domingo, 15 de abril de 2012

Historiografia Brasileira, ontem e hoje; a posição dos pobres e das elites

 “... a política se orienta não mais pela vontade popular livremente manifesta, mas pelos caprichos de um número limitado de indivíduos sob cuja proteção se acolhem todos quantos pretendem um lugar nas assembleias estaduais e federais”.
Julio de Mesquita Filho
1925


INTRODUÇÃO

Devido às fragilidades de sua implantação, não são poucos, no Brasil, a tratarem o regime republicano como simples continuação do período monárquico.

Igualmente correntes, as críticas à tradição de constituição, no país, de um Estado forte e monopolizador concedem cores de fatalidade à idéia da formação histórica de um cidadão inexoravelmente passivo, tipo antropológico definitivo, a marcar os rígidos limites à democratização da sociedade brasileira.

Seria, assim, cabal a impossibilidade de se formar cidadãos baseado no velho mito da demiurgia político-social brasileira. Ao tentar reunir os elementos para análise das construções antropológicas que estão na base desta cidadania, este artigo coloca em perspectiva aquela que é a primeira e a mais central das exigências democráticas: a afirmação incondicional da igualdade política dos cidadãos.

A migração para o regime republicano não levou ao fim da estrutura clânica rural ou ao desaparecimento dos grandes latifúndios, bases materiais do sistema político coronelista. Ao contrário ao instituir-se a Federação, o novo regime viu-se obrigado a recorrer às forças dos coronéis, que levaram ao desenvolvimento das oligarquias regionais, que, ampliando-se, se encaminharam para a ‘política dos governadores’. Assim, os ‘homens mais importantes do lugar’, pelo seu poderio econômico, político e social, mantiveram-se mais fortemente ainda como chefes das oligarquias regionais e, dessa forma, passam a atuar como as principais forças sociais no âmbito dos governos estaduais e federais.

A Constituição Monárquica e a República

A concepção restritiva de participação era fundamentada, em uma distinção nítida entre sociedade civil e sociedade política, introduzida pela Constituição monárquica de 1824, que estabelecia a diferença entre os cidadãos “ativos”, a quem eram atribuídos “direitos políticos”, e cidadãos “passivos”, para os quais só se reconheciam os “direitos civis”.

Nesse contexto, a participação política só poderia aparecer como uma concessão pessoal e sempre provisória do soberano àqueles que, súditos, distinguem-se por sua colaboração, é a integralidade da lógica imperial que por trás de seus neologismos, resiste a qualquer análise: como significar coerentemente palavras como “cidadão”, “direitos”, “atividade”, “sociedade política” e “sociedade civil” a partir dessa lógica monárquica?

A cisânia entre o poder econômico e o poder político; conflito básico que traz o fim do período monárquico não ocorre entre um Brasil moderno, progressista, desejoso de democracia, representado pelas classes médias urbanas, e um Brasil conservador, regressista, afeito a concepções políticas totalitárias, representado pelas classes oligárquicas do Império; os grupos em confronto são dois setores da mesma classe que garantira a sobrevivência do regime imperial: de um lado, as oligarquias tradicionais dos senhores de engenho do Nordeste e dos barões do café do Vale do Paraíba (monarquistas, escravistas, decadentes), apegadas a relações de trabalho e a formas de produção caducas, mas detentoras de poder político; de outro, as novas oligarquias dos fazendeiros do café do Oeste paulista que, embora ocupando lugar central na economia do país, não dispunham de poder político.

Em busca desse poder é que, em 1873, organizaram o Partido Republicano Paulista, que teve entre os fundadores uma maioria de cafeicultores de Itu e Campinas. Já em 1894, logo nos primeiros cinco anos do regime republicano os militares foram afastados do comando e a eleição do civil paulista Prudente de Morais pôs à frente do processo político cafeicultores paulistas e a elite econômica e política mineira, os quais instalaram um “situacionismo permanente”, que só viria a ser rompido com a revolução de 30, quando houve nova composição política no interior das elites. A ameaça de instabilidade política trazida pelos primeiros anos republicanos, em especial nos centros urbanos maiores, entre os quais se destacava a capital do país, levou os donos do dinheiro não só a tirar os militares do governo, mas a reduzir o nível de participação popular, neutralizar a capital e fortalecer o poder dos estados. O veto à participação política do povo vinha não só da repressão policial às manifestações em praça pública, mas de outras restrições impostas à cidadania, entre as quais uma legislação eleitoral que reduzia ao mínimo os votantes: no Rio de Janeiro, subtraídos da população total os menores de 21 anos, as mulheres, os analfabetos, os praças, os religiosos e os estrangeiros, excluíam-se do direito ao voto 80% da população. Assim, “a República conseguiu quase literalmente eliminar o eleitor”, motivo pelo qual “os representantes do povo não representavam ninguém, os representados não existiam, o ato de votar era uma operação de capangagem”. A maioria dos votos era falsa: “votavam defuntos e ausentes, e as atas eram forjadas”.

Como se viu, a economia cafeeira se forma no segundo e terceiro quartéis do século XIX, quando surge como nova fonte de riqueza para o País. Principalmente depois da instalação do regime republicano, o café constituía a principal mercadoria que, no comércio exterior, fornecia a maior quantidade de divisas. Desde cedo, dois estados – Minas e São Paulo – se destacaram na produção cafeeira. A partir de 1906, com o Convênio de Taubaté, a “unidade política” que o Estado brasileiro logra realizar reduz-se à política intervencionista de valorização da produção do café.

Estudos recentes voltados para a classe média urbana e seu papel na passagem do Império para a República revelam que ela não era portadora de vocação democrática, não estava insatisfeita com o estado de coisas reinante e não afrontava a classe dominante. Dependente da elite agrária no Império, não terá situação muito diferente nas primeiras décadas da República e será, como regra, elitista, conservadora, anti-industrialista, agrarista.

Longe de opor-se às oligarquias agro-exportadoras, identifica-se com seus valores aristocráticos, cultiva os mesmos gostos e opiniões, depende economicamente dela e assume posições no máximo reformistas, o que lhe permite aliar-se politicamente aos oligarcas sempre que os interesses destes pedem novas palavras de ordem e a ampliação do apoio da sociedade civil.

Neste cenário a República não foi a resolução das questões religiosas e militares do fim do Império, da insatisfação dos fazendeiros com a abolição; tão pouco de uma antiga e irreprimível aspiração republicana nacional, que se teria manifestado logo após a Independência; muito menos, expressão do desejo libertário de segmentos oprimidos das classes populares ou dos anseios liberais de uma nascente classe média urbana, representada principalmente pelos os militares.

Instalado um Governo Provisório, presidido pelo marechal Manoel Deodoro da Fonseca, nasce a República com três funções básicas: consolidar o novo regime; institucionalizá-lo com aprovação de uma Constituição republicana; e executar as reformas administrativas do Estado que se faziam necessárias, a República nasce sob o signo da ordem pública. Herdeiros de concepções político-filosóficas de cunho evolucionista que naturalizavam o social, intelectuais e militares que fundaram a República defendiam a tese do progresso ordeiro. O caráter nada revolucionário do movimento republicano brasileiro já era visível no Manifesto Republicano de 1870: seus signatários apresentavam-se “como homens livres e essencialmente subordinados aos interesses da pátria”, como já mencionado não pretendiam convulsionar a sociedade, muito menos romper com a estrutura vigente. No Decreto nº1, de 15/11/1889, os membros do recém-criado Governo Provisório afirmam repetidas vezes a “defesa da ordem pública” como objetivo maior do Estado.


Convocadas eleições para o Congresso Constituinte com a função de preparar a primeira Constituição republicana, a partir de um projeto apresentado pelo Governo Provisório, as atividades parlamentares são retomadas precisamente um ano mais tarde, com a instalação do Congresso Nacional Constituinte no dia 15 de novembro de 1890, que encerra seus trabalhos em 26 de fevereiro de 1891, sendo, neste período, redigida a primeira Constituição republicana – a 2ª da nossa história e a primeira da República dos Estados Unidos do Brasil, que vigorou até 16 de julho de 1934, tendo sofrido pequena reforma em 1926. Aliás, o revisionismo constitucional sempre esteve presente na ação dos legisladores brasileiros, a partir do momento singular manifestado pelo deputado constituinte Leopoldo de Bulhões (GO), que no mesmo dia da promulgação da Constituição desfraldou no plenário do Congresso Nacional a bandeira da revisão constitucional. Declarou ele: “Não podemos dizer que a Constituição tenha resolvido no seu todo o problema da Federação. Este continua de pé, impondo a necessidade da discriminação das rendas, e a da autonomia legislativa dos Estados. Por isso eu disse e repito – ela não pode satisfazer a este País, e sinto, profundamente que, antes de assiná-la, me veja forçado a declarar a V. Ex. que ela carece de revisão. (Apoiados.). A revisão virá mais breve do que se suspeita”. (ACC, 24.02.1891, P. 872-874).

De acordo com depoimentos da época e pela análise dos discursos parlamentares, "o Congresso Constituinte foi dividido em quatro grupos: o dos descontentes, o dos irriquietos e revolucionários, o dos ordeiros, que queriam conservar melhorando, e o dos desiludidos". Destacou o ex-parlamentar e jurista Carlos Maximiliano Pereira dos Santos que “o Congresso Constituinte trabalhou pouco mais de três meses, predominando no seu recinto o empenho em concluir o quanto antes a difícil tarefa, sendo a voz dos oradores constantemente abafada por gritos significativos de “votos, votos!” dados pelo presidente da Casa. A enorme força moral e a incontrastável autoridade que adquiriu sobre os seus pares contribuíram decisivamente para a rapidez da votação das matérias mais polêmicas e a formação da unidade do conjunto de emendas que estava em discussão. Alto e seco, figura de asceta justiceiro e ríspido, o Dr. Prudente José de Moraes e Barros dominou a Assembléia. Que ninguém o pilhava em falta. Observava, à risca, o Regimento Interno; conhecia todas as emendas, a conexão ou contradição entre elas. Colocava-as com método na ordem do dia e rejeitava, com razões breves e claras, as prejudicadas. Convidava o próprio irmão a sentar-se, dizendo, bem alto, que o Sr. Deputado Moraes Barros pedira a palavra pela ordem para fazer a desordem. Ralhava com todos como se fossem colegiais e ele o mestre, e ninguém se revoltava. Impôs a ordem numa Assembléia de rebeldes; e o trabalho correu célere, a lei saiu escorreita, digna da nossa cultura”. (Carlos Maximiliano, Comentários à Constituição Brasileira de 1891, 2005, p. 89).


O direito de voto

As tristes evidências de uma continuidade mais do que simbólica entre a Primeira República e o período monárquico fazem-se particularmente evidentes na área educacional, a tal ponto que, para muitos, o sentido das primeiras décadas do século dissolve-se  inteiramente nos tempos que as precederam e naqueles que as sucederão: o Estado brasileiro reconhece a necessidade educacional, atribuíra a responsabilidade por sua organização e manutenção aos poderes regionais.

Em seguida, a primeira Constituição republicana não só mantivera esse princípio da descentralização da educação pública – contra o qual Rui Barbosa tanto se insurge – mas, indo mais longe, abolira a obrigatoriedade, eximindo, de uma só tacada, não só a sua responsabilidade, mas também a dos estados. Assim se prolongam as desigualdades e se induz à perpetuação, no dizer de Paschoal Lemme, de duas “organizações de ensino paralelas” (Lemme, 1961, p. 134) no país: uma delas, mantida pela iniciativa pública, incapaz de atender às exigências democratizadoras da república; e a outra, devido à iniciativa religiosa, inteiramente voltada para a formação das elites.

Deve-se supor, então, que não é uma concepção de participação, mas do seu contrário, de monopolização do poder que não é rompida com o advento da República. Assim, afirmando, pela reedição do censo eleitoral, agora fixado apenas na condição de alfabetização, uma concepção “dualista” de cidadania, a constituição republicana decerto não faria figura de exceção entre as demais nações1 – não houvesse ela concomitantemente, negado a responsabilidade do Estado em oferecer, pela instrução pública, uma perspectiva de inclusão dos analfabetos. Mais ainda, considerando-se que somente os brasileiros mais abonados teriam condições de arcar com os custos da educação privada, a exclusão dos analfabetos não é somente altamente discriminatória como reintroduz, subrepticiamente, a condição econômica que havia formalmente superado.

Porém, mais do que tudo, a vitória do princípio “federativo” e do fortalecimento dos poderes locais já tinge, por si só, a noção de cidadania republicana das cores da farsa, servindo para reafirmar as tiranias regionais.

Por isso, se a mudança de regime político legitimamente despertou, em vários setores da população, a expectativa de expansão dos direitos políticos, os espaços concretos para essa ampliação não estavam dados, e seria ainda preciso instituí-los na própria lógica republicana. Compactuando com as exclusões que a ordem patrimonialista sempre realizara, ela afastava-se radicalmente, no primeiro momento, de qualquer possibilidade de democratização.











1 Como, por exemplo, a Inglaterra, onde até a década de 1860 somente as classes proprietárias votaram. Nos demais países
europeus, a situação não era muito diferente, ao menos até as décadas de 1870-1880. Para uma análise mais detalhada, cf.
Hobsbawm (1996, 1988); sobre a reforma eleitoral inglesa de 1832


Bibliografia
Anais do Congresso Nacional, 24.02.1891, P. 872-874.
BOTO, Carlota. A escola primária como tema do debate político às vésperas da República. Rev. bras. Hist. [online]. 1999, vol.19, n.38, pp. 253-281. ISSN 1806-9347.  http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01881999000200011. leitura em 13/04/2012

HOBSBAWN, Eric; A Era do Capital, Ed. Paz e Terra, 14ª. Ed,2009.

MISKOLCI, Richard; Diferença e Desigualdade na Primeira República, base Scielo : http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782004000200020&lng=pt&nrm=iso acessado em 14/04/2012



Nenhum comentário:

Postar um comentário