RESUMO
A preocupação com o agir ético tem sofrido
mudanças em função tanto de novos problemas quanto de novas abordagens dos já
existentes. Neste contexto, ofereço uma visão geral da ética segundo Peter
Singer, considerando os níveis da bioética (especialmente sua defesa do aborto
e da eutanásia), ética ambiental (abordando os problemas do especismo e do
cuidado com o meio ambiente) e sua perspectiva a respeito do abismo
socioeconômico presente no mundo.
Meu objetivo é fazer uma avaliação de suas
propostas, destacando sua relevância para os debates éticos na atualidade.
Palavras-chave:
Especismo. Bioética. Utilitarismo.
1 INTRODUÇÃO
A ética enquanto tentativa de decidir o que
fazer e como devemos viver está presente em todas as sociedades. No convívio
diário, o ser humano precisa de parâmetros de conduta, a fim de conciliar seus
interesses com os de seus pares, além de preservar o meio em que se situa; por
trás de atitudes e hábitos mínimos, como um cumprimento ou o cuidado com o
lixo, há uma motivação ética. Todavia, nem sempre nos damos conta de tal
necessidade. Não que não façamos uma lista de boas ações a serem realizadas,
mas principalmente porque atropelamos os limites éticos em diversas ocasiões,
como, por exemplo, na fila do banco, no supermercado ou nas instituições
governamentais.
É certo que existem valores universais: senso
de justiça e reciprocidade, por exemplo; entretanto, suas nuances variam de
acordo com as diferentes realidades sociais e culturais. Além disso, e a
despeito de sua relevância, o agir ético tem sofrido mudanças significativas,
uma vez que tanto aparecem novos problemas quanto novas abordagens dos já
existentes.
Nesse contexto se destaca a figura de Peter
Singer, filósofo australiano conhecido, entre outras coisas, por sua defesa
moral do aborto e eutanásia, bem como a atenção que dispensa ao debate ético de
problemas sociais e ambientais. O objetivo aqui é apresentar sua filosofia
moral, mostrando os argumentos que elaborou a respeito de três dimensões:
bioética (em particular aborto e eutanásia), ética ambiental (no que tange o
especismo e o meio ambiente) e os desafios envolvendo mazelas sociais como a
fome e a desigualdade de riquezas. Em todos os três aspectos, o panorama será
geral. Porém, o leitor notará duas coisas: a presença extensiva do utilitarismo
de preferências ao longo dos argumentos do filósofo e o caráter notavelmente
polêmico de suas defesas morais.
Isso, naturalmente, suscita objeções por
parte de seus opositores, que serão expostas em seguida aos argumentos dele.
2 PREFERÊNCIAS MORAIS
Peter Singer escreve sobre diversos tópicos:
bioética, ética ambiental, metaética, democracia e desobediência civil (estas
duas abordadas em sua tese de doutorado1).
Definindo-se como utilitarista, Singer toma o
cuidado de se distinguir de utilitaristas clássicos, como John Stuart Mill e
Jeremy Bentham. Entre outros pontos, o utilitarismo clássico se apoia no
critério da senciência para a ação moral. Uma ação moralmente boa será, então,
aquela destinada a maximizar o prazer ou, noutra via, minimizar a dor, seja de
um indivíduo ou uma população. O critério da senciência inclui ainda os
animais; sendo capazes de experimentar dor e prazer, eles também são passíveis
de atenção moral. Bentham, por exemplo, assim expôs sua posição:
Dia
virá, talvez, em que o restante da criação animal consiga adquirir aqueles
direitos dos quais só poderiam ter sido espoliados pela mão da tirania. Os
franceses já descobriram que o negror da pele não é razão para um ser humano
ser abandonado sem misericórdia aos caprichos de um torturador. Talvez chegue o
dia em que o número de pernas, a vilosidade da pele, ou a terminação do osso
sacro sejam razões igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível
ao mesmo destino. Que outra coisa poderá traçar a linha intransponível? Será a
faculdade da razão, ou talvez a faculdade do discurso? Mas um cavalo ou um cão
adultos são animais incomparavelmente mais racionais, e também mais sociáveis,
que uma criança de um dia de idade, ou de uma semana, ou mesmo de um mês.
Supondo-se, porém que
assim
não fosse, de que adiantaria isso? A questão não é: “Eles são capazes de
raciocinar?” Nem tampouco seria: “Eles são capazes de falar?” A questão é:
“Eles são capazes de sofrer?”. (BENTHAM citado por SINGER, 2002, p. 52-53)
A senciência como critério moral, no entanto,
não basta. Diversas críticas ao utilitarismo foram dirigidas devido a esse
ponto, uma vez que corre o risco de ser um critério demasiado amplo. Singer,
então, adota uma outra vertente, o utilitarismo de preferências. Ela ressalta
não a importância em maximizar prazer e minimizar a dor, mas a adequação das
ações às preferências daqueles que foram atingidos por tais ações ou suas
consequências. Essas preferências, por sua vez, se referem aos interesses do indivíduo
considerado (e que, como já sabemos, não se restringe apenas a seres humanos) e
não se resumem à distinção empregada pelo utilitarismo clássico, conquanto
sejam, como defende o filósofo, bastante amplos; de fato, Singer considera como
interesse qualquer coisa que uma pessoa deseje (SINGER, 2002, p. 35).
Entretanto, ainda é necessário um outro
ponto: a universalidade da ética. Juízos éticos só podem ser emitidos, para
Singer, se considerarmos a igualdade de interesses como um ponto de apoio. Não
posso atropelar os interesses alheios, privilegiando os meus:
Ao
aceitar que os juízos éticos devem ser feitos desde um ponto de vista
universal, estou aceitando que meus próprios interesses não podem, pelo mero
fato de serem meus, contar mais que os interesses de qualquer outra pessoa.
Portanto, quando penso eticamente, minha preocupação natural de ver atendido
meus próprios interesses deve ser estendida aos interesses dos outros (SINGER,
2002, p. 35).
Por fim, Singer adiciona o conceito de
pessoa, tomado de empréstimo ao filósofo James Rachels (SINGER, 1998, p. 135).
“Pessoa” é qualquer ser racional e autoconsciente, capaz de levar uma vida biográfica
e não apenas biológica; percebe a si mesmo no tempo, possui
interesses, projeta sua existência e realiza planos para o futuro. Essa
definição se aplica à maior parte dos seres humanos (exceto fetos,
recém-nascidos e pacientes terminais que perderam sua consciência, conforme
veremos mais adiante), mas inclui uma notável porção de animais, especialmente
mamíferos como cães, porcos e primatas superiores.
Em suma, a concepção de ética em Singer
(SINGER, 1998, passim) envolve os seguintes pontos:
a) seres sencientes possuem interesses;
b) no entanto, apenas seres sencientes,
racionais e autoconscientes – isto é, pessoas – podem ter suas ações analisadas
do ponto de vista moral, bem como seus interesses;
c) os interesses dos seres devem ser
considerados de maneira igualitária, na medida em que não se sobressaiam uns
aos outros e correspondam seus respectivos níveis de senciência (dado que um cavalo, por exemplo,
não sente dor com a mesma intensidade que um bebê);
d) a ética assume uma perspectiva de
universalidade, a partir da qual os juízos morais (isto é, afirmações acerca de
ações morais, como “é correto diminuir a desigualdade social”, por exemplo) são
emitidos.
Podemos, a seguir, passar para os tópicos da
ética do pensador australiano.
2.1 Bioética
O ponto discutido aqui concerne à defesa
moral do aborto e eutanásia. Já sabemos que uma ação moral deve levar em conta
os interesses dos seres sencientes envolvidos, tanto os que não possuem
autoconsciência como os autoconscientes – isto é, pessoas.
Teoricamente, é errado matar uma pessoa, uma
vez que isso equivale a interromper seus planos e projetos; ou melhor, é errado
matar uma pessoa quando isso vai de encontro a seus interesses. Isso inclui,
por estranho que pareça, criminosos hediondos aos quais talvez preferíssemos
que fossem condenados à pena de morte; no entanto, ao invés de solucionar o
problema que esses indivíduos trazem, a pena de morte embrutece a sociedade.
Porém, o estatuto da vida de uma pessoa assim considerada não inclui um caráter
sagrado, conforme defendido por religiosos e outros filósofos como Ronald
Dworkin2. Singer defende que, quando alguém afirma que a vida é sagrada, ela
está pensando na vida humana; mas ele nega que a vida humana seja assim tão
especial (SINGER, 1998, p. 93-94).
Como, então, defender a moralidade do aborto
e da eutanásia? A resposta se torna clara ao atentarmos para a definição de
pessoa adotada por Singer. Um feto não se concebe como um ser orientado para o
futuro, com planos e projetos; não é autoconsciente; logo, o aborto não é
imoral. Cumpre lembrar ainda que, para Singer, a vida de um feto não possui
mais valor que a vida de um animal não-humano em condições semelhantes de
racionalidade, autoconsciência, capacidade de sentir dor e assim por diante
(SINGER, 2002, p. 203). Além disso, não basta invocar a condição do feto como
vida potencial; pode-se justificar um aborto, por exemplo elaborado pelo
próprio Singer, quando uma mulher grávida, ainda que deseje ser mãe, não
programou a gravidez, julgando que o nascimento de seu filho seja inoportuno no
momento, conquanto ela pretenda realizar seu sonho após um ou dois anos; ela
não impediu, apenas adiou a entrada de uma vida racional e autoconsciente
(SINGER, 2002, p. 201).
A defesa do aborto contempla, de forma geral,
tanto os projetos pessoais dos pais (e principalmente da mãe) quanto a condição
do próprio feto – caso ele venha a nascer com alguma má formação congênita ou
sofra complicações durante a gravidez ou no momento do parto (o que pode fazer
com que o recém-nascido, caso os pais optem pela criação, leve uma vida
bastante dolorosa), além da possibilidade de a própria vida da mãe estar em
perigo3.
Já o caso da eutanásia admite três rumos. Se
a pessoa deseja eliminar a própria vida e pede que alguém a mate, ou então que
a ajude a encerrar sua existência, no que se assemelha ao suicídio assistido,
por estar paraplégica, em estado terminal ou nos estágios iniciais de uma
doença degenerativa, temos a eutanásia voluntária, justificável pelo princípio
de autonomia (segundo o qual o paciente possui o direito de tomar suas próprias
decisões), isto é, pelo direito de abrir mão de um direito (o que implica,
inversamente, que uma pessoa só tem direito a algo se ela deseja aquilo a quem
tem direito, no caso a própria vida) e pelo conhecimento das condições em que a
eutanásia será realizada (SINGER, 1998, p. 204-205).
Se a pessoa não pede diretamente que seja
morta, mas tem sua vida retirada mesmo quando há a possibilidade de ela assim o
desejar se pedisse, temos a eutanásia involuntária. Devemos distinguir esse
caso daquele de um doente que, não tendo dado seu consentimento por optar pela
vida, seja morto contra sua vontade. Por fim, a eutanásia não-voluntária diz
respeito a pacientes terminais (adultos ou bebês) e que, devido à gravidade de
sua situação, tenham mesmo perdido a autoconsciência, são mortos por iniciativa
de parentes, amigos ou médicos, a fim de amenizar seu sofrimento (SINGER, 1998,
p. 189).
No fim das contas, apenas não-pessoas como
fetos, bebês e pacientes terminais (seja os que perderam a autoconsciência,
seja os que solicitaram morrer) podem, de acordo com Singer, ser abortados ou
mortos de maneira moralmente digna. Aborto e eutanásia são, para ele,
moralmente justificáveis porque a retirada de vida de alguém em semelhantes
condições não equivale à de uma pessoa em perfeito estado de autoconsciência e
que tenha projetos de continuar viva. Um feto ou bebê não possuem autonomia
para decidirem em favor de si mesmos, ao passo que um doente em estado
vegetativo já não goza de tal direito. Mas e o caso dos animais?
2.2 Especismo e meio ambiente
Como já sabemos, o utilitarismo inclui
animais nos debates éticos (pelo menos os sencientes e que possuem consciência
para tal, demonstrando sensações de prazer e dor).
Vimos ainda que Singer, considerando que
diversos animais são capazes de levar uma vida autobiográfica, além de dar
mostras admiráveis de racionalidade (principalmente os primatas superiores, que
podem mesmo comunicar-se com seres humanos através da linguagem de sinais se
ensinados, sem mencionar a complexidade das relações entre si), oferece um
importante motivo para a defesa ética de outras espécies que não a humana. Essa
visão se choca frontalmente a toda uma tradição erguida no Ocidente, enraizada
no pensamento grecocristão, segundo a qual o meio ambiente, com todas as
espécies animais e vegetais, está à plena disposição dos interesses humanos.
Ela sustenta a atitude do ser humano para com os biomas na era atual:
devastação dos recursos naturais, extinção de incontáveis espécies vivas, que
terminam por trazer problemas ao próprio homem.
A categoria de refugiados ambientais, por
exemplo, surgiu a partir das mudanças climáticas que afetam o globo devido à
ação predatória do homem. Tuvalu, um país insular no meio do oceano Pacífico e
cujo ponto mais alto é de cinco metros, entrou para a história como a primeira nação
de refugiados ambientais no mundo, pedindo ajuda à Nova Zelândia; a ONU estima
que, até 2010, serão cerca de 50 milhões deles em todo o planeta (NOGUEIRA,
2007, p. de internet).
Em uma de suas obras mais famosas, Libertação
animal (SINGER, 2004), Singer examina uma série de maus tratos dispensados
aos animais. Influenciando a articulação de movimentos ativistas ambientais, o
filósofo trabalha com o termo especismo, tomado de empréstimo ao
psicólogo Richard Ryder. Assim como há o racismo como preconceito de raça, e o
sexismo enquanto preconceito de gênero, existe o especismo: preconceito de
espécie, pretensamente autorizando o Homo sapiens a se utilizar de
outras espécies a seu bel-prazer.
Os exemplos variam desde o uso de cobaias
não-humanas em experimentos científicos até o consumo alimentar e
entretenimento.
O primeiro ponto do argumento contra o
especismo engloba os conceitos de senciência e pessoa. Embora a maior parte dos
animais não seja senciente, nem tenha mesmo consciência
de si, Singer lhes confere o benefício da dúvida: só porque não sabemos se
sentem prazer ou dor não devemos nos autorizar o trato perverso. Em todo caso,
diversos documentários expõem, de forma pungente, as agruras pelas quais passam
vacas, porcos, galinhas, elefantes e texugos,
apenas para mencionar alguns.
O segundo ponto se refere aos
processos de produção de alimentos de origem animal e bens de consumo em geral
na economia capitalista. Quase nunca as reses se acham em locais com o mínimo
de conforto e cuidados necessários. Porcos, vacas, galinhas são comprimidos em
galpões exíguos, e em muitos casos não chegam nem a ver a luz solar, apenas a
artificial; as galinhas têm seus bicos extirpados, e os porcos, os dentes
extraídos, evitando assim o canibalismo decorrente da má alimentação e
estresse advindos da criação a que são
submetidos; as vacas, separadas de seus filhotes, mugem incessantemente por
eles, e são estimuladas o tempo inteiro a produzir leite, recebendo altas doses
de hormônios, antibióticos e protetores hepáticos; tudo isso sem contar as
agressões gratuitas de que padecem com frequência. Não devemos esquecer a
extração de pele para o fabrico de casacos caríssimos e a manutenção de
subempregos a salários parcos – texugos, camurças, vicunhas são esfolados vivos
para a satisfação de um consumismo desenfreado; sem contar a depenação de aves
diversas – gansos, avestruzes, pavões – para a venda das penas como adorno ou matéria-prima
para travesseiros.
O caso da vitela, contudo, merece destaque,
uma vez que o modo como é produzida para se transformar em prato de luxo é de
singular crueldade: o bezerro não come alimentos sólidos, ingerindo apenas
líquidos pobres em nutrientes diversos (como o ferro), para que a carne fique
com a coloração mais pálida possível; o espaço onde é confinado é mínimo,
impedindo seu deslocamento; dependendo do abatedor, o animal é mantido
suspenso, evitando o contato com o chão e minimizando o desenvolvimento
muscular, além de não poder lamber a própria urina e fezes, na tentativa
instintiva de suprir as necessidades nutricionais de minerais, reduzido a
níveis quase inexistentes em sua dieta.
Por fim, um terceiro ponto se relaciona ao
emprego de cobaias em experimentos científicos diversos, desde a produção de
remédios e cosméticos até a comparação com problemas de saúde nos seres
humanos. À primeira vista, seríamos tentados a deduzir que, nessa linha de
argumentação, absolutamente nenhuma experimentação com animais é válida.
Singer, no entanto, evita uma oposição tão
radical, optando por sugerir o seguinte:
Tudo o que precisamos
dizer é que experiências que não sirvam a propósitos diretos e urgentes devem
imediatamente ser suspensas, e nos campos de pesquisa restantes deveríamos,
sempre que possível, procurar substituir as experiências que envolvem animais
por métodos alternativos que não os envolvam (SINGER, 2002, p. 71).
Isso não o impede, todavia, de ponderar que:
a) muitas das pesquisas empregando animais
não só representaram maus-tratos para eles, como também provocaram perda de tempo
e dinheiro, além de não chegar, com frequência, a resultados conclusivos:
b) o argumento especista, segundo o qual
considera a situação hipotética de salvar milhares de vidas a partir de
experimentos com um único animal, não é menos certo do que empregar, em vez de
um animal, um bebê ou um ser humano em grave retardo mental para os mesmos
fins;
c) a igualdade na consideração de interesses
como fundamento ético implica a exclusão de alguns meios para aquisição de
conhecimento, visto que:
[...]
não há nada de sagrado em relação ao direito de adquirir conhecimento. (...)
Não acreditamos que cientistas tenham, em geral, o direito de realizar
experimentações dolorosas ou letais em seres humanos sem o consentimento deles,
mesmo havendo muitos casos nos quais essas experiências iriam fazer o
conhecimento avançar muito mais rapidamente do que o fariam com qualquer outro
método. Agora necessitamos ampliar o escopo dessa restrição vigente na pesquisa
científica (SINGER, 2002, p.82).
Quanto a propostas de uma ecologia profunda,
estendendo a preocupação a seres vivos não-sencientes, como plantas, e os
recursos naturais dos biomas, Singer acha que os argumentos são
despropositados. Ele acredita que uma ética que atribua valor a coisas animadas
não-sencientes ou ecossistemas em geral esbarra num problema: o critério do
valor.
Como atribuir valor a uma sequoia milenar ou
a um lago? Obviamente, é possível atribuir valor a um lago, um rio ou uma área
remanescente de uma floresta já quase totalmente devastada, como a Mata Atlântica;
julgamos tais coisas importantes devido ao valor que representam para a fauna
que delas dependem para sobreviver, ou mesmo para algumas atividades humanas,
como acampamentos ou a contemplação de um pôr-do-sol. Mas é exatamente aí que
entra a divergência de Singer para com ecologistas profundos: essa valoração
simplesmente não se apoia em uma ideia de valor intrínseco, segundo a
qual a natureza e seus componentes possuem valor em si mesmos. Julgando-a
problemática, Singer escolhe uma defesa da preservação do meio ambiente apenas
com base em seres sencientes humanos e não-humanos presentes e futuros, na
medida em que alterações significativas nos biomas, indo de encontro aos
interesses dos seres sencientes, certamente apresentarão obstáculos para seu desenvolvimento
(SINGER, 2002, p. 136).
2.3 Miséria social
Chegamos ao debate que Singer empreende em
torno de mazelas sociais, como a fome, a desigual distribuição de riquezas e a
situação de refugiados ao redor do planeta. O filósofo elabora, após expor o
panorama geral, o seguinte argumento a favor da obrigação de ajudar:
1) se pudermos impedir que algo de ruim
aconteça sem termos de sacrificar algo de importância comparável, devemos
impedir que aconteça;
2) a pobreza absoluta é uma coisa ruim;
3) existe uma parcela da pobreza absoluta que
podemos impedir sem que seja preciso sacrificar nada de importância moral
comparável;
4) portanto, devemos impedir a existência de
uma parcela de pobreza absoluta (SINGER, 1998, p. 242)4.
O quadro social, tal como Singer resume em
linhas gerais (SINGER, 1998, p. 229- 233), não é nada animador. Talvez fosse o
caso de situar a não-ajuda aos países pobres e o assassinato no mesmo nível.
Algumas objeções a essa comparação (Singer lista cinco, mas vou apresentar
apenas duas) dizem respeito:
1) à motivação entre o assassino e aquele que
não oferece ajuda financeira e/ou material; e
2) à diferença de responsabilidade entre
matar diretamente alguém e deixar de impedir a existência da pobreza absoluta.
O problema da motivação reside no fato de que, enquanto o assassino possui
alguma razão para matar, uma pessoa que deixa de dar uma parte de seu dinheiro
em prol da ajuda humanitária para comprar, digamos, um bom aparelho de som pode
apenas indicar que ela deseja melhorar sua fruição musical; no máximo, ela
poderia ser acusada de egoísmo e indiferença ao sofrimento alheio, mas isso não
poderia ser comparado ao assassinato, uma vez que suas intenções com o aparelho
de som são diversas daquelas de um assassino com a vítima. Além disso, também é
diferente a situação de um assassino, diretamente responsável pela morte de sua
vítima, e de uma pessoa que poderia objetar que os famintos continuariam a
morrer, mesmo que ela nunca houvesse existido.
A análise de Singer com relação ao ponto 1 é
a seguinte: “O fato de uma pessoa não desejar verdadeiramente a morte de alguém
diminui a gravidade da censura que merece, mas não tanto quanto sugerem as
nossas atitudes correntes ante a concessão de ajuda” (SINGER, 1998, p. 238). Não desejar diretamente
que alguém morra não elimina a responsabilidade de uma eventual morte; é o caso
do motorista imprudente que, ao atropelar um pedestre por excesso de
velocidade, não teve a intenção de matá-lo, mas deve ser censurado e mesmo
punido por negligência às tristes consequências de sua atitude. Quanto ao
ponto, a teoria de responsabilidade que lhe subjaz é passível de questão: ela
se baseia num individualismo abstrato, pois não há uma coisa como um indivíduo
independente e auto-sustentável; para adquirirmos as habilidades de que somos
dotados hoje em dia (como a linguagem), precisamos ser sociais. Não basta
apenas viver de modo a não interferir na vida dos outros; devemos “adotar o
ponto de vista de que levar a sério o direito à vida é incompatível com a atitude
de ficar vendo as pessoas morrerem quando se poderia facilmente salvá-las”
(SINGER, 1998, p. 238).
Examinando a situação dos milhões de
refugiados ao redor do planeta, Singer faz um experimento mental. Em fevereiro
de 2002 (o experimento data da segunda edição em inglês, lançada em 1993), o
mundo se encontra destruído em função de uma guerra nuclear. Alguns se
precaveram e compraram abrigos, construídos nos fins da década de 1990 devido à
especulação imobiliária; a maioria é de cidades subterrâneas capazes de
suportar dez mil indivíduos por vinte anos, provendo todo o conforto necessário
e uma série de luxos; os moradores, por sua vez, têm a boa notícia de que
precisarão passar apenas oito anos dentro deles, no máximo. No entanto, há
milhares de pessoas do lado de fora, batendo às portas do abrigo e implorando
por ajuda. Três grupos dentro do abrigo se distinguem:
- o primeiro defende a acolhida de todos os
que estão fora, mesmo que isso leve ao uso de espaços destinados primeiramente
ao lazer daqueles que compraram, como quadras de tênis;
- um segundo grupo se opõe categoricamente à
entrada daquelas pessoas; por fim,
- um terceiro grupo aceita ajudar um grupo
limitado de indivíduos, de forma a não comprometer a qualidade de vida do
abrigo e, assim, mudar significativamente a rotina estabelecida.
“Qual seria o seu voto?”, pergunta o filósofo
ao leitor (SINGER, 1998, p. 263).
Algumas objeções ao atendimento de
refugiados, a seguir, são levantadas. Isso se deve porque o problema não se
trata de distinções de espécie, aptidão intelectual ou grau de desenvolvimento,
mas de nacionalidade. Por um lado, algumas pessoas são contrárias ao refúgio
alegando que seu país não apresenta condições de abrigar e alimentar adequadamente
os refugiados; além disso, questionam se eles realmente necessitam disso, o que
leva a uma distinção duvidosa entre “refugiados verdadeiros” e “refugiados
econômicos” (SINGER, 1998, p. 264). Na opinião de Singer, o problema dessa distinção
é que não inclui o direito ao refúgio para aqueles que saíram de uma região que
se tornou inabitável por problemas ambientais, pois, como afirma o pensador,
ambos têm a mesma necessidade de refugiar-se.
Por outro lado, alguns intelectuais – como
Michael Walzer, filósofo norte-americano comunitarista cuja posição é debatida
pelo pensador australiano (SINGER, 1998, p. 267-269)
– se limitam a afirmar que o refúgio não
constitui uma obrigação moral, apenas uma demonstração de generosidade por
parte dos países acolhedores.
Ambas as posições nos tornariam, talvez,
propensos a pensar que a aceitação de refugiados oriundos de países pobres por
outros países (ou, ainda, se tal emigração fosse facilitada) faria com que os
dirigentes de países pobres teriam menos interesse em resolver a situação
interna, de modo que o estado de seus compatriotas pudesse ser igualmente
sofrido.
Singer, entretanto, chama a atenção para
outras consequências, advindas da não-ajuda: “os países ricos em recursos e não
superpopulosos não podem esperar conquistar o respeito ou a confiança dos
países mais pobres se deixarem que eles enfrentem a maior parte dos problemas
dos refugiados do melhor modo que puderem” (SINGER, 1998, p. 272).
De qualquer forma, a discussão não é fácil:
há uma complexidade de interesses a ser considerada, e é difícil decidir para
que lado deve pender a balança. Existem os fatores sociais e multiculturais,
concernentes à adaptação dos refugiados ao país acolhedor e à disposição das
pessoas em aceitá-los; certamente, choques devem aparecer. Os fatores
ambientais estão presentes: no Paquistão, por exemplo, quando foram aceitos
mais de dois milhões de refugiados afeganes na década de 1980, houve problemas
devido à necessidade de combustível por parte dos refugiados – o que levou ao
desmatamento de montanhas inteiras, que tiveram suas árvores arrancadas; e isso
apesar da ajuda externa que o governo paquistanês recebia para alimentá-los
(SINGER, 1998, p. 264). Antes mesmo de se chegar a um tal cenário, alguns
poderiam rejeitar a linha de argumentação proposta, partindo do pressuposto de
que o status quo5 deve ser mais ou menos correto. A isso replica Singer:
“o status quo é o resultado de um sistema de egoísmo e oportunismo
nacionais, e não o resultado de uma tentativa sincera de pôr em prática as
obrigações morais das nações desenvolvidas, num mundo que tem quinze milhões de
refugiados” (SINGER, 1998, p. 276). Além disso, “para os países do mundo
desenvolvido, não seria difícil fomentar a concretização das suas obrigações
morais para com os refugiados” (SINGER, 1998, p. 276).
3 ALGUMAS OBJEÇÕES
O ideário ético de Peter Singer, ao desafiar
a tradição ocidental sobre a qual erigiu o alvo de suas críticas, não só
despertou o interesse de grupos empenhados em ativismo ambiental e humanitário,
bem como simpatizantes e militantes dos movimentos pró-escolha em relação ao
aborto. Na verdade, várias das primeiras recepções foram de profunda aversão.
Na Alemanha, Suíça e Áustria, o filósofo se
viu rechaçado por grupos de apoio a deficientes físicos e defensores de uma
ética da sacralidade da vida; sob a alcunha de “defensor da eutanásia”, seu
nome nesses países foi ligado ao do nazismo, assumindo também a imagem de eugenista6.
O problema, porém, não foi a oposição por
parte de grupos que Singer aborda em seus argumentos; foi o completo
desconhecimento dos pressupostos teóricos em que se baseou para defender o
aborto e a eutanásia. À parte a recusa tácita da santidade da vida, o pensador
elencou os seguintes pontos: dizer que devemos permitir que alguém tire a vida
de um feto ou um ser humano em estado vegetativo, de rápida forma indolor, não
equivale a dizer que a vida de um deficiente ou alguém com doenças congênitas
vale menos a pena ser vivida; além do mais, sempre há pessoas dispostas a
cuidar de um bebê que nasceu com algum problema que, teoricamente, venha a
dificultar sua vida, sendo a adoção uma opção válida (SINGER, 1998, p.
360-361).
O que está em jogo, aqui, é tanto a
possibilidade de trazer ao mundo um ser saudável e capaz de gozar plenamente de
suas faculdades como a de eliminar ou reduzir ao máximo o sofrimento de um ser
que, desde o nascimento ou a gestação, esteja condenado a viver com uma série
de impedimentos. Singer lamenta a falta de um diagnóstico pré-natal mais
eficiente, o que evitaria em grande medida o problema da eutanásia ou do
infanticídio (SINGER, 2002, p. 240).
Quanto aos mecanismos legais necessários para
o acesso a tais práticas, a premissa de Singer é extremamente diversa daquela
do nazismo: enquanto as práticas de eugenia e extermínio de pessoas pretensamente
doentes se enquadravam num projeto de Estado totalitário como o nazista, Singer
assevera que a intervenção do Estado no tocante ao aborto e eutanásia deva se
reduzir ao mínimo de legalizá-las e fornecer os instrumentos essenciais para
tal, deixando aos pais, parentes, amigos, médicos ou o próprio paciente a
delicada tarefa de encerrar ou não a vida de um feto ou bebê nascido em
condições ásperas, assim como a de uma pessoa em coma ou presa a uma
parafernália de equipamentos destinados a deixá-la viva (SINGER, 1998, p. 364).
Quanto aos movimentos ambientais e
pró-vegetarianismo, Singer também foi mal-interpretado. Quando esteve em
Zurique para um congresso sobre animais, reunindo filósofos, teólogos,
veterinários e zoologistas, vários manifestantes acharam estranho que o mesmo
pensador, argumentando em defesa do aborto e eutanásia, também demonstrasse
preocupação em favor dos animais (SINGER, 1998, p. 375). A escolha alimentar,
nesse contexto, também se reveste de caráter moral, uma vez que se relaciona às
questões ambientais e o modo como usamos os animais para a alimentação. Não
obstante, e contrariamente ao que parece, Singer não é contrário ao consumo de
alimentos de origem animal, nem aos transgênicos. Ele se contrapõe ao modo como
os animais são abatidos, de maneira tétrica e pungente – não só devido ao
sofrimento dos animais, como também pelos estragos ambientais advindos de
atividades econômicas como a pecuária, responsável por uma das maiores taxas de
emissão de dióxido de carbono à atmosfera, ao lado da queima de combustíveis
fósseis em veículos automotores e indústrias.
No que toca aos transgênicos, Singer lembra:
Ainda
mais imperioso do que combater a obesidade é acabar com a fome no mundo, e
esses alimentos podem ser uma das soluções para o problema. Além disso, as
plantações de transgênicos não precisam de pesticidas, o que ajuda a preservar
o meio ambiente, ao contrário do que ocorre nas fazendas convencionais (SINGER,
2007, p. de internet).
4 UM FILÓSOFO POLÊMICO: CONCLUSÃO
Talvez pareça
paradoxal entrelaçar a defesa moral do aborto e eutanásia ao ativismo social e
ambiental. No entanto, recusar a análise aprofundada dos argumentos de Singer,
desacreditando-o por mero preconceito, não é absolutamente a melhor maneira de
descobrir suas implicações, ganhos ou falhas. Debates filosóficos exigem
paciência e muita atenção, mesmo porque muitos deles permanecem inconclusos. No
que se refere à discussão de tais temas, há sempre o perigo da ladeira
escorregadia: o temor de que pequenos atos, destinados a sanar problemas
isolados, possam atingir dimensões inesperadas e fora de controle7.
Singer,
evidentemente, tem consciência disso. Ao longo de seus textos, ele deixa bem
claro que suas defesas morais rompem claramente com a ética tradicional. Entretanto,
sua opinião acerca do problema da ladeira escorregadia é que já estamos nela.
Dessa forma, ele admite, de modo autocrítico, que seus argumentos possam dar
margem a exageros e implicações inesperadas. Mas isso não quer dizer que os
argumentos em si mesmos forneçam um ponto de partida para a ladeira
escorregadia; na verdade, para Singer, já estamos nela. Isso ocorre porque é
errado acreditar que juízos morais, como “Você não deve jamais pôr fim à vida
de outro ser humano” (SINGER, 2002, p. 394), possam ser absolutos no atual
estado de coisas. Em vez de perguntar como evitar a ladeira escorregadia,
Singer pede que indaguemos por um modo de trilhar a ladeira escorregadia sem
acabar indo parar onde não queremos ir.
Portanto, de
modo semelhante, penso que o melhor modo de avaliar as posições morais de
Singer é indagar em que medida elas conduzem a situações imprevistas e que
escapem a uma análise de casos problemáticos (isto é, chegar aonde não
desejamos chegar).
Os problemas que
o filósofo explora são de grande urgência para o dia-a-dia, e qualquer debate
demorado a respeito deles requer a devida atenção – mesmo porque ele não
defende a aplicação do aborto e da eutanásia em qualquer caso, ou a
substituição imediata e total de métodos tradicionais de pesquisa com animais
por estratégias alternativas, ou a rejeição completa por produtos de origem
animal. Além disso, do mesmo modo como outros pensadores morais não tiveram
aceitação integral de seus argumentos, também não necessariamente os argumentos
de Singer sobre os tópicos elencados (bioética, ética ambiental e desigualdade
social) serão aceitos na mesma medida.
Atraindo as
atenções para si, voluntária ou involuntariamente, Peter Singer causa tanto
incômodo para a sociedade contemporânea quanto Sócrates em Atenas. Da mesma forma
que este se considerava um esporão a fazer andar um grande cavalo gordo (metáfora
sobre sua própria cidade), Singer, ao balançar os pilares da tradição ética no
Ocidente, também nos incita a pensar, ainda que não concordemos com ele. Não é
sem razão que, ao chegar à Universidade de Princeton para ensinar, provocou
tanto rebuliço quanto Bertrand Russell. Discorrendo sobre infanticídio ou ética
alimentar, Singer merece a consideração dos estudiosos em ética na atualidade.
REFERÊNCIAS
DWORKIN, Ronald.
Domínio da vida: aborto,
eutanásia e liberdades individuais. Trad. De Jefferson Luís Camargo. São Paulo:
Martins Fontes, 2003
.
GONDIM, José
Roberto. Slippery slope. In: GONDIM, José Roberto. Bioética: índice geral de textos, resumos,
definições, normas e casos. 2004. Disponível em:
<http://www.ufrgs.br/bioetica/slippery.htm>
Acesso:.
NOGUEIRA, Joana
Laura. Refugiados ambientais: uma categoria das mudanças climáticas. Conjuntura Internacional, Belo Horizonte,
05 abr. 2007. Disponível em:
SINGER, Peter. A
ética do dia-a-dia. Entrevista a
Gabriela Carelli. Veja, São Paulo, 21
fev. 2007. Disponível em:
<http://veja.abril.com.br/210207/entrevista.shtml> Acesso:
SINGER, Peter. Democracy and disobedience. Oxford: Oxford
University Press, 1973.
______. Ética prática. Trad. de Jefferson Luís Camargo. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
______. Libertação animal. Trad. de Marly Winckler. Porto
Alegre: Lugano, 2004.
______. Vida ética: os melhores ensaios do mais polêmico filósofo
da atualidade. Trad. De Alice Xavier. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
1
A tese foi publicada sob o título “Democracy and disobedience” (SINGER, 1973).
2
Para a defesa de Dworkin da sacralidade da vida como um ponto de partida comum
a liberais e conservadores nos debates em torno da bioética, cf. o livro
“Domínio da vida” (DWORKIN, 2003).
3
Um argumento semelhante é empregado em defesa do infanticídio; cf.
“Justificando o infanticídio” (SINGER, 2002, p. 233-241). Entretanto, Singer
admite que, em vez do infanticídio, pensemos na possibilidade de adoção do bebê
em questão – mesmo porque há casos que tanto poderiam justificar infanticídio
como o contrário, a exemplo de hemofílicos; além disso, há o diagnóstico
pré-natal, o que permitiria à mãe optar pelo aborto (SINGER, 2002, p. 241).
4
A defesa detalhada desse argumento, bem como objeções a ele dirigidas, se
encontram no capítulo “Ricos e pobres” da Ética prática (SINGER, 1998:229-259).
5
Isto é, a concepção tradicional de ajuda humanitária (SINGER, 1998, p. 270).
6
O relato completo dos diversos fatos pelos quais Singer passou nesses países se
encontra no capítulo “Sobre ter sido silenciado na Alemanha” (SINGER, 1998).
7
“Ladeira escorregadia” é uma tradução do termo inglês “slippery slope” e é um
conceito fundamental em questões de bioética (GONDIM, 2004, p. de internet).