segunda-feira, 19 de abril de 2010

TUPÃ - O CONTO DO TROVÃO

TUPÃ
Tupã é nome indígena, dizem que significa trovão. No tempo de um dia que o cronista esteve nessa cidade, não ouviu uma manifestação sequer desse fenômeno da natureza. O trovão estava mudo, ou quieto ou indisposto ou irascível ou de algum modo que o cronista não soube adivinhar. Talvez o trovão não tenha modo. Os índios devem estar mais perto do trovão do que o cronista. O trovão deve se manifestar para eles. Suposição. O trovão deve preferir falar aos dizimados, aos sobreviventes, aos remanescentes. O trovão deve falar a quem acredita nele. Certeza. O trovão lembra aos índios o que eles ainda podem. Os índios querem ser antes e depois. Os índios são. O trovão embala a vinda deles. O trovão garante a volta deles. O trovão traz o começo dos tempos e o futuro deles. O trovão instaura o presente. Os índios experimentam o trovão e buscam o que ainda resta deles, nele. O trovão escolhe a quem fala. O trovão escolhe a quem continua falando. É quase certo. O trovão fala aos índios. Alguns índios falam o trovão. Os Kaingang de Tupã estão reaprendendo a falar o trovão com Kaigangs do Sul, do Paraná; os Krenak com outros Krenak. O trovão é independente da vontade do cronista. O trovão não está nem aí para o cronista. Não se pega um trovão como se bate no ombro ou se pergunta algo. O trovão não fala como a moça simpática, Uiara Potira, do Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuíre. O trovão não é prestativo. O trovão não é educativo. O trovão não é pedagógico. E não é porque troveja que seja um mistério passível de revelação. O trovão fala outra língua. Quem barateia o trovão não chega a ele. Os Kaigang e os Krenak não barateiam o trovão. O trovão é o trovão. O trovão troveja no céu, acima do cronista. O trovão é falado pelos Kaigang e Krenak, mesmo que eles tenham desaprendido a falar kaingang e krenak. O trovão não pode ser contido. O trovão não manda avisar. O homem branco está muito longe daquele trovão original que ainda assoma a cidade, quando quer. Os índios estão em busca desse princípio de trovão. O homem branco quis fazê-los esquecer do trovão. O homem branco repreendia o índio que falasse trovão em Kaingang e em Krenak. O homem branco forçou o índio a esquecer o trovão e aprender português. Hoje, o homem branco estranha que o índio fale português. Hoje, o homem branco não acredita no índio que só fale português ou fale muito bem o português. Hoje, o homem branco quer que o índio fale trovão em Kaikang e Krenak para ser índio. O índio fala o que quiser. Hoje, os índios reaprendem a falar trovão em Kaigang e Krenak porque querem. Os índios resgatam os índios, e não é para agradar ninguém. O índio não veio ao mundo para agradar, como o trovão também não. O homem branco vestia o índio nu diante do trovão. Hoje, o homem branco quer que o índio fique pelado diante do trovão para ser índio. O índio fica pelado se quiser. O índio é como o índio é. Os índios não entendem o branco. Quando o índio vira outra coisa índia pelo contato com o homem branco, ele quer que o índio volte a ser aquele índio da descoberta do Brasil, sem esconder as vergonhas. O índio esconde o que quiser. As vergonhas do índio são do índio. As vergonhas dos índio não são vergonhas para o índio. Não se controla o índio. O índio não se deixa exterminar. O índio escapa. O índio entra no Museu do Índio e desarruma o Museu, só por entrar. O trovão não precisa combinar com o trovão. O trovão não marca entrevista. O cronista não esteve com o trovão, só ouviu dizer. Os índios têm direitos autorais. O trovão também. Quem quiser saber do índio que pague. O índio não se barateia. O índio não quer espelho. Nem o índio nem o trovão estão na vitrine. O trovão é a língua materna. A língua materna volta a trovejar na boca do índio. O índio não dá entrevista, ele está muito ocupado com o trovão. Trovão tem nome branco, dizem que significa Tupã.


quarta-feira, 14 de abril de 2010

O MITO PATAXÓ DE JUACEMA

Neste texto, falaremos de um estudo de antropologia histórica junto ao povo indígena Pataxó, da aldeia Barra Velha, em Porto Seguro-Ba., Com o propósito de mostrar alguns elementos constitutivos de um tema histórico próprio desses índios.
Ao consultarmos as diversas fontes históricas a respeito do povo identificado como Pataxó, constatamos que as mesmas se referem a este como sendo um grupo nômade que vivia perambulando em contato com outras etnias entre as bacias dos rios João de Tiba e São Mateus, no Sul da Bahia e que foi submetido ao aldeamento em 1861, junto com outros povos como o Maxakalí, o Abakirá, o Botocudo e o Tupiniquim, na aldeia de Barra Velha, local que atualmente denominam de Aldeia Mãe, pois passaram a ocupar outras áreas nos municípios de Santa Cruz Cabrália, Itamaraju e Prado, constituindo-se no maior povo indígena do Estado, com uma população aproximada de 5.426 pessoas, conforme estimativa feita pela FUNAI em 1999.
Dado ao largo tempo de contato com o “mundo dos brancos”, a primeira impressão que se tem no contato com os Pataxó, é a de que haveria um abandono das práticas tradicionais relativas ao sistema sócio-cultural do grupo, e, até mesmo, o desaparecimento da tradição oral, graças ao longo do processo de inserção forçada no modelo dominante, sobretudo se considerarmos a situação por eles vivida no contexto da exploração turística na região de Porto Seguro-Ba.
Contudo, estudos sobre a tradição oral realizados junto a povos indígenas nos levam a refletir sobre essa questão, nos fazendo ver a ocorrência de fenômenos bastante significativos de manipulação e resignificação da memória histórica em que a noção de perda é relativizada, sendo exemplo disso as observações de Carvalho (1977), a respeito dos Pataxó:
“A memória histórica foi lastimavelmente sacrificada, restando apenas tênues lembranças que formam um quadro bastante frágil, obtido à custa de depoimentos fragmentados e poucos numerosos, acentua que por mais reduzidas que sejam as informações, não deixam de constituir uma possibilidade de comparação com a história oficial. Acima de tudo, porém, constitui para nós a oportunidade de registrar o que permaneceu na memória de alguns poucos, os mais velhos talvez, após o longo e traumatizante processo de contato interétnico. Dessa forma, talvez pudéssemos admitir que a tradição oral ou a persistência de uma memória oral equivale a uma modalidade de resistência cultural que pode ser vista, potencialmente, como mecanismo de manipulação ideológica" (Carvalho, 1977: 92/93).
Seguindo esse mesmo raciocínio, outros estudos têm considerado que apesar do acentuado contato interétnico, constata-se a permanência de modelos de tradição oral distintos do da história oficial, dada a permanência na tradição oral de uma dimensão histórica local, expressa através de categorias nativas, com significados coerentes, mesmo que marcados por transformações e acomodações culturais,
Entre esses autores podemos destacar Shalins (1990), que ao investigar a tradição oral em sociedades indígenas insulares (Havaí, Fuji, Nova Zelândia), cujas histórias se entrecuzam com
a história da Europa, observou nas narrativas a revificação funcional de categorias míticas ou a emergência de novas, processadas de forma orgânica e em movimento contínuo.
Eliade (1988), em seus estudos sobre a vida e a religião em sociedades indígenas nos adverte para o fato de que a memória nessas sociedades é caracterizada por articulações e interpretações absolutamente análogas a dos acontecimentos históricos, sustentando a tese de que “seja qual for a sua importância, o acontecimento histórico em si só perdura na memória popular e a sua recordação só inspira a imaginação poética, na medida em que o acontecimento histórico se aproxima do modelo mítico”.
Para ele, isso acontece porque a memória popular, ao invés de reter acontecimentos individuais e figuras autênticas, recorre a outras estruturas: categorias em vez de acontecimentos, arquétipos em vez de personagens históricos. A personagem histórica é assimilada ao modelo mítico (herói, etc.) e o acontecimento é integrado na categoria das ações míticas (luta contra monstros, combate entre irmãos, etc.). (Eliade 1988:15/57)
Mazzoleni (1992), nos adverte que devemos estabelecer uma crítica ao revisionismo atado à historiografia tradicionalista, que mesmo chegando a considerar as fontes orais para reconstruir o passado indígena, o faz dentro da mesma estrutura linearista, constituída de "fatos" e "datas", prendendo-se, portanto, a categorias ou valores (o devir, o progresso, a verdade histórica, o agir humano) que as culturas mitopoéticas desconhecem ou rejeitam, não dando nenhuma atenção ao sentido implícito das tradições. Dessa forma, segundo ele, “esta cruel cirurgia deixa de lado e desperdiça tesouros conceituais inestimáveis e enfatiza, ao contrário, elementos secundários (não somente para aquelas culturas) ou os reinterpreta sem verificação adequada” ( Mazzoleni, l992:175).
Vejamos, então, como essa perspectiva de análise pode ser aplicada ao caso da tradição oral entre os Pataxó, tomando como referência dois relatos de índios de Barra Velha, um colhido
por Carvalho e outros registrados por mim:
1- "Em Juacema, o filho do caboclo, do índio, pegou um bem-te-vi (índio da beira da costa mesmo, Pataxó) e esse  bem-te-vi fez uma guerra com eles. O filho do civilizado bateu no filho do caboclo e tomou o bem-te-vi. Foram prá mata chamar os outros e quando vieram fizeram uma guerra. E os outros, os Baquirá, saíram de baixo do terreno, fizeram guerra e acabou com a Juacema. Saíram de baixo do chão, tem dois buraco de onde eles saíram, os Baquirá. E os outro índio era daí de cima. Chegou os índio por terra, por cima do terreno com arco e os Baquirá por baixo, do chão... Baquirá é índio brabo, brabo mesmo. Acho que eles mora debaixo do chão que inda não descobriram essa aldeia de índio, chamam baquirá. Os antigo contava isso e prova que ainda tem lá os buraco..."(Carvalho, op. cit.: 97)
2- " Eu sô Pataxó, eu xukakai manãintê. Kitokinrré, kitokimpire, maiãoinrrei, maião, maiãoimpire e maiãoinrrei. Patassai inxé, kaiboca. Xarru manãintê.
O seguinte foi isso. Eu não alcancei isso, mas tem gente veio meu que alcançou.
Ali tinha era Bahia. Bahia era nin Juacema. E antonce começou...Lá tinha todo índio; um branco chegou, também tava morando aí. Ê o fio do índio pegô um fio de bem-te-vi. Pegô e levô. Chegô lá o fio do branco pegô o fio do bem-te-vi e matô. Aí eles não gostarum. Ele não gostarum ai forum pra matar esse. Ou matar ou tirar, como saiu mesmo. Aí dessa vez foi que acabô. E aí sumiu. Quando saiu já foi nesse lugar que é aonde tem esse buraco. Saiu lá, aquele buraco aculá. Quando ele saiu ai arrazô a Bahia, ai a Bahia arrazô. Foi assim...
Hum! esse danado, como é rapaz? Como é que ele fez aquele trabalho debaixo do chão e saiu ali e arrazô. arrazô com  a Bahia e a Bahia foi embora prá lá e tá até hoje? Diz que foi assim.
Eu não vi, só vi mesmo assim como contando. Que o mais eu vi lá, vi o jeito que ainda até hoje inda tem. Hoje inda tem caco de teia, tem prato quebrado por lá. Alguém catando lá tem, pode catar onde era a cidade. E o buraco nunca aterrou, tá lá toda vida.
O nome deles é que eu não sei, mas era índio. Mas esse era índio brabo, não era manso não, quando vê arrazô.
Que tinha índio brabo mesmo tinha. Até inda se aranja algum por ai... índio ruim, eles não são bem certo não.
Os outo não conversa nada disso, é dificil.
Não foi no meu tempo, mas a gente acha importante, muitos não sabe.
O que eu sei é isso. Eu vi, não vi, eu só vi lá o buraco que eles sairum. Papai mesmo falava: isso aqui oh (apontando), aonde sairum os índio brabo, foi que arrazô aqui a Bahia. Papai..., quando eu ia prá Porto Seguro mais ele. Isso aqui, eles saírum aqui. Arrazô e vinherum por debaixo do chão.
-Quer dizê..., os índio vinherum pro debaixo do chão? (pergunta a vizinha de Patrício)
-Rapaz! Aí é da parte de Deus mesmo, viu.
É isso que eu tô dizendo.
-E a gente vê Detinha, eles saindo? (pergunta sua vizinha à esposa de Patrício)
- Eu sei lá, eu acho que veio. Eu não sei esse caso também não ( responde a esposa de Patrício).
- A gente fica assim. A gente fica assim creditando... ( vizinha).
- Não, foi mesmo, sério mesmo. Os buraco tão lá até hoje (esposa).
 Alí, quem vem de lá, chegou em Juacema, tem um córrego. Esse córrego, de correr prá lá, ele volta prá trás, corre prá trás.
Ali, diz que ali tem toda coisa ali.
Ali tem visage, quase tem tudo alí, naquela, dentro daquela água. (Patrício Pataxó).
Se considerarmos o universo de significados subjacentes nesses depoimentos, poderemos ver que os Pataxó, ao se reportarem a Juacema, conferem a essa história determinadas características que são peculiares aos relatos de natureza mítica, ou, lembrando Eliade, relacionam acontecimentos históricos com um determinado modelo mítico.
Dessa forma, esses índios acabam nos dando mostras da permanência de uma forma peculiar de construção social da memória, em que, mesmo só dispondo de elementos residuais de sua tradição oral, apresentados de forma fragmentária, conseguem estabelecer aos mesmos um autêntico universo de significados. Em outras palavras, como diria Manuela Carneiro da Cunha (1978), disporiam de elementos residuais, mais irredutíveis.
Esses relatos nos revelam a permanência na tradição oral Pataxó de uma história que não nos é apresentada em um mesmo tempo que os acontecimentos do cotidiano, mas sim num tempo fragmentado e heterogêneo, tendo como característica básica um caráter sobrenatural.
Vistas por essa ótica, as falas dos Pataxó nos reportam, em especial, a determinados arquétipos recorrentes em várias culturas, como o mito da Grande Mãe (Eliade 1988; Shalins
1990). A Toca de Juacema associada à dimensão feminina, aos poderes da terra e do subterrâneo, ao crescimento e às ações da agricultura. Ou, como diria Shalins, o subterrâneo visto como o lugar da morte, mas ao mesmo tempo como fonte telúrica de subsistência da vida, lugar por excelência onde o “poder masculino não pode fruir ou ter efeito até que seja abarcado pelo da mulher"(Shalins, 1990:121)[1].
Assim, quando nos referimos à necessidade de uma outra leitura do mito Pataxó, a nossa preocupação é, acima de tudo, a de recuperar o mito através de seus fragmentos e versões, dando conta, dessa maneira, da existência de uma memória como tentativa de reflexão dos próprios Pataxó sobre sua existência no mundo.
Atentando para essa questão e, de modo especial, para a nossa intenção em fazer um estudo em que evidenciássemos o fato de a narrativa mítica não se tratar tão somente de uma atividade cognoscitiva, mas especialmente de uma narração que tem a finalidade específica de  encantar e divertir os seus ouvintes (cf. Oliveira Filho, 1988:107), optamos então pela realização de  um trabalho baseado na técnica de colage[2], onde os depoimentos colhidos junto aos Pataxó, os dados da consulta bibliográfica e as observações feitas em campo, foram nossa matéria prima para a elaboração de um texto de caráter poético, onde pudéssemos estabelecer um discurso que fosse síntese e, simultaneamente, análise, criando, assim, um efeito dialético, onde a história e a poesia formassem uma verdadeira simbiose.
Com o poema, buscamos também contemplar o que propõe Meihy (1991), em relação à edição de textos transcritos:
“teatralizar o que foi dito, pois, quando recria-se a atmosfera da entrevista, “procura-se trazer ao leitor o mundo de sensações provocadas pelo contato, e, como é evidente, isso não ocorreria reproduzindo-se o que foi dito palavra por palavra. Este procedimento implica técnicas sofisticadas que têm por fito trazer ao leitor a aura do momento da gravação (MeihY, 1991:30-1)
Neste sentido, buscamos não só dar conta de uma visão histórica peculiar ao grupo, onde a problemática do contato interétnico na região é vista de forma resignificada, através da fusão com categorias míticas, como também assumir uma visão dinâmica da linguagem, acentuando a peculiaridade da forma dialetal do português falado pelos Pataxó, considerando a espontaneidade e a criatividade verbais próprias a sua linguagem corrente, distanciando-nos, assim, de uma repressão lingüística ou da opressão da norma culta, marcada por um dialeto padrão.
Daí, portanto, optarmos por uma escritura embrenhada na densa teia dialetal do português falado pelo grupo, amalgamada aos vocábulos remanescentes da língua materna, o Pataxó, não mais falado, mas como que metamorfoseado para, com isso, podermos acentuar, como os próprios índios o fazem, um dos elementos constitutivos fundamentais de sua etnicidade.
Ao evidenciarmos no poema uma outra perspectiva lingüística, não nos arvoramos a definir novas regras lingüísticas, mas sim fazer uso da "licença poética" com o objetivo precípuo de realçar nosso propósito, no que lembramos de Maiakovski, quando este dizia que o poeta é aquele indivíduo que cria suas próprias regras poéticas.
Ditas estas palavras, vejamos então o poema:
JUACEMA: O ESPELHO ENCANTADO DA MARAVILHA
EU SÔ PATAXÓ / EU XUKAKAI MANÃINTÊ / KITOKINRRÉ KITOKIMPIRE PATASSAI INXÉ / XARRU
MANÃINTÊ / VIEMU DE DIBAXU DO CHÃUN
DO OCO DE DENTRO / DO ÂMAGO DE JUACEMA / JUACEMA JOKANA
MÃIN DE TUDU / DE ONDE TUDU CUMEÇÔ / VIVÊ NOISE QUEREMU
SOMU PATAXÓ / GENTE QUE NEM OCÊ / MAISE DE DIFERENTIE
NOISE TEMO NOSSA ORIGE / NOSSO INCANTO / NOSSO AWÊ
NOSSO CANTO DO NACÊ
JÁ SE PASSARUM MUTIA GENTIE / LÁ INCIMA / A LUA HÁ DE DIZÊ
MUTIA GENTE ELA VIU / ELA VÊ / OTRAS TANTA / NIN JUACEMA
SÓ SE SABE / QUE TEIM / MAISE NUM SE PODE VÊ / SÃU UISE BAKIRÁ
NOSSUS IRMÃUN / QUE INDA VEVE /DE DIBAXU DO CHÃUN
CUNTA UISE ANTIGU / QUE CUMA A GENTE / ELISEI É GENTE TUMBEIM
TEIM UMA INSTÓRIA DELISE / MUTIO DA FALADA / QUE UISE VÉIO
GULARDA DE MIMÓRIA / E CULANDO A LUA ALUMEIA
 ELISE GULOSTA DE CUNTÁ /É A INSTÓRIA / DUM TAO BIN-TI-VI
E SE PASSÔ / NESSE MERMO LUGÁ / PEÇO LINCEÇA A LUA
PRA MODE AQUI / PUDÊ CUNTÁ / NIN JUACEMA / 0 FIO DO CABOCU
DO ÍNDIO, NÉ / ÍNDIO DA BERA / DA COSTA MERMO, PATAXÓ
PEGÔ UM BIN-TI-VI / E DEU DE SAÍ / CUM ELE / PRÁ TUDO
CULANTO É LUGÁ / SE SUCEDU / QUE O FIO DO CINVILIZADO
DO PURTUGEUSE / BUTO OIO GRANDE NO BIN-TI-VI
BATEU NO FIO DO CABOCO / TUMÔ O BIN-TI-VI / E SE FOI ...
AÍ UISE CABOCO / SE DANARUM / FORUM PRÁ MATA
PRÁ MODE CHAMÁ UISE OTRO ÍNDIO / PRÁ SE AJUNTÁ
PRÁ TÊ FORÇA / E TUMÁ O PASSARIM / DE VORTA
MAISE NUM É / QUE ESSIS OTRO ÍNDIO /QUE ELISE CHAMARUM
UISE BAKIRÁ / SAIRUM DE DIBAIXO DO CHÃUN
 TEIM DOISE BURACU LÁ / LÁ DONDE SE CHAMA
 INSPEIO INCANTADO DA MARAVIA /DONDE O MAR GRANDE SE INSPEIA
 E CULANDO A BRUMA SE ALEVANTA / ACUNTECE DE TUDO
 A GENTE VÊ É COUSA / E É DE LÁ QUE SAIRUM ESSIS ÍNDIO
 UISE BAKIRÁ / E NOISE UISE PATAXÓ / JÁ ERA DALÍ DE CIMA
CHEGAMO PRU TERRA / PRU CIMA DO TERRENO / CUM ARCO
E UISE BAKIRÁ / PRU BAIXO / DO CHÃUN
E AÍ SE DEU UMA GEURRA DANADA / DANADA MERMO
É, MAISE NESSA GEURRA / TUDO CABÔ PRÁ NOISE
ARRAZÔ CUM A GENTE / KIGEME QEMÔ / MANGUTE FARTÔ
FOI FIO SEIM PAI / MÃIN QUE BRANCO LEVÔ / DAÍ PRÁ FRENTE
SÓ DEU COISA RUIN / MAISE BAKIRÁ /BAKIRÁ É ÍNDIO BRABO
BRABO MERMO / ELISE RESISTIRUM / E INDA TÃUM VIVO / E VEVEM
DE DIBAXU DO CHÃUN / ACHO QUE NUNCA DISCUBRIRUM
ESSA ARDEIA DE ÍNDIO / CHAMADO BAKIRÁ / UISE ANTIGO CUNTAVA ISSO
E INDA SE PROVA / PRO MODE SE TÊ / UISE BURACO LÁ.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSSI, Ecléia. Memória e Sociedade: Lembrança de  Velhos. São Paulo, T/A Queiroz- EDUSP, 1987
CARDOSO DE OLIVEIRTA, Roberto. Urbanização e  Trabalhismo, Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
__________. O Índio no Mundo dos Brancos. São Paulo, Pioneira, 1976.
__________. Etnicidade, Etnia e Estrutura Social. São  Paulo, Pioneira, 1976.
CARVALHO, Maria do Rosário G. de (org). Identidade Étnica Mobilização Política e Cidadania. Salvador, UFBA/EGBA, 1989 (Coleção Cidadania).
__________. Os Pataxó de Barra Velha. Seu Subsistema  Econômico. Salvador, Pós-Graduação em Ciências  Humanas da UFBA, 1977 - Dissertação de mestrado.
ELIADE, Mircea, O Mito do eterno Retorno. Lisboa,  Edições 70, 1988.
FERREIRA, M & AMADO, J. (org.) Usos e Abusos da  História Oral. Rio de Janeiro, FGV, 1996.
GUIMARÃES, Francisco Alfredo. Vui-Uata-In (União de  Todos): A vivência como dispositivo pedagógico no  Tratamento da temática indígena. Salvador, FACED-UFBA, 1996 (Dissertação de Mestrado).
GUIMARÃES, Francisco Alfredo e DRUMMOND,  Washington Luís. Vivências de Etnohistória Indígena.  Salvador, Boletin ANAÍ-BAHIA, nº 15, agosto/dezembro - 1994
MAZZOLENI, Gilberto. O Planeta Cultural: Para uma  antropologia histórica. São Paulo: EDUSP; Instituto  Italiano di Cultrura di San Paolo e Instituto Cultural  Ítalo-Brasileiro, 1992.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Canto de Morte Kaiowá.  história oral de vida.São Paulo: Loyola, 1991.
-------------. Manual de História Oral. 2ª ed. São Paulo  Loiola, 1998.
SAMPAIO, José Augusto Laranjeiras. Levantamento  Histórico Sobre os Índios Pataxó. Salvador: ANAÍBA, 1995(arquivo).
WIED-NEUWIED, príncipe de. Viagem ao Brasil nos Anos 1815-1817, São Paulo: Ed. Nacional, 1958.




[1] Esse comentário feito por Shalins se refere ao estudo de um mito Fiji, na Polinésia, que, em suas  menções à Terra, enquanto entidade mítica, apresenta semelhanças  com os relatos Pataxó.
[2] Técnica baseada na utilização de fragmentos (objetos, imagens, sons, palavras etc.),
levando-os, num processo de livre associação, a recriações com suas peculiaridades originais alteradas.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

RESENHA - A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS - CAPÍTULO I - GEERTZ CLIFFORD

Uma Descrição Densa
C. Geertz (1926 – 2006) é o fundador da Antropologia Interpretativa, representando um divisor de águas no tema. É uma contraposição ao modelo Levi-straussiano da antropologia estrutural, propondo uma nova Teoria Antropológica. 
O autor possui a ambição de falar em culturas (no plural) do ser humano. A ação humana é uma atividade estruturante, um efeito de superfície. Geertz busca o que pode ser inferido/interpretado nos relatos etnográficos. Hoje há uma grande cautela em se explorar o inconsciente através das ações reais como manifestações de ações do consciente.
A interpretação do que acontece, segundo o autor, não pode se distanciar daquilo que acontece. Para ele, o trabalho do antropólogo é realizar etnografia. A obra “Grande Sertão – Veredas” de Guimarães Rosa pode ser considerada um exemplo ao que Geertz se refere no Brasil. 
Um ser humano pode ser um enigma completo para outro ser humano. Nós não compreendemos o povo, ainda que dominemos seu idioma. Nós não podemos nos situar entre eles. Neste trecho, ele faz uma crítica a B. Malinovski. Para Geertz, falta interpretação à descrição etnográfica de Malinovski.
A Antropologia Interpretativa exige grande rigor e precisão conceitual.
O antropólogo tenta entender o que acontece, mas também está no meio do acontecimento. Por isso, teorias antropológicas também são temporárias, elas também estão no meio da travessia. 
A cultura nunca é igual, é sempre uma recriação. O ser humano expressa sua experiência vivida. As especificidades são complexas e possuem um caráter único. Generalizações devem ser feitas com critérios. Para compreender o que o ser humano faz, é necessário entender uma ação dentre várias outras e localizá-la, caracterizá-la. No estudo da cultura, a tarefa essencial da construção teórica não é codificar regularidades abstratas, mas tornar possíveis descrições minuciosas, não generalizar através dos casos, mas generalizar dentro deles. 
Geertz recupera o conceito de Max Weber, que afirma que o homem é um ser amarrado em teias de significados que ele mesmo teceu. A cultura é, portanto, uma ciência interpretativa, em busca do significado. O comportamento é uma ação simbólica. O fluxo do comportamento (ação social) faz com que as formas culturais se articulem. O significado emerge do papel que desempenham. A cultura é pública porque o significado o é. No estudo da cultura, os significantes não são sintomas ou conjunto de sintomas, mas atos simbólicos e o objetivo não é a terapia, mas a análise do discurso social.
O autor esclarece que para o desenvolvimento do estudo, não é necessário se tornar um “nativo”, mas conversar com eles. Sob este aspecto, o objetivo da antropologia é o alargamento do universo do discurso humano. Compreender a cultura de um povo expõe a sua normalidade sem reduzir a sua particularidade.
Os textos antropológicos são interpretações (de qualidade discutível, uma vez que apenas um “nativo” pode interpretar sua cultura). Antropologia é, portanto, ficção, algo construído, modelado. Não falsa, mas não-factual ou apenas experimentos de pensamentos. 
Embora a cultura possa existir no posto comercial, no forte da colina, no pastoreio de carneiros, a antropologia existe nos livros, nos artigos, nas conferências, na exposição e no museu como ocorre nos filmes.
É necessário haver um mínimo coerência para que sejam caracterizados os sistemas culturais. 
A descrição etnográfica para Geertz é, portanto, interpretativa e microscópica (os antropólogos não estudam as aldeias, eles estudam nas aldeias).
Há uma série de características de interpretação cultural que tornam ainda mais difícil o seu desenvolvimento teórico. A primeira é a necessidade de a teoria conservar-se mais próxima do terreno do que parece ser o caso em ciências mais capazes de se abandonarem a uma abstração imaginativa. Somente pequenos vôos de raciocínio tendem a ser efetivos em antropologia; vôos mais longos tendem a se perder em sonhos ilógicos, em embrutecimentos acadêmicos com simetria formal.
As idéias não aparecem inteiramente novas a cada estudo, são adotadas de outros estudos relacionados e refinadas durante o processo, aplicadas a novos problemas interpretativos. Se deixarem de ser úteis com referência a tais problemas, deixam também de ser usadas e são mais ou menos abandonadas. Se continuam a ser úteis, dando à luz novas compreensões, são posteriormente elaboradas e continuam a ser utilizadas. 

Olhar as dimensões simbólicas da ação social não é afastar-se dos dilemas existenciais da vida em favor de algum domínio empírico de formas não-emocionalizadas, é mergulhar no meio delas. A vocação essencial da Antropologia interpretativa não é responder às nossas questões mais profundas, mas colocar à nossa disposição as respostas que outros deram e assim incluí-las no registro de consultas sobre o que o homem falou

domingo, 4 de abril de 2010

FATORES DETERMINANTES NA INTEGRAÇÃO CURRICULAR

Diversos fatores concorrem para que a integração curricular se efetive. São fatores que se entrelaçam e dependem do desenho da educação integral proposta – que, no meu entender, se desenvolve em tempo integral –, seus objetivos, a quem visa atender, quem desenvolve as atividades. É bom esclarecer um de seus pressupostos: a integração curricular não é espontânea, ela é construída, depende de intenção e planejamento, de trabalho coletivo e organização para que possa ser alcançada. Alguns aspectos facilitam a integração curricular; o que não significa que garantam. Outros dificultam essa integração; o que não quer dizer que a impeçam.
Tomemos como modelo uma proposta de educação integral que tenha todos os fatores favoráveis para essa integração: primeiro, ela se dá em tempo integral para alunos e professores, assim toda a comunidade escolar pode desfrutar do contato prolongado ao longo do dia, todos os dias; segundo, todos os alunos estão incluídos no projeto, portanto não há necessidade de separar atividades curriculares num turno e atividades de ampliação curricular/jornada em outro, permitindo a organização do horário que entremeia atividades de concentração intelectual com atividades de expressão artística, por exemplo; dessa forma, os profissionais de diferentes formações terão oportunidade de convivência próxima, trocando ideias, incorporando novas práticas; terceiro, há disponibilidade de infraestrutura e espaço na escola para o desenvolvimento das diversas atividades, desse modo os vários profissionais e alunos têm possibilidade de aproximação maior porque partilham lugares comuns. Por mais que se possam organizar atividades no espaço dentro da escola, facilitando proximidade entre os participantes da comunidade escolar, é sempre estimulante, desejável e enriquecedor desenvolver atividades em espaços da cidade/município, não por falta de espaço escolar, mas pelo objetivo mesmo de vivenciar o espaço extraescolar.
Apesar do modelo descrito, os fatores que favorecem a integração curricular por si só não são suficientes para que ela seja construída, mesmo supondo as condições necessárias como recursos materiais e humanos suficientes, além da infraestrutura adequada. É indispensável que os objetivos do projeto de educação integral sejam não apenas conhecidos por todos os integrantes da comunidade escolar, como partilhados, processo que ocorre quando se dá a construção coletiva desses objetivos. Vamos supor um município que tenha como programa de governo desenvolver educação integral em tempo integral em determinado número de escolas.
O processo de discussão interno da escola para avaliar se ela apresenta condições para aderir a esse projeto já constitui a primeira etapa da sua discussão coletiva. Para que a adesão se fortaleça, processo que ocorre no debate para operacionalização do projeto, é necessário garantir tempo regular de discussão coletiva, previsto, inclusive, no calendário escolar. Essa discussão coletiva é um processo formativo que deve atender a demandas da própria escola como a temas que os implementadores do projeto considerem pertinentes. o que se quer destacar é que o projeto de educação integral é da escola e não de alguns professores, portanto a escola o constrói na medida em que pavimenta suas etapas através da sua discussão coletiva. É um processo formativo de equipe, que pode ser auxiliado pela presença de especialistas para aprofundar determinados temas, como também pela instituição da função de coordenador do projeto, professor da escola que atue exatamente no sentido de buscar a integração das diversas linguagens através da articulação dos vários profissionais organizados no tempo e no espaço.
Um fator que pode favorecer a integração curricular diz respeito aos profissionais que vão desenvolver o projeto. Se são todos professores, apesar da grande variedade de concepções de educação e de mundo com as quais se identificam, já se parte de uma base comum para o desenvolvimento de qualquer projeto, porque partilham, de certa maneira, de formação equivalente, de condições de trabalho semelhantes, legitimados por processos regulatórios comuns. Se são profissionais com formações diversas e em níveis diferenciados, esse processo de integração provavelmente vai requerer esforço maior, tendo em vista que a aproximação entre diferentes ou desiguais pode ser delicada, às vezes conflituosa, e supõe a construção de bases compatíveis como carga horária, remuneração, participação em decisões, entre outras. Não se quer dizer que trabalhar exclusivamente com professores é a melhor proposta; o que se quer é chamar atenção para o fato de que a integração da diversidade pede mais cuidado. Vale lembrar que nem sempre há professores disponíveis para a variedade de linguagens que se quer oferecer, como também que a diversidade de profissionais é muito enriquecedora.
Nos municípios que já pesquisamos, particularmente no Ceará, temos visto projetos de educação integral com professores, com monitores e com ambos. de maneira geral, para as atividades mais “curriculares” como reforço escolar em Sobral, tarefa orientada em Eusébio, e acompanhamento pedagógico nos moldes do Programa Mais Educação, em Maracanaú, a opção é o trabalho do professor. Como também era nos CiEPs de darcy ribeiro para o estudo dirigido. Para as atividades artísticas, esportivas, artesanais e outras tanto encontramos professores como monitores ou equivalentes. Em alguns municípios, por falta de profissional disponível; neste caso costuma-se exigir Ensino Médio completo e relação institucional reconhecida, como é o caso de mestres de capoeira, de participantes de grupo de teatro ou de dança. Em outros municípios, recorre-se a artesãos que não são professores, mas têm saber próprio reconhecido e fortalecem articulação comunitária, como vimos em Eusébio com rendeiras e outros artesãos.
A incorporação desses profissionais à vida escolar é, sem dúvida, enriquecedora, mas a solução funcional para sua integração ainda é um desafio. Na época dos CiEPs, esta atividade era desenvolvida pelo animador cultural, considerada uma função indispensável para a articulação da escola com a comunidade. Entretanto, não se encontrou solução jurídica, na época, para que pudessem participar de concurso público.

Começamos este texto com a proposta de educação integral em tempo integral que envolve todos os alunos e os professores, partindo do pressuposto de que esse fato facilita o processo de integração curricular. o que fazer se o projeto não inclui todos os alunos, nem todas as atividades são desenvolvidas por professores, nem a escola conta com os espaços necessários para todas as atividades? Essas circunstâncias tornam premente a discussão coletiva sobre o projeto, com encontros regulares previstos, para que todos se sintam não apenas conhecedores, mas também responsáveis pelas soluções encontradas para: prioridade para demandas de infraestrutura, organização do espaço, organização do tempo, critério de prioridade de alunos, critério de seleção de profissionais, perfil de coordenador, processo de formação, entre outros tantos temas que a educação integral requer.

sábado, 3 de abril de 2010

A NATUREZA DA EDUCAÇÃO INTERCULTURAL E SUAS IMPLICAÇÕES ANTROPOLÓGICAS NA ESCOLA INDÍGENA

Do Ponto De Vista De Um Não Nativo
RESUMO
Partindo de contribuições teóricas dos antropólogos Clifford Geertz e Marshall Sahlins e do sociólogo Pierre Bourdieu, o artigo pretende discutir a natureza da Educação Intercultural e os impasses e as possibilidades que esta coloca aos atores sociais presentes em uma escola indígena. A partir das experiências do autor, professor não índio licenciado em História, na Escola Municipal Indígena "Ejiwajegi" – Polo, localizada no Território Indígena Kadiwéu (município de Porto Murtinho, estado de Mato Grosso do Sul), evidenciam-se questões pertinentes às relações entre indígenas e não índios no campo social da Educação, em uma situação histórica específica. Mais do que respostas, o artigo propõe uma série de perguntas para as quais a Antropologia, área de conhecimento que privilegia o reconhecimento do outro, pode oferecer valiosos instrumentos de compreensão. Assim, a Educação Escolar Indígena, pensada enquanto uma das faces da Educação Intercultural, é delineada como um projeto em construção, no qual participam índios e não índios, sob pena de não se estudá-la globalmente, com seus múltiplos aspectos, inúmeros desafios, diversas maneiras de realizar-se e levando-se em conta todos aqueles que estão nela, direta ou indiretamente, envolvidos.
INTRODUÇÃO
"Em país de cegos, que, por sinal, são mais observadores que parecem, quem tem um olho não é rei, é um espectador." (Clifford Geertz)
O presente artigo tem como proposta discutir a Educação Intercultural a partir de contribuições teóricas da Antropologia e da Sociologia, além da experiência profissional que desenvolvi junto aos índios Kadiwéu, como professor dos Ensinos Fundamental e Médio, nos últimos anos. O Território Indígena Kadiwéu está localizado no município de Porto Murtinho, na região do Pantanal, estado de Mato Grosso do Sul. Nele vivem cerca de 1.400 índios de três etnias distintas: Kadiwéu, Kinikinawa e Terena, com predominância da primeira (José da Silva, 1999). O processo de sedentarização dos grupos, ocorrido desde o final do século XIX e ao longo do século XX (Idem, 2002a) culminou com a necessidade da instalação de escolas dentro do Território Indígena, que possui aproximadamente 538. 536 hectares e está dividido em cinco aldeias: Barro Preto, Bodoquena, Campina, São João e Tomázia.
Os Kadiwéu são falantes da língua Guaikuru e únicos representantes dessa família linguística no Brasil. Segundo dados da Prefeitura Municipal de Porto Murtinho, através do Censo Kadiwéu 1998, há mais de 1.000 índios Kadiwéu habitando o Território Indígena.
Estes índios, sobre os quais há uma vasta bibliografia produzida por antropólogos, viajantes e cronistas (Ribeiro, 1980), sempre chamaram a atenção pelo fato de sua sociedade ser fortemente estratificada, dividida entre "senhores" e "cativos" (Siqueira Jr., 1993). No passado, havia ainda o grupo dos "guerreiros", desaparecido com o fim das guerras intertribais e a sedentarização do grupo (Pechincha, 1994).
Há notícias da existência de escolas presentes entre os Kadiwéu desde a segunda metade do século XX. Nas décadas de 1950, 60 e parte da década de 70 o ensino na aldeia Kadiwéu foi ministrado através dos órgãos indigenistas – primeiramente SPI (Serviço de Proteção aos Índios) e depois FUNAI (Fundação Nacional do Índio). A partir do final da década de 1970, a FUNAI passou a contratar profissionais para ministrar aulas aos índios.
Com os missionários do então Summer Institute of Linguistics, hoje Sociedade Internacional de Linguística (SIL), desenvolvendo trabalhos de tradução do Novo Testamento desde o final da década de 1960 junto aos Kadiwéu, a escola absorveu parte desses trabalhos linguísticos, no que pode ser considerado como um "ensino bilíngue de transição". A história da Educação escolar entre os Kadiwéu nesse período foi marcada por um ensino livresco, impregnado de castigos físicos e psicológicos, ministrado por professores não índios despreparados para realizar uma efetiva Educação Intercultural (José da Silva, 2002b).
No final da década de 1990 a situação começou a mudar favoravelmente aos índios. Entraram na cena escolar professores indígenas da própria comunidade, reivindicando qualidade e respeito por um trabalho pedagógico diferenciado. Isso ocorreu a partir do momento em que a Prefeitura de Porto Murtinho inseriu as escolas do Território Kadiwéu em sua Rede Municipal de Ensino, oferecendo-lhes suporte técnico, através da contratação de professores não índios habilitados e comprometidos em auxiliar na construção de uma Educação Escolar Indígena intercultural. As mudanças ocorridas nos últimos anos na Escola Kadiwéu, entretanto, não fogem a um contexto maior, ocorrido em todo o Brasil e que contou  efetivamente com a participação de movimentos indígenas e indigenistas. De acordo com  Antonella Tassinari,
"Vivemos um momento de alargamento das políticas e ações voltadas para as escolas indígenas. Isso ocorreu, inicialmente, como fruto dos movimentos indigenistas e das reivindicações de comunidades indígenas e, mais recentemente, como consequência do tão citado artigo constitucional que reza: 'O ensino fundamental será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem'." (Tassinari In: Lopes da Silva, Ferreira, 2001; itálicos no original)
O quadro que respaldou essas mudanças começou a ser engendrado pela Constituição Federal de 1988, ao estabelecer novos preceitos jurídicos em relação às sociedades indígenas brasileiras. Rompendo com a política de integração vigente até aquele momento, garantiu os  direitos à diferença e à autonomia desses grupos, cabendo ao Estado o dever de garanti-los.
Desde então, a Educação Escolar Indígena ganhou base legal como subsistema diferenciado das demais modalidades de ensino, tanto no que diz respeito às línguas e às culturas, quanto  aos processos próprios de aprendizagem. As mudanças de paradigma na concepção da  Educação Escolar destinada às sociedades indígenas deixou para trás o caráter integracionista  e assumiu o princípio do reconhecimento da diversidade sociocultural e linguística do país e  do direito a sua manutenção.
A partir da Carta Constitucional, outras leis, decretos e portarias foram sendo incorporados à jurisprudência brasileira, garantindo e regulamentando uma Educação Escolar Indígena intercultural, bilíngue, específica e diferenciada. Em Mato Grosso do Sul, essas garantias consolidaram-se inicialmente na Constituição Estadual/ 89, nas Diretrizes Gerais para a Educação Escolar Indígena no MS e nas deliberações do Conselho Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul. Para os Kadiwéu, o que lhes era garantido por direito passou a valer de fato com a entrada na cena escolar dos professores índios e com a criação da escola indígena. Assim, os tempos do ensino baseado na cópia, na "decoreba" e em conteúdos extraídos dos poucos livros didáticos que chegavam à aldeia ficaram para trás, nos "tempos de  antigamente". Os "tempos do presente" indicam a necessidade de se pensar e realizar a Educação Escolar Indígena essencialmente como uma das múltiplas faces da Educação Intercultural.
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL: RESPOSTAS, DESAFIOS?
Partindo de algumas contribuições teóricas dos antropólogos Clifford Geertz e  Marshall Sahlins e do sociólogo Pierre Bourdieu, pretendo, então, discutir a natureza da Educação Intercultural e os impasses e as possibilidades que esta coloca aos atores sociais presentes em uma escola indígena. Com isso, procuro evidenciar questões pertinentes às relações entre indígenas e não índios no campo social da Educação, em uma situação histórica específica. Mais do que respostas, proponho uma série de questionamentos, verdadeiros desafios para os quais a Antropologia, área de conhecimento que privilegia a alteridade, o reconhecimento do outro, pode oferecer valiosos instrumentos de compreensão.
Em um dos capítulos da obra O saber local (1998), Clifford Geertz comenta a respeito da natureza do entendimento antropológico, a partir da publicação (póstuma) dos diários de campo de Bronislaw Malinowski, considerado o pai da moderna Etnografia. Geertz revela que "o debate que se originou com a publicação do diário concentrou-se, naturalmente, nos detalhes não essenciais, e, como era de se esperar, ignorou a questão mais importante que o  livro continha" (Geertz, 1998). E qual seria essa questão? Justamente o fato de que não é  necessário ser um "nativo" para conhecer um, ou melhor, a interpretação do modo de vida de uma sociedade não deve ficar limitada pelos horizontes mentais dessa mesma sociedade. Eis aí um interessante ponto de partida para a reflexão que desejo provocar sobre Educação Intercultural.
Quando se fala nela, vinculando-a à Educação Escolar Indígena, costuma-se afirmar categoricamente que ninguém melhor do que os professores índios para debatê-la. É evidente que a participação destes é imprescindível no debate e na execução do processo, mas algumas perguntas, como professor não índio de crianças e jovens indígenas por um longo tempo, povoam a minha cabeça:
– É exclusivo de um professor índio o conhecimento e a compreensão de como se processa a Educação Escolar Indígena?
– Uma interpretação exclusivamente indígena da Educação Intercultural não corre o risco de ficar limitada aos horizontes mentais de um povo, como sugere a instigante provocação de Geertz?
– O que fazer quando os professores índios que discutem os processos formais de Educação para seu próprio povo, o fazem com base no ensino que receberam dentro ou fora das aldeias, completamente alheio à realidade das mesmas?
– Afinal, como sugere Bourdieu (1998), quem é a voz autorizada para falar em  nome das sociedades indígenas e das escolas encontradas no meio delas?
Desde já afirmo partir do ponto de vista de que existem vários interlocutores em uma  aldeia e de que a voz autorizada, na expressão de Bourdieu, pode mudar de acordo com a situação histórica vivida por determinada sociedade indígena. Desconsiderar essa diversidade de atores em cena no campo social em questão, é fechar os olhos (tornar-se cego?) para a presença de igrejas (Católica, protestantes, etc.), do órgão indigenista oficial (que, em muitos casos, ainda exerce uma forte tutela sobre os índios), da política local e dos acordos que são firmados cotidianamente entre os próprios índios e com a sociedade envolvente. Há, portanto, uma profusão de vozes que participam desse processo, por vezes conflituoso.
Isto não significa colocar os indígenas na categoria de vencidos, dominados, pois uma coisa que aprendi nestes anos de convivência com os Kadiwéu, como professor e estudante de Antropologia, foi que onde o senso comum enxerga "dominação", "perda de cultura", etc., pode estar ocorrendo uma atualização da tradição, como sugere João Pacheco de Oliveira em seus estudos sobre os Ticuna (Oliveira, 1999). Por essa razão, faço uso de categorias da  Antropologia Histórica, para as quais a obra de Marshall Sahlins é substancial na discussão  sobre estrutura histórica e na demonstração de como um povo "nativiza" noções e categorias de outros, reelaborando-os a partir de suas próprias experiências (Sahlins, 1990). Com isso, o conceito de escola indígena enquanto fronteira, proposto por Antonella Tassinari é adequado, a meu ver, para se pensar a escola dos dias de hoje entre os Kadiwéu, pois
 "a escola indígena, como todo processo de ensino, também constitui fonte intermitente de intercâmbio entre prática/ teoria. É também um espaço de encontro entre dois mundos, duas formas de saber ou, ainda, múltiplas formas de conhecer e pensar o mundo: as tradições de pensamento ocidentais, que geraram o próprio processo educativo nos moldes escolares, e as tradições indígenas, que atualmente demandam a escola. Por tais características, que colocam a escola indígena em situações intersticiais, sugiro ser fértil considerá-la, teoricamente, como 'fronteira' o que poderá ser extremamente útil para compreender melhor seu funcionamento, suas dificuldades e os impasses provocados pelas propostas de 'educação diferenciada'." (Tassinari In: Lopes da Silva, Ferreira, 2001)
Fronteira, espaço entre dois mundos distintos, mas não excludentes: este é o sentido da escola indígena. Será o da Educação Intercultural? Não estaria na base dessa Educação um profícuo diálogo entre culturas? Os Kadiwéu, demonstrando um alto grau de apropriação e reelaboração de códigos não indígenas, através de suas práticas escolares atuais, remetem às  ideias de Sahlins sobre estrutura e história em que "o grande desafio à antropologia histórica, (...), não é meramente saber como os eventos são organizados pela cultura, mas como, nesse  processo de transformação, a cultura é reordenada e reorganizada" (Sahlins, 1990). Em outras palavras, Sahlins inverte a ideia estruturalista de que "quanto mais as coisas mudam, mais  continuam as mesmas" para "quanto mais as coisas continuam as mesmas, mais mudam".
A Escola Indígena torna-se, então, "... um instrumento para a interlocução entre os saberes da sociedade indígena e a aquisição de outros conhecimentos: pontilhão de dois caminhos, lado a lado, de conhecimentos indígenas e conhecimentos não-indígenas" (Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, 1998). Com isso deve reconhecer e manter a diversidade sociocultural e linguística, promovendo uma situação de comunicação entre culturas distintas, não considerando uma superior à outra. O estímulo ao entendimento e ao respeito entre diferentes identidades étnicas não pode, entretanto, mascarar  que as relações entre índios e não índios no Brasil vêm ocorrendo historicamente em contextos assimétricos de distribuição de poder.
Assim, há um cuidado especial ao se utilizar as contribuições de Geertz como um referencial antropológico no debate sobre Educação Intercultural, pois, entre outras coisas, "o  exame da natureza ideológica e do saber local exige que nos atenhamos ao contexto histórico em que esse saber opera" (Biersack In: Hunt, 1992). E se "o homem é um animal suspenso  nas teias de significado que ele próprio teceu", como sugere Clifford Geertz (1978), claramente inspirado em Max Weber, é o ato de tecer, não somente as teias; é a história, não somente a cultura; é o processo de textualização, não somente o texto, que devem ser pensados (Biersack In: Hunt, 1992). Os não índios não podem mais se apresentar como únicos fornecedores de conhecimento antropológico (Ibidem), mas não se pode desconsiderar o que  já foi produzido e tirá-los da cena do debate da Educação Escolar Indígena (já que, historicamente, seriam os "opressores", "vilões", "dominadores", etc.), em prol de uma fala exclusivamente indígena ("oprimidos", "vítimas", "dominados", etc.), criando uma dicotomia completamente sem sentido.
CONCLUSÃO
A Educação Escolar Indígena, enquanto uma das múltiplas faces da Educação Intercultural, deve ser pensada nos dias atuais como um projeto em construção, no qual participam índios e não índios, sob pena de não se estudá-la globalmente, com seus múltiplos aspectos, inúmeros desafios, diversas maneiras de realizar-se e levando-se em conta todos aqueles que estão nela, direta ou indiretamente, envolvidos. Cada sociedade indígena encontrará as respostas, menos ou mais adequadas, para enfrentar a situação histórica no que diz respeito à Educação Escolar (Intercultural?) dentro das aldeias. A um "não nativo", como eu, coube e cabe muitas vezes o papel de espectador, porém, não de um espectador passivo que assiste a tudo sem elaborar o processo e dele participar. No caso dos Kadiwéu, os "tempos de antigamente" representam a época em que se consideravam simbolicamente "cativos" da escola. Hoje, estabelecendo um rico e, muitas vezes, difícil diálogo com os diversos atores sociais presentes nas aldeias, especialmente os não indígenas, veem-se como "senhores" do conhecimento e dos processos formais de Educação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIERSACK, Aletta. Saber local, história local: Geertz e além. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. São Paulo: EDUSP, 1998.
________________. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI). Brasília: MEC/ SEF,  1998.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
_______________. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis:
Vozes, 1998.
JOSÉ DA SILVA, Giovani. Delimitando fronteiras físicas, construindo fronteiras sociais e simbólicas: os Kadiwéu e a sociedade não indígena no século XX. Anais do Seminário  Fronteiras étnico-culturais, fronteiras da exclusão: o desafio da interculturalidade e da equidade. Campo Grande: Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), 2002a.
_______________________. Dias melhores virão: educação escolar entre os Kadiwéu, Kinikinao e Terena da Reserva Indígena Kadiwéu, município de Porto Murtinho, Mato Grosso do Sul. Jahui – Boletim do Museu do Índio da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, ano 2, volume 2, p. 17 – 18, 1999.
______________________. No tear da memória: história da educação escolar entre os índios
Kadiwéu, de Mato Grosso do Sul (1979-1999). Anais do II Congresso Brasileiro de História da Educação. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), 2002b.
OLIVEIRA, João Pacheco de. Ensaios em antropologia histórica. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999.
PECHINCHA, Mônica T. Soares. Histórias de admirar: mito, rito e história Kadiwéu. Brasília: Universidade de Brasília (UnB), 1994. (Dissertação de Mestrado em Antropologia Social).
RIBEIRO, Darcy. Kadiwéu: ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza. Petrópolis: Vozes, 1980.
SAHLINS, Marshall. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
SIQUEIRA Jr, Jaime Garcia. Esse campo custou o sangue de nossos avós: a construção do tempo e espaço Kadiwéu. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1993. (Dissertação de Mestrado em Antropologia Social).

TASSINARI, Antonella Maria Imperatriz. Escola indígena: novos horizontes teóricos, novas fronteiras de educação. In: LOPES DA SILVA, Aracy, FERREIRA, Mariana Kawall Leal (orgs.). Antropologia, história e educação: a questão indígena e a escola. São Paulo: FAPESP/ Global/ MARI, 2001