sexta-feira, 25 de maio de 2012

FILME "DESMUNDO" - ANÁLISE CRÍTICA


Já que escrevi a Vossa Alteza a falta que nesta terra há de mulheres, com quem os homens casem e vivam em serviço de Nosso Senhor, apartados dos peccados, em que agora vivem, mande Vossa Alteza muitas orphãs, e si não houver muitas, venham de mistura dellas de quaesquer, porque são tão desejadas as mulheres brancas cá, que quaesquer farão cá muito bem à terra, e ellas se ganharão, e os homens de cá apartar-se-hão do pecado.” (Padre Manoel da Nóbrega)

Inspirado no romance de Ana Miranda de mesmo nome, Desmundo narra a história de uma jovem portuguesa, órfã, juntamente com outras, é enviada  para o Brasil colonial do século XVI, em 1555, com o objetivo de desposarem os colonos cristãos que habitavam a colônia.
 
Uma dessas jovens, Oribela, que narra a história ela e as demais órfãs são levadas para um lugar onde são oferecidas a seus pretendentes por uma intermediaria. A personagem principal, que se mostra muito religiosa, apresenta-se contrariada com a situação em que se encontra e, chegada a sua vez, quando em contato com aquele que a desposaria, ela se casa, a contragosto, com o português Francisco de Albuquerque. Insatisfeita, planeja todos os dias retornar para Portugal. Empreende várias fugas e envolve- se com Ximeno, um mouro que lhe dá abrigo em sua casa. Além dessa história, há, também, no romance, outras histórias de mulheres, com a de Dona Branca, sogra de Oribela, e a de dona Urraca, senhora judia que fora enviada ao Brasil para cuidar das demais órfãs.
 
Em 1552, o padre Manoel da Nóbrega solicita ao rei de Portugal que envie a América colonial portuguesa órfãs de boa cepa ou, na falta destas, quaisquer outras mulheres brancas, para que os homens casem e vivam em serviço de Nosso Senhor. No seu trabalho “Repensando a família patriarcal brasileira – notas para o estudo das formas de organização familiar no Brasil”, Mariza Corrêa demonstra essa falta de mulheres brancas, quando faz referência a miscigenação resultante do cruzamento entre brancos e índios, que em alguns lugares como São Paulo era significativa. Além disso, aos funcionários da Coroa portuguesa só excepcionalmente era permitido fazer-se acompanhar de suas famílias. Aponta também que essa falta não pode ser estendida a todo período colonial, nem a todas as regiões. O exemplo ainda de São Paulo é lembrado quando a autora diz que nessa região, em certas épocas, as mulheres livres mantiveram uma constante superioridade numérica sobre os homens livres. Vale destacar, no entanto, que o fato demonstrado pelo filme não se dava para qualquer homem, mas para aqueles que possuíam recursos.

Oribela, no entanto, desejosa que era de retornar a sua pátria, não consegue furtar-se ao matrimônio. Aparece-lhe um pretendente que a desposa e, quando seu marido, Francisco de Albuquerque, vai consumar o casamento através da união sexual esta lhe pede tolerância a fim de que se acostumasse com a presença do marido e, conseqüentemente, desenvolvesse uma relação de afeto.
 
O que se percebe é que essas personagens são marcadas por uma história do medo, tal como apontou Jean Delumeau em A história do medo no Ocidente. Nesse livro, o filósofo enumera medos que estariam presentes na sociedade ocidental: o medo que se teria das doenças, dos judeus, dos muçulmanos e, também, da mulher. Há muito tempo, a relação do homem com o chamado “segundo sexo” é ambígua e contraditória. Para Delumeau, as pinturas, por exemplo, desde a Idade da Pedra, são, em sua maioria, representações do feminino. No período romântico, a mulher foi, ainda, exaltada por pintores e escritores. Em vários grupos, notadamente patriarcais, como no Brasil colonial o medo que se tinha da mulher era presente, ainda que não registrado em formas artísticas.
 
Oribela, Dona Urraca, Dona Branca e Temericô são personagens que traduzem, de forma inequívoca, a condição da mulher no romance. Oribela, a narradora, é voluntariosa e insubmissa. Ela corporificaria uma faceta que Delumeau afirma ter sido um dos argumentos para o medo que se sentiria da mulher: a instabilidade. Pelo menos três opiniões são apresentadas em relação à Oribela: a sua própria, a do padre e a de seu pai. Ela se vê como uma ave de rapina, seu pai como uma galinha que quer voar e não pode e assim pelo padre:

Oh como és parva. Uma perdida! Decho que praga, tão bom homem ele parece ele e tu uma frouxa, rabugenta, pé-de-ferro, regateira baça, demoninhada, pardeus, forte birra é esta que tomas contigo, ora vai-te, eramá, como te amofinas, mexeriqueira e sonsa, que rosto de mau pesar para casarem contigo, tinhosa, que cheiras a raposa, rasto de burra, torta defumada. E d'arrancada deu com uma vara

No romance percebe-se que o medo tem várias facetas e o da mulher não é diferente. Em cada uma das personagens de Desmundo, nota-se uma delas: mistério, encantamento, feitiçaria, volúpia e instabilidade. Ao mesmo tempo, cada uma das personagens é descrita também com qualidades como força, sabedoria, bravura e sensibilidade, que reafirmam a ambiguidade do tratamento dispensado à mulher, seria vista assim como uma espécie de contradição viva, corporificação de paradoxo entre vida e morte, começo e fim, desde os tempos mais remotos, a identificação entre as mulheres e a feitiçaria é explícita, além de associá-las ao demônio, às doenças e a toda sorte de mal. Um exemplo dessa identificação pode ser visto na representação da mulher como tentação. Segundo a narradora, “Deus manda as tentações aos filhos que deseja provar, por os querer para si, os estar vendo diante de si, e a seus pés e lhes manda mulheres nuas para atentar”. (p. 40) Os homens, segundo esse trecho, seriam puros, expostos à provas de sua retidão, sendo as mulheres instrumentos de provação. Aproxima-se essa citação de uma reflexão de Delumeau, quando afirma serem as mulheres, nesse contexto, vistas paradoxalmente, como agentes de Satã, a serviço de Deus.

O filme também mostra a propriedade de Francisco de Albuquerque onde mora com a mãe e uma criança com problemas mentais. A mão de obra utilizada na fazenda consistia em índios capturados nas florestas. Estamos respirando o Antigo Regime nesse momento, e com aquele esquema de ordenação da sociedade, o trabalho braçal era mal visto, uma ocupação inferior. John Manuel Monteiro, na sua obra “Negros da terra, índios e bandeirantes nas origens de São Paulo” descreve-nos os assaltos que os colonos faziam a centenas de aldeias indígenas em várias regiões, trazendo milhares de índios de diversas sociedades para suas fazendas e sítios na condição de “serviços obrigatórios”. Chegou a formar-se um sistema de abastecimento de escravos indígenas, que foi inclusive estimulado pelas autoridades régias, em conluio com os colonos de São Vicente, Santos e Rio de Janeiro. O autor aponta que a principal função das expedições de apresamento residia na reprodução física da força de trabalho e não no abastecimento dos engenhos do litoral, embora alguns nativos tenham sido entregues aos senhores de engenho.

Um dos personagens do filme é um padre jesuíta que, num determinado momento, numa visita realizada à propriedade de Francisco de Albuquerque polemiza com este por conta da sua vontade manifesta de levar consigo alguns filhos de índios ainda crianças. Os jesuítas participaram, juntamente com os colonos, dos debates em torno da escravidão indígena. Ronald Raminelli em “Imagens da colonização – A representação do índio de Caminha a Vieira” mostra-nos que, por princípio, os religiosos defendiam a potencialidade dos índios para receber a conversão, ao contrário dos colonos que enfatizavam a inviabilidade da catequese e a adequação dos nativos para o trabalho escravo. John Manuel Monteiro, na sua obra já acima citada, diz que os jesuítas, contando com o apoio de poderosas forças nas colônias e nas metrópoles, conseguiram levar o problema das missões ao Governador do Brasil, ao rei Filipe IV e ao papa, de quem conseguiram a publicação de um breve em que se denunciavam as atividades dos preadores paulistas e paraguaios. A publicação deste não foi suficiente para coibir os paulistas, que voltam a atacar outras missões.

Temos também no filme um cristão-novo português no filme chamado Ximeno Dias, mercador que dentre outras atividades, participava do apresamento de índios. A América colonial portuguesa recebeu significativa quantidade de cristãos-novos.

Oribela faz uma tentativa de fuga após ser estuprada pelo seu marido, cuja tolerância com a espera que esta lhe solicitara foi perdida. Sai pelo mato Oribela e orientando-se sabe lá como, eis que topa com o mar, um prodígio para uma jovem que não conhecia direito a região! Lá aborda alguns homens que estavam na praia, pedindo-lhes que a levem de volta para Portugal. Seu marido nota-lhe a ausência e sai a sua procura, encontrando-a em situação de perigo, já que estava prestes a ser estuprada pelos homens, que são mortos por Francisco de Albuquerque.

 Levada de volta à propriedade de seu esposo, fica acorrentada recebendo cuidados de uma índia que busca, inutilmente, comunicar-se com ela, por conta da barreira lingüística. Lembramos o trabalho de Tzevetan Todorov, “A conquista da América – a questão do outro”, onde, a respeito dessas dificuldades na comunicação, diz que aos gritos dos espanhóis que desembarcavam na península, os maias teriam respondido: “Ma c´ubah than, não compreendemos as suas palavras”. Os espanhóis entendem Yucatán, e decidem que é o nome da província.

Aos poucos, Oribela consegue reaver a confiança de seu marido, começa a perceber e se relacionar com seus parentes. O filme insinua uma relação incestuosa entre mãe e filho em alguns diálogos, e a presença da menina excepcional somada a falta de referências a respeito de seu pai são indicativos de que ela fosse filha de Francisco de Albuquerque. Suspeita que se afirma também no distanciamento que procura manter da cidade, passando boa parte do tempo em sua propriedade.

Em “Trópicos dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil colonial” Ronaldo Vainfas nos diz que a Inquisição seria recriada na Itália em 1542, pouco antes do início do Concílio de Trento, assumindo os mesmos objetivos da Contra-Reforma, quais sejam, conter o avanço do Protestantismo na Península, combater os saberes eruditos que extrapolavam os preceitos do Catolicismo e perseguir as manifestações da cultura e religiosidade populares irredutíveis aos dogmas da Igreja. Em Portugal, o Santo Ofício se organizou como tribunal eclesiástico diretamente subordinado à Monarquia. Possuía também uma conhecida obsessão anti-semita. A sistemática perseguição dos chamados cristãos-novos – judeus convertidos ao Cristianismo e suspeitos de “judaizar” em segredo – respondeu pela grande maioria dos réus processados e executados entre o último quartel do século XV e a segunda metade do XVIII.

Em certos casos, o Santo Ofício transformava atos sexuais ou moralidades cotidianas em matéria heretical, presumindo haver desvio de fé onde só existiam desejo, valores morais ou comportamentos sociais não condizentes com as regras éticas do Catolicismo.

Diante da aproximação do cristão-novo Ximeno Dias à propriedade de Francisco de Albuquerque, Oribela começa a demonstrar interesse por ele, no que se mostra correspondida. Oribela procura fazer com que Ximeno consiga-lhe colocar num navio de volta à Portugal. Ela foge da propriedade de Francisco e mantém-se escondida no estabelecimento do cristão-novo por algum tempo. Diante da suspeita que o marido manifesta da participação de Ximeno na acolhida de sua esposa vai ao encontro deles que fogem, mas são alcançados pelo marido na praia, protagonizando uma cena de desafio em armas, no qual o marido de Oribela leva a melhor, retornando com sua esposa.

Na passagem de tempo do filme, Oribela está dando a luz a uma criança e, após isso, realizando os preparativos de uma mudança. Assim termina o filme!

Dos aspectos que nos chamaram a atenção negativamente não foram tantos, mas houveram. Apontamos a relativa autonomia de Oribela, demonstrada no filme pelo pedido de paciência ao marido para a primeira relação sexual e também a complacência deste no que respeita às duas tentativas de fuga. Algo que não ficou muito claro no filme foi a presença de autoridades naquela região. Ela é sugerida na cena da escolha das jovens pelos pretendentes, mas de forma muito obscura. Pontuamos também a facilidade de orientação espacial de Oribela, sua capacidade de, a despeito de não conhecer o lugar, orientar-se por ele tão bem a ponto de, na primeira fuga, conseguiu atingir o mar, com direito à esperança de um navio e tudo! Evidentemente forçamos a mão nas críticas, já que o historiador ou o estudante de História é aquele “chato” que fica encontrando senões em tudo que analisa. Sabemos tratarem-se das famosas “licenças poéticas” que os autores se permitem, a fim de tornarem a história mais apresentável, suave talvez.
 
Se gostamos de criticar, elogiar merecidamente também apreciamos. A novidade de assistir um filme nacional legendado foi interessante. O português usado, arcaico, traria dificuldades para o grande público, já que este não era um filme que se pretendia só para historiadores. Este conhece as dificuldades com os documentos redigidos dessa forma. Falado, o português arcaico ajudou a criar a atmosfera do filme, o ambiente onde os personagens se movimentavam. Ajudou-nos a “mergulhar” um pouco, melhor, ajudou-nos o esforço de imaginação histórico para aquela época, já que a reconstituição perfeita de épocas passadas, como é sabido por nós, não é realizável.

É um filme que não é facilmente encontrado em locadoras, talvez porque muitos não o considerem atrativo, já que ele pede do espectador informações, conhecimentos históricos em algumas referências que fazem os personagens em seus diálogos. Teorizamos a partir de agora. Quem sabe isso não possa ser uma ponta do “iceberg” que poderíamos chamar de “indiferença pelas memórias de um povo”? Vivemos, no entanto, e isso nos favorece, numa época onde o gosto pela história está ganhando terreno. A procura pelo curso nas Universidades aumentou, publicações mensais de revistas sobre o assunto, com boa aceitação pelo mercado, devem estimular-nos os esforços. Devem essas ferramentas, como o filme Desmundo, serem utilizadas na prática do ensino.

Um comentário:

  1. Ótima postagem, pretendo conferir o filme e as indicações de leitura.

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