A década de 1930 representa um marco transformador na História brasileira, pelo menos no que se refere às artes e produção intelectual. A derrubada da República Velha e a instalação de um novo governo que procurou diminuir a dependência econômica do país em relação à agricultura monocultora, desenvolvendo um Estado com bases industriais e que atua na formação de uma burguesia industrial (o chamado Estado de Compromisso definido por Boris Fausto em A Revolução de 1930) abriram espaço para uma renovação na sociedade brasileira. Isso se manifestou em diversos campos, produzindo estudos e novas propostas para entender o Brasil, redescobri-lo em seus detalhes, problemáticas e buscar explicações para o momento pelo qual a nação passava. Pode-se dizer que 1930 é o início de uma intensa transformação no entendimento e nas interpretações sobre o Brasil: entram em cartaz estudos que, procurando no nosso passado colonial elementos que auxiliassem a explicar a conjuntura e as características que regiam o Brasil naquele momento, interagiam com as mais modernas teorias sociológicas e historiográficas vigentes na Europa. As análises a respeito da realidade do país produzidas no pós-30 dialogarão com as novas tendências de estudo no campo das ciências humanas, como por exemplo a interdisciplinaridade. Disciplinas como a História, Sociologia, Geografia, Economia etc. irão complementar-se na obra dos autores com o intuito de chegar a interpretações mais corretas e completas sobre a realidade nacional.
Dentre todas as obras que visavam compreender o Brasil, analisando e partindo de seu passado como colônia até o momento histórico em que foram elaboradas, uma destaca-se como a mais perfeita análise do período colonial e as implicações deste no presente momento nacional. Trata-se de Formação do Brasil Contemporâneo, do historiador paulista Caio Prado Jr. Publicado pela primeira vez em 1942, esse livro é o expoente máximo da obra de Caio, autor também de Evolução Política do Brasil e História Econômica do Brasil. De estilo simples, muito bem escrito, utilizando vasta base documental, Formação descreve as características econômicas, administrativas, populacionais e sociais do território brasileiro desde o início de sua colonização até os primeiros anos do Século XIX. A narrativa inclusive parte dessa última época, considerada pelo autor “uma síntese”: de um lado, representa o balanço final de toda a obra colonizadora ao longo de três séculos; de outro, constitui a chave para interpretar o processo histórico anterior a ele e o próprio Brasil daquele momento pós-1930. O corte, então, aborda o período de três séculos e é o fundamento para se compreender as modificações seguintes. Para Prado, na entrada do Século XIX o legado colonizador já estava consolidado no Brasil e o território começava a respirar ares de mudança (por exemplo, a vinda da Família Real Portuguesa, entrada das idéias políticas liberais francesas e maior influência inglesa na economia e sociedade) que influíram no processo de Independência da colônia.
A partir do momento em que considera uma ruptura do sistema colonial, Caio Prado penetra fundo no passado e na estrutura desse sistema. E, dentre várias conclusões a que chega, uma se destaca como a principal: mais de um século após a Independência, o Brasil ainda mantinha em diversos aspectos o caráter e as características de colônia, principalmente no que se refere à economia e sociedade.
Essa é a posição que o autor defende e demonstra ao longo de todo o livro. Prado mostra como as modificações pelas quais o Brasil passara e estava passando eram superficiais, havendo sempre a presença incômoda, invencível e indissociável no processo de evolução nacional. Para explicar isso, apresenta-nos o inovador conceito de sentido histórico, definido como “o conjunto de fatos e acontecimentos essenciais que constituem a evolução de um povo num largo período de tempo”. Diz Prado que o sentido manifesta-se ao longo da história desse povo, e que pode ser modificado com transformações profundas. No caso brasileiro, o sentido de formação de nosso povo (e que guiou a nossa colonização) é ser uma colônia especializada no fornecimento de produtos agrícolas tropicais para os mercados estrangeiros. Tudo no Brasil Colônia, afirma o historiador, surgiu e foi formado com o intuito de constituir uma unidade fornecedora de produtos comercializáveis para a Europa; não havia a preocupação de constituir uma sociedade ou uma administração organizadas e raízes nacionais firmes, mas apenas uma feitoria comercial. Esta foi a lógica de todo o período colonial, determinando o nosso sentido histórico e, com ele, a permanência de diversos aspectos coloniais na atual sociedade brasileira. O caráter agrícola (base de nossa constituição econômica) e suas relações com a sociedade, segundo Prado, implantaram-se de tal forma na formação brasileira que ainda podiam se fazer sentir presentes naquela época.
São exemplos desse sentido o processo de povoamento colonial, com os colonos recém-chegados e as correntes internas procurando sempre o litoral nordestino, nas regiões produtoras de bens agrícolas exportáveis; a constituição da economia nacional no tripé latifúndio- monocultura- trabalho escravo, voltado para o mercado externo e subjugando o mercado interno (que é uma base essencial para o desenvolvimento de uma nação); a utilização do negro como escravo apenas como força produtiva, banalizando-o e impedindo que contribuísse positivamente para a constituição de nosso povo; o surgimento de um setor “inorgânico” na sociedade colonial, localizado entre os senhores de terras e os escravos (os dois extremos sociais e diretamente implicados na estrutura produtiva), no qual seus componentes não possuem ocupação fixa ou força social (por estarem fora do campo econômico-produtivo) e se caracterizam pela desarticulação e desunião; a estrutura patrimonialista, na qual os senhores oligárquicos, donos de imenso poder na conjuntura econômica e social, consideram-se donos dos espaços público e privado; etc. Muito disso permanece até hoje (como a concentração, ainda intensa, da população no litoral; a presença sempre incômoda do latifúndio, atravancando o avanço agrícola e a reforma agrária; a presença de uma população não-integrada à economia e desarticulada, vivendo na miséria; etc.), o que comprova a atualidade da obra.
No entanto, Caio Prado não deixou de enxergar possibilidades de transformação dessa persistente ordem colonial. Formação é um livro constituído de uma contraposição dialética entre a permanência de estruturas coloniais e as constantes chances de derrubada dessa ordem, a ocorrer por intermédio da articulação interna e ação do setor “inorgânico”, ou seja, das classes mais humildes e pobres da população. Será a participação e integração deste setor na sociedade que possibilitará a queda dos resquícios coloniais, produzindo uma modificação e, quem sabe, a definição de um novo sentido histórico para o Brasil. O autor mostra que sempre foi essa população desarticulada que, sozinha e sem qualquer apoio, tomou as iniciativas para modificar a sociedade colonial e expandi-la além da monocultura litorânea exportadora. Por exemplo, o avanço da pecuária pelos sertões; o processo de povoamento do interior e expansão para territórios além do Tratado de Tordesilhas etc.
O livro de Caio Prado faz-se destacado também por propor, pela primeira vez, uma aplicação bem-feita do Marxismo na historiografia e análise do Brasil Colonial. O historiador utiliza-se de propostas marxistas para explicar a formação de nossa sociedade colonial e suas possibilidades de superação. Assim, o sentido histórico do Brasil, expresso na colonização, é uma demonstração do Materialismo Histórico, ou seja: a História como o eterno processo de produção humana das necessidades fundamentais e dos bens materiais para a sobrevivência. Dessa forma, o sentido de nossa colonização, ao produzir produtos agrícolas para o mercado externo, representa a satisfação material e desenvolvimento das economias e necessidades metropolitanas (o materialismo também faz-se presente nessa concepção de que nossa história e modo de ser de nossa sociedade reflete o fim de nossa formação: produzir bens agrícolas para o mercado externo). O mesmo processo gera a acumulação primitiva de capitais (que, segundo Fernando Novais, serão usados para a promoção, na Europa, do capitalismo industrial) por parte das metrópoles e a divisão do trabalho no processo produtivo, gerando sempre um pólo mais rico, que domina toda a produção (a metrópole), e outro, que é o produtor, totalmente alienado dos objetos e do acesso aos mesmos (a colônia). Prado também utiliza Marx para enxergar as possibilidades de superação das estruturas coloniais. Se a História é feita pelos homens mais simples (pois são a força produtiva da sociedade), é a ação e integração destes sob o interesse comum de satisfazer as necessidades fundamentais para sua sobrevivência que podem derrubar tal organização, que declaradamente os exclui e os aliena ao longo do processo produtivo.
Outro ponto de destaque do livro é a interdisciplinaridade. A obra fornece um panorama completo do Brasil Colonial interagindo diversas disciplinas em um mesmo estudo. Assim, as descrições históricas sobre o processo de povoamento vêm precedidas de uma apresentação das características geográficas do território, seus pontos mais atraentes para os colonos e os locais de repulsão; o mesmo procedimento descritivo é observado quando aborda as três principais áreas onde a pecuária se desenvolve; a produção açucareira da grande lavoura é analisada sob as perspectivas econômica, sociológica (ao denunciar a alienação e banalização da população escrava com a produção em larga escala – análise esta marxista) e crítica (afirmando ser um sistema produtivo rudimentar e criticando os colonos, que não buscavam novas técnicas para incrementar a produção); a narração dos fatos históricos sempre acompanhadas de comentários do autor e informações vindas dos relatos de viajantes e cronistas.
Portanto, Formação do Brasil Contemporâneo é a obra mais completa e informativa sobre nosso período colonial. Tornou-se merecidamente o exponencial da transformação intelectual observada com o advento dos anos 30 deste século no Brasil. Busca no nosso passado explicações para o Brasil deste século, bem como as chances de modificação da ordem colonial nela persistente. Se chega a ser em certas passagens extremamente crítico em relação à estruturação colonial e ao Brasil atual, Caio Prado não é pessimista. Pois soube reconhecer que a transformação da nossa sociedade pode ocorrer, pelas mãos do povo, oprimido e desarticulado desde aquela época. Ou seja, da mesma forma que a História está em transformação constante, o Brasil pode ter seu sentido histórico modificado. Basta acreditar e lutar para tanto.
Dentre todas as obras que visavam compreender o Brasil, analisando e partindo de seu passado como colônia até o momento histórico em que foram elaboradas, uma destaca-se como a mais perfeita análise do período colonial e as implicações deste no presente momento nacional. Trata-se de Formação do Brasil Contemporâneo, do historiador paulista Caio Prado Jr. Publicado pela primeira vez em 1942, esse livro é o expoente máximo da obra de Caio, autor também de Evolução Política do Brasil e História Econômica do Brasil. De estilo simples, muito bem escrito, utilizando vasta base documental, Formação descreve as características econômicas, administrativas, populacionais e sociais do território brasileiro desde o início de sua colonização até os primeiros anos do Século XIX. A narrativa inclusive parte dessa última época, considerada pelo autor “uma síntese”: de um lado, representa o balanço final de toda a obra colonizadora ao longo de três séculos; de outro, constitui a chave para interpretar o processo histórico anterior a ele e o próprio Brasil daquele momento pós-1930. O corte, então, aborda o período de três séculos e é o fundamento para se compreender as modificações seguintes. Para Prado, na entrada do Século XIX o legado colonizador já estava consolidado no Brasil e o território começava a respirar ares de mudança (por exemplo, a vinda da Família Real Portuguesa, entrada das idéias políticas liberais francesas e maior influência inglesa na economia e sociedade) que influíram no processo de Independência da colônia.
A partir do momento em que considera uma ruptura do sistema colonial, Caio Prado penetra fundo no passado e na estrutura desse sistema. E, dentre várias conclusões a que chega, uma se destaca como a principal: mais de um século após a Independência, o Brasil ainda mantinha em diversos aspectos o caráter e as características de colônia, principalmente no que se refere à economia e sociedade.
Essa é a posição que o autor defende e demonstra ao longo de todo o livro. Prado mostra como as modificações pelas quais o Brasil passara e estava passando eram superficiais, havendo sempre a presença incômoda, invencível e indissociável no processo de evolução nacional. Para explicar isso, apresenta-nos o inovador conceito de sentido histórico, definido como “o conjunto de fatos e acontecimentos essenciais que constituem a evolução de um povo num largo período de tempo”. Diz Prado que o sentido manifesta-se ao longo da história desse povo, e que pode ser modificado com transformações profundas. No caso brasileiro, o sentido de formação de nosso povo (e que guiou a nossa colonização) é ser uma colônia especializada no fornecimento de produtos agrícolas tropicais para os mercados estrangeiros. Tudo no Brasil Colônia, afirma o historiador, surgiu e foi formado com o intuito de constituir uma unidade fornecedora de produtos comercializáveis para a Europa; não havia a preocupação de constituir uma sociedade ou uma administração organizadas e raízes nacionais firmes, mas apenas uma feitoria comercial. Esta foi a lógica de todo o período colonial, determinando o nosso sentido histórico e, com ele, a permanência de diversos aspectos coloniais na atual sociedade brasileira. O caráter agrícola (base de nossa constituição econômica) e suas relações com a sociedade, segundo Prado, implantaram-se de tal forma na formação brasileira que ainda podiam se fazer sentir presentes naquela época.
São exemplos desse sentido o processo de povoamento colonial, com os colonos recém-chegados e as correntes internas procurando sempre o litoral nordestino, nas regiões produtoras de bens agrícolas exportáveis; a constituição da economia nacional no tripé latifúndio- monocultura- trabalho escravo, voltado para o mercado externo e subjugando o mercado interno (que é uma base essencial para o desenvolvimento de uma nação); a utilização do negro como escravo apenas como força produtiva, banalizando-o e impedindo que contribuísse positivamente para a constituição de nosso povo; o surgimento de um setor “inorgânico” na sociedade colonial, localizado entre os senhores de terras e os escravos (os dois extremos sociais e diretamente implicados na estrutura produtiva), no qual seus componentes não possuem ocupação fixa ou força social (por estarem fora do campo econômico-produtivo) e se caracterizam pela desarticulação e desunião; a estrutura patrimonialista, na qual os senhores oligárquicos, donos de imenso poder na conjuntura econômica e social, consideram-se donos dos espaços público e privado; etc. Muito disso permanece até hoje (como a concentração, ainda intensa, da população no litoral; a presença sempre incômoda do latifúndio, atravancando o avanço agrícola e a reforma agrária; a presença de uma população não-integrada à economia e desarticulada, vivendo na miséria; etc.), o que comprova a atualidade da obra.
No entanto, Caio Prado não deixou de enxergar possibilidades de transformação dessa persistente ordem colonial. Formação é um livro constituído de uma contraposição dialética entre a permanência de estruturas coloniais e as constantes chances de derrubada dessa ordem, a ocorrer por intermédio da articulação interna e ação do setor “inorgânico”, ou seja, das classes mais humildes e pobres da população. Será a participação e integração deste setor na sociedade que possibilitará a queda dos resquícios coloniais, produzindo uma modificação e, quem sabe, a definição de um novo sentido histórico para o Brasil. O autor mostra que sempre foi essa população desarticulada que, sozinha e sem qualquer apoio, tomou as iniciativas para modificar a sociedade colonial e expandi-la além da monocultura litorânea exportadora. Por exemplo, o avanço da pecuária pelos sertões; o processo de povoamento do interior e expansão para territórios além do Tratado de Tordesilhas etc.
O livro de Caio Prado faz-se destacado também por propor, pela primeira vez, uma aplicação bem-feita do Marxismo na historiografia e análise do Brasil Colonial. O historiador utiliza-se de propostas marxistas para explicar a formação de nossa sociedade colonial e suas possibilidades de superação. Assim, o sentido histórico do Brasil, expresso na colonização, é uma demonstração do Materialismo Histórico, ou seja: a História como o eterno processo de produção humana das necessidades fundamentais e dos bens materiais para a sobrevivência. Dessa forma, o sentido de nossa colonização, ao produzir produtos agrícolas para o mercado externo, representa a satisfação material e desenvolvimento das economias e necessidades metropolitanas (o materialismo também faz-se presente nessa concepção de que nossa história e modo de ser de nossa sociedade reflete o fim de nossa formação: produzir bens agrícolas para o mercado externo). O mesmo processo gera a acumulação primitiva de capitais (que, segundo Fernando Novais, serão usados para a promoção, na Europa, do capitalismo industrial) por parte das metrópoles e a divisão do trabalho no processo produtivo, gerando sempre um pólo mais rico, que domina toda a produção (a metrópole), e outro, que é o produtor, totalmente alienado dos objetos e do acesso aos mesmos (a colônia). Prado também utiliza Marx para enxergar as possibilidades de superação das estruturas coloniais. Se a História é feita pelos homens mais simples (pois são a força produtiva da sociedade), é a ação e integração destes sob o interesse comum de satisfazer as necessidades fundamentais para sua sobrevivência que podem derrubar tal organização, que declaradamente os exclui e os aliena ao longo do processo produtivo.
Outro ponto de destaque do livro é a interdisciplinaridade. A obra fornece um panorama completo do Brasil Colonial interagindo diversas disciplinas em um mesmo estudo. Assim, as descrições históricas sobre o processo de povoamento vêm precedidas de uma apresentação das características geográficas do território, seus pontos mais atraentes para os colonos e os locais de repulsão; o mesmo procedimento descritivo é observado quando aborda as três principais áreas onde a pecuária se desenvolve; a produção açucareira da grande lavoura é analisada sob as perspectivas econômica, sociológica (ao denunciar a alienação e banalização da população escrava com a produção em larga escala – análise esta marxista) e crítica (afirmando ser um sistema produtivo rudimentar e criticando os colonos, que não buscavam novas técnicas para incrementar a produção); a narração dos fatos históricos sempre acompanhadas de comentários do autor e informações vindas dos relatos de viajantes e cronistas.
Portanto, Formação do Brasil Contemporâneo é a obra mais completa e informativa sobre nosso período colonial. Tornou-se merecidamente o exponencial da transformação intelectual observada com o advento dos anos 30 deste século no Brasil. Busca no nosso passado explicações para o Brasil deste século, bem como as chances de modificação da ordem colonial nela persistente. Se chega a ser em certas passagens extremamente crítico em relação à estruturação colonial e ao Brasil atual, Caio Prado não é pessimista. Pois soube reconhecer que a transformação da nossa sociedade pode ocorrer, pelas mãos do povo, oprimido e desarticulado desde aquela época. Ou seja, da mesma forma que a História está em transformação constante, o Brasil pode ter seu sentido histórico modificado. Basta acreditar e lutar para tanto.
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