terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Uma Análise da Obra “1984” de George Orwell a partir de Elementos da Teoria Hobbesiana

A onda de pânico gerada pelos atentados terroristas, a busca cada vez maior pela segurança, e a mercantilização e valorização exponencial de informações sobre as pessoas culminaram em diversos mecanismos de vigilância e controle sobre a sociedade civil.
Além das questões advindas do desrespeito à intimidade e à vida privada, tais tecnologias anunciam um perigoso caminho já anunciado por diversos autores. O romance “1984” de George Orwell nos ajuda a visualizar, de forma potencializada para uns, e realista para outros, uma sociedade dominada por um governo totalitário, onde todos os atos são observados e controlados com o objetivo de perpetuação do poder, de formação de um rizoma sem pontos de fuga.

Conforme observa Zygmunt Bauman, na época em que foi escrito, a distopia criada por Orwell era o mais completo inventário de todos os pesadelos de uma época em que a modernidade totalizante sufocava as idiossincrasias.

As leituras possíveis desta obra são inúmeras, mas busco por meio deste artigo uma pequena contribuição no sentido de identificar e analisar a obra de Orwell a partir de pressupostos da teoria hobbesiana. É possível abordarmos a questão a partir da teoria da linguagem, da crise da chamada “modernidade sólida”, denunciada principalmente pela Escola de Frankfurt, enfim, são amplos os meios de análise do tema.

A indústria do medo, tão inexorável atualmente, pode servir para alimentar governos absolutistas, culminando num retrocesso onde o poder estatal não reconhece limites para o próprio poder. No presente artigo busco uma leitura específica, identificando a presença do medo na obra de Orwell a partir de conceitos de Thomas Hobbes, observando que para o filósofo inglês, o medo é uma das paixões que conduzem os homens na busca pela paz. Com isso, a recorrente referência ao termo Big Brother, comum nestes tempos de vigilância absoluta[1], em certa medida nos remeteria ao Estado Absoluto, cujas teorias de Hobbes possuem valor paradigmático.

O medo como instrumento de um governo absolutista

É possível visualizarmos alguns elementos da teoria de Hobbes na ficção criada por Orwell. Ainda, podemos também fazer uma leitura desta ficção literária a partir da ótica de que o Estado hobbesiano seria análogo ao Estado criado por Orwell.

O absolutismo do Estado hobbesiano pressupõe a total renúncia dos direitos dos indivíduos em favor do soberano, é um pressuposto para a criação do Estado. O poder público deve tutelar todas as decisões individuais, posto que, se houver liberdade, haverá também direito, e com ele surgirá a possibilidade ou faculdade individual de agir para manter a própria sobrevivência.

Destarte, haveria um retrocesso ao que Hobbes chamou de Estado de natureza do homem, e, como para ele o homem nestas condições tem a tendência à maldade, não seria possível o surgimento de uma sociedade nestas condições.

Abrir mão da liberdade seria a contraprestação para se atingir o estado de harmonia e garantir a própria sobrevivência, o que conseqüentemente afetaria também o pleno desenvolvimento da individualidade. A questão é que o objetivo final desta restrição que os homens introduziram para si mesmos é o desejo de não retornar à condição de guerra de todos contra todos, conseqüência necessária das paixões naturais dos homens quando não existe qualquer poder capaz de os manter em respeito, agindo ou forçando-os por meio do medo do castigo, ao cumprimento dos pactos e o respeito às leis (HOBBES, 1998).

Assim, no Estado totalitário criado por Orwell, este poder visível de uma entidade invisível, mantém uma determinada ordem sob um forte controle social, onde por meio da vigilância absoluta a individualidade é combatida constantemente, e o medo atua como elemento eficaz, fazendo com que os homens cumpram as leis e respeitem os mandamentos do soberano. O Grande Irmão (Big Brother), é uma entidade que se faz onipresente através das chamadas “teletelas”, vigiando as pessoas a todo momento.

Por trás de Winston a voz da teletela tagarelava a respeito do ferro gusa e da superação do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Qualquer barulho que Winston fizesse, mais alto que um cochicho, seria captado pelo aparelho; além do mais, enquanto permanecesse no campo de visão da placa metálica, poderia ser visto também. (ORWELL, 1996: 8)

É evidente também que os meios de se combater a individualidade utilizados pelo Grande Irmão são de certa forma potencializados e extremados. Entretanto, é oportuna a observação de que (assim como na teoria de Hobbes) estes meios ainda mantêm o fito primeiro de impedir que os indivíduos participem das decisões do governo e por conseqüência possam colocar em risco a manutenção de um Estado.

Os meios utilizados pelo Grande Irmão para extinguir a individualidade não se resumem à “teletela”. Na teoria de Hobbes o medo possui papel fundamental, posto que, ele baseia o funcionamento do sistema. A metáfora bíblica do monstro Leviatã também fortalece tal importância na medida em que encarna o medo dos homens em paralelismo ao medo construído pelo Leviatã de Thomas Hobbes.

O poder eclesiástico na ótica de Thomas Hobbes também exerce uma certa repressão espiritual, pois, segundo ele, este seria o meio mais persuasivo de fazer com que as pessoas obedeçam as leis.

Se pensamos em um dos grandes princípios de funcionamento da república segundo Hobbes, a saber, a obediência, compreendemos facilmente que o autor do Leviatã tenha se sentido à vontade ao introduzir a religião e sua hierarquia em sua montagem política. Com efeito, onde já reina a obediência pelo medo de Deus e pelo respeito aos princípios da fé, a edificação de uma república que tende ao respeito destes mesmos valores retomados por conta da paz civil é sem dúvida facilitada. Os meios são os mesmos: obediência, medo e fé. Somente diferem aqueles que o inspiram: Deus ou o Soberano. (ANGOULVENT, 1996: 35)

O medo da morte também é visto por Hobbes como uma das paixões que levam o homem em busca da paz. As outras paixões são: o desejo das coisas necessárias a uma vida agradável e a esperança de obtê-las por meio de seus esforços.

Ainda a respeito do medo da morte, Hobbes o considera também como motor da razão humana. Este sentimento faz com que o homem busque de forma institucional, o meio mais eficaz de assegurar a sua sobrevivência, neutralizando os seus próprios inimigos e não obviamente a morte.

Em “1984”, o medo também possui um papel fundamental como meio de persuadir os indivíduos a obedecerem as leis do Grande Irmão. Os enforcamentos perante a multidão, além de terem uma conotação de propaganda política do Estado que protege seus “cidadãos”, possuem também o objetivo de coagir os indivíduos a obedecerem as leis sob pena de morte.

Assim, mesmo que os indivíduos da ficção possuam resquícios de uma racionalidade após a formação deste estado radicalmente totalitário e controlador, eles tenderiam a buscar a sua sobrevivência neutralizando o inimigo, obedecendo as leis.

Na ficção literária de Orwell, paralelamente ao observado por Hobbes, o medo ainda serve como instrumento de busca da “paz” na medida em que a coletividade teme um inimigo em comum e o Grande Irmão os mantém livre dele.

Num momento de lucidez, Winston percebeu que ele também estava gritando com os outros e batendo os calcanhares violentamente contra a travessa da cadeira. O horrível dos Dois Minutos de Ódio era que embora ninguém fosse obrigado a participar, era impossível deixar de se reunir aos outros. Em trinta segundos deixava de ser preciso fingir. Parecia percorrer todo o grupo, como uma corrente elétrica, um horrível êxtase de medo e vindita, um desejo de matar, de torturar, de amassar rostos com um malho, transformando o indivíduo, contra a sua vontade, num lunático a uivar e fazer caretas. (ORWELL, 1996: 18)

Conforme citado anteriormente, a obediência pelo medo de Deus facilita a edificação de uma República na teoria hobbesiana, a única variável é quem inspira tal sentimento, Deus ou o Soberano. O Grande Irmão da ficção inspira o medo como forma de manutenção do seu poder, entretanto, de forma muito mais potencializada, consegue que o indivíduo renuncie a qualquer sentimento na busca pela sua preservação.

Tal observação é evidenciada principalmente ao final do romance, quando na sala de torturas, o protagonista é submetido a uma espécie de inferno personalizado, onde as torturas são realizadas de acordo com a fobia de cada um.

De todas as paixões, Hobbes considera o medo como a mais eficaz de fazer os homens obedecerem as leis, mais ainda, o medo do sofrimento corporal. Assim é que Winston Smith (protagonista do romance), é coagido a respeitar todas as leis da sociedade,

– Apertei a primeira alavanca – disse O’Brian. – Compreendes a construção desta gaiola. A máscara adapta-se à tua cabeça, sem deixar saída. Quando eu apertar esta outra alavanca, a porta da gaiola correrá. Os monstros famintos saltarão por ela como balas. Já viste um rato pular no ar? Pularão sobre teu rosto e começarão a devorá-lo. Ás vezes atacam primeiro os olhos. Às vezes abrem caminho pelas bochechas e devoram a língua. A gaiola estava mais próxima; cada vez mais. Winston ouviu uma série de guinchos agudos que pareciam vir de cima, de sobre a sua cabeça. Mas lutou furiosamente contra o pânico (ORWELL, 1996: 266).

Por intermédio do medo, o Partido consegue manipular até mesmo o pensamento do protagonista. O castigo corporal ou a ameaça de um sofrimento ainda maior possibilita que o Grande Irmão molde o pensamento dos indivíduos de acordo com a sua conveniência. Para Hobbes, o medo de uma carnificina recíproca faz com que o homem se submeta ao domínio de outro.

É oportuno observarmos também a visão de Hobbes sobre a pena, que ele conceitua como “um dano infligido pela autoridade pública, a quem fez ou omitiu o que pela mesma autoridade é considerado transgressão da lei, a fim de que assim a vontade dos homens fique mais disposta à obediência”. (HOBBES, 1999: 235)

Assim, podemos verificar que a pena no conceito hobbesiano possui dupla função, uma pedagógica e outra moral, e, trata-se de um caminho para o bem e não uma simples sanção do mal.

A função da pena está presente na ficção literária como forma de moralizar a sociedade a partir dos padrões que o “Partido” considera correto. Como função pedagógica, a pena aplicada ao personagem o torna obediente a ponto de amenizar a sua crítica ao sistema e acreditar que o correto é duplipensar.

Qualquer forma autônoma de pensamento, a diversidade de idéias e a tomada de decisões livre de qualquer espécie de coação tornam-se praticamente insustentáveis diante da presença do medo e de todos os aparatos símbolos do novo vouyerismo global. Como afirma Bauman, “não é mau definir épocas históricas pelo tipo de demônios íntimos que as assombram e atormentam” (BAUMAN, 2001: 35), além disso, o romance de Orwell pode ser utilizado como forma de evitarmos os abusos tanto da tecnologia como da chamada indústria do medo, fazendo com que a ficção não seja o prenúncio de uma radical sociedade do controle.

Nenhum comentário:

Postar um comentário