As
oito primeiras décadas do século XIX viram o desenvolvimento de um grande
número de novas tendências e processos, se não por suas originalidades, pelo
menos pela rapidez com a qual se impuseram, por sua amplitude e suas
influencias. De fato, é esta característica tríplice que torna este período
particularmente revolucionário e o apresenta como marco do fim da África antiga
e o nascimento da África moderna. Tentaremos, neste capítulo, analisar essas
novas tendências e processos, avaliar as suas influencias e determinar o curso
que teria a História se não houvesse acontecido intervenção colonial europeia
alguma, nas últimas décadas desse século e posteriormente.
NOVAS
TENDÊNCIAS DEMOGRÁFICAS
A
primeira dessas tendências foi de ordem demográfica. A África conheceu no
século XIX as mudanças socioeconômicas mais radicais de toda a sua história,
mais precisamente, a abolição e o desaparecimento do tráfico de escravos. No
final do período que tratamos e por razoes que são lembradas em outros
capítulos do presente volume, o tráfico de escravos passa a pertencer
definitivamente ao passado. Se a abolição não provocou mudança súbita na taxa
de crescimento da população, não há dúvida que, principalmente durante as três
últimas décadas do período em consideração, esta taxa teve a tendência de
crescer progressivamente em vez de diminuir como acontecera até então.
Este
crescimento populacional não foi, contudo, o único fenômeno notável. Ainda mais
espetacular foi a redistribuição demográfica sob a forma de migrações e
movimentos no interior do continente. As migrações internas dramáticas dos
nguni, na África Austral e Central, dos chokwe, na África Central, dos azande,
na África Oriental, dos fang na África Equatorial e dos iorubás, na África
Ocidental, não são mais do que exemplos típicos. Como se verá mais adiante, as migrações
do nguni levaram este ramo dos povos bantu, a partir da região de Natal, a
diferentes partes do Sul, do centro e do Leste do continente.
Se,
frequentemente, foram a causa de devastações, destruições e de sofrimentos
indescritíveis, estas incursões tiveram também resultados positivos. Os nguni
venceram e assimilaram outros povos. Assim surgiram novas nações, tais como as
dos ndebele e dos sotho. A adoção de sistemas e conceitos militares e políticos
aperfeiçoados pelos zulu permitiram‑lhes criar novos reinos, tais como Gaza,
Suázi, Ndebele, Sotho e Pedi. Estes últimos eram, como escreveu Omer‑Cooper,
“militaristas, altamente centralizados e administrados muito mais sob a
autoridade do rei, pelos induna de origem popular, do que pelos membros da
família real".
Além
disso, a presença dos nguni encorajou alguns dos povos invadidos a se
organizarem em Estados. Foi, deste modo, que os holoholo, habitantes da margem
oriental do lago Tanganica, utilizaram as táticas militares dos nguni para
criar um poderoso reino. Do mesmo modo, os hehe, da margem sul do Tanganica,
até então divididos em mais de trinta chefias independentes, se reagruparam
após as incursões dos nguni e, tendo adotado a organização militar, as armas e
as táticas de guerra destes últimos, conseguiram subjugar os povos vizinhos,
tais como os sanga e os bena, e criar um grande reino hehe.
Na
África Ocidental, por razoes essencialmente políticas, os iorubás deixaram, por
assim dizer, em massa, as vastas pradarias ao Norte da Iorubalândia para se
espalharem em direção as florestas do Sul. Estes movimentos levaram a formação
de novas comunidades, tais como a de Ibadan, Abeokuta, Oyo, Iwo, Modakeke e
Sagamu. Os iorubás, como os nguni, se lançaram em diferentes experiências
políticas e constitucionais visando resolver os problemas políticos e
ecológicos colocados por seu novo ambiente. Destas tentativas nasceram “a
ditadura militar de Ijaye, o republicanismo de Ibadan, o federalismo de
Abeokuta e o confederalismo dos ekiti parapo”.
O
mapa das etnias do Sudoeste da Nigéria tal como se apresenta hoje, resulta
destes movimentos populacionais. Foi igualmente no século XIX que os fang e os
grupos étnicos que lhes eram aparentados, os bulu, os beti e os pahouin,
empreenderam as suas grandes migrações, deixando as savanas do Sul do atual Camarões
para ocupar as zonas das florestas até o interior do país e as regiões
litorâneas do Gabao.
REVOLUÇÕES ISLÃMICAS
Muito
mais revolucionárias ainda foram as tendências novas que surgiram no plano
social e estas foram mais particularmente verdadeiras no campo religioso. Como
se sabe, a difusão do islamismo na África, a partir da Arábia, teve início no
século VII. Contudo, este processo consolidou‑se, exceto no Norte da África e
no vale do Nilo, somente nos últimos anos do século XVIII de modo esporádico, e
com algumas exceções (por exemplo, os almorávidas), pacífico, tendo se dado,
sobretudo, através do comércio. A partir da primeira década do século XIX, esta
propagação ao contrário tomou um rumo fortemente conquistador e dinâmico,
particularmente no Norte e no Oeste da África. O seguinte exemplo ilustra bem a
rapidez e a amplitude deste fenômeno: a região das savanas do Oeste, que forma
o que se conhece como Sudão Ocidental, teve somente duas importantes JIHAD
durante o decorrer do século XVIII, um no Futa Djalon, durante a década de
1720, e o outro no Futa Toro, durante a década de 1770, enquanto, durante o
período que estudamos, existiram ao menos quatro jihad de grande envergadura e
diversas outras de menor importância. As mais importantes foram liderados
respectivamente por ‘Uthmān dan Fodio nos estados haussas em 1804, Amadou Lobbo
(Ahmad Lobbo) ou Cheikou Amadou (Seku Ahmadu) no Macina em 1818, al‑Hadjdj Umar
na região dos banbarras em 1852 e Samori Touré na década de 1870.
Um
dos aspectos fascinantes das três primeiras revoluções islâmicas é o fato de
que foram todas lideradas pelos torodbe (ramo clerical dos fulbes (Peul)), povo
que encontramos disseminado por todo o Sudão Ocidental. Daí terem elas sido
iniciadas então, por estes últimos, em resposta a crise causada nesta região
pela opressão política, injustiça social e pela cobrança de impostos ilegais
por um lado e, por outro, pelo declínio e pelo enfraquecimento do islamismo. Os
objetivos visados pelos instigadores destas guerras santas eram “tornar o
islamismo não só um conjunto de crenças individuais, mas um direito coletivo”;
varrer os vestígios dos costumes tradicionais para criar um império teocrático
onde prevaleceriam as leis e práticas islamitas.
De
todas as rebeliões organizadas, a partir da década de 1840, pelos juula (dyula,
jula, dioula) comerciantes islamizados e instruídos, oriundos da etnia soninke,
a campanha conduzida por Samori Touré durante a década de 1870 foi a que
conheceu o maior sucesso e tomou maior amplitude. As atividades de Samori Touré
serão descritas com mais detalhes no capítulo 24. Contentaremo‑nos em observar
aqui que ele era bem menos instruído e menos fanático do que os instigadores
das juhad precedentes.
Até
cerca de 1885, Samori buscou contudo converter a população ao isla, utilizando esta
religião como um fator importante de integração.
Estas
revoluções ou jihad islâmicas tiveram tiveram, no plano político e social, consequências
de porte considerável. Politicamente, abriram o caminho para a criação de
impérios imensos, como o Império de Sokoto que, durante a década de 1820, se
estendia sobre toda a antiga região setentrional e parte da região ocidental da
Nigéria e cuja história, durante este século, será exposta num capítulo
ulterior; o Império do Macina que dominou a região do Arco do Níger até ser
vencido pelo Al-Hadjdjid
‘Umar
cujo império ia das nascentes do Senegal e do Gâmbia até Tombuctu; enfim, o
vasto Império de Samori Touré se estendia desde o Norte das atuais Serra Leoa e
Guiné até Bamako e englobava o famoso centro comercial e islâmico juula de
Kankan
Estas
revoluções levaram ao desaparecimento das antigas elites reinantes haussas e
soninke em proveito de uma nova elite composta essencialmente por clérigos
fulbe e juula. Deste modo, elas se traduziram em uma transferência fundamental
da realidade do poder político no Sudão Ocidental. A
jihad liderada por ‘Uthman dan Fodio
provocou, entre outros, o renascimento e a consolidação do velho reino do
Borno, isto graças essencialmente as ações do xeique Muhammad al‑Kanēmi,
muçulmano kanambu fervoroso, a quem os dirigentes do Borno solicitaram ajuda
para resistirem aos exércitos de ‘Uthman dan Fodio e do seu filho Bello.
As
consequências destas revoluções foram ainda mais profundas no plano social. Em
primeiro lugar, a ação educadora e o proselitismo dos instigadores destas
jihad, bem como dos seus adeptos e seus chefes militares, os quais, em sua maioria,
eram muçulmanos letrados, tiveram como efeito não só a purificação do
islamismo, como também a difusão desta religião urbana nas zonas rurais. Além
disso, ao passo que os chefes das duas jihad pertenciam a a confraria
Qadiriyya, al‑Hadjdj ‘Umar se dizia da confraria Tijaniyya, relativamente
recente, que atraía sobremaneira as pessoas simples. Deste modo, al‑Hadjdj
‘Umar conseguiu reunir inúmeros adeptos e, neste sentido, é significativo que
os adeptos da Tijaniyya sejam hoje mais numerosos na África Ocidental do que
aqueles da Qadiriyya. Em terceiro lugar, tendo os chefes das juhad dado importância
a educação e aos estudos, o nível de instrução e a taxa de alfabetização das populações
mulçumanas elevaram‑se consideravelmente durante o século XIX. Enfim, estas
jihad deram lugar, em toda a região sudanesa, a um sentimento de solidariedade
islâmica que permanece até os dias atuais.
Em
conclusão, convém dizer que os instigadores das jihad e os seus porta‑bandeiras
não conseguiram estabelecer totalmente no Sudão Ocidental um califado
verdadeiro administrado de acordo shari-a. Faltou‑lhes compor com certas instituições
e realidades sociopolíticas já existentes. Tampouco viram surgir, ao final das
suas campanhas, uma cultura e sociedade islâmica uniforme e isenta de quaisquer
influencias, mas uma cultura fulbe-haussa no país haussa e uma cultura fulbe‑mande
na região do Arco do Níger. Estas eram, de todos os modos, fortemente
impregnadas dos princípios islâmicos e dos ensinamentos dos pais fundadores
haussa.
O
islamismo ganhou igualmente terreno em outras partes da África, especialmente
na atual Líbia, na Cirenaica e no Leste do Saara, e depois, mais tarde, nas regiões
setentrionais do Sudão atual, onde foi propagado pelos sanūsi e mahdistas;
enfim, no interior da África Oriental e sobretudo no Buganda, na sequencia dos
contatos estabelecidos com os comerciantes árabes e suaílis
ATIVIDADES
MISSIONÁRIAS CRISTÃS
Não
menos revolucionária e durável em seus efeitos foi, a mesma época, uma outra
cruzada religiosa que atingiu outras partes da África, a saber: a campanha
empreendida pelos missionários cristãos. Ainda que as primeiras tentativas de
se implantar o cristianismo nas regiões que se estendiam ao Sul do Sudão
Ocidental remontem a época das explorações portuguesas do século XV, mal se
encontravam traços desta religião na África ao final do século XVIII. Todavia,
isto se alteraria radicalmente a partir dos últimos anos daquele século, mais
particularmente durante as primeiras cinco décadas do século XIX. Sob o efeito
principalmente do despertar, na Europa, do espírito missionário, devido
essencialmente a obra de John Wesley e pelo aparecimento dos ideais
antiescravocratas e humanitários inspirados pelo radicalismo e pelas revoluções
americanas e francesas, os esforços realizados para implantar e propagar o
cristianismo tiveram o mesmo dinamismo, senão a mesma forma conquistadora, que
a onda islâmica que se alastrou no Sudão Ocidental. Desta vez, não foram
utilizados o alcorão e a espada, mas a Bíblia, o arado e o comércio. A ação dos
chefes, do clérigo e dos porta‑bandeiras das
jihad seriam substituídas pela de um grande número
de sociedades missionárias, fundadas e baseadas na Europa e na América, e por
seus representantes na África. Deste modo, no inicio de 1800 somente três
sociedades missionárias trabalhavam em toda a África Ocidental, a saber:
A Society for the
Propagation of the Gospel (SPG)
(Sociedade para a Propagaçao do Evangelho), a Wesleyan
Missionary Society (WMS)
(Sociedade Missionária Wesleyana) e a Glasgow and Scottish Missionary Society (Sociedade Missionária Escocesa de Glasgow). Em 1840, apenas
quarenta anos mais tarde, elas já eram mais de quinze. As mais importantes eram
a Church Missionary Society (CMS) (Sociedade Missionária da
Igreja), a Missão da Alemanha do Norte ou a Missão de Bremen, a Missão
Evangélica de Basileia, fundada na Suíça, a United Presbiterian Church
of Scotland) (Igreja Presbiteriana Unida da
Escócia), e a Sociedade das Missões Estrangeiras fundada na França. Durante as três
décadas seguintes, mais de uma dezena de novas congregações de origem americana
vieram engrossar esta lista.
Na
África Oriental e Central, em 1850, havia somente uma congregação missionária,
a Church Missionary Society. Em 1873, no momento da morte de Livingstone,
contavam‑se mais duas novas. Uma era a Universities Mission to Central Africa
(UMCA) (Missão das Universidades para a África Central), criada em 1857 para
fundar «núcleos de cristianismo e de civilização que propagassem a religião
verdadeira, a agricultura e o comércio legítimo”, em resposta o apelo
apaixonado feito, neste mesmo ano, por Livingstone a opinião pública britânica
em um discurso pronunciado na Universidade de Cambridge; e a segunda era a Congregação
dos Padres do Espírito Santo, ordem católica fundada na França em 1868.
São
as viagens, bem como as circunstâncias e o impacto da morte de Livingstone, que
deram o impulso decisivo para a onda religiosa que sacudiu a África Oriental e
Central. Em apenas quatro anos, quatro novas missões foram criadas, a Livingstone Mission criada pela Free Church of Scotland (Igreja
Livre da Escócia), em 1875; a Blantyre Mission foi criada no ano seguinte pela
Igreja oficial da Escócia, com intuito de evangelizar o atual Malaui; London
Missionary Society (LMS) (Sociedade Missionária de Londres) que, na sequencia a
uma carta publicada pelo Daily Telegraph, na qual o explorador e jornalista
Stanley convidava as missões a se encontrarem no Buganda, estender o seu
trabalho a partir da África do Sul até a atual Tanzânia; por fim, a missão
católica dos Padres Brancos, implantando‑se neste país dois anos após a Church
Missionary Society. Deste modo a evangelização da África Oriental e Central no
final do século XVIII encontrava-se a bom caminho.
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