TUPÃ
Tupã é nome indígena,
dizem que significa trovão. No tempo de um dia que o cronista esteve nessa
cidade, não ouviu uma manifestação sequer desse fenômeno da natureza. O trovão
estava mudo, ou quieto ou indisposto ou irascível ou de algum modo que o
cronista não soube adivinhar. Talvez o trovão não tenha modo. Os índios devem
estar mais perto do trovão do que o cronista. O trovão deve se manifestar para
eles. Suposição. O trovão deve preferir falar aos dizimados, aos sobreviventes,
aos remanescentes. O trovão deve falar a quem acredita nele. Certeza. O trovão
lembra aos índios o que eles ainda podem. Os índios querem ser antes e depois.
Os índios são. O trovão embala a vinda deles. O trovão garante a volta deles. O
trovão traz o começo dos tempos e o futuro deles. O trovão instaura o presente.
Os índios experimentam o trovão e buscam o que ainda resta deles, nele. O
trovão escolhe a quem fala. O trovão escolhe a quem continua falando. É quase
certo. O trovão fala aos índios. Alguns índios falam o trovão. Os Kaingang de
Tupã estão reaprendendo a falar o trovão com Kaigangs do Sul, do Paraná; os
Krenak com outros Krenak. O trovão é independente da vontade do cronista. O
trovão não está nem aí para o cronista. Não se pega um trovão como se bate no
ombro ou se pergunta algo. O trovão não fala como a moça simpática, Uiara
Potira, do Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuíre. O trovão não é
prestativo. O trovão não é educativo. O trovão não é pedagógico. E não é porque
troveja que seja um mistério passível de revelação. O trovão fala outra língua.
Quem barateia o trovão não chega a ele. Os Kaigang e os Krenak não barateiam o
trovão. O trovão é o trovão. O trovão troveja no céu, acima do cronista. O
trovão é falado pelos Kaigang e Krenak, mesmo que eles tenham desaprendido a
falar kaingang e krenak. O trovão não pode ser contido. O trovão não manda
avisar. O homem branco está muito longe daquele trovão original que ainda
assoma a cidade, quando quer. Os índios estão em busca desse princípio de
trovão. O homem branco quis fazê-los esquecer do trovão. O homem branco
repreendia o índio que falasse trovão em Kaingang e em Krenak. O homem branco
forçou o índio a esquecer o trovão e aprender português. Hoje, o homem branco
estranha que o índio fale português. Hoje, o homem branco não acredita no índio
que só fale português ou fale muito bem o português. Hoje, o homem branco quer
que o índio fale trovão em Kaikang e Krenak para ser índio. O índio fala o que
quiser. Hoje, os índios reaprendem a falar trovão em Kaigang e Krenak porque
querem. Os índios resgatam os índios, e não é para agradar ninguém. O índio não
veio ao mundo para agradar, como o trovão também não. O homem branco vestia o
índio nu diante do trovão. Hoje, o homem branco quer que o índio fique pelado
diante do trovão para ser índio. O índio fica pelado se quiser. O índio é como
o índio é. Os índios não entendem o branco. Quando o índio vira outra coisa
índia pelo contato com o homem branco, ele quer que o índio volte a ser aquele
índio da descoberta do Brasil, sem esconder as vergonhas. O índio esconde o que
quiser. As vergonhas do índio são do índio. As vergonhas dos índio não são
vergonhas para o índio. Não se controla o índio. O índio não se deixa
exterminar. O índio escapa. O índio entra no Museu do Índio e desarruma o
Museu, só por entrar. O trovão não precisa combinar com o trovão. O trovão não
marca entrevista. O cronista não esteve com o trovão, só ouviu dizer. Os índios
têm direitos autorais. O trovão também. Quem quiser saber do índio que pague. O
índio não se barateia. O índio não quer espelho. Nem o índio nem o trovão estão
na vitrine. O trovão é a língua materna. A língua materna volta a trovejar na
boca do índio. O índio não dá entrevista, ele está muito ocupado com o trovão.
Trovão tem nome branco, dizem que significa Tupã.
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