Neste
texto, falaremos de um estudo de antropologia histórica junto ao povo indígena
Pataxó, da aldeia Barra Velha, em Porto Seguro-Ba., Com o propósito de mostrar
alguns elementos constitutivos de um tema histórico próprio desses índios.
Ao
consultarmos as diversas fontes históricas a respeito do povo identificado como
Pataxó, constatamos que as mesmas se referem a este como sendo um grupo nômade
que vivia perambulando em contato com outras etnias entre as bacias dos rios
João de Tiba e São Mateus, no Sul da Bahia e que foi submetido ao aldeamento em
1861, junto com outros povos como o Maxakalí, o Abakirá, o Botocudo e o Tupiniquim,
na aldeia de Barra Velha, local que atualmente denominam de Aldeia Mãe, pois passaram
a ocupar outras áreas nos municípios de Santa Cruz Cabrália, Itamaraju e Prado,
constituindo-se no maior povo indígena do Estado, com uma população aproximada
de 5.426 pessoas, conforme estimativa feita pela FUNAI em 1999.
Dado
ao largo tempo de contato com o “mundo dos brancos”, a primeira impressão que se
tem no contato com os Pataxó, é a de que haveria um abandono das práticas
tradicionais relativas ao sistema sócio-cultural do grupo, e, até mesmo, o
desaparecimento da tradição oral, graças ao longo do processo de inserção
forçada no modelo dominante, sobretudo se considerarmos a situação por eles
vivida no contexto da exploração turística na região de Porto Seguro-Ba.
Contudo,
estudos sobre a tradição oral realizados junto a povos indígenas nos levam a refletir
sobre essa questão, nos fazendo ver a ocorrência de fenômenos bastante
significativos de manipulação e resignificação da memória histórica em que a
noção de perda é relativizada, sendo exemplo disso as observações de Carvalho
(1977), a respeito dos Pataxó:
“A memória histórica foi
lastimavelmente sacrificada, restando apenas tênues lembranças que formam um
quadro bastante frágil, obtido à custa de depoimentos fragmentados e poucos
numerosos, acentua que por mais reduzidas que sejam as informações, não deixam
de constituir uma possibilidade de comparação com a história oficial. Acima de tudo,
porém, constitui para nós a oportunidade de registrar o que permaneceu na
memória de alguns poucos, os mais velhos talvez, após o longo e traumatizante
processo de contato interétnico. Dessa forma, talvez pudéssemos admitir que a
tradição oral ou a persistência de uma memória oral equivale a uma modalidade
de resistência cultural que pode ser vista, potencialmente, como mecanismo de
manipulação ideológica"
(Carvalho, 1977: 92/93).
Seguindo
esse mesmo raciocínio, outros estudos têm considerado que apesar do acentuado
contato interétnico, constata-se a permanência de modelos de tradição oral
distintos do da história oficial, dada a permanência na tradição oral de uma
dimensão histórica local, expressa através de categorias nativas, com
significados coerentes, mesmo que marcados por transformações e acomodações
culturais,
Entre
esses autores podemos destacar Shalins (1990), que ao investigar a tradição
oral em sociedades indígenas insulares (Havaí, Fuji, Nova Zelândia), cujas
histórias se entrecuzam com
a
história da Europa, observou nas narrativas a revificação funcional de
categorias míticas ou a emergência de novas, processadas de forma orgânica e em
movimento contínuo.
Eliade
(1988), em seus estudos sobre a vida e a religião em sociedades indígenas nos adverte
para o fato de que a memória nessas sociedades é caracterizada por articulações
e interpretações absolutamente análogas a dos acontecimentos históricos,
sustentando a tese de que “seja qual for a sua importância, o acontecimento
histórico em si só perdura na memória popular e a sua recordação só inspira a
imaginação poética, na medida em que o acontecimento histórico se aproxima do
modelo mítico”.
Para
ele, isso acontece porque a memória popular, ao invés de reter acontecimentos individuais
e figuras autênticas, recorre a outras estruturas: categorias em vez de
acontecimentos, arquétipos em vez de personagens históricos. A personagem
histórica é assimilada ao modelo mítico (herói, etc.) e o acontecimento é
integrado na categoria das ações míticas (luta contra monstros, combate entre
irmãos, etc.). (Eliade 1988:15/57)
Mazzoleni
(1992), nos adverte que devemos estabelecer uma crítica ao revisionismo atado à
historiografia tradicionalista, que mesmo chegando a considerar as fontes orais
para reconstruir o passado indígena, o faz dentro da mesma estrutura
linearista, constituída de "fatos" e "datas", prendendo-se,
portanto, a categorias ou valores (o devir, o progresso, a verdade histórica, o
agir humano) que as culturas mitopoéticas desconhecem ou rejeitam, não dando
nenhuma atenção ao sentido implícito das tradições. Dessa forma, segundo ele,
“esta cruel cirurgia deixa de lado e desperdiça tesouros conceituais
inestimáveis e enfatiza, ao contrário, elementos secundários (não somente para
aquelas culturas) ou os reinterpreta sem verificação adequada” ( Mazzoleni, l992:175).
Vejamos,
então, como essa perspectiva de análise pode ser aplicada ao caso da tradição oral
entre os Pataxó, tomando como referência dois relatos de índios de Barra Velha,
um colhido
por
Carvalho e outros registrados por mim:
1- "Em Juacema, o filho do
caboclo, do índio, pegou um bem-te-vi (índio da beira da costa mesmo, Pataxó) e
esse bem-te-vi fez uma guerra com eles.
O filho do civilizado bateu no filho do caboclo e tomou o bem-te-vi. Foram prá mata
chamar os outros e quando vieram fizeram uma guerra. E os outros, os Baquirá,
saíram de baixo do terreno, fizeram guerra e acabou com a Juacema. Saíram de
baixo do chão, tem dois buraco de onde eles saíram, os Baquirá. E os outro
índio era daí de cima. Chegou os índio por terra, por cima do terreno com arco
e os Baquirá por baixo, do chão... Baquirá é índio brabo, brabo mesmo. Acho que
eles mora debaixo do chão que inda não descobriram essa aldeia de índio, chamam
baquirá. Os antigo contava isso e prova que ainda tem lá os
buraco..."(Carvalho, op. cit.: 97)
2- " Eu sô Pataxó, eu
xukakai manãintê. Kitokinrré, kitokimpire, maiãoinrrei, maião, maiãoimpire e
maiãoinrrei. Patassai inxé, kaiboca. Xarru manãintê.
O seguinte foi isso. Eu não
alcancei isso, mas tem gente veio meu que alcançou.
Ali tinha era Bahia. Bahia era
nin Juacema. E antonce começou...Lá tinha todo índio; um branco chegou, também
tava morando aí. Ê o fio do índio pegô um fio de bem-te-vi. Pegô e levô. Chegô
lá o fio do branco pegô o fio do bem-te-vi e matô. Aí eles não gostarum. Ele
não gostarum ai forum pra matar esse. Ou matar ou tirar, como saiu mesmo. Aí
dessa vez foi que acabô. E aí sumiu. Quando saiu já foi nesse lugar que é aonde
tem esse buraco. Saiu lá, aquele buraco aculá. Quando ele saiu ai arrazô a
Bahia, ai a Bahia arrazô. Foi assim...
Hum! esse danado, como é rapaz?
Como é que ele fez aquele trabalho debaixo do chão e saiu ali e arrazô. arrazô
com a Bahia e a Bahia foi embora prá lá
e tá até hoje? Diz que foi assim.
Eu não vi, só vi mesmo assim como
contando. Que o mais eu vi lá, vi o jeito que ainda até hoje inda tem. Hoje
inda tem caco de teia, tem prato quebrado por lá. Alguém catando lá tem, pode
catar onde era a cidade. E o buraco nunca aterrou, tá lá toda vida.
O nome deles é que eu não sei,
mas era índio. Mas esse era índio brabo, não era manso não, quando vê arrazô.
Que tinha índio brabo mesmo
tinha. Até inda se aranja algum por ai... índio ruim, eles não são bem certo
não.
Os outo não conversa nada disso,
é dificil.
Não foi no meu tempo, mas a gente
acha importante, muitos não sabe.
O que eu sei é isso. Eu vi, não
vi, eu só vi lá o buraco que eles sairum. Papai mesmo falava: isso aqui oh
(apontando), aonde sairum os índio brabo, foi que arrazô aqui a Bahia.
Papai..., quando eu ia prá Porto Seguro mais ele. Isso aqui, eles saírum aqui.
Arrazô e vinherum por debaixo do chão.
-Quer dizê..., os índio vinherum
pro debaixo do chão? (pergunta a vizinha de Patrício)
-Rapaz! Aí é da parte de Deus
mesmo, viu.
É isso que eu tô dizendo.
-E a gente vê Detinha, eles
saindo? (pergunta sua vizinha à esposa de Patrício)
- Eu sei lá, eu acho que veio. Eu
não sei esse caso também não ( responde a esposa de Patrício).
- A gente fica assim. A gente
fica assim creditando... ( vizinha).
- Não, foi mesmo, sério mesmo. Os
buraco tão lá até hoje (esposa).
Alí, quem vem de lá, chegou em Juacema, tem um
córrego. Esse córrego, de correr prá lá, ele volta prá trás, corre prá trás.
Ali, diz que ali tem toda coisa
ali.
Ali tem visage, quase tem tudo
alí, naquela, dentro daquela água. (Patrício Pataxó).
Se
considerarmos o universo de significados subjacentes nesses depoimentos, poderemos
ver que os Pataxó, ao se reportarem a Juacema, conferem a essa história
determinadas características que são peculiares aos relatos de natureza mítica,
ou, lembrando Eliade, relacionam acontecimentos históricos com um determinado
modelo mítico.
Dessa
forma, esses índios acabam nos dando mostras da permanência de uma forma peculiar
de construção social da memória, em que, mesmo só dispondo de elementos
residuais de sua tradição oral, apresentados de forma fragmentária, conseguem
estabelecer aos mesmos um autêntico universo de significados. Em outras
palavras, como diria Manuela Carneiro da Cunha (1978), disporiam de elementos
residuais, mais irredutíveis.
Esses
relatos nos revelam a permanência na tradição oral Pataxó de uma história que não
nos é apresentada em um mesmo tempo que os acontecimentos do cotidiano, mas sim
num tempo fragmentado e heterogêneo, tendo como característica básica um
caráter sobrenatural.
Vistas
por essa ótica, as falas dos Pataxó nos reportam, em especial, a determinados arquétipos
recorrentes em várias culturas, como o mito da Grande Mãe (Eliade 1988; Shalins
1990).
A Toca de Juacema associada à dimensão feminina, aos poderes da terra e do
subterrâneo, ao crescimento e às ações da agricultura. Ou, como diria Shalins,
o subterrâneo visto como o lugar da morte, mas ao mesmo tempo como fonte
telúrica de subsistência da vida, lugar por excelência onde o “poder masculino
não pode fruir ou ter efeito até que seja abarcado pelo da
mulher"(Shalins, 1990:121).
Assim,
quando nos referimos à necessidade de uma outra leitura do mito Pataxó, a nossa
preocupação é, acima de tudo, a de recuperar o mito através de seus fragmentos
e versões, dando conta, dessa maneira, da existência de uma memória como
tentativa de reflexão dos próprios Pataxó sobre sua existência no mundo.
Atentando
para essa questão e, de modo especial, para a nossa intenção em fazer um estudo
em que evidenciássemos o fato de a narrativa mítica não se tratar tão somente
de uma atividade cognoscitiva, mas especialmente de uma narração que tem a
finalidade específica de encantar e
divertir os seus ouvintes (cf. Oliveira Filho, 1988:107), optamos então pela
realização de um trabalho baseado na
técnica de colage,
onde os depoimentos colhidos junto aos Pataxó, os dados da consulta
bibliográfica e as observações feitas em campo, foram nossa matéria prima para a
elaboração de um texto de caráter poético, onde pudéssemos estabelecer um
discurso que fosse síntese e, simultaneamente, análise, criando, assim, um
efeito dialético, onde a história e a poesia formassem uma verdadeira simbiose.
Com
o poema, buscamos também contemplar o que propõe Meihy (1991), em relação à edição
de textos transcritos:
“teatralizar
o que foi dito, pois, quando recria-se a atmosfera da entrevista, “procura-se
trazer ao leitor o mundo de sensações provocadas pelo contato, e, como é
evidente, isso não ocorreria reproduzindo-se o que foi dito palavra por palavra.
Este procedimento implica técnicas sofisticadas que têm por fito trazer ao
leitor a aura do momento da gravação (MeihY, 1991:30-1)
Neste
sentido, buscamos não só dar conta de uma visão histórica peculiar ao grupo, onde
a problemática do contato interétnico na região é vista de forma resignificada,
através da fusão com categorias míticas, como também assumir uma visão dinâmica
da linguagem, acentuando a peculiaridade da forma dialetal do português falado
pelos Pataxó, considerando a espontaneidade e a criatividade verbais próprias a
sua linguagem corrente, distanciando-nos, assim, de uma repressão lingüística
ou da opressão da norma culta, marcada por um dialeto padrão.
Daí,
portanto, optarmos por uma escritura embrenhada na densa teia dialetal do português
falado pelo grupo, amalgamada aos vocábulos remanescentes da língua materna, o Pataxó,
não mais falado, mas como que metamorfoseado para, com isso, podermos acentuar,
como os próprios índios o fazem, um dos elementos constitutivos fundamentais de
sua etnicidade.
Ao
evidenciarmos no poema uma outra perspectiva lingüística, não nos arvoramos a definir
novas regras lingüísticas, mas sim fazer uso da "licença poética" com
o objetivo precípuo de realçar nosso propósito, no que lembramos de Maiakovski,
quando este dizia que o poeta é aquele indivíduo que cria suas próprias regras
poéticas.
Ditas
estas palavras, vejamos então o poema:
JUACEMA:
O ESPELHO ENCANTADO DA MARAVILHA
EU
SÔ PATAXÓ / EU XUKAKAI MANÃINTÊ / KITOKINRRÉ KITOKIMPIRE PATASSAI INXÉ / XARRU
MANÃINTÊ
/ VIEMU DE DIBAXU DO CHÃUN
DO
OCO DE DENTRO / DO ÂMAGO DE JUACEMA / JUACEMA JOKANA
MÃIN
DE TUDU / DE ONDE TUDU CUMEÇÔ / VIVÊ NOISE QUEREMU
SOMU
PATAXÓ / GENTE QUE NEM OCÊ / MAISE DE DIFERENTIE
NOISE
TEMO NOSSA ORIGE / NOSSO INCANTO / NOSSO AWÊ
NOSSO
CANTO DO NACÊ
JÁ
SE PASSARUM MUTIA GENTIE / LÁ INCIMA / A LUA HÁ DE DIZÊ
MUTIA
GENTE ELA VIU / ELA VÊ / OTRAS TANTA / NIN JUACEMA
SÓ
SE SABE / QUE TEIM / MAISE NUM SE PODE VÊ / SÃU UISE BAKIRÁ
NOSSUS
IRMÃUN / QUE INDA VEVE /DE DIBAXU DO CHÃUN
CUNTA
UISE ANTIGU / QUE CUMA A GENTE / ELISEI É GENTE TUMBEIM
TEIM
UMA INSTÓRIA DELISE / MUTIO DA FALADA / QUE UISE VÉIO
GULARDA
DE MIMÓRIA / E CULANDO A LUA ALUMEIA
ELISE GULOSTA DE CUNTÁ /É A INSTÓRIA / DUM TAO
BIN-TI-VI
E
SE PASSÔ / NESSE MERMO LUGÁ / PEÇO LINCEÇA A LUA
PRA
MODE AQUI / PUDÊ CUNTÁ / NIN JUACEMA / 0 FIO DO CABOCU
DO
ÍNDIO, NÉ / ÍNDIO DA BERA / DA COSTA MERMO, PATAXÓ
PEGÔ
UM BIN-TI-VI / E DEU DE SAÍ / CUM ELE / PRÁ TUDO
CULANTO
É LUGÁ / SE SUCEDU / QUE O FIO DO CINVILIZADO
DO
PURTUGEUSE / BUTO OIO GRANDE NO BIN-TI-VI
BATEU
NO FIO DO CABOCO / TUMÔ O BIN-TI-VI / E SE FOI ...
AÍ
UISE CABOCO / SE DANARUM / FORUM PRÁ MATA
PRÁ
MODE CHAMÁ UISE OTRO ÍNDIO / PRÁ SE AJUNTÁ
PRÁ
TÊ FORÇA / E TUMÁ O PASSARIM / DE VORTA
MAISE
NUM É / QUE ESSIS OTRO ÍNDIO /QUE ELISE CHAMARUM
UISE
BAKIRÁ / SAIRUM DE DIBAIXO DO CHÃUN
TEIM DOISE BURACU LÁ / LÁ DONDE SE CHAMA
INSPEIO INCANTADO DA MARAVIA /DONDE O MAR
GRANDE SE INSPEIA
E CULANDO A BRUMA SE ALEVANTA / ACUNTECE DE
TUDO
A GENTE VÊ É COUSA / E É DE LÁ QUE SAIRUM
ESSIS ÍNDIO
UISE BAKIRÁ / E NOISE UISE PATAXÓ / JÁ ERA
DALÍ DE CIMA
CHEGAMO
PRU TERRA / PRU CIMA DO TERRENO / CUM ARCO
E
UISE BAKIRÁ / PRU BAIXO / DO CHÃUN
E
AÍ SE DEU UMA GEURRA DANADA / DANADA MERMO
É,
MAISE NESSA GEURRA / TUDO CABÔ PRÁ NOISE
ARRAZÔ
CUM A GENTE / KIGEME QEMÔ / MANGUTE FARTÔ
FOI
FIO SEIM PAI / MÃIN QUE BRANCO LEVÔ / DAÍ PRÁ FRENTE
SÓ
DEU COISA RUIN / MAISE BAKIRÁ /BAKIRÁ É ÍNDIO BRABO
BRABO
MERMO / ELISE RESISTIRUM / E INDA TÃUM VIVO / E VEVEM
DE
DIBAXU DO CHÃUN / ACHO QUE NUNCA DISCUBRIRUM
ESSA
ARDEIA DE ÍNDIO / CHAMADO BAKIRÁ / UISE ANTIGO CUNTAVA ISSO
E
INDA SE PROVA / PRO MODE SE TÊ / UISE BURACO LÁ.
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