domingo, 15 de janeiro de 2012

DAS CAUSAS DA QUEDA DO FEUDALISMO E DOS LIMITES DA CORTE

A Idade Moderna: problemas e abordagens

A passagem para a época moderna se faz tanto por uma crescente urbanização, como por uma mudança nos papéis sociais, o que desencadeou uma transformação no entendimento da época, então chamada Absolutista. Cabe esclarecer, com Perry Anderson (1985) que “...a descrições do absolutismo por Marx e Engels como um sistema de Estado correspondente a um equilíbrio entre a burguesia e a nobreza – mesmo a uma dominação direta do capital -, sempre pareceram plausíves. No entanto, um estudo mais detido das estruturas do Estado absolutista no Ocidente invalida inevitavelmente tais juízos. Pois o fim da servidão não significou aí o desaparecimento das relações feudais no campo” (ANDERSON: 1985, p. 17).
A evolução do capitalismo, como a entende Maurice Dobb, se deu por uma nova forma de encarar a sociedade, “Tal espírito é uma síntese do espírito de empresa, empreendimento ou aventuzra com o espírito burguês de cálculo e racionalidade” (DOBB:1977,16p.). O que mudou, sobretudo, foram as maneiras de se encarar e sistematizar estas estruturas. Diferente da perspectiva de Dobb e seus coetâneos, Philipe Ariès, Yves Castan, François Lebrun e Roger Chartier – responsáveis pelo volume da História da Vida Privada que versa sobre o período em questão -, indicam uma mudança que tangenciou de forma singular a esfera privada da sociedade ocidental: “... os limites móveis da esfera do privado - quer abranja quase a totalidade da vida social, quer, ao contrário, se restrinja ao foro íntimo, doméstico e familiar – dependem antes de tudo da maneira como se constitui, em doutrina e em poder, a autoridade pública e, em primeira instância, aquela reivindicada e exercida pelo Estado Moderno – nem sempre absolutista, mas em toda a parte administrativo e burocrático – que se revela condição necessária para se poder definir, pensar como tal ou apenas vivenciar de fato um privado doravante distinto de um público claramente identificável”(ARIÈS: 1991, 22p.).

A Idade Moderna e seus coetâneos solicitaram uma nova simbologia social que conferisse subsídios às diferentes combinações pelas quais a sociedade se configurava. Mudanças de foro íntimo aliadas a novos empreendimentos econômicos, que delineariam um outro sentido à concepção de Estado, Religião, Cultura e Sociedade, acabaram por desenvolver o cerne da idéia de cidadania. Esta cidadania, como nos coloca João Carlos B. Torres, iniciaria o processo de renascimento de uma “cultura romana”, pois, legislaria a seu favor. Ora, como aplicar uma lei urbana, para uma cidade que não têm seu fim em si mesma? Foi-se delineando uma abstração capitalista que formaria a prática absolutista, neste sentido, os “reis filósofos” tornaram o poder algo racionalizável e não somente sacralizado, a nova perspectiva desencadearia atitudes no sentido de organizar, para legitimar – cientificamente/ racionalmente, a forma da vigência social fazendo do Estado uma viga mestra de compreensão do âmbito público e de sua representatividade perante uma então substancial opinião pública, conforme aponta Jürgen Habermas (1984). Temos, desta maneira, uma nova apreensão das ciências humanas, da arte, enfim, do mundo. Analisar a dimensão e a autenticidade das mudanças propostas entre meados do século XV até o século XVII consistiu na proposta dos autores ora estudados.

Inicialmente é preciso dizer que para Maurice Dobb “Mesmo quem crê no relativismo histórico tem que acreditar que existe um quadro correto, do ponto de vista de qualquer conjunto homogêneo de observações históricas” (DOBB: 1997, p.13). Assim existe “verdade” na história e ela é passível de ser constatada assim como o capitalismo, entre as visões de Cromwell, Weber, Bücher e Hamilton; para Dobb, apoiando-se na leitura que este último fez de Marx, a essência do capitalismo reside no modo de produção. Para o historiador inglês, que escreveu este trabalho em meados de 1960, ao captar a essência de uma época é possívelcompreendê-la em sua razão, seu funcionamento.

Neste sentido, o modo de produção capitalista não substituiu o modo de produção feudal, mas avançou em relação às lacunas deixada por aquele. “O antigo modo de produção não será forçosamente eliminado de todo, mas logo se reduzirá em escala até não ser mais um competidor sério do novo.” (DOBB: 1997, p.26). O que efetiva esta sobreposição é o fato de que, como aponta Engels, um excedente do produto de trabalho –acima dos custos de sua manutenção – viabilizaria esta remodelação que teve como características principais:

“A sociedade moderna, por contraste, se caracteriza por uma relação entre o trabalhador e o capitalista, que toma uma forma puramente contratual e se mostra indistinguível, em aparência, de qualquer das outras transações múltiplas de mercado livre de uma sociedade de trocas. As transformações da forma medieval de exploração do trabalho excedente para a moderna não foi um processo simples que possa ser apresentado como uma tabela genealógica de descendência direta, mas ainda assim entre os redemoinhos desse movimento a vista pode distinguir certas linhas de direção do fluxo”(DOBB: 1997, p.29).

Este fluxo pode ser visto de dois ângulos, no século XVII pelos movimentos empreendidos por Cromwell na Inglaterra e pelas mudanças na França, e, nos séculos seguintes, por meio da Revolução Industrial. Cujos acentos devem-se a Eduardo III e Elizabete; e sua justificativa ao crescimento do poder estatal em detrimento de uma opinião pública, culminando no laissez faire francês.

O declínio do sistema feudal de produção foi o que deu vazão para o modo de produção capitalista e nos segundo e terceiro capítulos de sua obra, Dobb tratou destas questões. A respeito da queda do feudalismo apontava um excedente populacional que à partir do século XVI não foi absorvido pela produção, cada vez mais acrescida de imposições feudais que descontentavam seus envolvidos. A pouca tecnologia empregada pelos feudais e a liberdade própria ao comércio, propiciando uma maior organização e disciplina, impulsionariam o lucro comercial e daria maior visibilidade a este setor. “...a insuficiência do feudalismo como sistema de produção, configurada às necessidades crescentes da classe dominante quanto à renda, o que se responsabilizou primariamente por seu declínio; essa necessidade de renda adicional promoveu um aumento da pressão sobre o produtor a um ponto onde se tornou literalmente insuportável.” (DOBB: 1997, p.60).

O que fez com que grande parte da população emigrasse para as cidades medievais, reconstruindo-as como “órgãos corporativos”, no sentido de uma independência econômica e política das mesmas. Para Dobb, “Na verdade, a medida em que os estabelecimentos feudais, especialmente a Igreja, se interessavam pelo comércio e eles próprios organizavam o artesanato em ampla escala (...) ” (DOBB: 1997, p. 105). Esforçando-se para controlar os regulamentos do mercado a fim de influenciar as condições de comércio em vantagem própria e, assim, desenvolvendo o cerne do que seria o capitalismo. “Na verdade, quando o crescimento do capital mercantil chegara a esse estágio, os esforços comuns de mercadores atacadistas ou exportadores tendiam a dirigir-se para o enfraquecimento do regime de monopólio urbano que nutria sua infância, no interesse de fortalecer o monopólio de sua própria organização urbana.” (DOBB: 1997, p. 127).

A barganha daqueles comerciantes com mais dinheiro para investimentos lhes conferiu o monopólio do comércio atacadista e, conseqüentemente, uma melhor posição social, acentuando-se, portanto, a hierarquização das classes num âmbito social. Apenas com o surgimento do capital industrial é que esta forma de organização seria superada – já que o capitalismo encontrava-se estanque por sua ação – e este seria desencadeado por:
1 – O desdobramento do acúmulo do capital primitivo por meio de uma evolução no modo de produção capitalista e
2 – Pelo fato de que os detentores dos capitais, envolvidos, no caso inglês com as guildas, se apropriariam diretamente da produção obtendo meios para comprar tecnologia externa assim implementando a forma de produção. Neste sentido é que o capitalismo encontrar-se-ia com a conceituação de Marx: um domínio crescente do capital sobre a produção, desencadeado naturalmente pelo processo histórico.

Para Paul Sweezy, que escreveu sua resposta à Maurice Dobb na década de 1970, o interesse no estudo deste período centra-se no fato de que “Vivemos no período de transição do capitalismo para o socialismo; e este fato empresta particular interesse ao estudo de anteriores transições de um sistema social a outro” (SWEEZY: 1977, p. 19). Neste sentido, discutir com Dobb não se basta como um questionamento acerca da metodologia historiográfica, mas como uma forma de interrogá-lo por sua postura na contemporaneidade.

Para Paul Sweezy o feudalismo de Dobb consiste “num sistema econômico em que a servidão é a relação de produção dominante e no qual a produção se organiza dentro e à volta da propriedade manorial do Lord” ( SWEEZY: 1977, p. p.22). Sweezy diria que o feudalismo guardava em si tensões contornáveis e, portanto, não chegaria a contradições que predisporiam a transformação, apenas suscitada pelas novas conquistas do século XV e XVI.

Em sua leitura: “...segundo a teoria de Dobb, a causa essencial do colapso do feudalismo está na superexploração da força de trabalho: os servos desertaram dos domínios senhoriais em massa, e aqueles que se deixaram ficar foram bem poucos e ficaram demasiado sobrecarregados para capacitar o sistema a manter-se em sua velha base.” (SWEEZY: 1977, p.26).

Entretanto Sweezy observa que a fuga é concomitante ao crescimento das cidades, assim constituindo um mesmo fenômeno, portanto, as causas do desenvolvimento do capitalismo devem ser outras já que este era um movimento que se neutralizaria por si mesmo. Da mesma forma que o comércio que já existia desde a Idade Média, lhe parecia algo óbvio, o crescimento deste também o era, pela natureza desta atividade. Conquanto, para Sweezy uma correção deveria ser feita na teoria de Dobb:“... parece-me que seria mais acertado dizer que o declínio do feudalismo na Europa Ocidental se deveu à incapacidade da classe governante para conservar o controle sobre, e conseqüentemente para superexplorar a força do trabalho na sociedade.” (SWEEZY: 1977, p. 41).

Sendo claro para Sweezy que “A transição do feudalismo para o capitalismo é desta maneira um processo initerrupto único - semelhante ao da transição do capitalismo para o socialismo -, mas constituído por duas fases absolutamente distintas que colocam problemas radicalmente diferentes e requerem ser analisados em separado.” (SWEEZY: 1977, p. 47).

Criticando, ao cabo, o fato de que Dobb se furtou a analisar as realizações capitalistas deixando-se ater demais às pressuposições desta. Entender o que aconteceu depois parece, para Sweezy, um ponto chave. Embora Dobb tenha se esforçado nisso, sobremodo em seu sétimo capítulo, Sweezy acredita que as medidas econômicas não foram bem explicadas. Esta falta de entendimento tanto na Idade Média, quanto no período do debate em questão, levou – e poderia levar – a um despotismo sem precedentes.

Há que se relevar o fato de que o capitalismo, diferente do socialismo, não era algo que fazia parte dos anseios dos homens de sua época e que, portanto, embora suas análises, de Dobb e Sweezy, sejam de suma importância e incontestável seriedade, refletir acerca da Idade Moderna é bem diferente de refletir acerca do século XX. Neste sentido, suas propostas, em nossa opinião, devem ser consideradas até o ponto em que dão conta do processo de transformação, mas não a partir do momento em que debatem a efetivação da natureza destas mudanças, pois, a partir daí perdem o referencial de crítica em função de desejos muito pessoais. Uma revisão deste debate é proposta por Perry Anderson, e nesta revisão nos concentraremos a seguir.

Perry Anderson pretendia, na obra Linhagens do Estado Absolutista, inicialmente publicada na década de 1980, revisitar o período de transição entre feudalismo e capitalismo para compreender os antecedentes das “sucessivas revoluções burguesas” sem permitir-se o que apontou como “discrepâncias em relação ao tratamento ortodoxo do tema”, nestas, ressalvou que a interpretação de Marx e Engels equivocou-se ao identificar o fim da servidão com o desaparecimento das relações feudais no campo. Para o autor, persistia como classe dominante a aristocracia feudal, entretanto, “O poder de classe dos senhores feudais estava assim diretamente em risco com o desaparecimento gradual da servidão. O resultado disso foi um deslocamento da coerção político-legal no sentido ascendente, em direção a uma cúpula centralizada e militarizada – o Estado absolutista. Diluída no nível da aldeia, ela tornou-se concentrada no nível nacional”.(ANDERSON: 1985, p. 19).

Embora a ordem política continuasse feudal, a sociedade tornava-se cada vez mais burguesa. A urgência de uma transformação social fez com que se solicitasse uma nova legitimação a esta sociedade, o retorno dos “ideais” do direito romano situavam-se neste patamar: o da reconstrução de um direito consuetudinário, economicamente burguês e politicamente absolutista. Entre o civil e o público – jus e lex, Perry Anderson detecta uma contradição que limitaria duplamente a monarquia absoluta no Ocidente: o equilíbrio do sistema se dava pela relação entre justiça – à ordem do rei – e lei – à necessidade da massa-, uma implicava no mando e a outra na equidade. A persistência de corpos políticos tradicionais e a presença de um direito moral abrangente são incompatíveis para Perry Anderson, mas coexistem no Estado Absolutista. Ao cabo, suas querelas, traduzidas nas inúmeras guerras por que passam, referiam-se à disputas tradicionais pela terra, não havendo estabilidade possível, seu fim seria marcado por uma profunda insatisfação que deflagraria, inicialmente, a Revolução Francesa.

O problema, então, além de consistir numa desigualdade econômica, residia num “desencontro” de interesses políticos. A Idade Moderna inaugurou, com as possibilidades que a escrita lhe conferiu, a comunicação e, com esta, uma opinião pública tanto manipulável, quanto manipuladora. A interpenetração da elite e da massa foi de ordem política e de forma intrínseca. Não houve mais como ter rei sem ter povo, mando sem quem o obedecesse. Este meio fio, de dimensão muito mais complexa que aquela abordada por Dobb e Sweezy, foi interpretada por Norbert Elias já em 1940.

Para o sociólogo Norbert Elias não seria possível compreender os momentos que antecedem as revoluções burguesas apenas por meio de uma dimensão temporal única. Neste sentido acompanhava os estudos de Fernand Braudel ao entender que o tempo é como o oceano, profundo e quase imutável ao fundo, agitado e feroz às ondas, efêmero e inconstante em suas espumas e, aquele que pretendesse refletir acerca da história e dos indivíduos, ao banhar-se em suas águas não poderia separá-las. Deveria vive-las e observa-las em sua totalidade (Elias: 1994) . Assim, o que o autor pretendia na obra A Sociedade de Corte, escrita nos anos 40, era a compreensão da Idade Moderna por meio de seus olhos e de como a articulação do tempo de média duração pode refletir uma longa duração que chegaria à atualidade como estrutura do que somos como indivíduos hoje. O que, para Peter Burke (1991), consiste numa metodologia antropológica, à moda de Clifford Geertz, que procurou esclarecer como a configuração de papéis e representações sociais dizem sobre o funcionamento do sistema social de uma forma geral, revelando então traços característicos permanentes nas relações sociais, objeto principal da análise sociológica.

Assim, questionou-se Norbert Elias, “... A necessidade de se imporem e de se manterem no seio dessa formação social dava-lhes um caráter particular, o de cortesão. Qual era a estrutura do contexto social no seio do qual pôde surgir esta formação? Em conseqüência de que partilha de oportunidades de poder, de que necessidades criadas artificialmente pela configuração da sociedade, de que relações de dependência, puderam homens e mulheres reunir-se, durante gerações sucessivas, sob o signo dessa formação social da corte, da sociedade de corte? Quais as exigências que decorriam da estrutura da sociedade de corte para com aqueles que nela desejavam triunfar ou simplesmente manter-se? Eis muito sumariamente os problemas que a instituição social da corte e da sociedade de corte durante o antigo regime põem ao sociólogo.”(ELIAS: 1987, p. 13).

Para Elias, o estudo da Sociedade de Corte tornava-se relevante pelo caráter representativo de centralidade que a corte ocupava. Sendo assim, a “...’corte’do antigo regime é, em primeiro lugar, a casa de habitação dos reis de França, de suas famílias, de todas as pessoas que, de perto ou de longe, dela fazem parte. As despesas da corte, da imensa ‘casa’ dos reis, são consignadas no registro das despesas do reino da França sob a rubrica significativa de ‘Casas Reais’. Importa tomar imediatamente consciência deste fato para melhor se apreender a linha evolutiva que conduz ao alargamento da casa real a que chamamos ‘corte’. A ‘corte’ do antigo regime é um derivado altamente especializado de uma forma de governo patriarcal cujo germe ‘se situa na autoridade de um senhor no seio de uma comunidade doméstica. A autoridade dos reis enquanto senhores da sua corte tem o seu correspondente no caráter patrimonial do estado absolutista cujo órgão central é a ‘casa do rei’ no sentido amplo do termo, ou seja, a ‘corte’.” (ELIAS: 1987, p. 19).

A dependência em relação à corte era praticamente total, do povo ao rei, do rei ao povo, situando-se na origem de todas as experiências, na origem da idéia que os reis absolutistas do antigo regime tinham dos homens e do mundo. Entre si, os cortesãos tinham uma vida independente, sobretudo no que tangenciava o casamento, encarado como uma representação necessária, não contava, como no casamento burguês, com a cumplicidade ou presença efetiva de seus partícipes. As preocupações eram outras, a do prestígio, da honra da casa , e não da afeição ou presença mútua.

“A mentalidade que transparece destas regras é uma mentalidade hierárquica, inspirada nas idéias da camada superior do regime! As dimensões e a decoração da casa não dependem da riqueza do proprietário mas única e exclusivamente da posição social e da obrigação de se ‘representar’ que dela decorre (...) A diferença entre a estrutura da sociedade burguesa e a da sociedade aristocrática de corte que assim se revela ao nosso olhar é rica em ensinamentos. As
mundanidades ocupam muito mais espaço e tempo na vida dos cortesãos que na da burguesia profissional. O homem de corte é obrigado a receber muito mais gente que o burguês e a sua residência está adaptada às suas necessidades. Quanto ao representante da burguesia profissional, este recebe menos visitas particulares e não pode receber tantas como o aristocrata. Este consagra mais tempo à vida social. O seu tecido de relações diretas tem malhas muito mais finas, os seus contatos sociais são mais freqüentes, os seus laços diretos com a sociedade são muito mais estreitos que os do burguês que exerce uma profissão e para quem os contatos indiretos por intermédio do dinheiro e da mercadoria têm prioridade.” (ELIAS: 1987, p. 35).

A camada inferior desse ‘estado’, ou o terceiro Estado, era o ‘povo’ – os camponeses, pequenos rendeiros, pequenos artífices, operários, laicos e outros criados. Acrescidos das camadas médias da burguesia - ‘negociantes, fabricantes, advogados, procuradores e médicos, atores, professores e curas, funcionários, empregados e caixeiros’-. Uma certa mobilidade era acessível, o que conferiu posição aos altos magistrados, funcionários, arrematadores gerais de impostos e os intelectuais burgueses. “Estes três grupos mostram ao mesmo tempo as três vias de ascensão social que se apresentam aos membros da burguesia que aspiram elevar-se na escala social.” (ELIAS: 1987, p. 37). Entretanto, esta mobilidade era ambígua, na medida em que as posições e origens eram muito bem marcadas como aponta Elias, “... Nas sociedades que conhecemos melhor, a relação entre a repartição do poder por toda a sociedade e os diferentes aspectos daquilo a que chamamos ‘vida privada’ – da qual faz parte a casa – é relativamente indireta. Na sociedade de corte é infinitamente mais direta. Além disso, os interessados têm plena consciência do fato. Como, por outro lado, a diferença entre os aspectos ‘público’ e ‘privado’ da vida, tal como se pratica habitualmente nas sociedades industriais, não nos pode servir, quando queremos compreender os membros da corte.” (ELIAS; 1987, p.49).

Para tal compreensão, o sociólogo elaborou nos capítulos 3 e 4 do seu trabalho uma análise dos elementos constitutivos desta corte, ao qual nos reservaremos um adendo.

O REI NO SEIO DA SOCIEDADE DE CORTE

Norbert Elias atenta ao acompanhar a fala de Luís XIV “... ‘Enganam-se grosseiramente aqueles que pensam que não passam de questões de cerimônia. Os povos sobre os quais reinamos, não podendo penetrar no âmago das coisas, fazem os seus juízos pelo que vêem de fora e é quase sempre a partir das precedências e das posições hierárquicas que medem o seu respeito e obediência. Como é importante para o público se governado por uma só pessoa, também é importante para ele que aquele que desempenha essa função esteja de tal modo acima dos outros que ninguém se possa confundir ou comparar com ele e não se pode, sem lesar todo o
corpo do Estado, retirar à sua cabeça os sinais de superioridade, e mesmo os mais ínfimos, que a distinguem dos seus membros.

Esta é a opinião de Luís XIV sobre a etiqueta. Para ele, não se trata de um simples cerimonial, mas de um meio de dominar os seus súditos. O povo não crê no poder, mesmo o real, se ele não se manifesta na aparência exterior do monarca. Precisa de ver para crer. Quanto mais distante se mostra o príncipe, maior será o respeito que o povo lhe testemunha.” (ELIAS: 1987, p. 91-92).

A grandeza do rei se situava na sua mistificação, construída por meio da etiqueta, dependente da corte que lhe servia como meio. Assim, se o rei era dependente da corte, por sua vez, a corte era dependente do rei que a mantinha, que a alimentava em suas disputas e sentidos cotidianos de existência. E isto dependeria do ‘bom-senso’, à moda de Luis XIV, que o rei teria para equilibras as forças de seu domínio, na corte e naquilo que fazia com que a corte existisse, os que estavam abaixo dela. Elias fez ainda uma ressalva, “Este sistema tem ainda a vantagem permitir ao soberano a obtenção de um máximo de resultados com um mínimo de esforços pessoais. De fato, as energias brotam automaticamente pelo ‘movimento perpétuo’ da competição – ‘os ciúmes de uns servem de freio às ambições dos outros’ ... – e o papel do rei consiste apenas em canalizá-las.(...)” (ELIAS: 1987, p. 105).

Para, então observar que “O Estado enquanto valor autônomo surge aqui como uma idéia subversiva. A ela se opõe em Luís XIV uma atitude que, durante o seu reinado, motiva e aciona toda a política francesa: baseia-se inteiramente na sua sede de prestígio, no seu desejo não só de exercer o seu poder sobre os outros mas de que isso se manifeste em todos os gestos e palavras. Para Luís XIV, a manifestação pública e a representação simbólica do seu poder eram valores em si. Para ele, os símbolos do poder animam-se e adotam o caráter de fetiches de prestígio. O fetiche de prestígio que melhor exprime o caráter de valor autônomo da existência do rei é a glória.”(ELIAS: 1987, p. 108).

Neste ensejo, compreender a sociedade de corte seria compreender a mola propulsora da formação de um Estado Absolutista, berço para as transformações decorrentes das revoluções burguesas e, mais, compreender de que maneira este movimento permitiria ao sociólogo, e também ao historiador, apreender melhor o contexto da nossa própria vida quando se aprofunda na vida de homens que pertenceram a outras sociedades. Não como querem Dobb e Sweezy, anotar erros que não deveriam ser cometidos – erros e acertos renovam-se como a própria concepção do que sejam erros e acertos, mas entender que “A análise da sociedade de corte permite, melhor do que o estudo isolado da sociedade a que pertencemos, pôr em evidência que a escala de valores a que estamos ligados é um dos elos da cadeia de pressões sociais a que cada um de nós está sujeito.” (ELIAS: 1987, p. 49) E assim, também sujeitos à sua decrepitude, como a apontada por Elias, com: “A corte foi-se transformando gradualmente numa espécie de organismo de previdência para a nobreza e de instrumento de domínio para o rei.

Anteriormente, os grupos envolvidos tinham diversas vezes, em conflito aberto ou latente, medindo forças e o poder de que cada um dispunha. Aproveitando a sua situação de força, Luís XIV assenhoreou-se com energia e determinação de todas as oportunidades que este campo social lhe oferecia.”(ELIAS: 1987, p. 158).

Em que a nobreza cada vez mais, ao passo do enfraquecimento do poder real - resultado tanto de um enfraquecimento do poder econômico da nobreza, como de uma revalorização social em função do fortalecimento da sua figura e do seu poder-, torna-se uma nobreza do rei e o rei, um rei da nobreza, sem representatividade além da saudosista.

Ao fim e ao cabo, o interesse de Norbert Elias é o de “Saber de que maneira e por que razões os homens se ligam entre si e formam em conjunto grupos dinâmicos específicos” e acrescenta, este “é um dos problemas mais importantes, para não dizer o mais importante, da sociologia.”(ELIAS: 1987, p. 177) A individualização que Elias constata na atualidade (1969) requer, portanto, o estudo do seu processo de individualização, posto não ser este o resultado do nada, mas de elementos que podem esclarecer sua natureza e possibilidades, conforme aponta naquele que seria o capítulo teórico de O processo civilizatório (ELIAS: 1994), a obra A sociedade dos Indivíduos (1987).

De Dobb, Sweezy, Anderson e Elias muito se pode dizer, sobretudo da contribuição especial de cada autor. Da Idade Moderna, muito se disse e muito há de ser dito ainda, dada a inesgotável possibilidade de interpretação que as ciências sociais e/ou humanas têm em suas mãos. Da atualidade, ponto do qual partiram os autores debatidos e do qual partimos também, cremos que resta-nos refletir: se a história nos ensina algo, mais do que aquilo que vai nos “acontecer”, ela esclarece que muitas vezes o que nos “acontece”, não “acontece” exatamente como queremos ou pensamos “acontecer” ..

BIBLIOGRAFIA
ANDERSON, Perry. Europa Ocidental. in: Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo, Brasiliense, 1985.
BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. São Paulo, Perspectiva, 1978.
BURKE, Peter. O Cortesão. in: GARIN. Eugenio. O homem renascentista. Lisboa, Presença, 1991.
DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo. Rio de Janeiro, Zahar, 1997.
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro, Zahar, 2001.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro, Zahar, 1994.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,
1984.
RIBEIRO, Renato Janine. A etiqueta no Antigo Regime: do sangue à doce vida. São Paulo, Brasiliense, 1983.
SWEEZY, Paul. DOBB, Maurice. TAKAHASHI, H.K. et al. Do feudalismo ao capitalismo. São Paulo, Martins Fontes, 1977.
Manor: unidade territorial inglesa, originariamente da natureza de uma suzerania feudal.

”Para o historiador – e neste sentido para Norbert Elias -, tudo começa, tudo acaba pelo tempo, um tempo matemático e demiúrgico, do qual seria fácil sorrir, tempo como que exterior aos homens, exógeno, diriam os economistas, que os impele, os constrange, arrebata seus tempos particulares de cores diversas: sim, o tempo imperioso do mundo”(BRAUDEL: 1978, p. 72).

“Todavia, o mais famoso destes estudos é certamente A sociedade de Corte (1969), de Norbert Elias (que prefere definir-se como sociólogo). Elias analisa predominantemente a corte de França nos séculos XVII e XVIII, mas tem também muitas coisas interessantes a dizer sobre o funcionamento do sistema de uma forma geral, defendendo que a corte é uma [[configuração]] social (no sentido de uma rede de interdependências) peculiar, com uma racionalidade própria, e que as críticas fáceis acerca dos consumos excessivos ou do comportamento ritualizado na corte não são capazes de revelar os traços característicos desse meio social (...)

Da argumentação de Geertz deriva (embora ele nunca o diga explicitamente) que as críticas modernas –feitas em seu trabalho Negara - de cariz moralista sobre a [[lisonja]] ou a [[adulação]] dos monarcas do Renascimento, e sobre o [[servilismo]] dos seus cortesãos, são deslocadas, etnocêntricas e anacrônicas.”(BURKE: 1991, p. 102)

“É difícil compreender que as pessoas se arruinassem por e para suas Casas, se não tiver em conta que na sociedade da aristocracia de corte e grandeza e a magnificência da Casa não era um sinal de riqueza mas um distintivo de classe. O aspecto exterior da grande casa de pedra é para o grande senhor e para toda a sociedade senhorial o símbolo da posição, da importância, da hierarquia da casa através dos tempos, ou seja, da linhagem de que o chefe da casa é o representante vivo.” (ELIAS: 1987, p. 31).

Respectivamente da década de 60/70, da década de 80 e da década de 40.

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