“Já que
escrevi a Vossa Alteza a falta que nesta terra há de mulheres, com quem os
homens casem e vivam em serviço de Nosso Senhor, apartados dos peccados, em que
agora vivem, mande Vossa Alteza muitas orphãs, e si não houver muitas, venham
de mistura dellas de quaesquer, porque são tão desejadas as mulheres brancas
cá, que quaesquer farão cá muito bem à terra, e ellas se ganharão, e os homens
de cá apartar-se-hão do pecado.” (Padre Manoel
da Nóbrega)
Inspirado
no romance de Ana Miranda de mesmo nome, Desmundo narra a história de uma jovem
portuguesa, órfã, juntamente com outras, é enviada para o Brasil colonial do século XVI, em 1555,
com o objetivo de desposarem os colonos cristãos que habitavam a colônia.
Uma
dessas jovens, Oribela, que narra a história ela e as demais órfãs são levadas
para um lugar onde são oferecidas a seus pretendentes por uma intermediaria. A
personagem principal, que se mostra muito religiosa, apresenta-se contrariada
com a situação em que se encontra e, chegada a sua vez, quando em contato com
aquele que a desposaria, ela se casa, a contragosto, com o português Francisco
de Albuquerque. Insatisfeita, planeja todos os dias retornar para Portugal.
Empreende várias fugas e envolve- se com Ximeno, um mouro que lhe dá abrigo em
sua casa. Além dessa história, há, também, no romance, outras histórias de mulheres,
com a de Dona Branca, sogra de Oribela, e a de dona Urraca, senhora judia que
fora enviada ao Brasil para cuidar das demais órfãs.
Em
1552, o padre Manoel da Nóbrega solicita ao rei de Portugal que envie a América
colonial portuguesa órfãs de boa cepa ou, na falta destas, quaisquer outras
mulheres brancas, para que os homens casem e vivam em serviço de Nosso Senhor.
No seu trabalho “Repensando a família patriarcal brasileira – notas para o
estudo das formas de organização familiar no Brasil”, Mariza Corrêa demonstra
essa falta de mulheres brancas, quando faz referência a miscigenação resultante
do cruzamento entre brancos e índios, que em alguns lugares como São Paulo era
significativa. Além disso, aos funcionários da Coroa portuguesa só
excepcionalmente era permitido fazer-se acompanhar de suas famílias. Aponta
também que essa falta não pode ser estendida a todo período colonial, nem a
todas as regiões. O exemplo ainda de São Paulo é lembrado quando a autora diz
que nessa região, em certas épocas, as mulheres livres mantiveram uma constante
superioridade numérica sobre os homens livres. Vale destacar, no entanto, que o
fato demonstrado pelo filme não se dava para qualquer homem, mas para aqueles
que possuíam recursos.
Oribela,
no entanto, desejosa que era de retornar a sua pátria, não consegue furtar-se
ao matrimônio. Aparece-lhe um pretendente que a desposa e, quando seu marido,
Francisco de Albuquerque, vai consumar o casamento através da união sexual esta
lhe pede tolerância a fim de que se acostumasse com a presença do marido e,
conseqüentemente, desenvolvesse uma relação de afeto.
O que se percebe é que
essas personagens são marcadas por uma história do medo, tal como apontou Jean
Delumeau em A história do medo no Ocidente. Nesse livro, o filósofo
enumera medos que estariam presentes na sociedade ocidental: o medo que se
teria das doenças, dos judeus, dos muçulmanos e, também, da mulher. Há muito
tempo, a relação do homem com o chamado “segundo sexo” é ambígua e
contraditória. Para Delumeau, as pinturas, por exemplo, desde a Idade da Pedra,
são, em sua maioria, representações do feminino. No período romântico, a mulher
foi, ainda, exaltada por pintores e escritores. Em vários grupos, notadamente
patriarcais, como no Brasil colonial o medo que se tinha da mulher era
presente, ainda que não registrado em formas artísticas.
Oribela, Dona Urraca, Dona Branca e Temericô são personagens que
traduzem, de forma inequívoca, a condição da mulher no romance. Oribela, a
narradora, é voluntariosa e insubmissa. Ela corporificaria uma faceta que
Delumeau afirma ter sido um dos argumentos para o medo que se sentiria da
mulher: a instabilidade. Pelo menos três opiniões são apresentadas em relação à
Oribela: a sua própria, a do padre e a de seu pai. Ela se vê como uma ave de
rapina, seu pai como uma galinha que quer voar e não pode e assim pelo padre:
Oh como és parva. Uma
perdida! Decho que praga, tão bom homem ele parece ele e tu uma frouxa,
rabugenta, pé-de-ferro, regateira baça, demoninhada, pardeus, forte birra é esta
que tomas contigo, ora vai-te, eramá, como te amofinas, mexeriqueira e sonsa,
que rosto de mau pesar para casarem contigo, tinhosa, que cheiras a raposa,
rasto de burra, torta defumada. E d'arrancada deu com uma vara
No romance percebe-se que o medo tem
várias facetas e o da mulher não é diferente. Em cada uma das personagens de Desmundo,
nota-se uma delas: mistério, encantamento, feitiçaria, volúpia e instabilidade.
Ao mesmo tempo, cada uma das personagens é descrita também com qualidades como
força, sabedoria, bravura e sensibilidade, que reafirmam a ambiguidade do
tratamento dispensado à mulher, seria vista assim como uma espécie de
contradição viva, corporificação de paradoxo entre vida e morte, começo e fim,
desde os tempos mais remotos, a identificação entre as mulheres e a feitiçaria
é explícita, além de associá-las ao demônio, às doenças e a toda sorte de mal.
Um exemplo dessa identificação pode ser visto na representação da mulher como
tentação. Segundo a narradora, “Deus manda as tentações aos filhos que deseja
provar, por os querer para si, os estar vendo diante de si, e a seus pés e lhes
manda mulheres nuas para atentar”. (p. 40) Os homens, segundo esse trecho,
seriam puros, expostos à provas de sua retidão, sendo as mulheres instrumentos
de provação. Aproxima-se essa citação de uma reflexão de Delumeau, quando
afirma serem as mulheres, nesse contexto, vistas paradoxalmente, como agentes
de Satã, a serviço de Deus.
O
filme também mostra a propriedade de Francisco de Albuquerque onde mora com a
mãe e uma criança com problemas mentais. A mão de obra utilizada na fazenda
consistia em índios capturados nas florestas. Estamos respirando o Antigo
Regime nesse momento, e com aquele esquema de ordenação da sociedade, o
trabalho braçal era mal visto, uma ocupação inferior. John Manuel Monteiro, na
sua obra “Negros da terra, índios e bandeirantes nas origens de São Paulo”
descreve-nos os assaltos que os colonos faziam a centenas de aldeias indígenas
em várias regiões, trazendo milhares de índios de diversas sociedades para suas
fazendas e sítios na condição de “serviços obrigatórios”. Chegou a formar-se um
sistema de abastecimento de escravos indígenas, que foi inclusive estimulado
pelas autoridades régias, em conluio com os colonos de São Vicente, Santos e
Rio de Janeiro. O autor aponta que a principal função das expedições de
apresamento residia na reprodução física da força de trabalho e não no
abastecimento dos engenhos do litoral, embora alguns nativos tenham sido
entregues aos senhores de engenho.
Um
dos personagens do filme é um padre jesuíta que, num determinado momento, numa
visita realizada à propriedade de Francisco de Albuquerque polemiza com este
por conta da sua vontade manifesta de levar consigo alguns filhos de índios
ainda crianças. Os jesuítas participaram, juntamente com os colonos, dos
debates em torno da escravidão indígena. Ronald Raminelli em “Imagens da
colonização – A representação do índio de Caminha a Vieira” mostra-nos que, por
princípio, os religiosos defendiam a potencialidade dos índios para receber a conversão,
ao contrário dos colonos que enfatizavam a inviabilidade da catequese e a
adequação dos nativos para o trabalho escravo. John Manuel Monteiro, na sua
obra já acima citada, diz que os jesuítas, contando com o apoio de poderosas
forças nas colônias e nas metrópoles, conseguiram levar o problema das missões
ao Governador do Brasil, ao rei Filipe IV e ao papa, de quem conseguiram a
publicação de um breve em que se denunciavam as atividades dos preadores
paulistas e paraguaios. A publicação deste não foi suficiente para coibir os
paulistas, que voltam a atacar outras missões.
Temos
também no filme um cristão-novo português no filme chamado Ximeno Dias,
mercador que dentre outras atividades, participava do apresamento de índios. A
América colonial portuguesa recebeu significativa quantidade de cristãos-novos.
Oribela
faz uma tentativa de fuga após ser estuprada pelo seu marido, cuja tolerância
com a espera que esta lhe solicitara foi perdida. Sai pelo mato Oribela e
orientando-se sabe lá como, eis que topa com o mar, um prodígio para uma jovem
que não conhecia direito a região! Lá aborda alguns homens que estavam na
praia, pedindo-lhes que a levem de volta para Portugal. Seu marido nota-lhe a
ausência e sai a sua procura, encontrando-a em situação de perigo, já que
estava prestes a ser estuprada pelos homens, que são mortos por Francisco de
Albuquerque.
Levada
de volta à propriedade de seu esposo, fica acorrentada recebendo cuidados de
uma índia que busca, inutilmente, comunicar-se com ela, por conta da barreira
lingüística. Lembramos o trabalho de Tzevetan Todorov, “A conquista da América
– a questão do outro”, onde, a respeito dessas dificuldades na comunicação, diz
que aos gritos dos espanhóis que desembarcavam na península, os maias teriam
respondido: “Ma c´ubah than, não compreendemos as suas palavras”. Os espanhóis
entendem Yucatán, e decidem que é o nome da província.
Aos
poucos, Oribela consegue reaver a confiança de seu marido, começa a perceber e
se relacionar com seus parentes. O filme insinua uma relação incestuosa entre
mãe e filho em alguns diálogos, e a presença da menina excepcional somada a
falta de referências a respeito de seu pai são indicativos de que ela fosse
filha de Francisco de Albuquerque. Suspeita que se afirma também no distanciamento
que procura manter da cidade, passando boa parte do tempo em sua propriedade.
Em
“Trópicos dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil colonial”
Ronaldo Vainfas nos diz que a Inquisição seria recriada na Itália em 1542,
pouco antes do início do Concílio de Trento, assumindo os mesmos objetivos da
Contra-Reforma, quais sejam, conter o avanço do Protestantismo na Península,
combater os saberes eruditos que extrapolavam os preceitos do Catolicismo e
perseguir as manifestações da cultura e religiosidade populares irredutíveis
aos dogmas da Igreja. Em Portugal, o Santo Ofício se organizou como tribunal
eclesiástico diretamente subordinado à Monarquia. Possuía também uma conhecida
obsessão anti-semita. A sistemática perseguição dos chamados cristãos-novos –
judeus convertidos ao Cristianismo e suspeitos de “judaizar” em segredo –
respondeu pela grande maioria dos réus processados e executados entre o último
quartel do século XV e a segunda metade do XVIII.
Em
certos casos, o Santo Ofício transformava atos sexuais ou moralidades
cotidianas em matéria heretical, presumindo haver desvio de fé onde só existiam
desejo, valores morais ou comportamentos sociais não condizentes com as regras
éticas do Catolicismo.
Diante
da aproximação do cristão-novo Ximeno Dias à propriedade de Francisco de
Albuquerque, Oribela começa a demonstrar interesse por ele, no que se mostra
correspondida. Oribela procura fazer com que Ximeno consiga-lhe colocar num
navio de volta à Portugal. Ela foge da propriedade de Francisco e mantém-se
escondida no estabelecimento do cristão-novo por algum tempo. Diante da
suspeita que o marido manifesta da participação de Ximeno na acolhida de sua
esposa vai ao encontro deles que fogem, mas são alcançados pelo marido na
praia, protagonizando uma cena de desafio em armas, no qual o marido de Oribela
leva a melhor, retornando com sua esposa.
Na
passagem de tempo do filme, Oribela está dando a luz a uma criança e, após
isso, realizando os preparativos de uma mudança. Assim termina o filme!
Dos
aspectos que nos chamaram a atenção negativamente não foram tantos, mas
houveram. Apontamos a relativa autonomia de Oribela, demonstrada no filme pelo
pedido de paciência ao marido para a primeira relação sexual e também a
complacência deste no que respeita às duas tentativas de fuga. Algo que não
ficou muito claro no filme foi a presença de autoridades naquela região. Ela é
sugerida na cena da escolha das jovens pelos pretendentes, mas de forma muito
obscura. Pontuamos também a facilidade de orientação espacial de Oribela, sua
capacidade de, a despeito de não conhecer o lugar, orientar-se por ele tão bem
a ponto de, na primeira fuga, conseguiu atingir o mar, com direito à esperança
de um navio e tudo! Evidentemente forçamos a mão nas críticas, já que o
historiador ou o estudante de História é aquele “chato” que fica encontrando
senões em tudo que analisa. Sabemos tratarem-se das famosas “licenças poéticas”
que os autores se permitem, a fim de tornarem a história mais apresentável,
suave talvez.
Se
gostamos de criticar, elogiar merecidamente também apreciamos. A novidade de
assistir um filme nacional legendado foi interessante. O português usado,
arcaico, traria dificuldades para o grande público, já que este não era um
filme que se pretendia só para historiadores. Este conhece as dificuldades com
os documentos redigidos dessa forma. Falado, o português arcaico ajudou a criar
a atmosfera do filme, o ambiente onde os personagens se movimentavam.
Ajudou-nos a “mergulhar” um pouco, melhor, ajudou-nos o esforço de imaginação
histórico para aquela época, já que a reconstituição perfeita de épocas
passadas, como é sabido por nós, não é realizável.
É um
filme que não é facilmente encontrado em locadoras, talvez porque muitos não o
considerem atrativo, já que ele pede do espectador informações, conhecimentos
históricos em algumas referências que fazem os personagens em seus diálogos.
Teorizamos a partir de agora. Quem sabe isso não possa ser uma ponta do
“iceberg” que poderíamos chamar de “indiferença pelas memórias de um povo”?
Vivemos, no entanto, e isso nos favorece, numa época onde o gosto pela história
está ganhando terreno. A procura pelo curso nas Universidades aumentou,
publicações mensais de revistas sobre o assunto, com boa aceitação pelo
mercado, devem estimular-nos os esforços. Devem essas ferramentas, como o filme
Desmundo, serem utilizadas na prática do ensino.