense, como a luta contra Zelaya, são evidentes. Recordemos os contextos que prevaleceram entre o período de 1978-1979 e aquele de 1980-1982. No primeiro caso, Anastasioa Somoza Debayle já estava em situação crítica pelo fato da sua incapacidade de seguir o modus vivendi estabelecido pelo pai e seguido pelo irmão Luis. Longe de dar lugar às diferentes facções conservadoras, Somoza Debayle não cedeu poder, desde a época subsequente ao terremoto de Manágua de 1972. Tal gesto e prática não tardaram em catalisar a união das frações rivais da nebulosa conservadora, que fizeram como seu o programa do oponente perpétuo dos Somozas, Pedro Joaquín Chamorro. Em janeiro de 1978, o assassínio dele desencadeou nova leitura da situação. Atribuído a homens ligados ao filho do ditador, o crime apareceu como transgressão maior das regras do jogo político. Em contraposição, o emprego de violência, mesmo brutal, contra oponentes periféricos na cena política, como os membros da Frente sandinista, ou de dependentes dos responsáveis da política nicaraguense, era tolerado. Tais gestos representavam um prelúdio de negociações inevitáveis. No caso de Pedro Joaquín Chamorro, o assassínio era de um alter ego de Somoza, que só podia desqualificar o seu suposto comanditário. Então não restava outra via possível senão a eliminação pela força do infrator das regras que regulam o emprego da violência entre os associados rivais. Tal saída pareceu inevitável não somente à plêiade de oponentes “burgueses” do ditador, mas também a alguns dos seus partidários. Alguns deles se viram tentados a apelar a uma “saída de honra” e a novo pacto entre conservadores e liberais. Além disso, a condenação firme das práticas da ditadura pela Igreja nicaraguense, como encarnação do pecado e as ameaças de excomunhão para membros da Guarda nacional, tudo isso fez da luta contra Somoza uma espécie de cruzada, para tornar a fundar uma cidade cristã.

A situação não foi diferente no começo do decênio de 1980. O pacto concluído entre os múltiplos segmentos da oposição, na véspera da queda de Somoza, colocou no lugar nova partilha dos papéis da cena política. Os sandinistas lograram aí posições de força, tanto no seio da Junta do governo de reconstrução nacional, em que ficaram majoritários, como no seio do gabinete ministerial e do Conselho de Estado. Foi admitido pelo conjunto dos atores que tal escalação de força era legítima, em razão do seu papel na queda do ditador. Ainda assim, logo após a tomada de posse das suas funções, os sandinistas multiplicaram as iniciativas para impor a sua hegemonia; tal fizeram de dois modos. Eles exerceram pressões as mais brutais nos territórios do centro e do leste do país, para obrigar os campesinos a participar das organizações de massa, ou entrar no novo exército, não hesitando em assassinar certos dirigentes locais recalcitrantes em aceitar o novo enquadramento. Paralelamente, perseguiram os seus rivais revolucionários, ditos trotsquistas, os maoistas do jornal El Pueblo e os sindicalistas do partido socialista nicaraguense, que se recusaram a se fundir no novo sindicato unitário, a Confederação sandinista do trabalho, colocada sob o controle da FSLN. Paralelamente, os sandinistas multiplicaram o seu trabalho de infiltração subversiva no aparelho do Estado. Desde setembro de 1979, um dos membros da direção nacional da FSLN, Humberto Ortega, foi promovido ao comando das forças armadas. Alguns meses depois, diferentes ministros burgueses foram substituídos por partidários dos sandinistas. Em seguida, visaram obter a maioria no Conselho de Estado, que era o poder legislativo provisório, introduzindo aí novos membros provindos da sua organização de massa, decisão que provocou a demissão, em abril de 1980, de dois membros não sandinistas da Junta: Alfonso Rebelo e Violeta Barrios de Chamorro. As reações dos seus aliados de ontem, fazem lembrar, em todo o ponto, aquelas de multiplicar oponentes a Somoza, após o terremoto. Como durante o decênio de 1970, a maioria dos atores sociais políticos optou por demonstrações de força, concebidas como outros tantos prelúdios dos novos arranjos de cúpula, ou acordos ad hoc, em prejuízo dos seus rivais imediatos56.

 

O entrelaçamento do religioso e do político

Esta ideia do social que, entregue a si mesma, não passa de caos, faz par com aquela de que o dogma católico é, de certa forma, a abóbada da ordem social. O fato fica patente no tempo de perturbações: os sinais do divino servem então para guiar os homens, e a Igreja, mais que nunca, tem o dever de orientar as ações dos leigos. Se alguns tentam pôr em causa essa crença, as próprias formas das suas críticas se

dizem sempre em linguagem, no mínimo, religiosa.

Esse entrelaçamento do religioso com o político foi mais que visível nos acontecimentos que marcaram as premissas da separação entre os sandinistas e os seus opositores. Para além das provas de força que, como se viu, assinalaram o fim do ano de 1979, dois acontecimentos trouxeram diferentes atores sociopolíticos a julgar que a hora já não era de pactos e arranjos, senão dos afrontamentos sem piedade: as aparições de Maria em Cuapa, entre abril e outubro de 1980, e o assassínio de Jorge Salazar, dirigente do Conselho superior da empresa privada, em 17 de novembro de 1980. Em cada uma das suas aparições, a Virgem fez apelo ao espírito de conciliação dos nicaraguenses e estigmatizou “o ódio de classe” professado pelos sandinistas. Longe de passar despercebidos, esses milagres foram, pelo contrário, poderosamente trabalhados em La Prensa, jornal inflamado de Pedro Joaquín Chamorro e dona Violeta, e pela hierarquia católica, na pessoa do arcebispo de Manágua, Sua Excelência Obando y Bravo. Os editorais desse jornal, como as prédicas do prelado, puseram o acento sobre o necessário retorno ao espírito de conciliação, que havia prevalecido por ocasião dos primeiros momentos da formação dos órgãos do governo. A resposta foi percebida pelos seus rivais como idêntica daquela de Somoza. No começo de novembro, depois da última aparição da Virgem, Alfonso Robelo convocou os seus partidários e os membros do partido “Movimento democrático nicaraguense” a uma reunião em Nandaime. Essa reunião, perfeitamente legal, foi objeto dos ataques das tropas de choque FSLN, o que impediu o fim da reunião. Pouco depois, em 17 de novembro, o responsável da COSEP, que conluios com setores dissidentes das forças armadas, foi atraído a uma cilada pela polícia e friamente abatido. No enterro de Jorge Salazar, a que assistiram muitos chefes da oposição nascente aos sandinistas, muitos compararam este assassínio com aquele de Pedro Joaquín Chamorro.

Nada é mais significativo que a cronologia dos acontecimentos. A derrota de Somoza e a tomada de posse do novo governo haviam sido marcados por toda uma série de ritos cristãos, que sublinhavam o papel central do dogma da Igreja Católica. O novo governo, composto de diferentes facções de oposição a Somoza, havia prestado juramento diante do arcebispo de Manágua e um Te Deum fora celebrado para significar a reconciliação nacional. Diante dos novos transtornos e novas tensões sociopolíticas que se desenrolaram desde o fim do ano, os atores estavam como ligados pelo dito pacto, tendo recebido a unção da Igreja e, de inopino, deviam aguardar um sinal que marcasse o fim do tempo da concórdia. As supostas aparições de Cuapa vieram muito a propósito para que a Igreja, que achou nelas matéria com que justificar a inflexão da sua política no atinente aos sandinistas, a mensagem manifestada sendo considerada uma injunção divina em favor do reaggiornamento ou reatualização. Embora a Igreja não tenha ousado pronunciar uma condenação ex abrupto dos sandinistas e, por isso, para logo legitimar a luta armada contra eles, ela não significou menos o fim da conciliação. Por ocasião da peregrinação a Cuapa, em janeiro de 1981, em gesto inverso da mensagem do Te Deum de 19 de julho de 1979, as autoridades eclesiásticas sinalavam o acontecimento de um tempo de discórdia contrário aos ensinamentos cristãos57. A Igreja retomava nisso a sua cruzada contra o marxismo, encorajada pelo Vaticano; este estava em luta contra a influência da teologia da libertação nas igrejas latino-americanas.

O caso da Nicarágua sandinista, com os seus padres no governo e a sua base popular, representava um espantalho ao seu olhar. A demissão dos oponentes da Junta governamental de reconstrução nacional havia precedido de pouco a organização desta peregrinação. Por duas vezes, o arcebispo de Manágua deu a sua unção às operações militares: primeiro, em favor dos sandinistas, em seguida dos contras. Com base numa referência de são Tomás, ele declarou, durante a ofensiva final de junho de 1978, que a guerra contra Somoza era justa, legitimando assim a insurreição. Alguns anos mais tarde, interrogado sobre as ações dos contras, ele concordou também com os contras; afirmou que Davi tinha de empregar todos os meios contra Golias. Sente-se também o peso da doutrina cristã na maneira como foi interpretada a morte de Pedro Joaquín Chamorro e de Jorge Salazar, aquela de Carlos Fonseca Amador e de outros combatentes sandinistas ou dos contras. Os assassínios dos dois primeiros tiveram o perfil do sacrifício cristão, justificando as opiniões que encarnava. Não poucos dos oponentes a Somoza desconfiavam de Pedro Joaquín Chamorro, antes da sua morte. Agora, ele se tornou uma espécie de herói, cujas teses, daí em diante, foram assimiladas às da oposição. A sua preocupação de contrapor-se, como herdeiro de uma dinastia de presidentes conservadores, com as suas maneiras autoritárias; tudo foi esquecido; os seus apelos a uma nova fundação de uma cidade livre da barbárie somozista figuraram no novo credo. O lugar dado a Jorge Salazar, dos contras, foi em tudo semelhante. A sua tentativa de maquinação militar contra as novas autoridades, considerada no primeiro momento como insensata e contrária ao espírito de conciliação, figurou, em seguida, como única via de ação possível, ao passo que o seu sacrifício forneceu a prova da verdade de tal asserção. A retórica dos sandinistas não obedece a outra lógica. Os sandinistas também arriscaram a sua morte para lastrar as suas pretensões a governar. Enquanto Pedro Joaquín Chamorro foi proclamado “mártir da liberdade”, Carlos Fonseca Amador teve o seu mausoléu na praça, onde foi entronizada a Junta. Camilo Ortega e Luisa Amanda Espinosa acederam à imortalidade, dando respectivamente os seus nomes à mais alta distinção militar do novo exército e à organização das mulheres sandinistas. Os apelidados muchachos, caídos anonimamente, tiveram os seus altares nos seus quartéis ou nos lugares onde foram mortos. No caso de Pedro Joaquín Chamorro, dos mortos sandinistas ou de Jorge Salazar, tudo se passa como se a prova da verdade e da justiça das suas causas respectivas dependesse do dom que eles tinham feito da sua vida. Melhor dizendo, tais sacrifícios impediam, daqui em diante, de contestar a justeza da sua causa, a adequação dos meios aos fins colimados e o devir dos seus combates. Se postas em julgamento, tais colocações virariam quase sacrilégios. Assim, foi também impossível fazer ouvir a linguagem do direito para os sandinistas ou para os contras. Os sofrimentos passados ligavam os vivos à aura dos mártires e certas exações figuraram como pecados menores, em face dos pecados estruturais do adversário, como a “barbárie de Somoza” ou o “totalitarismo sandinista”. O paradoxo deste emprego de toda uma simbologia cristã e de um modelo de sacrifício é que nunca esteve tão presente na história nicaraguense como no fim do século XX. O político e o religioso certamente foram por inteiro mesclados desde a independência, como testemunham numerosas referências a Deus nas diferentes constituições; comparece o papel da hierarquia católica em todas as cerimônias oficiais, como o ensino do catecismo católico nas escolas públicas no tempo de Somoza. Mas as guerras dos últimos decênios do século XX marcaram incontestavelmente um tempo forte nessa gravidez dos esquemas cristãos, com a dimensão profética que aqui adquire a atividade político-militar, mesmo que essas dimensões não estivessem ausentes da experiência militar de Sandino58.

 

O esgotamento dos modelos guerreiros e a descoberta dos esquemas democráticos

O fim do decênio de 1980 foi marcado pelo abandono progressivo dos esquemas políticos em uso desde o começo do século. Tal recolocação crítica inscreve-se em contexto internacional novo, infindamente menos favorável ao financiamento da guerra civil por empréstimos de fundos estrangeiros. Esgotada pela corrida armamentista, a União Soviética decidiu reduzir drasticamente o seu apoio aos sandinistas, a partir de 1987, ao passo que os republicanos estadunidenses foram obrigados a uma política de baixo perfil, em função de um Congresso majoritariamente democrático, após o escândalo do Irangate em 1987. Os Estados Unidos não aportaram mais do que uma ajuda humanitária aos contras. Paralelamente, os esforços diplomáticos do grupo de Contadora59, qualquer que fosse a vontade dos seus membros de apoiar in fine os sandinistas, esboçaram uma possível saída negociada e civilista para os afrontamentos armados da Nicarágua e no restante da América Central. Esta transformação do contexto internacional pesou em favor da adoção do plano de paz regional, proposto pelo presidente da República da Costa Rica, Óscar Arias, e do seu homólogo guatemalteco, Vinicio Cerezo; mas o seu sucesso se articulou também com a reconfiguração das práxis políticas internas. As eleições semidemocráticas de 1984 foram, com efeito, marcadas por dupla mudança: o rejeito do imaginário guerreiro para o conjunto dos nicaraguenses e a valorização da temática dos direitos do homem, o que significava, paralelamente, a descoberta dos esquemas democráticos.

Sem dúvida, a própria duração dos afrontamentos e a sua crueldade não jogaram papel capital na posta em discussão dos modelos até então em prestígio e honra. Diferentemente das guerras precedentes, incluindo aquela contra Somoza, a guerra dos contras e dos sandinistas afetou profundamente o conjunto das populações, tanto rurais quanto urbanas. Grande parte dos habitantes da Miskitia foram deslocados à força, a partir de 1982, reinstalados em aglomerações estratégicas ou estabelecidos nas

zonas cafeeiras do centro do país60. Cerca de 350 mil campesinos das montanhas centrais foram submetidos aos mesmos processos de evacuações forçadas, esta vez em direção de núcleos urbanos61. A partir de 1983, o conjunto da juventude foi mobilizada pelos grupos beligerantes. As diferentes facções dos contras obrigaram muitos refugiados a colaborar, alguns combatendo, outros cooperando na logística e no correio. O governo sandinista instituiu, em setembro de 1983, pela primeira fez na história nicaraguense, um “serviço militar patriótico” e logrou mobilizar 150 mil homens, mas suscitando reações de resistência a este recrutamento62. No começo dos afrontamentos de contras e sandinistas, afluíram os recrutas aos dois campos; mas o prolongamento do conflito foi acompanhado de maciço desencanto. No lado dos contras, os combatentes perceberam que a guerra, contra a sua expectativa, seria longa e de grandes perdas humanas. Também descobriram a dupla linguagem dos Estados Unidos, particularmente depois da invasão de Granada, em dezembro de 1983. Os conselheiros americanos lhes fizeram crer que a intervenção prevista para 1984 seria semelhante. Ficaram em tal expectativa; ocorre que nas eleições a vitória sorriu aos sandinistas, dando ares de legitimidade ao governo perante a opinião pública internacional. Esses soldados, pelo contrário, apareceram como párias ao olhar da maioria da mídia mundial e para o Alto Comissariado dos refugiados, HCR. Longe de ver neles os “paladinos da liberdade”, gabados pela Administração Reagan, eles foram estigmatizados como outros tantos carrascos treinados pela CIA63.

Os chefes dos contras foram criticados, porque haviam prometido vitória rápida aos refugiados que os haviam acompanhado no seu exílio. Enfim, desde 1985, esses últimos denunciaram às autoridades do HCR as pressões dos contras para com eles. No lado sandinista, os combatentes e as suas famílias descobriram, sem demora, os aspectos mais mortíferos da guerra. Militarmente mal preparados, os conscritos, enviados às zonas de guerra, foram dizimados pelas emboscadas dos guerrilheiros da oposição armada. De fato, muitos jovens, até então favoráveis aos sandinistas, viram neles os representantes de um poder militar de ares totalitários, que os enviavam à morte certa. A guerra, em suma, lhes fez descobrir atitudes de “senhores da guerra” em certos oficiais e suboficiais sandinistas. Mais de um recruta, com efeito, teve a experiência das brutalidades e sevícias da parte dos militares contra os campesinos que foram considerados apoiadores da oposição armada; muitos ficaram revoltados por tais exações e violências.  

A partir de 1985, diferentes vozes dissidentes começaram a se fazer ouvir, tanto no seio da nebulosa sandinista quanto no seio dos contras, sempre a favor de encerrar a guerra. Para além das suas diferenças, essas críticas apontaram o seguinte diagnóstico. Longe de serem a fortaleza contra um adversário bárbaro e desejoso somente de terminar os

afrontamentos armados, para continuar a construção de um sociedade socialista ou então instituir a democracia, os responsáveis sandinistas como os dirigentes dos contras foram considerados meros aproveitadores da guerra, prontos para estabelecer o poder ditatorial e justificar as prebendas que eles extrairiam da guerra. Falou-se, assim do “verticalismo” dos comandantes da revolução, dos privilégios dos que os cercavam e dos seus seguidores. A revista Pensamiento propio dos jesuítas da universidade centro-americana, UCA, publicou desde 1985, as entrevistas dos combatentes Miskitu, que haviam aceitado a anistia, e que justificaram a sua participação na oposição armada de 1981 a 1985. A revista publicou, no ano seguinte, as declarações do presidente da União nacional dos agricultores e dos criadores de gado, UNAG, que denunciava as exações cometidas desde o início da revolução pelos responsáveis da FSLN, na região rural, em nome da luta contra os “burgueses” e aqueles da “contrarrevolução64”. Paralelamente, as discussões do futuro estatuto de autonomia da costa atlântica colocaram muita dúvida nas anteriores certezas. Com efeito, quaisquer que tenham sido os cálculos táticos de um Tomás Borge no seu apoio ao projeto, as negociações conduzidas por Orlando Núñez e Manuel Ortega foram como brecha profunda no dogma sandinista. No trabalho de preparação desse Estatuto, votado em 1987, os legisladores reconheciam nos fatos a iniquidade cometida contra os Miskitu.

Diferentes membros da oposição armada, com base na Costa Rica, isto é, a Aliança revolucionária democrática, ARDE, de Eden Pastora, Alfonso Robelo e Brooklyn Rivera estigmatizaram, desde 1982, as execuções sumárias e as outras atrocidades cometidas pelos seus rivais, que tinham a sua base em Honduras. Tais denúncias não foram apenas ditadas pelo senso moral, mas igualmente pela vontade de obter a melhor parte do maná estadunidense. As denúncias abriram, em todo o caso, uma brecha no razoado amigo/inimigo, o que legitimava os piores crimes, em nome das “necessidades da guerra”. Enfim, nas suas declarações, Arturo Cruz expressa a sua vontade, desde março de 1987, de optar por nova via cívica; ele não hesita em comparar os atos dos contras com aqueles dos antigos conquistadores do século XVI; com isso ele como que inaugura nova maneira de refletir no fracasso da ação armada. Ao olhar as particularidades da história da Nicarágua e os efeitos destruidores da Conquista65, tal comparação teve efeito devastador. Mais ainda, viu-se refeita a parte externa da noção de genocídio. Isso havia sido utilizado com sucesso pelos sandinistas e pelo grupo dos doze, seus porta-vozes, nas zonas rurais contra Somoza. Foi retomada, depois, sem resultado, por alguns jornalistas ou ativistas dos direitos dos povos indígenas, no atinente às suas denúncias de exações cometidas contra os Miskitu. Desse modo, montou-se certa equivalência entre os massacres cometidos pela Conquista do século XVI: as exações da Guarda nacional de Somoza, por ocasião da repressão da “insurreição final” de 1979, foram cotejadas com as destruições operadas pelos sandinistas nas transferências forçadas dos povoados Miskitu e Mayangna, em 1982, e as barbáries cometidas pelos contras. Em suma, depois de ter legitimado as duas últimas guerras civis, o cardeal arcebispo de Manágua apelou também ao abandono da via armada e, a partir de 1986, ao abandono das negociações.

Longe de ficar isoladas, essas críticas entraram em ressonância com a temática da defesa dos direitos do homem. Esta ocupou o lugar central na retórica contra Somoza, de modo especial na Organização dos Estados Americanos, como, em seguida, nas retóricas dos seus oponentes. Melhor dizendo, os direitos do homem tornaram-se o novo modo aferidor para julgar a revolução e os projetos dos seus oponentes. Preconizou-se o restabelecimento das liberdades fundamentais e o tratamento humano dos guardas nacionais, feitos prisioneiros; louvou-se o mote de que “a nossa vingança será o perdão” do novo ministro do Interior, Tomás Borge. Sem dúvida, no campo dos simpatizantes da revolução como naquele dos detratores, tal preocupação pelos direitos do homem, no começo primordialmente, não passou de dimensão tática. Uns e outros se valeram dos direitos do homem, sabendo as esperanças que eles levantavam e o favor que os envolvia na Europa e na América do Norte. Mas a maioria sentia-se estranha quanto aos princípios democráticos e liberais que os fundamentavam. Os núcleos dirigentes dos sandinistas, como os primeiros contras, estavam em polos opostos. As manobras que consistiram no apoio das organizações de defesa dos direitos do homem, concebidas como outras tantas oficinas de propaganda contra o adversário, tiveram efeitos perversos. Muitos dos seus membros tomaram a sério a sua missão; ciosos de reconhecimento internacional, denunciaram não apenas os crimes do adversário, mas também aqueles que manavam dos grupos do seu movimento.

Tais colocações e discussões propendiam à reavaliação do papel dos atores armados, como modalidades de ação política. Outrora percebidos como heróis civilizadores, esses atores vieram a figurar como a encarnação do caos, não apenas para os adversários, mas igualmente no seu próprio campo. A própria garantia moral de diferentes frações da Igreja, doravante, havia desaparecido. As figuras da ordem e da violência, antes valorizadas como esquemas políticos os mais adequados para a instauração de um ordenamento legítimo, eram agora consideradas suspeitas. Assim, assistiu-se à valorização dos esquemas políticos democráticos. A organização de eleições livres, para designar os governantes, apareceu como a sequência natural de tais críticas e discussões, apresentando-se como a única solução possível.

Essas eleições, por certo, foram postas em execução como saída da cúpula de sandinistas e chefes da oposição; a oposição se reagrupava no conglomerado da União nacional da oposição; o arranjo foi avalizado pelo cardeal e pelos jesuítas. Ainda assim, havia grande diferença dos pactos anteriores entre conservadores e liberais, nos anos da dinastia Somoza, entre os sandinistas e os oponentes a Anastasio Somoza Debayle de 1979 a 1982. As eleições gerais de 1990, contrariamente daquela de 1984, se organizaram não para convidar os nicaraguenses a apoiar a fórmula de governo imaginada pelos diversos componentes da elite da sociedade; mas, desta vez, a parte mais neutra convocava o povo para livremente fazer uso da sua parcela de soberania diante da urna. Este uso da soberania popular foi estendido. Os prefeitos e os conselheiros municipais seriam, doravante, eleitos pelo sufrágio universal, enquanto, em outos tempos, eles eram designados por Somoza García. As diferentes forças em presença reconheceram que a sabedoria, o espírito de moderação, melhor dizendo, e a “civilização” consistiam doravante no respeito da vontade do povo. Ademais, qualquer veleidade de não respeitar a liberdade do sufrágio e as suas incertezas seria considerada como sinal do caos. O próprio estilo da campanha eleitoral comportou a marca desse novo espírito do tempo. Diferentemente das eleições de 1984, Daniel Ortega não teve de se desfazer da sua imagem de guerrilheiro. Contrariamente daquilo que se podia ver em 1984, os seus partidários renunciaram à intimidação dos eleitores. A candidata de UNO, Violeta Barrios de Chamorro, valeu-se de retórica de todo nova: prometeu terminar a guerra e mudar o serviço militar; assegurou que a liberdade de voto não seria impedida nessas eleições e convidou também a “família nicaraguense” à reconciliação. Era dizer que essas primeiras eleições democráticas da história nicaraguense foram o momento da instituição das práticas de fundamento da democracia representativa: eleições livres e repetidas, em que os vitoriosos, doravante, não podem reduzir ao silêncio os seus concorrentes derrotados. Com efeito, o país conheceu, desde então, não menos que três processos eleitorais: 1990, 1996 e 200266, processos apaixonantes e disputados, em que as forças em competição aceitaram a sanção das urnas. Quiçá os sandinistas tivessem a tentação do golpe de força, depois da tomada do poder de Violeta Barrios de Chamorro em 1990, como provam as manifestações violentas de maio e junho de 1990, organizadas pelos sindicatos sandinistas. Diga-se o mesmo dos afrontamentos entre militares sandinistas e contras; ou dos  assassínios que ocorreram no começo do seu mandato; ou, depois, os próprios levantes dos antigos militares sandinistas e dos antigos contras faziam prever o retorno da guerra civil. Os desejos de vingança de certos setores sandinistas ou dos contras, a pouco e pouco, cederam, graças à habilidade da presidente e dos seus conselheiros. A perspectiva da retomada do conflito comparecia então como espectro da barbárie.

Esse novo estado de espírito imprimiu a sua marca nas instituições; o laço que Somoza e, depois, os sandinistas haviam ligado entre o poder político e a força militar se desfez. O jogo político por inteiro de Somoza havia consistido em apoiar-se na Guarda nacional, para dominar a política; o apelo à separação do poder civil e do poder militar constituiu o alfa e o ômega das críticas formuladas contra Somoza. Os sandinistas, da sua parte, tiveram estratégia muito semelhante, quando o irmão mais novo do membro mais influente da Junta de governo, Humberto Ortega, foi colocado à testa das forças armadas. A senhora Violeta foi a presidente da República capaz de desfazer tais laços daninhos. Ela começou por fazer que o comandante chefe das forças armadas prestasse juramento de obediência às autoridades civis eleitas. Com base neste primeiro reajustamento, ela impôs, pouco depois, a discussão no Parlamento do novo código da instituição militar. Depois disso, dispensou do cargo Humberto Ortega e nomeou outro comandante chefe das forças armadas. Em suma, ela rebatizou o exército popular sandinista que, doravante, tomou o nome de “Exército da Nicarágua67”. Desde o fim do seu mandato, as forças armadas desapareceram da cena política, bem como os fenômenos de violência organizada.

Há o último sinal desse novo espírito do tempo; por certo é ainda tímido, mas revelador dessa transformação dos costumes políticos. A piñata sandinista, por um lado, pagou a crônica durante o mandato de Violeta Barrios de Chamorro; depois, no período do seu sucessor, Arnoldo Alemán, a piñata, por outro lado, levou à cisão o centro da FSLN, com a formação do Movimento renovador sandinista, que reagrupou os quadros estranhos a essas práticas, como Sergio Ramírez e Henry Ruiz. Dito isto, nada foi legalmente feito contra essas prevaricações, que tiveram a contrapartida dos contras e de alguns membros da UNO. Houve privatizações, como aquelas das empresas açucareiras, que favoreceram algumas das grandes famílias conservadoras. Ainda assim, novo passo foi dado no fim do mandato de Arnold Alemán. Ele foi declarado culpado de corrupção, como alguns dos seus companheiros. Hoje é um dos dois homens mais influentes do Parlamento, com Daniel Ortega. O ex-presidente foi encarcerado mais de uma vez e o seu processo continua.

A análise das guerras da América Central, na segunda metade do século XX, durante muito tempo, apresenta a oposição da práxis dos grupos de guerrilhas àquela das forças armadas regulares. Esta nascia da recusa dos grupos dominantes de que os grupos subalternos pudessem aceder aos postos mais altos. Aquela outra guerrilha visava stricto sensu à conservação da ordem estabelecida. Uma e outra seriam desde então perfeitamente antagônicas. O estudo das guerras civis nicaraguenses convida a outras aproximações e abordagens. Desde o começo do século XX, além das referências constitucionais de modelo democrático liberal, as referências à ordem e à violência estão no coração da experiência política. Deste ponto de vista, as duas guerras civis nicaraguenses dos decênios 1970-1980 reproduzem esquemas postos em cena no começo do século, mesmo que eles se tenham estabelecido naquilo que se chama “guerra fria” das superpotências. Consoante esses códigos implícitos, as demonstrações de força e o emprego de violência a mais brutal no choque dos adversários não apresentam propriamente algo incomum; eles constituíram o contrário dos modos legítimos de ação política, prelúdio dos arranjos de facções rivais, como possibilidade de que os novos próceres logrem impor-se na cena política e, fazendo isto, consigam fortuna e realização. Considerando o fim da guerra entre sandinistas e contras e o curso dos acontecimentos desde o mandato de Violeta Barrios de Chamorro, essas práticas que modelaram o século XX parecem ter achado o seu termo. Retome-se a fórmula de Charles Tilly; aqui versa-se um “repertório da ação coletiva que parece tornar-se caduco68”. A violência e as prebendas que estiveram no coração da experiência política, realmente valorizadas; hoje tornaram-se ilegítimas. Os códigos políticos vigentes, doravante, são aqueles da democracia representativa, nela compreendida a sua fragilidade. Barbárie e caos não mais estão do lado das classes subalternas, entregues a si próprias, mas dos políticos ávidos de poder como de riquezas e pouco interessados nas liberdades fundamentais.

 

1 RIVAS, Edelberto Torres. Para entender a crise centro-americana, os fatos que formaram a crise. San José, Icadis, 1985; e ID. Crise do poder na América Central. San José, EDUCA, 1986.

2 LEIKEN, Roberto (Ed). Anatomia de um conflito. New York. Pergamon Press, 1984.

3 TOURAINE, Alain. A palavra e o sangue. Paris. Odile Jacob, 1988. P. 338.

4 CERDAS, Rodolfo. Novas direções da política soviética na América Latina. Jornal de Estudos latino-americanos, 21, 1,1983, p. 3-19; id. Perestroika e revolução: as mudanças na política soviética para com a América Latina. Anuário de Estudos centro-americanos, San José, 15,2, 1989, p.5-25.

5 Detalhe dessas explicações dos conflitos em trabalho anterior em "Gênese das guerras internas na América Central (1960-1983)", Paris. Les Belles Lettres, 2003 P. 157-229.

6 Para a boa compreensão dessas rivalidades no controle da costa atlântica nicaraguense, convém reportar-se a CRAIG L. DOZIER, A praia dos Mosquitos da Nicarágua, nos anos da presença britânica e estadunidense. The University of Alabama Press, 1985.

7 A expressão é de KNUT WALTER, O regime de Anastasio Somoza, 1936-1956. Manágua. Instituto de história da Nicarágua e América Central. Universidade Centro-americana, 2004.

8 Obra de José Luis Velásquez Pereira. A Formação do Estado na Nicaráguia, 1860-1930, Manágua, Fundo Editorial, Banco Central da Nicarágua, 1992, oferta de anotações de algum mérito sobre o período.

9 Ver a obra de NEIL MACAULAY. O Negócio Sandino. Chicago, Quadrangle Books, 1971, P.237.

10 Além do livro de Neil Macaulay, ver RODOLFO CERDAS, A foice e o sabre, a Internacional comunista, América Latina e a revolução na América Central, San José, Universidad Estatal a Distancia, 1986. MICHAEL JAY SCHROEDER Em defesa da honra da nossa nação; acerca de uma história social e cultural da rebelião de Sandino na Nicarágua, 1927-1934. Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1993. WOLKER WÜNDERLICH, Sandino, biografia política. Manágua, Ed. Nueva Nicaragua, 1995. Acrescentar: as obras de Sandino, editadas por Sergio Ramírez, O pensamento vivo de Sandino, EDUCA, 1980; como as obras de EDELBERTO TORRES, Sandino e os seus pares, Manágua, Ed. Nueva Nicaragua, 1983. GREGORIO SELSER, Sandino general de homens livres, San José, EDUCA, 1957-1974; e o livro publicado por Anastasio Somoza García, O verdadeiro Sandino e o calvário das Segovias, Manágua, Tip. Robelo, 1936: este contém documentos excepcionais.

11 História do primeiro Somoza, em K. WALTER, O regime de Anastasio Somoza. Mais: JEFFREY GOULD, To lead as equals. Chapell Hill, Univ. North Carolina Press, 1992. Orgulho amargo, o desenvolvimento do movimento operário nicaraguense, 1912-1950. Manágua, Inst. Hist. Nic. e Centro Am. 1997. RICHARD MILLET, Os guardas da dinastia; a história da guarda nacional da Nicarágua e da família Somoza, criada pelos EUA, Maryknoll, Orbis Book, 1977.

12 Cf. MILLET, Os guardas da dinastia, op. cit. P.331-341.

 13 Sobre a FSLN e a revolução, ver JOHN A. BOOTH, O fim e o começo: a revolução da Nicarágua. Boulder, Westview Press, 1982. SHIRLEY CHRISTIAN, Revolução da Nicarágua em família, New York, Random House, 1985. THOMAS W. WALTER, Ed, Nicarágua, os primeiros cinco anos. New York, Praeger, 1985. Sobre os Contras: SAM DILLON, Commandos, a CIA e os rebeldes Contras, N. York, Henry Holt & Company, 1992; e ROY GUTMAN, República da Banana, fazer política na Nicarágua, 1981-1987. N. York, Simon & Schuster, 1988.

14 Consultar reportagens da Anistia internacional dos decênios 1970-1980. Comissão permanente dos direitos humanos, CPDH; Associação nicaraguense em prol dos direitos humanos, ANPDH, e Americas watch.

15 MICHEL GOBAT, Revolucionários conservadores de Granada: violência e guerra civil nicaraguense de 1912, 3º Congresso centro-americano de história, San José, Costa Rica, 15-18 julho 1996; e M. J. SCHROEDER, op,cit. Em defesa....

16 AUGUSTO CESAR SANDINO, Manifesto aos capitalistas, 15-11-1931. In O pensamento vivo, op, cit. P. P.238-239.

17 “Cortar coletes, chapéus, melões e calções; eis metáfora de gosto duvidoso, para significar cortar braços, crânios, pernas... metáfora macabra.

18 Ver narrativas dos fatos de um membro do comando sandinista: HUGO TORRES, Rumo norte. História de um sobrevivente. Manágua, Hispamer, 2003.

19 Boa evocação dessas cenas no romance de SERGIO RAMÍREZ, Sombras e nada mais. México, Alfaguara, 2002. Reporte-se a RONAN JAHENY. O papel dos combatentes na tomada do poder da Frente sandinista de libertação nacional. Estudo do processo revolucionário em León, set. 1978 a ag. 1979. Tese doutorado, Paris III. Sorbonne Nouvelle, 2005.

20 Ver TIMOTHY BROWN, A guerra real dos Contras: a resistência do campesino das montanhas na Nicarágua, Norman. A imprensa da universidade de Oklahoma, 2001; e S. DILLON, Commandos... op, cit. Entrevistas realizadas pelo autor nas mesmas zonas, em 1992, confirmam amplamente tais dizeres.

21 Ver Gilles Bataillon, “Reflexões sobre a ação armada e a constituição de atores político-militares: contras e recontras nicaraguenses, 1982-1993. Culturas e conflitos, 12, 1993-1994 P. 65-103. Os arquivos da ANPDH. Há numerosas informações do assunto.

22 Ver DELPHINE LACOMBE. A punição da violência intransmissível na Nicarágua. Ver democratização do gênero etc. DEA, sociologia política etc. Paris, IEP, 2003.

23 Ver arquivos da ANPDH; numerosos testemunhos.

24 Na tomada de Rivas, Comanche, subalterno de Eden Pastora, formou uma corte marcial, a qual condenou a passar pelas armas diversos jovens, unidos na última hora às forças da guerrilha, acusados de estupros e roubos. Entrevistas de Comanche, San José, Costa Rica, maio de 1985.

25 M. GOBAT, “Revolucionários conservadores de Granada”. Uma vez mais, essas práticas só se compreendem num continuum de fatos mais velhos.

26 R. CERDAS, A foice e o sabre, op, cit

27 Ver livro de SERGIO RAMÍREZ, A marca do Zorro. Façanhas do comandante Francisco Quintero. Manágua, Ed. Nueva Nicaragua, 1989. Mais Adios muchachos, México, Aguilar, 1999.

28 A mídia nicaraguense da época tem numerosos retratos. Mais, R. JAHENY, “O papel dos combatentes”. Tese. Op,cit P.265-283.

29 T. C. BROWN, A real guerra dos Contras, op. cit.P 18 e seg.

30 Foi o nome autodesignado dos contras da Frente Norte.

31 DONALD C. HODGES, Fundações intelectuais da revolução nicaraguense, Austin, University of Texas Press, 1986. DAVID NOLAN, A ideologia dos sandinistas e a revolução nicaraguense, Miami, University. Miami Press, 1985.

32 Ver narrativa de H. TORRES, Rumo norte, op, cit, P. 460-461.

33 Ibidem, p. 470-471

34 T. C. BROWN, op. cit, P. 23-24.

35 Descrição convincente de Ronan Jaheny. Na Frente sul de Eden Pastora idem. O testemunho de Alejandro Martínez sobre o funcionamento da Frente sul, publicado por Brown, Quando o AK 47 fica em silêncio: revolucionários, guerrilhas e os perigos da paz. Standford, Hoover Inst. Press, 2000. Está repleto de informes.

36 Ver memórias do general Emiliano Chamorro, publicadas em 1969, na Revista do pensamento conservador; Manágua, diversas Ed.

37 Ver livro R. MILLET, Guardas da dinastia, op cit, p. 255-344.

38 As informações recolhidas por Ronan Jaheny nos arquivos militares sandinistas e apresentadas na sua tese levantam um quadro que parece falar sobre os fenômenos de León e cercanias dessa cidade.

39 TOM WETZEL, “Nicarágua, diga alô aos novos chefes”. Perspectivas antiautoritárias na América latina e no caribe”, 1, N. York, Iibertarian aid for Latin America, 1983. Foi o primeiro a descrever a aparição dessa nova classe. Ver ROSE SPALDING, Capitalistas e revolução na Nicarágua. Chapell Hill. Univ. North Carolina Press, 1996. P. 156-188. Sobre essa burguesia vermelha.

40 Excelentes análises dos fenômenos do surgimento dos recompas ou revoltosos; nos números de 1991 e 1992 na revista Envío. Publicada em Manágua.

41 Cf. G. BATAILLON, “Reflexões”, op.cit. P. 92-97.

42 Reportar-se a J. L. VELÁSQUEZ PEREIRA, A formação do Estado, op. cit. P. 96-98.

43 OMAR CABEZAS, A montanha é algo mais que uma imensa estepe verde, Manágua, Ed. Nueva Nicaragua, 1982; C. QUINTERO e S. RAMÍREZ, A marca do Zorro, op. cit. H. TORRES, Rumo norte, op. cit.

44 Reportar-se ao citado Tom Wettzel e Rose Spalding e Sergio Ramírez. O livro de MANUEL GIRÓN, Exílio S. A. San José, Ed. Radio Amor, 1984, constam cenas reais dos fenômenos de concussão entre os Contras. O autor é confirmado pelas pesquisas aparecidas na imprensa estadunidense, no tempo do escândalo Irangate, em 1987, especialmente no New Republic. Washington.

45 Ver memórias de Pedro Joaquín Chamorro sobre Olama e Mollejones. Os Somozas, estrpe sangrenta, México, Costa Amic, 1957, como testemunho de Alejandro Martínez, op,cit, Mais: T. C. BROWN, Quando o AK47 cai em silêncio, etc. op.cit.

46 Cf. M. J. SCHROEDER, Em defesa da honra da nossa nação, op. cit. P. 211-301.

47 Cit. In MARIO RODRÍGUEZ, América Central, N. Jersey, Englewood Cliffs,1965. P. 49.

48 Charles Anderson, “Nicaragua, a dinastia Somoza”, in NEEDLER, Sistema político da América Latina, Princeton, D. Van Nostrand Company Inc. 1964, P. 91-111.

49 FRANCISCO CHEVALIER, “Caudilhos e caciques na América”. Mais. Notas ofertadas a Marcel Balataillon. Bordeaux, Féret & Fils Ed. 1962, P. 30-47.

50 Para o aparelho do Estado, ver K. WALTER, O regime de Anastasio Somoza, op. cit. P. 119-210. Mais. R. MILLET, Os guardas da dinastia, op. cit. P. 255-296.

51 DANIEL PÉCAUT, A ordem e a violência, evolução sociopolítica da Colômbia, entre 1930 e 1953. Paris, Ed. de EHESS, 1987,P. 9-15.

52 Ver JOSÉ CORONEL URTECHO, Reflexões sobre a história da Nicarágua de Gainsa a Somoza, Manágua, coleção cultural da América Central, Banco da América, 1962, 2001. O romance de ADOLFO CALERO, Sangue santo, Manágua, Ed. Nueva Nicaragua, 1946, 1993; Mais. ANTONIO CUADRA, O nicaraguense, Manágua, Ed. El Pez y la serpiente, 1967, 1981.

53 FRANÇOIS-XAVIER GUERRA, “O pronunciamento em México, práticas e imaginários”, Traço, 37,”“Discursos, práticas e configurações do poder”, 2000, P. 95-111.

54 “Partidos Políticos da América Central: abordagem funcional”. Publicação trimestral de política ocidental, XII, 1962, P. 125-139. Mais. Mudança política e econômica na América latina, México, 8 1967, 1974, P. 102-131.

55 O aspecto foi sublinhado por RICHARD MORSE. “A herança da América Latina”. Cit. Em Os filhos da Europa”, Paris, Le Seuil, 1968, P. 136-185. Mais. O espelho de Próspero. México, Séc. XXI, 1982.

56 Sobre as tensões nos primeiros meses da revolução sandinista: JORGE ALANIZ PINELL, Nicarágua, uma revolução reacionária. México. Kosmos-Edit. 1985; T. C. BROWN, A real guerra dos Contras, op. cit. P. 13-68; JEAN-MICHEL CAROTT E VERONIQUE SOULE, Nicarágua, o modelo sandinista, Paris; Le Sycomore, 1981; SHIRLEY CHRISTIAN, Nicarágua, revolução em família, N. York, Random House, 1985; ELVYRA SANABRIA e OCTAVIO SANABRIA, Nicarágua, diagnóstico de uma traição, a Frente sandinista de libertação nacional no poder, Madrid, Plaza y Janes, 1986; DANIEL VAN EEUVEN, “Nicarágua, ano II da revolução: hegemonia sandinista e ladeira dos perigos”; Problemas da América latina, 63, 1982, P. 10-67; HENRY WEBWE, Nicarágua, a revolução sandinista, Paris,Maspéro, 1981.

57 O número 176 de julho-setembro, 1982, Revista do pensamento centro-americano, oferece panorama hagiográfico deste milagre, como da sua utilização pela Igreja.

58 Sandino foi celebrado como certo tipo de Cristo por dois poetas: Pablo Antonio Cuadra e Ernesto Cardenal, cujos versos muitos nicaraguenses conhecem. As canções de protesto dos irmãos Mejía Godoy, que evocam Sandino e os combatentes sandinistas, muito participam nesta encenação de inspiração cristã. Acerca da imbricação política e religiosa, ver ROGER LANCASTER, Graças a Deus e à revolução. Religião popular e consciência de classe na nova Nicarágua. N. York, Columbia University Press, 1988; JOSEPH MULLIGAN, A Igreja da Nicarágua e a revolução, Kansas City, Sheed & Ward, 1991.

59 Constituído em 1983 pela Colômbia, México, Panamá e a Venezuela.

60 Ver Gilles Bataillon, “Mudanças culturais e sociopolíticas nas comunidades mayangnas e miskitus do río Bocay e do alto Coco (1979-2000)”, Jornal da sociedade dos americanistas, 87, P. 376-392; e Wangki/Río Coco: do pós-guerra às catástrofes naturais”, Jornal da sociedade dos americanistas, 88, P. 260-278.

61 Ver CARLOS VILAS, Mercado, Estado e revoluções. América Central, 1950-1990, México. UNAM, 1994, P. 222

62 Ver ALAIN ROUQUIÉ, Guerra e Paz na América Central, Paris, Le Seuil, 1992, P.252.

63 Artigos de Charles Vaneckhe, Le Monde, 5-1-1983; Shirley Christian, reportagens em The Miami Herald, no decênio de 1980. 64Em 1986 e 1987,New York Review of Books; mais em Village Voice, N. York; Figaro, 1982, mal informado sobre os Miskitu.

65 Reportar-se à Ed. de Louise Bénat-Tachot da crônica de GONZALO FERNÁNDEZ DE OVIEDO, Singularidades da Nicarágua de Gonzalo Fernández de Oviedo, (1529), Paris. Chandeigne/Presses universitaires de Marne-la-Vallée, 2002.

66 Eleições do presidente e do legislativo devem realizar-se em novembro de 2006.

67 Acerca das eleições de 1990, ver GILLES BATAILLON, “Eleições na Nicarágua: rearrumação do sistema dos concorrentes do poder”, Problemas da América Latina,2, 1991,P. 21-40; sobre o governo de Violeta, “Nicarágua: a presidência de Chamorro, a instauração de um regime democrático desencantado”, Problemas da América Latina, 30, 1998, P. 71-92

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