sexta-feira, 22 de abril de 2005

MINI PROJETO DE ESTUDOS INDÍGENAS

Objetivos:
- Conhecer e refletir sobre a história dos índios;
- Conhecer, analisar e debater os hábitos e costumes indígenas;
- Conhecer, analisar e debater a influência indígena em nossa vida;
- Aprender a respeitar os índios com a finalidade de construir a cidadania numa sociedade pluriétnica e pluricultural;
- A partir do tema gerador desenvolver atividades nas diferentes Áreas de Estudo.

Objetivo Proposto nos PCN’S de interesse no presente projeto:
- Conhecer e Valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais.

PLANEJAMENTO:
Propostas de Atividades que trabalharão os temas transversais: Ética, Saúde, Meio Ambiente, Pluralidade Cultural e Cidadania.

Sensibilização:
- Propor aos alunos que pesquisem e levem para sala de aula recortes de fotos de pessoas que possam parecer descendentes indígenas. Com todas as fotos em mãos, o professor em círculo analisará juntamente com os alunos cada foto. Procurando incentivar para que todos dêem sua opinião. Em um segundo momento listar em um cartaz os conhecimentos que os alunos já tem sobre o assunto ( Conhecimentos Prévios ).
- Provocar os alunos a se expressarem, fazer indagações e ir registrando em um cartaz. Logo em seguida, em um outro cartaz, listar as dúvidas provisórias dos alunos, ou seja, perguntar o que desejam saber sobre o tema e ainda não sabem, novamente provocar os alunos a fim de lançarem suas dúvidas.
Por último, propor que os alunos ilustrem os cartazes com fotos e desenhos.

Propostas de Atividades de Integração das Áreas de Estudo:
GEOGRAFIA:
- Localizar em Mapa ou Globo Terrestre pontos do território nacional onde ainda vivem tribos indígenas;
- Comparar o modo de vida dos índios de outras regiões com o modo de vida dos índios que ainda habitam a floresta amazônica, o pantanal mato-grossense, as praias nordestinas, o sudeste brasileiro e os assentados em áreas urbanas.

HISTÓRIA:
- Reconhecer os modos de vida dos índios, sua cultura, sua alimentação, formas de trabalho e sobrevivência;
- Refletir e opinar sobre o papel do índio na formação da nação brasileira

LINGUÍSTICA:
- Levantar o vocabulário usado pelos indígenas e descobrir seus significados;
- Produzir, utilizando diferentes formas de expressão, textos individuais e coletivos sobre os debates e as reflexões do assunto;
- Orientar os alunos para elaborarem pequenos textos sobre cada descoberta realizada;
- Ler histórias originalmente indígenas ou que tratem do indígena e seus valores;
- Organizar um dicionário ilustrado com as palavras indígenas.

ARTES:
- Observar manifestações de arte da cestaria, da cerâmica, da plumaria e de outros objetos de cerdas vegetais e cordas, realizados pelos índios de hoje e de antigamente;
- Observar ilustrações de artistas do tempo do Brasil – Colônia que retrataram o indígena e suas manifestações culturais;
- Vivenciar através de músicas sobre o tema um pouco da cultura indígena – cantando e dramatizando;
- Vivenciar através de atividades artísticas manuais e plásticas um pouco da cultura indígena, criando objetos e instrumentos musicais.

Formulação de Problemas:
- Questionar em classe:
- Ainda existe preconceito com os índios?
- O que as crianças sabem, pensam e acham sobre isso?
- O que podem e o querem fazer para ajudar a mudar o quadro dos preconceitos e discriminação?
- A culinária indígena é usada na cozinha brasileira? Como?
- Ainda são encontrados locais de agrupamentos e reservas indígenas?
- Quais são essas tribos? Como vivem? Como se mantêm? Quais os seus atuais costumes?
- Quais são as palavras e costumes de origem indígena?
- Há influência dos índios na Língua Brasileira?
- Há influência dos índios no artesanato?
- Há influência dos índios na medicina caseira? E nos adornos pessoais?

segunda-feira, 4 de outubro de 2004

O ÔNUS E O BÔNUS DE SER PROFESSOR

O papel e a atuação do professor já não é há muito tempo a mesma do passado. Antes ele detinha “todo” conhecimento e depositava nos seus alunos aquilo que havia estudado. Porém, esse estudo era normalmente lido e repassado para eles sem reflexão ou visão crítica dos conteúdos.
Hoje, felizmente, podemos e devemos ensinar nossos alunos a pensar, a questionar e a aprender a ler a nossa realidade, para que possam construir opiniões próprias.
Para que isto ocorra o professor deve, em primeiro lugar, gostar e acreditar naquilo que faz, ou seja, através de seus atos e ações ele servirá de modelo para seus alunos; se ele ensina a refletir ele deve também refletir, se ele ensina a respeitar o próximo ele deve respeitar seus alunos e assim por diante. Deste modo ele está sendo uma prova viva daquilo que está ensinando, pois bem a sua frente existem seres humanos que estão sendo moldados por ele.
O aluno é como se fosse um solo fértil , onde o professor semeia suas melhores sementes para que se produzam belos frutos. A relação professor/aluno deve ser cultivada a cada dia, pois um depende do outro e assim os dois crescem e caminham juntos. E é nessa relação madura que o professor deve ensinar que a aprendizagem não ocorre somente em sala de aula. Se estivermos atentos aprendemos a todo momento e não só na escola com o professor. Assim, o aluno irá desenvolver um espírito pesquisador e interessado pelas coisas que existem; ele desenvolverá uma necessidade por aprender, tornando-se  um ser questionador e crítico da realidade que o circunda. Como diz o filósofo: “O verdadeiro objetivo da Educação não é meramente prover informação, mas o estímulo de uma consciência interna” (Al- Ghazali).

PROFESSORES QUE INSPIRAM, por Dr. Anthony P. Witham
” Professores que inspiram . . .percebem que , em última análise, não irá contar o quanto seus alunos aprenderam , mas o quanto acumularam conhecimento e habilidades que possam ser usadas por toda a vida;despertam o potencial infantil ao invés de reprimi-lo; elogiam o esforço de cada aluno ao invés de ignorá-lo, estimulam ao invés de encobrir a curiosidade da criança;percebem que eles devem respeitar seus alunos, sem impor seus valores pessoais, pois cada um precisa explorar e estabelecer seus valores próprios; ajudam os alunos a descobrir seus dons, porém esses talentos “escondidos” podem ser facilmente dominados se o principal enfoque estiver no texto ou na avaliação, e não na criança; disponibilizam seu tempo espontaneamente e lembram-se de encorajar aqueles que têm mais dificuldades;corrigem os erros do aluno e elevam sua auto-estima ao mesmo tempo; motivam mentes jovens a pensar por eles mesmos , muito mais do que se preocupam com fatos que exijam memorização; percebem que o maior de todos os presentes que eles podem oferecer a seus alunos não é seu talento pessoal ou sua esperteza, mas ajudar cada a um a descobrir e a se apropriar de sua própria esperteza e talento; encorajam mentes a pensar, mãos a criar e corações a amar – professores que exigem muito e que recebem muito; nunca se empenham em explicar sua visão pessoal de mundo, mas simplesmente convidam seus alunos a ficarem ao seu lado para que eles possam ver o mundo por eles mesmos; minimizam as deficiências de seus alunos e realçam seu dom natural.
Tais professores nunca forçam um dançarino a cantar nem um cantor a dançar. Eles permitem com que seus alunos acendam sua própria “lâmpada” no momento e da maneira deles; acreditam que a comunicação em sala de aula não melhora  se falada em voz muito alta; acreditam que exemplo não é uma ferramenta de influências para impressionar mentes jovens, e sim a chave para moldar atitudes positivas, valores e hábitos de estudo para os alunos; recordam seus alunos de que ganhar não é tudo na vida, mas ir em busca de seus ideais sim; sabem que o presente mais valioso do mundo não é dinheiro nem livros, mas ter uma vida nobre; não acham que eles têm que estar com seus alunos, eles querem estar com eles. Ensinar não é uma profissão , mas uma escolha que optaram em consideração ao próximo; concordam com Eleanor Roosevelt que disse, “O futuro pertence àqueles que acreditam na beleza de seus sonhos”; percebem que na vida de cada aluno existe um espaço esperando ser preenchido pelo professor, que pode comunicar auto confiança, criação de talentos que não foram descobertos e incentivo às atitudes na vida para o seu crescimento; inspiram bons sentimentos nas crianças e na juventude, pois sabem que eles nunca irão conseguir medir o quanto influenciaram na vida de uma criança; acreditam que algum dia seus alunos irão perceber que eu estou lá para ajudá-los a alcançar seus objetivos ou a completar suas tarefas, a melhorar sua auto-imagem e que existem algumas fronteiras que eles não podem alcançar; acreditam no credo: “ensine aquilo que a sua consciência achar certo; ensine aquilo que a sua razão disser que é o melhor; ensine com toda o seu espírito e poder; faça o seu dever e seja abençoado”; acreditam que aprender, fazer e ensinar acontecem quase que ao mesmo momento na vida -elas ocorrem normalmente simultaneamente. A criança que estamos ensinando a ler e a escrever está, ao mesmo tempo, nos ensinando sobre a inocência e a maravilha; tentam garantir a cada criança oportunidades iguais – não se tornar “igual” mas “diferente”, compreender todo potencial do corpo, mente e espírito que ele ou ela possui; optam por alternativas positivas em estabelecer disciplina em sala de aula, ao invés de depender unicamente das formas diversas de punição; encorajam e afirmam para a criança não aquilo que ela é, mas aquilo que ela virá a ser; estão sensíveis por saber o quanto suas palavras e ações podem afetar seus alunos positiva ou negativamente; acreditam que um relacionamento positivo entre aluno e professor se origina através do respeito; suscitam atitudes positivas em sala de aula e criam uma corrente contínua de pensamentos e idéias positivas; são entusiastas, enérgicos e eternamente otimistas em relação à potencialidade de seus alunos; concordam com o pensamento de Grayson Kirk’s que diz: “A função mais importante da educação, em qualquer grau, é desenvolver a personalidade do indivíduo e o significado de sua vida para ele mesmo e para os outros”.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2003

QUANTO TEMPO O TEMPO TEM

QUANTO TEMPO O TEMPO TEM?
RESUMO: Neste texto procurei abordar as diversas dimensões da temporalidade como componente indispensável ao pensar histórico, ao fazer e ensinar História. Distinguem-se as concepções de História baseadas no estudo do passado daquela voltada para o estudo do tempo presente. O tratamento da dimensão temporal da História constitui uma das dificuldades do seu ensino para crianças e, neste texto, procura-se oferecer alguns aportes para o trabalho do professor com alunos do Ensino Fundamental.
Palavras-chave: tempo, temporalidade, tempo presente, processo histórico, tempo histórico.
O HISTORIADOR, PESSOA DO SEU TEMPO
Este livro eu o fiz de mim mesmo, de minha vida e de meu coração.
Brotou de minha experiência, muito mais que de meu estudo.
Tirei-o da observação, das relações de amizade e vizinhança,
coligi-o ao longo dos caminhos; o acaso gosta de servir àquele que o persegue
sempre com um mesmo pensamento.
Enfim, encontrei-o sobretudo nas recordações de juventude.
Para conhecer a vida do povo, seus trabalhos, seus sofrimentos,
bastava-me interrogar as lembranças. (MICHELET, 1988, p. 2)
O questionamento sobre a relação entre o historiador e o tempo constitui aspecto decisivo da tarefa de ensino-aprendizagem da História. Trabalhando com relatos, com discursos produzidos sobre a experiência humana, o historiador desvenda um mundo temporal em sua  obra. Ao fazê-lo, permite que o tempo se torne humano na medida em que está articulado de  maneira narrativa, tendo como ponto de partida o presente.
Difícil tarefa a de estabelecer a dimensão do tempo presente. A dificuldade em fixá-lo nos leva a indagar: trata-se de minuto, hora, dia, mês, ano? Seu aspecto fugaz leva a concluir pela indeterminação e a confiar em sua definição como algo diferente do passado (aquilo que já foi) e o futuro (aquilo que ainda não é).
É a experiência que dá aos indivíduos a percepção dos intervalos de tempo – da medida  do tempo –, a qual é adquirida por meio das atividades sensoriais, intelectuais e pragmáticas.
Assim, compreende-se que o tempo histórico ultrapassa o tempo medido pelo movimento dos astros. Trata-se de considerar o tempo subjetivo que, em suas diferentes dimensões e ritmos,  passa pela experiência psicológica. Assim considerado, “o tempo torna-se [...] humano na medida em que está articulado num modo narrativo e que o relato atinge sua significação plena quando se torna uma condição da existência temporal” (RICOEUR, 1997, p. 105).
A relação entre tempo passado e tempo presente, realizada mediante as atitudes de comparar, analisar e relacionar, contribui para que as pessoas se percebam como membros de uma sociedade, sujeitos da história e responsáveis pela construção do futuro. É por meio do estabelecimento dessas relações, a partir das experiências cotidianas, que as pessoas podem aprofundar a compreensão da dimensão histórica do viver em sociedade e verificar a existência de múltiplas dimensões temporais.
Uma atitude frequente no estudo da história consiste na concentração do foco no passado remoto e no afastamento em relação às questões contemporâneas. Daí resulta uma relação com o passado semelhante ao turismo “[...] que excursiona pelo passado como se fosse mais um país estrangeiro para onde se quer evadir” (THOMPSON, 1992, p. 20). Porém, em contraponto a essa postura do historiador limitado ao estudo do acontecido, distante de sua época, hoje cada vez mais, ele se reconhece como homem de seu tempo e abandona a recusa à reflexão sobre acontecimentos do presente. O historiador segue, assim, as novas tendências da História, que fazem análises baseadas na noção de cultura e valorizam o tempo presente ao buscarem explicação sociocultural para a vida em sociedade. Esta concepção da história enfatiza o trabalho com temporalidades longas e volta-se tanto para permanências, quanto para mudanças.
Além dessa transformação do campo teórico-metodológico da História, existe atualmente massificação das informações, sua divulgação em grande velocidade e a tendência ao esquecimento rápido das notícias, que torna a memória extremamente passageira. O enorme fluxo de informações, que alcança diariamente os espectadores de televisão, os usuários da Internet, os leitores de jornais e revistas, traz abundância de notícias para consumo imediato.
Porém, ao mesmo tempo, essa quantidade de informações dificulta a relação do historiador com o passado na medida em que o torna extremamente próximo dos acontecimentos noticiados e sujeito aos filtros e decodificações utilizados pelos meios de comunicação. Há uma nova relação do historiador com seu tempo: passado e presente se aproximam, os eventos cotidianos invadem sua vida e o “fato histórico” é apropriado pelos meios de comunicação.
Diante dessa realidade, torna-se pertinente a questão:
... pode o presente ser objeto de história? Como de fato inscrever um presente fugaz na construção, ou reconstrução, necessariamente temporal ou retroativa, que elabora o historiador confrontando suas hipóteses de trabalho com a dura realidade da documentação e do arquivo recebidos? (RIOUX, 1999, p. 40).
Desde a década de 1960, essas inquietações geraram discussões sobre a ampliação do tempo abrangido pelo estudo da História, com a extensão da pesquisa ao período contemporâneo e, mais especificamente, à chamada “história imediata”. Sobretudo os historiadores do político foram chamados a atender às demandas da sociedade e a explicar os acontecimentos que atingem de modo espetacular o presente. O impacto do dia 11 de setembro de 2001 dificilmente poderá ser esquecido pelos que viram repetir-se, exaustivamente na tela da TV, o acontecimento-monstro registrado no calor da hora, universal e instantaneamente, e pouco a pouco banalizado, esvaziado de sentido. No entanto, milhares de livros rapidamente lançados no mercado editorial procuraram fornecer explicações históricas para a catástrofe. Este fenômeno atestou, por meio da exposição do vigor editorial, a expansão e o aumento do prestígio da história do tempo presente.
Diante dessa avalanche, como conservar o método histórico no estudo do tempo presente? As fontes documentais disponíveis para tal abordagem são problemáticas, pois nem sempre estão disponíveis para o historiador. Além disso, corre-se o risco de realizar uma análise dos acontecimentos apenas em seu encadeamento cronológico linear horizontal, em lugar de integrá-los a outros acontecimentos simultâneos que podem clarear seu significado. Recoloca-se, portanto, com urgência, a necessidade de manutenção de práticas historiográficas legítimas, como o distanciamento crítico em relação ao objeto de estudo, o uso criterioso de fontes, a resistência às pressões exercidas pelos grupos de sociabilidade de que participa o historiador, também percebido como ator/sujeito participante da história que estuda.
Nesse sentido, adquire pertinência a afirmação de Ariès sobre o trabalho do historiador e sua relação com o tempo presente:
[...] parece difícil apreender a natureza própria do passado se mutilamos em nós mesmos o sentido do nosso tempo. O historiador não pode mais ser o homem de gabinete, o cientista da caricatura, entrincheirado atrás de seus fichários e de seus livros, isolado dos ruídos vindos de fora. (ARIÈS, 1989, p. 240).
O historiador está intimamente conectado com o tempo presente e com a comunidade à qual pertence. No entanto, seu campo de trabalho é o passado, o tempo fluído e “morto”, que é recuperado a partir do presente. Independentemente do tema escolhido, do recuo temporal que ele contém, esta relação persiste, conectando o historiador a sua própria história. O tempo vivido pelo historiador é decisivo para que ele encontre e selecione, na “caixa de ferramentas” de sua “oficina”, o caminho a ser trilhado no estudo do passado.
Refletindo sobre o ensino de História a partir dessas questões, podemos considerar o quanto o tempo presente é importante, pois de nossa relação com ele decorrem as escolhas dos conteúdos a serem trabalhados a partir das “[...] problemáticas locais em que estão inseridas as crianças e as escolas, não perdendo de vista que as questões que dimensionam essas realidades estão envolvidas em problemáticas regionais, nacionais e mundiais” (BRASIL, 1997a, p. 43). É o estudo dessa realidade presente que irá contribuir para que o aluno estabeleça relações de identidade e diferença com outros indivíduos e grupos sociais, vistos em diversas épocas.
Para que a criança alcance um “modo de pensar histórico” e possa ver-se como sujeito ativo da História, é preciso escolher os conteúdos do ensino a partir do tempo presente, estabelecer diálogos entre passado e presente, identificando neles permanências e mudanças, simultaneidade e conexão temporal. O presente constitui um tempo vivo do qual participam diferentes tempos do passado, os quais se manifestam em conflitos, costumes, formas de organização social, modos de viver.
NO SEU TEMPO HAVIA DINOSSAUROS?
O ensino e a aprendizagem de História, em todos os níveis, não pode prescindir da noção de tempo/temporalidade e isto vale também para crianças de 6 a 11 anos. Ela é fundamental para a compreensão da historicidade, ou seja, das transformações de uma sociedade em suas múltiplas dimensões.
Nesse nível de ensino, os alunos trabalham com a noção de tempo histórico em suas dimensões de presente, passado e futuro associadas à anterioridade, posteridade, simultaneidade, abordadas inicialmente na dimensão cotidiana para, depois, ampliarem-se em períodos mais longos. A dimensão temporal será útil para o estudo de permanências e mudanças, as quais constituem o objeto mesmo do conhecimento histórico.
Segundo o PCN, ao final do chamado primeiro ciclo, os alunos deverão ser capazes de
[...] comparar acontecimentos no tempo, tendo como referência anterioridade, posterioridade e simultaneidade; reconhecer algumas semelhanças e diferenças sociais, econômicas e culturais, de dimensão cotidiana, existentes no seu grupo de convívio escolar e na sua localidade; reconhecer algumas permanências e transformações sociais, econômicas e culturais nas vivências cotidianas das famílias, da escola e da coletividade, no tempo, no mesmo espaço de convivência (BRASIL, 1997b, p. 50).
Com esta colocação, abandona-se o presentismo e a recusa da “datação” para enfatizar sequências temporais e ordenamento processual. Recusa-se também tanto a concepção linear da História, como a da História como progresso contínuo e as interpretações de ciclos que levam as sociedades inevitavelmente à decadência ou à revolução, enfim, filosofias da História teleológicas.
Esta concepção pode ser entendida como ruptura com “a ideia de um tempo único contínuo e evolutivo para toda a humanidade. Em lugar desta visão, afirma-se que “[...] a realidade  é moldada por descontinuidades políticas, por rupturas nas lutas, por momentos de permanências de costumes ou valores, por transformações rápidas e lentas” (BRASIL, 1997a, p. 31).
É preciso diferenciar o tempo cronológico, marcado apenas por calendários e datas que constituíam a base da história factual em seu ordenamento linear, dos fatos históricos em uma linha de tempo. Entende-se que a vida em sociedade é muito mais complexa em sua dimensão temporal do que a linearidade do arranjo dos fatos, segundo os critérios de passado, presente e futuro, ou seja, em sua dimensão de anterioridade e posterioridade. Considera-se, nesta perspectiva, que não existe regularidade no ritmo da História, acelerações e retardamentos ocorrem e podem ser bastante específicos de uma sociedade ou de um grupo social.
A compreensão da dimensão temporal da existência humana pode ser alcançada na escola a partir de vivências pessoais, cujo ponto de partida é sua própria história como ser humano sujeito a um tempo biológico (nascimento, desenvolvimento e morte). Extrapolar essa dimensão para a de outros indivíduos inseridos em uma dada sociedade é o salto qualitativo a ser feito para que a criança possa situar-se em relação ao seu próprio passado e ao da humanidade, que não obedece a um ritmo único, mas está sujeito a diferentes durações. A simultaneidade dos acontecimentos, que se desenrolam em diferentes espaços em permanências e mudanças, ocorre em diversas sociedades, rompendo-se assim a noção de uma história linear, universal e válida para todos os povos.
Algumas questões para reflexão: as acelerações da História (o Afeganistão desde 11 de setembro, as transformações sociais da China nas últimas décadas etc.); a percepção de tempo pela criança (– Vovô, no seu tempo havia dinossauros? Você conheceu a Princesa Isabel? etc.).

REFERÊNCIAS
ARIÈS, Philippe. O tempo da História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC, 1997a.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: História e Geografia. Brasília: MEC/SEF, 1997b, p. 50.
DOSSE, François. A História em migalhas. São Paulo: Ensaio; Campinas: UNICAMP, 1992.
MICHELET, Jules. O povo. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. São Paulo: Papirus, 1997. 3 v.
RIOUX, Jean-Pierre. “Pode-se fazer uma história do presente? In: CHÉVEAU, A; TÉTARD, P. (Orgs.). Questões para a história do tempo presente. Bauru: EDUSC, 1999.
THOMPSON, Paul. A voz do passado. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1992

BIBLIOGRAFIA
ABUD, Kátia M.; MALATIAN, T. M. A História e o historiador. PEC construindo sempre-aperfeiçoamento de professores PEB II. São Paulo: FAFE-SP/CENP/Fundação C.A . Vanzolini, 2002.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989). São Paulo: Ed. UNESP, 1997.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.
HOBSBAWM, Eric J. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
MARROU, Henri I. Do conhecimento histórico. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1975.
NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e História. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura/Companhia das Letras, 1992.

THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. 3 v

sexta-feira, 16 de agosto de 2002

GEOGRAFIA POLÍTICA E GEOPOLÍTICA: DETERMINISMO E POSSIBILISMO

"A política de um Estado está na sua geografia", afirmou Napoleão Bonaparte com base na sua leitura de Montesquieu e na experiência como militar. Esta sucinta e polêmica frase de uma certa maneira sintetiza a questão sugerida no tema desta prova, que à primeira vista é simples, mas que, na realidade, embaralha ou emaranha duas renitentes problemáticas da história da geografia: as (possíveis) diferenças entre geografia política e geopolítica e a (pretensa) oposição entre uma abordagem determinista e uma outra possibilista.
Como desfazer ou esmiuçar esse imbróglio?
Pensamos ser imprescindível retomar brevemente as origens e a evolução da geografia política e da geopolítica, que em vários momentos se imbricaram ou se identificaram, e, em outras ocasiões, e apartaram de forma conflituosa. E também recordar o porquê dessa distinção entre determinismo e possibilismo, que por sinal foi iniciada a partir de uma determinada leitura – francesa – da obra do iniciador ou sistematizador da geografia política moderna, Friedrich Ratzel. Em seguida iremos avaliar em que medida essa distinção e esses rótulos ainda são válidos para a geopolítica e as suas relações ou identificações com a geografia política.
Sabemos que o estudo geográfico da política foi redefinido ou reestruturado por Ratzel em 1897. Ao escrever e publicar a obra Politische Geographie [Geografia política], Ratzel, que evidentemente não foi pioneiro no uso desse rótulo, sistematizou uma leitura espacial da política e ao mesmo tempo reformulou a maneira pela qual a ciência geográfica abordava o fenômeno político. Foi justamente esse escrito de Ratzel que suscitou uma forte reação francesa, que pouco a pouco construiu um inimigo teórico, a "escola geográfica determinista germânica", que teria em Ratzel o seu mentor. Tanto o sociólogo Émile Durkheim, in L’Année sociologique de 1898, quanto o historiador-geógrafo Paul Vidal de La Blache, in Annales de géographie, número VII, também de 1898, teceram ácidas críticas às ideias ratzelianas da vinculação necessária entre o “solo” (espaço físico, ou melhor, território) e o Estado, em especial a dependência deste em relação àquele e o crescimento estatal sendo identificado com a expansão territorial. Eles assinalaram um exagero e um dogmatismo nas vinculações lógicas operadas por Ratzel, enxergando nelas um determinismo estreito.
Mas foi o historiador – e amigo de La Blache – Lucien Febvre, na sua monumental obra La Terre et l’evolution humaine, editada em 1922, quem criou de forma mais acabada e sistematizada a idéia da existência de duas "escolas geográficas" antagônicas, uma "determinista" e simbolizada por Ratzel, e a outra "possibilista” e capitaneada por La Blache.
O contexto histórico da época ajudou muito na expansão e popularização dessa construção teórica. Em primeiro lugar, cabe lembrar da secular rivalidade franco-alemã (ou prussiana) no crepúsculo do século XIX, com a derrota francesa em 1870-1, fato ainda dolorosamente nítido na consciência de La Blache e de Durkheim, que o vivenciaram. Em segundo lugar, a Primeira Guerra Mundial, que mais uma vez colocou a França e a Alemanha em lados opostos. E, em seguida, a ascensão do nazismo e a criação e notável difusão da "geopolítica alemã" dos anos 1920, 30 e 40, em especial ao redor da Zeitschrift für Geopolitik [Revista de Geopolítica], editada pelo general Karl Haushofer, que contou com a colaboração de inúmeros geógrafos (embora também historiadores, cientistas políticos, militares, juristas, etc), os quais por diversas vezes e de diferentes maneiras, reproduziram ou se apropriaram de determinadas idéias ratzelianas, forneceram mais lenha para a fogueira das críticas à escola determinista germânica e a sua pretensa vinculação com a geopolítica.
O clima de rivalidade, de disputa de poder entre França e Alemanha, além do fato de que os colaboradores daquele periódico freqüentemente repercutiam as ideias nazistas de uma "raça ariana superior" e do "destino manifesto" da Alemanha em se tornar uma grande potência mundial, foram elementos determinantes no desenrolar dessa construção segundo a qual existiria uma escola geográfica determinista e que ela teria gerado a geopolítica de Haushofer e seus colaboradores. Até mesmo um importante geógrafo alemão da época, Leo Waibel, que fugiu de seu país devido ao regime nazista e se exilou nos Estados Unidos (embora tenha vivido alguns anos no Brasil), no afã de desancar aquela geopolítica germânica bastante identificada com o totalitarismo, acabou meio apressadamente rotulando-a como um "produto da escola geográfica determinista" e bastante diferente de uma outra abordagem geográfica –inclusive de geografia política – mais aberta e liberal, que a seu ver não seria tanto simbolizada por La Blache e sim pelo seu mestre Alfred Hettner. A partir daí, e em especial com o desfecho da Segunda Guerra Mundial, essa identificação do determinismo com a geopolítica e desta última com os regimes totalitários acabou por predominar durante algumas décadas, sendo repetida, embora com algumas nuanças, por importantes geógrafos como Jacques Ancel, Pierre George, Jean Gottman e inúmeros outros autores, inclusive não geógrafos (historiadores, cientistas políticos, sociólogos), tanto na França como em outros países como o Brasil, os Estados Unidos, a Argentina, etc.
Sem dúvida que aquela geopolítica alemã dos anos 1920, 30 e 40 foi racista e dogmática, além de manifestar uma clara simpatia pelo nazi-facismo. E também é inegável que podemos encontrar facilmente nas obras de Ratzel, notadamente naquele mencionado livro seminal, uma série de afirmações que exageram a importância do tamanho do território para o poderio de um Estado-nação, as quais, mesmo tendo um fundo de verdade, inflam demais o peso do espaço físico para o advento e o desenvolvimento da civilização e em particular do Estado moderno, visto por Ratzel como o coroamento do processo civilizatório.
Mas será que toda geopolítica pode ser vista dessa mesma forma? Não existiriam outras geopolíticas? E o rótulo determinismo seria de fato apropriado para Ratzel e, mais ainda, para toda a tradição geográfica alemã do final do século XIX e da primeira metade do século XX? E seria possível afirmar que existe uma forte clivagem entre uma geopolítica, que seria determinista, e a geografia política, que seria possibilista?
Acreditamos que as coisas são bem menos claras ou rigidamente definidas, que essas duas leituras são estereotipadas e exageram demais tanto na distinção entre geografia política e geopolítica – que existe sim, mas de forma problemática e polêmica –, quanto na rígida separação entre uma visão determinista e uma outra possibilista.
Vamos começar por esta última questão, a do determinismo versus o possibilismo. Do ponto de vista da epistemologia, o que significa afinal determinismo?
Claude Raffestin reproduz e concorda com a afirmativa de René Thom, que prefaciou a célebre obra de Laplace – "Ensaio filosófico sobre a probabilidade" –, segundo a qual "A ciência [moderna] é determinista" na medida em que busca uma ordem, uma regularidade, um encadeamento entre os fenômenos, uma forma mesmo que complexa de causalidade, sem a qual o conhecimento científico não seria possível(1)
Quando lemos algum físico teórico importante – Einstein, por exemplo, ou Max Plank ou ainda Heisemberg – logo constatamos que eles aceitam tranqüilamente o que denominam "princípio do determinismo", segundo o qual as coisas e os fenômenos são encadeados ou se influenciam mutuamente, que existem causas – mesmo que muitas vezes probabilísticas – e efeitos, razões e conseqüências. E até mesmo em Marx podemos encontrar as "determinações" de um acontecimento ou de um processo, aquele conjunto de fatores que o originaram ou que o explicam. A discussão mais pertinente aqui não é sobre o "princípio da determinação" em si, pois sem ele a ciência, tal como a conhecemos hoje e desde Galileu Galilei, não seria possível, mas sim sobre o caráter ou a substância dessas determinações ou relações causais. Alguns cientistas e filósofos – os chamados "realistas" – pensam que elas seriam inerentes ao real, ao mundo, às coisas e fenômenos. Outros, os "idealistas", afirmam que no final das contas elas, essas determinações, seriam um produto da nossa lógica ou da nossa linguagem, mas que, mesmo assim, seriam imprescindíveis para se conhecer e agir no mundo(2)
O que se criticou muito em Ratzel – e também, ou principalmente, em autores que se proclamavam como seus discípulos, como a geógrafa norte-americana Ellen Semple – foi um determinismo exagerado e estreito, que não buscava causas complexas e sim uma causa única ou unilateral, que via apenas a importância do meio físico para a sociedade e não valorizava a criação humana em si, a tecnologia e a (re)produção da natureza. Mas a critica a esse determinismo estreito – ou visão unilateral, como preferimos – considerou toda a busca de determinações como equivocada, algo absurdo e sem sentido do ponto de vista científico. E a contraposição a isso, o chamado possibilismo, pouco acrescentou a uma antiga discussão filosófica e científica sobre a originalidade do ser humano, sobre o livre arbítrio e a liberdade de se criar e fazer coisas novas.
Desde no mínimo Maquiavel, o criador da idéia moderna de política (e da relativa autonomia do político em relação ao divino, aos fenômenos físicos etc), por sinal um autor importante para a obra de Ratzel, que essa questão relativa ao que o ser humano cria e o que determina a sua ação já vinha avançando bastante. “Julgo feliz aquele que sabe combinar as suas ações com o sentido [ou "as determinações"] do seu tempo”, afirmou Maquiavel em O Príncipe, acrescentando ainda que em parte os acontecimentos (políticos) decorrem de circunstâncias externas e em parte do livre arbítrio do(s) sujeito(s) que age(m). Ora, seria justamente esta a questão que permitiria a La Blache ou a Lucien Febvre se contraporem ao raciocínio causalístico unilateral que eles julgaram haver em Ratzel, complexizando as "causas" ou motivos das ações ou dos processos políticos – tal como a "evolução dos Estados", um dos temas prediletos de Ratzel – e incluindo aí o livre arbítrio dos seres humanos, a tensão entre a lógica (as determinações) e a política ou o acaso (as indeterminações, a produção do novo).
Tão somente repetir que a natureza oferece "possibilidades", e que o Homem as aproveita desta ou daquela maneira, não produz nenhum avanço nessa problemática clássica do maior ou menor peso das determinações (que não são apenas naturais, diga-se de passagem) frente à indeterminação ou o livre arbítrio do ser humano. Um geógrafo inglês, numa obra recente, chegou a afirmar que "A crítica exarcebada ao ‘determinismo geográfico’ obnubilou ou obscureceu a análise das influências do ambiente sobre o social"(3). E um professor de história econômica na Universidade de Harvard, que nos anos 1990 publicou um importante livro sobre as causas da riqueza e da pobreza das nações, comentou que a geografia produziu um escasso material sobre as (possíveis) influências da localização, do meio físico, etc, no desenvolvimento de determinados países (Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha...) em contraponto ao pouco desenvolvimento de outros (nações africanas, por exemplo), provavelmente devido à forte (auto) repressão que sofreu (ou se impôs) a partir dos exageros "deterministas" de autores como Ellen Semple, que por sinal também foi professora nessa mesma universidade norte-americana, que depois dela – ou devido a ela – fechou o seu curso de geografia(4).
Enfim, acreditamos que essa diferença ou a oposição entre determinismo e possibilismo não procede, não se sustenta, nem na geografia política versus geopolítica e tampouco na ciência geográfica em geral, embora possamos encontrar em determinados autores ou obras – mas não só da geografia e sim da sociologia (exemplo: Victor Cousin), da filosofia (exemplo: Montesquieu) e de outras ciências humanas – algumas afirmações que estabelecem nexos ou relações causais simples e estreitas, unilaterais portanto, e conseqüentemente falsas.
Todavia, permanece a questão da diferença ou da identidade entre geopolítica e geografia política. Após uma fase de separação radical no pós-Segunda Guerra Mundial, quando os geógrafos e demais cientistas sociais exorcizaram a geopolítica, que ficou durante algum tempo restrita aos círculos militares ou de Estados maiores, surgiu novamente uma aproximação no final dos anos 1970. Autores como Yves Lacoste e inúmeros outros redescobriram a geopolítica – ou "as geopolíticas", como algumas vezes se afirma, com o argumento que seria possível uma "geopolítica crítica", uma "geopolítica dos dominados", etc. – e proclamaram que no final das contas nunca existiu qualquer diferenciação substancial – no objeto, nos métodos, nas formas de abordagem – entre a geografia política e a geopolítica. E a geopolítica, como afirmou Paul Claval, tornou-se moda a partir dos anos 1980. Inúmeros centros ou institutos de pesquisas de estratégia e de geopolítica foram criados dentro e fora das universidades, tanto na Europa como nos Estados Unidos e em vários outros países, inclusive no Brasil.
Mas o "tornar-se moda" de que fala Claval nada tem de pejorativo, pois como ele próprio reconhece, a época atual demanda mais pesquisas e reflexões sobre as relações entre espaço e poder, sobre os pontos de tensões na superfície terrestre (ou dentro de algum território nacional), sobre as mudanças na ordem mundial com o final da União Soviética e do mundo socialista, com a globalização e a formação de "blocos regionais", com a multiplicações das máfias e dos terrorismos.
Deixemos de lado esse viés positivista de imaginar que cada ciência se justifica pelo "seu objeto" – como se a realidade fosse um terreno a ser demarcado e registrado em cartório –, e pensemos um pouco sobre quem fez e quem faz afinal geopolítica, quem estuda as relações entre espaço (não apenas físico-natural, mas principalmente social-produzido) e poder (ou poderes, como diria Foucault), com uma ênfase na questão do poderio de cada Estado, da competição econômica, político-diplomática e militar pela hegemonia mundial ou regional. Desde a criação da palavra geopolítica por Kjeléen no início do século XX – por sinal um não geógrafo que foi inspirado pela obra de Ratzel, mas que trazia uma importante bagagem de jurista e historiador – que os nomes mais significativos da geopolítica, tanto a nível mundial como aqui no Brasil, onde tivemos uma rica tradição nesse setor, sempre foram e continuam sendo oriundos de diversas áreas: dos meios militares (Mahan, Haushofer, Mário Travassos, Golbery do Couto e Silva), de juristas (Kjeléen), de historiadores (Kissinger, Paul Kennedy), de sociólogos ou cientistas políticos (Fukuyama, Luttuack, Huntington, etc.) e logicamente também de geógrafos (Mackinder, Spykman e vários outros).
A problemática abordada pela geopolítica,, ou rotulada como tal, é rica e complexa, é um vastíssimo campo de estudos, e comporta várias leituras (de "direita" ou de "esquerda", com os inúmeros matizes, enfatizando mais a indeterminação ou o livre arbítrio ou sendo "deterministas" naquela sentido estreito, etc.) e abordagens oriundas de diferentes áreas do conhecimento cientifico. A nosso ver, a geopolítica hoje, a partir dos anos 1980, configura-se cada vez mais como um campo de estudos interdisciplinares, como um conjunto de temas estudados isoladamente ou em equipe por geógrafos, cientistas políticos e sociólogos, historiadores, juristas, economistas, militares e alguns poucos outros.
A geografia e conseqüentemente a geografia política possui sim uma autonomia, mesmo que relativa. Existe portanto uma geografia política independente da geopolítica, e vice-versa, embora haja uma relação de imbricação profunda, de superposição parcial entre elas. O geógrafo, em especial o especialista em geografia política, tem na geopolítica uma de suas preocupações, uma de suas temáticas essenciais. Só que ele tem outras temáticas ou objetos (geografia eleitoral, por exemplo, ou mesmo a análise da política do corpo, algo comum nos dias de hoje na geografia anglo-saxônica) e ao mesmo tempo outros especialistas também compartilham com ele essa preocupação em entender essa rica problemática designada geopolítica.

terça-feira, 4 de junho de 2002

A “Primeira Missa” e o imaginário brasileiro nas obras de Victor Meirelles e Candido Portinari

A conversão dos povos das novas terras encontradas fazia parte do extenso leque de objetivos almejados com as Grandes Navegações no final do século XV e início do XVI. Neste objetivo em especial, a Igreja Católica portuguesa e espanhola vê nesta “aventura do além mar”, uma excelente oportunidade de expandir a fé cristã e consequentemente aumentar o número de fiéis. Falando dessa forma, parece que este é o único dos objetivos atribuídos às Navegações, que não possui a finalidade econômica. Se pensarmos bem, com a conversão de novos milhares de fiéis, a arrecadação também aumentaria com os impostos doutrinais comumente cobrados, como por exemplo, o dízimo e a oferta.
A tela “Primeira missa no Brasil”, produzida em 1860, por Victor Meirelles é uma importante fonte histórica que nos fornece informações merecedoras de algumas boas reflexões. Mesmo produzida há mais de três séculos do fato ocorrido, a tela de Meirelles reconstitui com maestria, o imaginário de como teria sido este momento histórico.
Se formos além da beleza e da perfeição dos traços artísticos, das cores e das técnicas de pintura, esbarraremos em elementos simbólicos que compõem a cena e que estão devidamente carregados, culturalmente falando.
Sendo assim, vamos a análise de cada um destes elementos:
O primeiro deles está no fato dos portugueses estarem todos posicionados ao lado direito da tela, ao lado do mar. Esta representação não nos aponta somente ao fato de que, quem chega são os portugueses, mas sim, que ao chegarem, conquistam. A posição destes na tela, clarifica em nós a impressão de invasão, mesmo com a ausência de atos violentos (trata-se de uma invasão cultural).
E se por um lado os portugueses estão reunidos à direita da cena, os nativos encontram-se do lado esquerdo, simbolizando o desencontro de dois mundos culturais completamente antagônicos. Mas o que chama a atenção é o fato de na cena só apresentar elementos culturais, neste caso o religioso, do homem branco, remetendo-nos a enfadonha visão de que os nativos não possuíam religião ou que aquilo que chamavam de religião, não deveria ser considerado como tal.
A cruz, sem sombra de dúvidas, é o elemento central da tela, nela está contida a ideologia cristã e o fato de está acima de todos, pode ser interpretado pela afirmação de que o cristianismo é a religião que deve ser seguida agora pelos nativos, ou seja, a cruz e a realização da missa em si, é um gesto de imposição cultural.
Mais um aspecto que nos chama a atenção é a postura dos nativos que assistem a celebração, esta não chega a ser de reverência, mas de curiosidade e aceitação, o que não retrata a verdade do conturbado processo de “imposição” e não de “conversão” religiosa que se deu entre portugueses e nativos.
A desvalorização da cultura indígena impregnada na tela de Meirelles, é digamos que, suavizada, se a compararmos com a tela produzida em 1948, por Candido Portinari  que também procurava ilustrar a mesma temática: "A Primeira missa no Brasil."
Observando a tela de Portinari, percebemos como é inexistente qualquer aspecto que nos remeta ao nativismo brasileiro, ou seja, esta concepção de Portinari não desvaloriza a cultura indígena, mas a exclui completamente do evento histórico em si.
Sendo assim, dentre os vários questionamentos que a análise destas telas em sala de aula podem gerar, também cabe ai, uma reflexão acerca da mentalidade e/ou da concepção de nação que estes artistas e parte da população em si, tinham na época das suas devidas produções.
Fica nítido para quem observa as imagens que Cândido Portinari (1903-1962) e Victor Meirelles (1832-1903) têm percepções distintas da primeira missa celebrada no Brasil em terra firme, no ano de 1.500, no Sul da Bahia. Ambas retratando a chegada do poder europeu ao país, puderam ser vistas juntas, pela primeira vez no Museu Nacional de Belas Artes, na mostra “Quando o Brasil amanhecia”.
Está explícito que os trabalhos são bem diferentes. O painel de Portinari foi encomendado e pintado em 1948, época em que era reconhecido como um especialista em grandes superfícies. Já a tela de Meirelles partiu de uma iniciativa pessoal, em 1860, aponta para os estilos de cada um. A pintura de Meirelles é romântica, quase uma alegoria, e é o mais realista possível. A de Portinari é além de cubista, antinaturalista, não houve preocupação em retratar os índios, por exemplo.
Entre as pequenas semelhanças está o fato de que foram pintadas fora do Brasil: a de Portinari, em Montevidéu; e a de Meireles, na França.
A abordagem utilizada aqui pode ser entendida não apenas como uma reflexão sobre o desenvolvimento da matéria plástica na arte brasileira, mas também sobre a construção do imaginário coletivo, uma reflexão sobre a história que implica num vislumbre sobre as diversas correntes que convivem simultaneamente em um mesmo período. Hegel acreditava que esse desenvolvimento histórico era unívoco e linear, como que etapas do desenvolvimento do espírito que, ao serem cumpridas, evidenciavam a execução de um determinado processo. Na arte, esse processo culminaria na sua morte. Em Hegel, a reflexão sobre a história possuía um aspecto linear, aqui não. Partindo de um raciocínio que remonta a Santo Agostinho, entende-se o tempo como um aspecto da realidade que não possui uma resolução (ou pelo menos não a apreendemos); em Agostinho, a ideia da apreensão do tempo passa pelo princípio da recordação: ao rememorar o meu passado o eu existencial assumiria a sua concretude ao se confrontar com um fundo eterno, aparentemente inacessível a esfera natural. Ele percebe, no entanto, que ao rememorar o passado eu só posso fazê-lo no presente e assim determinar de algum modo o futuro, esses três tempos (presente, passado e futuro) seriam apenas aspectos incompletos, sem concretude, Agostinho conclui então que o tempo em sua insubstancialidade só faz sentido em fundo eterno, esse sim realidade plena. Ele compreendeu que a temporalidade é uma esfera aparente cujo único sentido real é seu movimento sobre um fundo atemporal não apreensível, em princípio, pela mente humana. Agostinho, no entanto, percebe que o tempo é constituído de diversas temporalidades: cada indivíduo nasce e morre.
Se transportarmos essa concepção para a arte, podemos partir do princípio que, se existe uma unidade maior que pode ser descrita em termos de história da arte, temos que levar em consideração as diversas escolas que aparecem e desaparecem; essa simultaneidade de escolas é similar a simultaneidade de indivíduos com o seu surgimento, desenvolvimento e desaparição; o que teríamos seria uma sucessão de fatos que não cessam e que, se levamos em consideração que os acontecimentos continuam se desdobrando nos impedindo de acreditar que a pintura alcançou a resolução final concluímos que o trabalho de desenhistas, pintores ou mesmo escultores continua ocorrendo.
O tempo é um processo que possui um aspecto problemático, e que reflete uma variedade de acontecimentos muitas vezes desconexos. Sem perder, portanto a linha hegeliana de pensamento que compreendia que a reflexão sobre os eventos históricos era uma abordagem autoconsciente, mas que não possui exatamente a unidade e coerência que ele acreditava poder apreender, pois afinal de contas essa unidade mesma pode refletir apenas uma bagunça, um equívoco, uma limitação etc. Entende-se aqui que a reflexão sobre o desenvolvimento da arte é um aspecto fundamental do trabalho dos próprios artistas da atualidade. Devemos nos perguntar sobre as correntes que executaram de maneira coerente o projeto das artes plásticas ao longo dos tempos e as que simultaneamente tentaram negá-lo, seja de maneira inconsciente ou tentando solapar sistematicamente o seu desenvolvimento. As tentativas de 'superação' da pintura ou a suposta ruptura com as representações nas imagens ocorridas em princípios do século XX evidenciam a presença de um projeto paralelo a concepção originária das artes visuais, mas ao mesmo tempo nos leva a questionar até que ponto esse paralelismo mesmo contribuiu para o desenvolvimento de novas questões. Logo, compreender o processo que leva Victor Meirelles e Candido Portinari a  cumprirem um projeto histórico-estético é fundamental para se pensar não só o período em questão, mas a situação da arte brasileira.
Levando em consideração o aspecto periférico da cultura brasileira dentro da tradição da arte Ocidental, o desenvolvimento mais ou menos autônomo que ocorreu em terras brasileiras pode ser entendido como uma contribuição relevante? Quais as soluções dadas por artistas brasileiros que contribuem para a resolução de problemas formais da arte internacional, pensando evidentemente do ponto de vista das escolas que desenvolvem coerentemente o “sistema” pictórico/escultórico?
Para se compreender um artista, é necessário avaliar todo um quadro de relações: sejam sociais, psicológicas, simbólicas, estéticas entre outras e que esse processo é “apreendido pela determinação daqueles princípios subjacentes que revelam a atitude básica de uma nação, de um período, de uma classe social, crença religiosa ou filosófica, qualificados por uma personalidade e condensados numa obra”.
Como o aspecto verdadeiramente imenso deste estudo não poderia caber em um texto tão curto, optei por um resumo simplificado e que segundo o meu entendimento será suficiente para uma análise mais específica dos quadros em questão.
Para compreendermos como se dá o processo de construção de um quadro é necessária a manipulação consciente de uma série de códigos que no caso da pintura podem ser resumidos na articulação de cinco elementos básicos:
I.          A linha, que poderíamos chamar de a estrutura ou arcabouço do quadro.
II.          o claro-escuro, que articulado a escala tonal se conjuga em uma harmonia de valores, ou seja, os diversos intervalos tonais possíveis a serem integrados no quadro.
III.          A cor, que integrada à linha e ao valor ajuda a discriminar melhor os elementos importantes, mas que também funciona com seu poderoso instrumental na instituição do significado.
IV.          a composição, a organização dos conjuntos, em suma, o todo da obra.
V.          os elementos simbólicos e significativos não só para o pintor em questão, mas também para a comunidade que o envolve.
O pintor francês Eugene Delacroix afirma algo semelhante em seu Journal: “...Se a uma composição já interessante devido à escolha do tema, você acrescenta uma disposição de linhas que aumente o efeito, acrescenta o chiaroscuro que atraia e prenda a imaginação, e a cor adequada às suas características, resolveu um problema muito difícil , entrou no reino das ideias superiores, fazendo o que o músico faz quando, a um único tema, acrescenta os recursos da harmonia e de sua combinações”.
A ordenação consistente desses elementos não foi elaborada de uma hora para outra, mas é o produto de milhares de anos em pesquisas, investigações, acertos, erros e experimentos que num verdadeiro exercício científico tornam claro que o material pictórico precisa ser pensado, refletido, discutido. O estudioso das artes visuais alemão Rudolph Arnheim já afirmava:
... tornou-se evidente que as qualidades que dignificam o pensador e o artista caracterizam todas as manifestações da mente. Os psicólogos começaram a também ver que este fato não era coincidência: os mesmos princípios atuam em todas as várias capacidades mentais porque a mente sempre funciona como um todo. Toda percepção é também pensamento, todo raciocínio é também intuição, toda observação é também invenção.
Um diálogo do pintor consigo mesmo é uma constante no processo plástico, a busca pela opção mais relevante, a imagem mais concreta, e que o pintor sabe que se fixará em sua mente. O cineasta russo Sergei Einsenstein fala sobre o problema de forma eloquente:
Uma obra de arte entendida dinamicamente, é apenas este processo de organizar imagens no sentimento e na mente do espectador (Mais tarde veremos que este mesmo princípio dinâmico está na base de todas a imagens realmente vivas, mesmo em num meio aparentemente estático e imóvel como, por exemplo, a pintura).É isto que constitui a peculiaridade de uma obra de arte realmente vital e a distingue da inanimada, na qual o espectador recebe o resultado consumado de um determinado processo de criação, em vez de ser absorvido no processo à medida que este verifica.
Transformar as representações que condicionadas e armazenadas na rede de reflexos já constituídos da mente em imagens que atualizem o processo cognitivo e recriem novas abordagens na esfera do conhecer e do conhecido é uma tarefa extremamente difícil, pois temos representações de diversos níveis, seja no nível literal, ou seja, a reprodução de objetos reais no plano plástico, até o nível das representações sociais, psicológicas ou ideológicas que já armazenadas na mente funcionam como um gatilho que salta assim que o observador entra em contato com elas. As reações diante de uma obra variam muito de acordo com o espectador, por isso o pintor necessariamente trabalha com as representações mais imediatas e que ele sabe que são as da sua comunidade, sabe, portanto, que essas representações são conhecidas por todos e simultaneamente as atualiza, renova a linguagem, alguns com maior ou menor grau de sucesso, mas necessariamente leva adiante uma tradição que no caso dos mais criativos pode reformular todo aparato já fornecido pelas gerações anteriores, ou seja, uma linguagem nova pode ser criada; para isso o pintor precisa questionar a linguagem plástica em um nível mais formalizado, precisa de uma reflexão intelectual.
Esse duelo entre a matéria plástica e conhecimento generalizado é a base não só da arte como do conhecimento humano; em Aristóteles já ficava claro o conflito entre matéria e forma, normalmente colocado como base do conhecimento científico, mas que no meu entender é também o motor de desenvolvimento das artes visuais: de um lado o conhecimento constituído de generalizações que podem ser entendidas como uma abordagem indireta, ou seja, a própria linguagem plástica, de outro lado a matéria, ou seja, as entidades individualizadas, os objetos do mundo, aquilo que está mais evidente. Por exemplo, ao vermos um animal peludo, de quatro patas e que emite o som de miado concluímos que pertence a espécie animal e o denominamos gato, ou seja, a partir de um indivíduo deduzimos uma espécie.
Colocando as coisas nesse nível, creio que possuímos duas grandes abordagens: de um lado uma visão histórica de reflexão sobre o desenvolvimento do material, por outro lado uma abordagem dos princípios que permanecem, que não são confundidos pelo espectador, e nos quais ele reconhece um mundo consistente no qual ele pode se identificar, pode inclusive ser uma visão de mundo tanto natural quanto do sobrenatural, a própria relação do indivíduo com o cosmo a sua volta.
Temos que considerar ainda que as obras de ambos os pintores representam um enfrentamento típico da arte brasileira: Como se encaixar em um padrão cultural internacional, e ao mesmo tempo realizar uma tarefa de comunicação com a sociedade brasileira? A situação tanto de Portinari quanto de Meirelles torna clara a tarefa que um artista nacional deve enfrentar, pois em um país como o nosso, com uma tradição cultural tão dificultosa, com uma diferenciação social e psicológica tão imensa, esse exercício de busca por unidade adquire um caráter muito particular, nosso drama é um drama de unidade, é uma busca por integração, mas que também possui uma estrutura épica: a fusão das raças, o sincretismo religioso, o fundamento cristão, enfim os mitos fundadores básicos de nossa cultura e que são pisados e repisados na obra dos pintores em questão. Mito aqui não deve ser entendido como algo falso, esse é um sentido contemporâneo que não compreende o real sentido da expressão.
O conceito de mito fundador vem do filósofo alemão Schelling, ele entendia que esse conceito abarcava a reencenação dos arquétipos, estruturas simbólicas condicionantes que ordenadas na mente humana situam-se na esfera dos possíveis, ou seja, como existência potencial, nesse sentido o mito não é o oposto a verdade, mas possui função arquetípica, não deve ser acreditado ou desacretidado, é uma experiência, é uma vivência que os espectadores de um quadro, leitores de um poema ou de um romance devem ter, pois esses símbolos, são estruturadores da consciência individual; como a esfera do possível é anterior a do efetivo fica claro aqui que uma obra de arte pode ser a reencenação arquetípica de um acontecimento real ou imaginado, mas que também pode ser novamente consciência efetiva na medida em que é uma realização concreta, em nosso caso execução não só de um quadro mas de um projeto de cultura nacional.
Em ambos os quadros esse projeto parece claro: reencenar a primeira missa no Brasil - um mito afastado no tempo - é também a promessa de um futuro brilhante. A unidade entre os opostos: o índio e o europeu, a tão sonhada ideia de uma união entre os povos e que em nosso país ocorre de maneira muito peculiar. Os sonhos poderiam um dia tornar-se realidade. Organizar visualmente aspectos aparentemente tão diversos, mas que se conjugam sistematicamente, me parece ser a tarefa do artista plástico, comecemos então observando a situação de Victor Meirelles e Portinari e o modo como eles resolvem o problema.
Victor Meirelles e Portinari são dois dos artistas mais discutidos da arte brasileira. Suas obras representam, em seus respectivos períodos, a culminância das concepções estéticas discutidas no país. O primeiro representa a recriação mais bem acabada do cânone pictórico francês em terras nacionais. O segundo representa, provavelmente, o mais original pintor brasileiro que sem perder o vislumbre da arte internacional, não deixou de lado a audácia e a imaginação ao construir suas obras. Ao observamos o contexto em que suas obras foram produzidas percebe-se uma série de aproximações que deixam em relevo a continuidade da formação acadêmica em ambos os pintores, ou seja, uma manifestação explícita de que o processo de formação tradicional não dificultou o desenvolvimento de questões inovadoras na obra de ambos os artistas, pelo contrário, contribui para a conscientização dos diversos aspectos que o instrumental das artes visuais possuem para a construção de imagens que atuassem sobre o plano da realidade. O processo de construção dos quadros de ambos, por mais diverso que seja, deixa muito mais em evidência aproximações do que divergências.
Dentro do esquema da formação acadêmica, deve-se entender que, praticamente em todas as épocas em ocorreram academias, a formação se baseia na seguinte esquemática: A imitação dos antigos, o aprendizado das técnicas, o adestramento do olhar e o conhecimento dos fatos históricos e religiosos. Sobre essa base o pintor/artesão edificava o seu trabalho. Já dentro do esquema das oficinas, nas loggias do período renascentista o aprendizado se dava em um circuito mais fechado com o discípulo observando o mestre e tentando imitar o seu processo, podemos dizer, no entanto, que  a didática era a mesma que as das academias. Nelas o processo educativo geralmente era a eleição de um pintor como canônico, podia ser Raphael, Rubens, Michelangelo ou Poussin e utilizando-o como base os estudantes prosseguiam em seus estudos. É claro que havia pintores que não seguiam exatamente o esquema do mestre, eram artistas mais originais e que não se contentavam com a imitação. No Brasil do século XIX, esses conflitos se fazem presentes principalmente em Victor Meirelles, Pedro américo, Eliseu Visconti e Antonio Parreiras, pois suas obras representam, por um lado, a apreensão da tradição ocidental, e, por outro, um vislumbre de possibilidades originais em relação aos europeus.
A carreira de Victor Meirelles não representava só a construção do imaginário, ou a elaboração de quadros oficiais, também era uma ostensiva competição profissional com Pedro Américo, ambos realizaram algumas das obras mais importantes da arte brasileira; suas limitações tantas vezes apontadas pelos críticos não devem ser levadas muito a sério, pois temos que levar em consideração as diversas dificuldades que um artista tinha ao se firmar em um país fundamentalmente agrário como o Brasil e que no século XIX se encontrava tão distante da Europa, imaginemos a situação de pintores que saídos daqui se deparavam com a potência da arte europeia, e levando em consideração os naturais preconceitos com a arte produzida por aqui durante o Barroco acabavam incorporando um cânone pictórico europeu, se esquecendo ou ignorando a riqueza imaginativa de um Aleijadinho ou um Mestre Valentim. Procurando se encaixar em um padrão europeu e simultaneamente articulando-o a uma nova visão que o país em sua independência recém-adquirida procurava construir sobre si mesmo eles acabavam a seu modo sendo evidentemente originais. Creio que a importância desse período se dá na medida em que vemos um tremendo esforço de apreensão da tradição oriunda de séculos anteriores e sua relação com problemas específicos da cultura nacional.
Como a Arte Francesa era o ponto de chegada dos artistas brasileiros, tínhamos uma evidente influência da arte dessa nação e que é apontada muitas vezes como tentativa de plágio, mas aqui não é o caso. A primeira missa no Brasil de Victor Meirelles [Figura 1] representa uma síntese original e não pode ser confundida com mera imitação; em uma primeira observação percebemos que a cena ocorre em uma clareira na floresta, o ritual congrega índios e brancos, nesse ritual fica evidente a separação entre as duas culturas e a promessa de unidade que a é representada pelo símbolo da cruz, a organização do campo visual se dá em uma espacialidade naturalista em grau máximo, ou seja, o sistema pictórico elaborado principalmente a partir do Renascimento. A reação dos críticos na época não foi das melhores, muitos atacaram o pintor, esperavam uma coisa e viram outra, talvez o choque com a realidade que ali se apresentava. A atmosfera do quadro não possui um caráter fantástico, não é um mundo de sonhos, mas uma simples cena realizada no interior da mata.
 
figura 1
O sistema plástico de Victor Meirelles é derivado principalmente da plástica desenvolvida pelos pintores italianos do século XVI , principalmente os venezianos, assim como de espanhóis, franceses e holandeses do século XVII, nesses períodos, com exceção dos franceses, a linearidade é desenvolvida em menor grau, são valorizados os grandes grupos e o encadeamento entre os elementos do quadro, por mais polarizados que sejam. Essa concepção de realismo visual não tem nada a ver com o que hoje se compreende por 'imitação' ou cópia. Essa incompreensão é manifesta em diversos autores do século XX. Pierre Francastel, por exemplo, ao comentar o espaço Renascentista afirma que “admitia-se que o novo espaço tinha a forma de um cubo, que todas as linhas se reuniam em um ponto único situado no interior do quadro e corresponde a um ponto de vista único do corpo humano. O mesmo equívoco é cometido por René Guilleré: “A antiga perspectiva nos apresentava nos apresentava conceitos geométricos de objetos e com eles podiam ser vistos por um olho ideal”. Aqui obviamente ele fala sobre a perspectiva exata. No entanto, ele generaliza o conceito propositalmente para as artes visuais, vejamos: “Nossa perspectiva moderna nos mostra os objetos como vemos ambos os olhos andando despreocupados. Não mais construímos um mundo visual com um ângulo agudo, convergindo no horizonte. Abrimos este ângulo, colocando as representações contra nós, sobre nós, em direção a nós... fazemos parte desse mundo.
As duas afirmações acima são espinhosas e cheias de equívocos em relação ao problema da representação bidimensional:
A espacialidade em forma de cubo, é rara no Renascimento, basta observarmos autores como Paolo Uccelo, Van Eyck, Michelangelo, Raphael e mesmo Da Vinci e Dürer. Neles vemos perspectivas construídas com mais de um ponto de fuga e com diversas adaptações dos objetos ao espaço em volta, sem falarmos dos Maneiristas e Barrocos. A ideia de Guilleré “fazemos parte desse mundo” está presente em praticamente todas as obras de todas as épocas sendo boa parte da arte do século XX precisamente o contrário: é a manifestação de um estranhamento dos indivíduos com o mundo. Criticar a artificialidade do realismo visual é um ponto de vista ingênuo, pois o modo como a mente opera é necessariamente indireto, ou seja, um dado só pode ser apreendido se existir na estrutura do pensamento um “órgão” capaz de captá-lo, daí que o esquema realista é necessariamente tão artificial quanto qualquer outro aparato construído pela mente, o desenho é uma esquemática que traduz a realidade dentro da consciência, quanto mais o aparato pictórico se sofisticou mais o homem pode compreender o mundo que potencialmente havia a sua volta.
Victor Meirelles não foi um criador de uma nova linguagem, um novo código, não inovou na composição, mas continuou de maneira consistente a tradição que se traçou no Renascimento. A harmonia e identificação que encontramos ao nos depararmos com sua Primeira Missa se deve a um aparato plástico que era suficiente para traduzir no plano pictórico o mundo da natureza e que correspondia aos anseios de identificação com a realidade. Seu papel foi o de, inclusive, educar o olhar do brasileiro, fornecer material para a reestruturação do olhar, em terras nacionais isso era um golpe audacioso e inovador. Se como foi dito acima a linguagem plástica é constituída de artifícios que visavam uma melhor tradução da estrutura da realidade no campo plástico, como não poderia ocorrer estranhamento do público com relação a essa linguagem mesma? O que hoje percebemos como “realismo” talvez não o tenha sido em sua época. É provável que a incompreensão tenha ocorrido na medida em que os artifícios compositivos não estavam condicionados às mentes que os recebiam.
Pode-se afirmar que a tradição plástica realista não é uma representação ipsis litteris da realidade, mas uma aproximação, uma reencenação ou simulação e que a esfera estética situa-se na esfera das possibilidades e da aparência. O caráter persuasivo do quadro se dá na medida em que as representações sejam ultrapassadas e o quadro seja vivido no interior do espectador, daí que a unidade entre o observador e o quadro não é uma invenção moderna ou contemporânea.
Afirmar o caráter meramente artificioso da pintura naturalista possui implicações que ultrapassam os próprios limites da pintura, o período de Candido Portinari é bastante intenso e representa um estágio mais específico de desenvolvimento do problema. Portinari também viajou para a Europa, conheceu a pintura de diversos períodos e voltou aqui nutrido de duas ideologias: comunismo e cubismo. Ambos os movimentos possuíam caráter revolucionário e apregoavam uma transformação completa tanto da sociedade quanto da arte. A pintura sente o impacto desses movimentos.
Se em Victor Meirelles a ambição era restrita ao ambiente brasileiro, ou seja, dar ao público um resumo das possibilidades já consagrados pelo tempo, em Portinari, a Primeira Missa no Brasil [Figura 2] se problematiza a ponto do diálogo explícito com seu contemporâneos internacionais se fazer presente.
fig.2
 
 Entre os dois pintores há uma unidade de propósitos, ambos se preparavam para as realizações de painéis históricos, ambos estavam informados sobre a produção europeia de seu tempo. Portinari tinha a necessidade de produzir uma obra moderna sem perder o contato com a tradição nacional, seu desenho incorpora além da sofisticação europeia, a rusticidade da arte popular, além de um certo “barroquismo”. Há, no entanto, a presença do cubismo e sua problematização.
Não cabe aqui uma análise pormenorizada desse movimento, mas algumas observações devem ser feitas: o cubismo parte do pressuposto de que a pintura anterior era necessariamente ambígua e que tinha que ser harmonizada ao plano plástico. Se em Cézanne, o equilíbrio dinâmico entre o observador e a realidade havia sido alcançado a custa de artifícios lineares a cromáticos, nos cubistas esse equilíbrio é rompido sendo estabelecidas convenções que se supunham ser o a priori fundamental da imagem. Esse a priori seria composto dos diversos fragmentos esparsos que simbolizavam a imersão do indivíduo na realidade fragmentada e desconexa, mas que possuíam ao mesmo tempo unidades que representavam “a ideia” daquilo que possuímos na mente, esses elementos seriam os próprios limites do conhecimento pictórico e que não poderiam ser ultrapassados, pois significavam a própria limitação do olhar. Não mais se apegando à realidade aparente a mente poderia trabalhar livremente apenas com o que o quadro ofereceria. Esse princípio transcendental seria o próprio fundamento por trás objetos não mais precisando representá-los realisticamente. Ora, se é a mente que organiza a realidade bastaria que olhássemos esses fragmentos esparsos e reconheceríamos de imediato o que eles representam. Esses pedaços de narizes, copos, xícaras indicados no plano plástico deixariam em evidência o que é a verdadeira natureza dos objetos e principalmente deixaria claro o que devemos conhecer a respeito deles. Sem as limitações dúbias que a pintura anterior só poderia nos fornecer através da imagem apenas “verossímil”. Pois nela a relação da mente com a realidade nos forneceria apenas uma visão limitada das coisas. Era necessário buscar os princípios permanentes que estavam subjacentes na natureza dos objetos e que localizavam-se na mente. Pois a pintura anterior não conseguiria captar a integridade mesma dessa relação entre pensamento e realidade.
No cubismo temos, portanto. a negação de que houvesse uma relação consistente da pintura tradicional com o mundo empírico, pois este é dotado de dados muito fracos para que pudéssemos pensá-lo em sua totalidade logo, não forneceria a realidade tal como ela é constituída. Com esta novidade no campo do aparato plástico eles acreditavam que poderiam reduzir a pintura a um código que fosse suficiente para relacionar-se com o aparato mental que possuímos, pois nele teríamos os dados necessários para a reordenação do mundo sensível. Teríamos princípios fixos e que não se alteram de acordo com o ponto de vista do observador. Um copo pintado por Raphael não revela o copo por inteiro, jamais o revelará, pois seus aspectos múltiplos só podem ser captados por aproximação, um copo cubista mostra apenas aquilo o quadro bidimensional comportaria, daí o copo cubista aparentemente ser mais pleno, mais completo, mais exato. O problema é que o copo cubista continuava sendo uma representação. Braque ao afirmar que “Não se imitam as aparências, a aparência é o resultado”, no fundo reafirma a estrutura da realidade, já que não podemos pensá-la em seu todo  apenas intuí-la. Talvez sem o perceber acabava por validar também o realismo visual. Pois este poderia constituir uma visão de todo fundada no mundo das aparências. Portinari nunca se manifestou a respeito de tais ideias, mas certamente reagiu como muitos pintores à máquina cubista, que ameaçava os fundamentos da pintura. Mas que perigos representavam os princípios expostos acima?
Os cubistas entendem que a pintura era uma construção assim como os antigos, no entanto radicalizam essa postura e acreditam que uma artificialização revelaria os limites do conhecimento perceptivo, sem notarem que reduziam a pintura a um esquema calcado em uma mera formalização. Seu princípio assim como de uma parte das escolas modernas de pintura era: 'a arte e natureza são distintas'. Ao tentarem reorganizar os fundamentos da pintura, os cubistas rejeitam o aspecto ambíguo do realismo visual e tentam realizar uma pintura ideal, sem os vaivens da realidade, no entanto acabam reduzindo-se a um esquema mental, dando as costas para a variedade e riqueza do mundo observado. O que os cubistas fazem no final das contas é estabelecer novas convenções. Revelaram apenas a estrutura do quadro, não romperam com a representação. Ao comentar sobre a representação, Schelling afirmava:
O supremo triunfo da ciência seria justamente este: trazer aquilo que só é possível conhecer elevando-se acima da representação e, portanto, aquilo que por si mesmo não é acessível à mera representação, mas somente ao pensar puro, até a esfera da representação. Assim o sistema coperniciano não poderia ter sido estabelecido sem impelir o mundo para além da mera representação e sem chocar frontalmente a mera representação; e ele foi, em seu início, um sistema altamente impopular, contraditório com todas as representações. Mas o mesmo sistema, quando totalmente executado e quando por seu intermédio, mesmo a representação de um movimento do sol em torno da Terra se torna concebível, reconcilia também consigo a mera representação e se torna tão claro para ela quanto era anteriormente a representação oposta e, em continuidade, esta lhe aparece agora como confusa e sem clareza.
As premissas plásticas que eles partem jamais podem ser compreendidas sem alguma representação, em um primeiro momento o espectador não compreende a nova estrutura plástica, mas, com o passar do tempo, ela se reacomoda em sua mente e torna-se também representação; daí que um círculo representa um copo, um quadrado é uma mesa, etc.
Os cubistas trabalhavam com convenções, daí que um círculo só é copo se foi nomeado como tal. Mas para entender que um círculo cubista é copo eu preciso reconhecer um copo verdadeiro. Se eu já reconheço o copo em sua representação pra que pintá-lo como um círculo e duas linhas? Por que afirmar que esta última é a mais exata? Dizer que o segundo maneira é a mais consistente é pura balela, pois a representação “normal” do copo certamente é a mais válida, pois ela se dá por aproximação e não por exatidão. O Cubismo nega, portanto, a “imperfeição” da pintura anterior em prol de uma pintura absoluta, que representará os objetos em sua forma permanente sem as ambiguidades da realidade. Ao buscarem uma pintura mais “racional” e que resolvesse todos os problemas anteriores os cubistas criaram apenas convenções que mais arbitrárias que esses princípios mesmos que acabaram por relativizar uma tradição milenar. É o início dos movimentos contestadores do século XX, do cubismo para a abstração e a consequente negação da realidade é um passo. A proibição de qualquer elemento relacionado à pintura anterior torna-se uma regra na arte atual. Não é à toa que a arte contemporânea se caracteriza por um esforço desesperado em relacionar-se com o mundo, pois ele foi perdido. O Cubismo, no fundo, é a expressão mais bem acabada da irracionalidade.
Mergulhamos aqui em um furor iconoclasta que chegava às raias do fanatismo. O cubismo e sua continuação, o abstracionismo, não representam de modo algum soluções, mas problemas. Em seu desejo de poder absoluto nos legaram apenas uma realidade parcial. Separaram o expectador da realidade e depositaram o mundo da mente. Apenas na mente.
Se em Victor Meirelles o problema era tornar a cena verossímil, persuadir o público de qual imagem remontara a fatos reais mesmo que num ambiente de encenação, em Portinari o problema é de outra natureza, pois, ao digerir a pintura cubista, Portinari incorporou o aparato plástico a priori fornecido pelos cubistas: no caso os planos geométricos modulados. Creio que o problema de Portinari era o seguinte: Como fazer uma imagem verossímil que fundida a um esquema cubista/abstrato não perde a riqueza que o realismo fornece?
Se eu desenho um copo com duas linhas dois círculos, estou implicitamente afirmando que há uma identidade no objeto que eu apreendi ao observá-lo concretamente, ora se eu ao observar um copo real já apreendi o princípio que constitui a sua realidade, mesmo que eu não seja um conhecer profundo dos objetos. O que eu quero dizer é que observar um copo a partir de ângulo qualquer é captar um aspecto arbitrário que nem por isso obscurece o conhecimento totalizante que eu possuo do copo. Logo desenhar um copo realisticamente não é mera representação do copo no sentido imitativo que o termo possui, mas uma evidência de que o princípio individualizador dos objetos está nos próprios objetos, há algo de sua essência que foi captado na estrutura do quadro, e que possibilita reconhecê-lo, mesmo que representado em um meio aparentemente ambíguo como o meio plástico. É nesse raciocínio por analogia que de fato as coisas se processam. A diferença entre uma pintura e o objeto real é que eu sei qual dos dois é o real e qual é a sua representação pictórica. Essa relação é indireta. Devemos nos lembrar que as convenções cubistas diferem das convenções realistas na medida que a primeira acreditava depositar apenas na mente os fundamentos dos códigos visuais; a segunda na realidade e em sua intersecção com o espectador: o desenho. O realismo era um artifício que reencenava o mundo fenomênico no plano visual. O cubismo era uma realidade plástica que se afirmava como puro artifício. Em nenhum momento se acreditou que essa reencenação, a realista, era uma tentativa de substituir a realidade por outra, o cientista ao construir seus modelos não raciocina que o seu modelo seja uma versão mais correta da realidade; nem o pintor.
Victor Meirelles confiava na realidade, se aconchegava nela e aceitava suas configurações. Portinari tensionava com ela e a interpretava de acordo com configurações geométricas pré-estabelecidas. Se em Meirelles a artificialidade se dá em uma escala sutil em Portinari ela salta diante dos olhos do público. Isto se deve sem dúvida ao subjetivismo encontrado em Portinari, vindo das escolas modernistas, a ideia de um “eu expressivo” está nítida na disposição das figuras e no tratamento de cada personagem, na pincelada, a maneira pessoal do pintor. Portinari estava antenado com as escolas internacionais e sabia que essa escala de valor era importante, seu trabalho incorporou uma visão de mundo realista. Adaptada ao mundo externo por um lado. Subjetiva e personalizado por outro.
Victor Meirelles incorporou certa impessoalidade épica, talvez contrabalançado com sua identificação com o mundo fenomênico que no seu quadro é mais harmoniosa. Em Portinari a tensão se faz presente desde os primeiros estudos [Figura 3].
fig.3
Há uma estrutura condicionante: são as formas geométricas. Em um dos primeiros estudos elas estão nitidamente traçados, armou-se um esqueleto que entram em conflito com a 'continuidade' realista. Não temos os estudos de Meirelles, mas a julgar por outros desenhos que dele conhecemos sua abordagem é direta, do ponto de vista do desenho, ou seja, não há dados configurantes que “armam” a composição. Em Meirelles, configurante e configurado são uma única coisa, em Portinari isso difere um pouco. A presença do cubismo com suas estruturas configurantes o obrigam a tentar resolver o problema; daí o caráter mais artificial que seus quadros possuem e que são normalmente entendidos como uma falha ou um equívoco, mas que na realidade são tentativas de resolver um problema dramático na arte do século XX: a tão sonhada busca por unidade presente tanto nas artes, mas também na ciência e filosofia.
Picasso assume o caráter trágico desse divórcio do homem com o mundo a sua volta. Portinari não aceita com facilidade e tenta corajosamente unificar os opostos: geometrização abstrata versus organicidade realista. Se em Victor Meirelles a ponto de partida era a própria unidade do indivíduo com o mundo representada pelo ritual que liga o homem a Deus e que é manifesta em sua abordagem realista, em Portinari a tragédia existencial é evidenciada na medida em que as convenções formalizantes criam um obstáculo na interação do homem com o Divino.
CONSIDERAÇÕES
A sequencia que vai de Victor Meirelles a Portinari põe as claras um desenvolvimento particular na arte brasileira. A abordagem que se faz das escolas europeias não ocorreu sem conflito e reflexão. Se no século XIX a situação encontrava-se um estado latente, no século XX o problema explode em todas as suas contradições.
Os pintores da atualidade que estão cônscios dos problemas abordados acima deveriam em princípio dar alguma resposta, pois estas questões ainda não foram retomadas. O objetivo desse pequeno estudo foi fazer um percurso bastante simplificado dos problemas básicos da pintura e tentar situá-los dentro de um contexto específico. A intenção era responder a duas perguntas básicas:
1.     De que forma as soluções dadas pelos pintores constituem soluções especificamente nacionais?
As soluções dadas por ambos podem ser compreendidas como a solução de problemas específicos da arte brasileira na medida em que não incorporam mimeticamente a estética europeia, mas recriam dentro de novas perspectivas o imaginário brasileiro calcado na ideia de sincretismo e unidade, em ambos os pintores existe algum tipo de conflito seja de natureza semântica no caso de Victor Meirelles (cultura europeia versus cultura indígena), seja de natureza plástica (cubismo versus realismo) em Portinari.
 
2.     Qual a relevância dessas contribuições para a arte internacional?
Se em Victor Meirelles a unidade realista que seu quadro possui lhe confere uma interação maior entre os elementos, em Portinari o conflito modernista deixa nítida uma maior conscientização dos problemas visuais vigentes em sua época. Isso de modo algum faz de Victor Meirelles um pintor menor, apenas deixa clara uma diferença de perspectivas entre os dois pintores. Portinari não ignorou a obra de Meirelles ao construir sua primeira missa, pelo contrário, ela representa um voto de respeito ao mestre anterior e abre uma riqueza de perspectivas que se faz presente. Pois se na arte europeia o divórcio com o mundo significou o “fim da representação”, aqui sua busca pela unidade deixou claro que mesmo em uma pintura marcada pela tradição europeia a presença de um passado específico serviu de sustentáculo para o pintor não perder a busca por uma unidade maior. Se em Victor Meirelles a temática da incorporação de uma cultura em outra é resolvida no próprio plano da realidade, ou seja, o realismo visual por si mesmo é suficiente para expressar a incorporação da cultura indígena pela europeia, em Portinari a incorporação se dá em outro nível no qual a estrutura plástica abstrata e reabsorvida em uma espacialidade realista. Logo, em ambos os pintores, temos o tema da incorporação de dados culturais, só que em campos semânticos diferentes.
O percurso que tracei de Victor Meirelles até Portinari tenta pôr em bases mais claras uma relação muitas vezes ignorada ou pouco compreendida. É necessário que a arte hoje retorne ao problema inconcluso que a obra de Portinari nos legou e siga adiante. Ao nos perguntarmos sobre a consistência da pintura de Portinari a primeira questão que deve vir a tona é como ele incorporou novos problemas pictóricos sem perder a consistência que a tradição lhe fornecia. Os problemas pictóricos enunciados acima estão presentes em toda a produção da arte ocidental, e de maneira geral tem sido elaborados por todos os pintores e escultores, aqueles que em geral incorporam uma estrutura naturalista na qual as formas vivas da natureza são traduzidas para a abordagem expressiva da dinâmica plástica realizam uma obra que evidencia a identificação do indivíduo com a realidade, aqueles que usam essa dinâmica para expressar tensão com o mundo efetivo, evidenciam uma tomada de posição trágica em relação à existência, ambas as posições são válidas se o ponto de partida for a unidade intrínseca da realidade, mas, como no caso do cubismo e das tendências abstratizantes, se ocorrer uma busca por relações artificiais e encará-las sob um ponto de vista positivo o que teremos não é apenas uma visão trágica do ponto de vista da realidade, mas a negação da realidade em nome de um ideal que no fundo é uma artificialização delirante. Boa parte da arte do século XX evidenciou esta última postura: a tensão do indivíduo não era mais expressa com as próprias estruturas que estavam imersas na realidade, pelo contrário essa tensão é artificializada a tal ponto que se tenta produzir uma arte voltada para si mesma, na qual se tenta dar conta da realidade com um mero jogo de formas. Isso é evidente em uma parte da obra de Picasso, assim como de Mondrian, Kandinsky, Malevitch, Pollock, Duchamp, entre outros.
A arte cubista ou abstrata não reconhece a capacidade do indivíduo de realizar-se no mundo sensível e através dele apreender uma esfera transcendente, mas, como foi analisado acima, nesses movimentos mesmos criam-se obstáculos para que essa apreensão não possa ser efetivada; eles só podem ser aceitos como solução válida se não forem compreendidos como uma ruptura, mas como possibilidades novas e que podem ser incorporadas no sistema maior das artes plásticas cujas bases permanentes foram fixadas principalmente entre os séculos XV e XVII.
Em geral, a abordagem intelectual de uma obra de arte feita por um pintor não é bem vista, sendo inclusive rejeitada por teóricos especializados. Mas isso não deve ser obstáculo para um artista pensar sobre o seu trabalho, na maioria das vezes esse preconceito é fortemente estimulado pela nossa tradição que situa o artista em um pedestal diferenciado, numa espécie de plano místico no qual ele mesmo está impedido de formular um pensamento verbal sobre o seu trabalho. Isso é ingenuidade. Em uma carta a Sömering de 28 de agosto de 1796, Goethe afirmava: “Uma ideia sobre os objetos da experiência é como um órgão de que me sirvo para captar esses objetos e apossar-me deles”. Delacroix assim como vários outros artistas, tais como Baudelaire e Richard Wagner, também fizeram afirmações importantes a respeito do assunto. Creio que na arte de hoje é fundamental que se construa constantemente o trabalho em uma base crítica consciente, pois essa base mesma foi contrabandeada para um universo estético vazio e sem coerência que é o mundo da arte contemporânea, contribuir para essa renovação dos estudos plásticos foi a intenção do presente estudo.
BIBLIOGRAFIA:
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SCHELLING, Fridriech von. Apêndice de um manuscrito mais antigo (de Erlangen), Coleção Os Pensadores, Abril Cultural, 1973 (trad. Rubens Rodrigues Torres Filho).
ZÍLIO, Carlos. A querela do Brasil. Rio de Janeiro: Funarte, 1982.
Estudos sobre Agostinho e a filosofia do tempo feitos por Olavo de Carvalho: <http://www.olavodecarvalho.org/semana/060313dc.htm> Acesso em: 1 de junho 2012
Estudos sobre Schelling e o conceito de mito fundador: <http://www.olavodecarvalho.org/semana/mitoideo.htm> Acesso em: 1 de junho 2012