Há pelo menos quarenta
anos o debate político neste país gira em torno da escolha entre livre mercado
e intervencionismo estatal, identificados respectivamente com a “direita” e a
“esquerda” e incumbidos de definir automaticamente, a partir dessa base
econômica, as demais alternativas humanas em todos os campos da cultura, da legislação,
da moralidade, etc. Quando alguém se define como “liberal”, é portanto
automaticamente classificado entre os direitistas, conservadores e
reacionários, tornando-se, em contrapartida, socialista, progressista e
revolucionário tão logo mude para o campo do intervencionismo estatal. Os
ícones das facções respectivas são Roberto Campos e Celso Furtado.
Quando outros fatores –
de ordem moral, cultural, geopolítica ou militar – intervêm na disputa,
complicando o quadro e privando o distinto público dos confortos do
esquematismo primário, a única reação do cérebro nacional é tentar recuperar às
pressas seu estado de equilíbrio homeostático mediante a proclamação de que a
esquerda e a direita não existem mais, de que o mundo entrou numa fase de
unanimismo paradisíaco e de que, em suma, não há mais nada a discutir, exceto
os nomes destinados a preencher os cargos na hierarquia da paz universal.
Passando, assim, de um
esquematismo bocó a outro mais bocó ainda, acreditam ter superado todo conflito
ideológico e ascendido às alturas de um pragmatismo sublime, onde, extintas as
paixões baixas, reina soberana a razão tecnocientífica, nada mais importando
senão o cálculo objetivo de custos e benefícios.
Infelizmente, tudo isso
são ilusões autolisonjeiras, destinadas a resguardar a mente humana de um
confronto com as dolorosas complexidades do mundo real.
Desde logo, a escolha
entre livre mercado e intervencionismo é uma coisa quando encarada como
alternativa teórica, como modelo abstrato de sociedade ideal, e outra coisa
completamente diversa quando inserida no quadro histórico e geopolítico
concreto. A bandeira da liberdade econômica foi erguida, primeiro, contra os
despotismos monárquicos. Naquela época ela se identificava com as forças da
revolução. Um liberal estava mais próximo de um socialista que de um
monarquista ultramontano. Mais tarde, com a ascensão dos totalitarismos
estatistas russo e alemão, a liberdade de mercado tornou-se “reacionária”.
Contra a ameaça socialista, os liberais davam agora a mão a seus inimigos de
outrora, monarquistas e conservadores cristãos. Esta segunda forma adquirida
pelo debate ideológico, que é aquela na qual ainda se baseia a distinção usual
brasileira entre direita e esquerda, já foi de há muito absorvida e
transcendida por uma terceira equação. O livre mercado tornou-se o pretexto com
que as forças globalistas interessadas na construção de um governo mundial
controlador e despótico vão minando as soberanias nacionais e induzindo povos
inteiros a abdicar de todas as demais liberdades em troca do simples poder de
comprar e vender. O argumento de que a liberdade econômica traz consigo todas
as demais liberdades é aí usado como pretexto para produzir o resultado oposto:
suprimir todas as liberdades exceto uma. Concomitantemente, essas mesmas forças
globalistas dão apoio bilionário a todas as organizações esquerdistas e
revolucionárias do mundo, para jogá-las contra os Estados nacionais, daí
resultando que muitos adeptos do livre mercado, imaginando-se embora homens da
“direita”, acabem se juntando à rebelião esquerdista contra os tradicionalismos
morais e culturais, que para uns são obstáculos à revolução, para outros,
entraves ao livre mercado. Unidos pelo apego a velhos estereótipos deslocados
da situação presente, ambos não percebem que, em sua luta contra o Estado
nacional, que uns odeiam como reacionário e os outros como intervencionista, só
contribuem para que, sobre as ruínas de tantos Leviatãs menores, se erga o
Grande Leviatã do Estado mundial.
O conflito ideológico
não terminou. Apenas complicou-se formidavelmente. A luta entre a liberdade e a
tirania assumiu novo formato, no qual os engenheiros da tirania, jogando com os
símbolos convencionais do debate político, conseguiram colocar a seu serviço
até mesmo os adeptos da liberdade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário