terça-feira, 4 de junho de 2002

A “Primeira Missa” e o imaginário brasileiro nas obras de Victor Meirelles e Candido Portinari

A conversão dos povos das novas terras encontradas fazia parte do extenso leque de objetivos almejados com as Grandes Navegações no final do século XV e início do XVI. Neste objetivo em especial, a Igreja Católica portuguesa e espanhola vê nesta “aventura do além mar”, uma excelente oportunidade de expandir a fé cristã e consequentemente aumentar o número de fiéis. Falando dessa forma, parece que este é o único dos objetivos atribuídos às Navegações, que não possui a finalidade econômica. Se pensarmos bem, com a conversão de novos milhares de fiéis, a arrecadação também aumentaria com os impostos doutrinais comumente cobrados, como por exemplo, o dízimo e a oferta.
A tela “Primeira missa no Brasil”, produzida em 1860, por Victor Meirelles é uma importante fonte histórica que nos fornece informações merecedoras de algumas boas reflexões. Mesmo produzida há mais de três séculos do fato ocorrido, a tela de Meirelles reconstitui com maestria, o imaginário de como teria sido este momento histórico.
Se formos além da beleza e da perfeição dos traços artísticos, das cores e das técnicas de pintura, esbarraremos em elementos simbólicos que compõem a cena e que estão devidamente carregados, culturalmente falando.
Sendo assim, vamos a análise de cada um destes elementos:
O primeiro deles está no fato dos portugueses estarem todos posicionados ao lado direito da tela, ao lado do mar. Esta representação não nos aponta somente ao fato de que, quem chega são os portugueses, mas sim, que ao chegarem, conquistam. A posição destes na tela, clarifica em nós a impressão de invasão, mesmo com a ausência de atos violentos (trata-se de uma invasão cultural).
E se por um lado os portugueses estão reunidos à direita da cena, os nativos encontram-se do lado esquerdo, simbolizando o desencontro de dois mundos culturais completamente antagônicos. Mas o que chama a atenção é o fato de na cena só apresentar elementos culturais, neste caso o religioso, do homem branco, remetendo-nos a enfadonha visão de que os nativos não possuíam religião ou que aquilo que chamavam de religião, não deveria ser considerado como tal.
A cruz, sem sombra de dúvidas, é o elemento central da tela, nela está contida a ideologia cristã e o fato de está acima de todos, pode ser interpretado pela afirmação de que o cristianismo é a religião que deve ser seguida agora pelos nativos, ou seja, a cruz e a realização da missa em si, é um gesto de imposição cultural.
Mais um aspecto que nos chama a atenção é a postura dos nativos que assistem a celebração, esta não chega a ser de reverência, mas de curiosidade e aceitação, o que não retrata a verdade do conturbado processo de “imposição” e não de “conversão” religiosa que se deu entre portugueses e nativos.
A desvalorização da cultura indígena impregnada na tela de Meirelles, é digamos que, suavizada, se a compararmos com a tela produzida em 1948, por Candido Portinari  que também procurava ilustrar a mesma temática: "A Primeira missa no Brasil."
Observando a tela de Portinari, percebemos como é inexistente qualquer aspecto que nos remeta ao nativismo brasileiro, ou seja, esta concepção de Portinari não desvaloriza a cultura indígena, mas a exclui completamente do evento histórico em si.
Sendo assim, dentre os vários questionamentos que a análise destas telas em sala de aula podem gerar, também cabe ai, uma reflexão acerca da mentalidade e/ou da concepção de nação que estes artistas e parte da população em si, tinham na época das suas devidas produções.
Fica nítido para quem observa as imagens que Cândido Portinari (1903-1962) e Victor Meirelles (1832-1903) têm percepções distintas da primeira missa celebrada no Brasil em terra firme, no ano de 1.500, no Sul da Bahia. Ambas retratando a chegada do poder europeu ao país, puderam ser vistas juntas, pela primeira vez no Museu Nacional de Belas Artes, na mostra “Quando o Brasil amanhecia”.
Está explícito que os trabalhos são bem diferentes. O painel de Portinari foi encomendado e pintado em 1948, época em que era reconhecido como um especialista em grandes superfícies. Já a tela de Meirelles partiu de uma iniciativa pessoal, em 1860, aponta para os estilos de cada um. A pintura de Meirelles é romântica, quase uma alegoria, e é o mais realista possível. A de Portinari é além de cubista, antinaturalista, não houve preocupação em retratar os índios, por exemplo.
Entre as pequenas semelhanças está o fato de que foram pintadas fora do Brasil: a de Portinari, em Montevidéu; e a de Meireles, na França.
A abordagem utilizada aqui pode ser entendida não apenas como uma reflexão sobre o desenvolvimento da matéria plástica na arte brasileira, mas também sobre a construção do imaginário coletivo, uma reflexão sobre a história que implica num vislumbre sobre as diversas correntes que convivem simultaneamente em um mesmo período. Hegel acreditava que esse desenvolvimento histórico era unívoco e linear, como que etapas do desenvolvimento do espírito que, ao serem cumpridas, evidenciavam a execução de um determinado processo. Na arte, esse processo culminaria na sua morte. Em Hegel, a reflexão sobre a história possuía um aspecto linear, aqui não. Partindo de um raciocínio que remonta a Santo Agostinho, entende-se o tempo como um aspecto da realidade que não possui uma resolução (ou pelo menos não a apreendemos); em Agostinho, a ideia da apreensão do tempo passa pelo princípio da recordação: ao rememorar o meu passado o eu existencial assumiria a sua concretude ao se confrontar com um fundo eterno, aparentemente inacessível a esfera natural. Ele percebe, no entanto, que ao rememorar o passado eu só posso fazê-lo no presente e assim determinar de algum modo o futuro, esses três tempos (presente, passado e futuro) seriam apenas aspectos incompletos, sem concretude, Agostinho conclui então que o tempo em sua insubstancialidade só faz sentido em fundo eterno, esse sim realidade plena. Ele compreendeu que a temporalidade é uma esfera aparente cujo único sentido real é seu movimento sobre um fundo atemporal não apreensível, em princípio, pela mente humana. Agostinho, no entanto, percebe que o tempo é constituído de diversas temporalidades: cada indivíduo nasce e morre.
Se transportarmos essa concepção para a arte, podemos partir do princípio que, se existe uma unidade maior que pode ser descrita em termos de história da arte, temos que levar em consideração as diversas escolas que aparecem e desaparecem; essa simultaneidade de escolas é similar a simultaneidade de indivíduos com o seu surgimento, desenvolvimento e desaparição; o que teríamos seria uma sucessão de fatos que não cessam e que, se levamos em consideração que os acontecimentos continuam se desdobrando nos impedindo de acreditar que a pintura alcançou a resolução final concluímos que o trabalho de desenhistas, pintores ou mesmo escultores continua ocorrendo.
O tempo é um processo que possui um aspecto problemático, e que reflete uma variedade de acontecimentos muitas vezes desconexos. Sem perder, portanto a linha hegeliana de pensamento que compreendia que a reflexão sobre os eventos históricos era uma abordagem autoconsciente, mas que não possui exatamente a unidade e coerência que ele acreditava poder apreender, pois afinal de contas essa unidade mesma pode refletir apenas uma bagunça, um equívoco, uma limitação etc. Entende-se aqui que a reflexão sobre o desenvolvimento da arte é um aspecto fundamental do trabalho dos próprios artistas da atualidade. Devemos nos perguntar sobre as correntes que executaram de maneira coerente o projeto das artes plásticas ao longo dos tempos e as que simultaneamente tentaram negá-lo, seja de maneira inconsciente ou tentando solapar sistematicamente o seu desenvolvimento. As tentativas de 'superação' da pintura ou a suposta ruptura com as representações nas imagens ocorridas em princípios do século XX evidenciam a presença de um projeto paralelo a concepção originária das artes visuais, mas ao mesmo tempo nos leva a questionar até que ponto esse paralelismo mesmo contribuiu para o desenvolvimento de novas questões. Logo, compreender o processo que leva Victor Meirelles e Candido Portinari a  cumprirem um projeto histórico-estético é fundamental para se pensar não só o período em questão, mas a situação da arte brasileira.
Levando em consideração o aspecto periférico da cultura brasileira dentro da tradição da arte Ocidental, o desenvolvimento mais ou menos autônomo que ocorreu em terras brasileiras pode ser entendido como uma contribuição relevante? Quais as soluções dadas por artistas brasileiros que contribuem para a resolução de problemas formais da arte internacional, pensando evidentemente do ponto de vista das escolas que desenvolvem coerentemente o “sistema” pictórico/escultórico?
Para se compreender um artista, é necessário avaliar todo um quadro de relações: sejam sociais, psicológicas, simbólicas, estéticas entre outras e que esse processo é “apreendido pela determinação daqueles princípios subjacentes que revelam a atitude básica de uma nação, de um período, de uma classe social, crença religiosa ou filosófica, qualificados por uma personalidade e condensados numa obra”.
Como o aspecto verdadeiramente imenso deste estudo não poderia caber em um texto tão curto, optei por um resumo simplificado e que segundo o meu entendimento será suficiente para uma análise mais específica dos quadros em questão.
Para compreendermos como se dá o processo de construção de um quadro é necessária a manipulação consciente de uma série de códigos que no caso da pintura podem ser resumidos na articulação de cinco elementos básicos:
I.          A linha, que poderíamos chamar de a estrutura ou arcabouço do quadro.
II.          o claro-escuro, que articulado a escala tonal se conjuga em uma harmonia de valores, ou seja, os diversos intervalos tonais possíveis a serem integrados no quadro.
III.          A cor, que integrada à linha e ao valor ajuda a discriminar melhor os elementos importantes, mas que também funciona com seu poderoso instrumental na instituição do significado.
IV.          a composição, a organização dos conjuntos, em suma, o todo da obra.
V.          os elementos simbólicos e significativos não só para o pintor em questão, mas também para a comunidade que o envolve.
O pintor francês Eugene Delacroix afirma algo semelhante em seu Journal: “...Se a uma composição já interessante devido à escolha do tema, você acrescenta uma disposição de linhas que aumente o efeito, acrescenta o chiaroscuro que atraia e prenda a imaginação, e a cor adequada às suas características, resolveu um problema muito difícil , entrou no reino das ideias superiores, fazendo o que o músico faz quando, a um único tema, acrescenta os recursos da harmonia e de sua combinações”.
A ordenação consistente desses elementos não foi elaborada de uma hora para outra, mas é o produto de milhares de anos em pesquisas, investigações, acertos, erros e experimentos que num verdadeiro exercício científico tornam claro que o material pictórico precisa ser pensado, refletido, discutido. O estudioso das artes visuais alemão Rudolph Arnheim já afirmava:
... tornou-se evidente que as qualidades que dignificam o pensador e o artista caracterizam todas as manifestações da mente. Os psicólogos começaram a também ver que este fato não era coincidência: os mesmos princípios atuam em todas as várias capacidades mentais porque a mente sempre funciona como um todo. Toda percepção é também pensamento, todo raciocínio é também intuição, toda observação é também invenção.
Um diálogo do pintor consigo mesmo é uma constante no processo plástico, a busca pela opção mais relevante, a imagem mais concreta, e que o pintor sabe que se fixará em sua mente. O cineasta russo Sergei Einsenstein fala sobre o problema de forma eloquente:
Uma obra de arte entendida dinamicamente, é apenas este processo de organizar imagens no sentimento e na mente do espectador (Mais tarde veremos que este mesmo princípio dinâmico está na base de todas a imagens realmente vivas, mesmo em num meio aparentemente estático e imóvel como, por exemplo, a pintura).É isto que constitui a peculiaridade de uma obra de arte realmente vital e a distingue da inanimada, na qual o espectador recebe o resultado consumado de um determinado processo de criação, em vez de ser absorvido no processo à medida que este verifica.
Transformar as representações que condicionadas e armazenadas na rede de reflexos já constituídos da mente em imagens que atualizem o processo cognitivo e recriem novas abordagens na esfera do conhecer e do conhecido é uma tarefa extremamente difícil, pois temos representações de diversos níveis, seja no nível literal, ou seja, a reprodução de objetos reais no plano plástico, até o nível das representações sociais, psicológicas ou ideológicas que já armazenadas na mente funcionam como um gatilho que salta assim que o observador entra em contato com elas. As reações diante de uma obra variam muito de acordo com o espectador, por isso o pintor necessariamente trabalha com as representações mais imediatas e que ele sabe que são as da sua comunidade, sabe, portanto, que essas representações são conhecidas por todos e simultaneamente as atualiza, renova a linguagem, alguns com maior ou menor grau de sucesso, mas necessariamente leva adiante uma tradição que no caso dos mais criativos pode reformular todo aparato já fornecido pelas gerações anteriores, ou seja, uma linguagem nova pode ser criada; para isso o pintor precisa questionar a linguagem plástica em um nível mais formalizado, precisa de uma reflexão intelectual.
Esse duelo entre a matéria plástica e conhecimento generalizado é a base não só da arte como do conhecimento humano; em Aristóteles já ficava claro o conflito entre matéria e forma, normalmente colocado como base do conhecimento científico, mas que no meu entender é também o motor de desenvolvimento das artes visuais: de um lado o conhecimento constituído de generalizações que podem ser entendidas como uma abordagem indireta, ou seja, a própria linguagem plástica, de outro lado a matéria, ou seja, as entidades individualizadas, os objetos do mundo, aquilo que está mais evidente. Por exemplo, ao vermos um animal peludo, de quatro patas e que emite o som de miado concluímos que pertence a espécie animal e o denominamos gato, ou seja, a partir de um indivíduo deduzimos uma espécie.
Colocando as coisas nesse nível, creio que possuímos duas grandes abordagens: de um lado uma visão histórica de reflexão sobre o desenvolvimento do material, por outro lado uma abordagem dos princípios que permanecem, que não são confundidos pelo espectador, e nos quais ele reconhece um mundo consistente no qual ele pode se identificar, pode inclusive ser uma visão de mundo tanto natural quanto do sobrenatural, a própria relação do indivíduo com o cosmo a sua volta.
Temos que considerar ainda que as obras de ambos os pintores representam um enfrentamento típico da arte brasileira: Como se encaixar em um padrão cultural internacional, e ao mesmo tempo realizar uma tarefa de comunicação com a sociedade brasileira? A situação tanto de Portinari quanto de Meirelles torna clara a tarefa que um artista nacional deve enfrentar, pois em um país como o nosso, com uma tradição cultural tão dificultosa, com uma diferenciação social e psicológica tão imensa, esse exercício de busca por unidade adquire um caráter muito particular, nosso drama é um drama de unidade, é uma busca por integração, mas que também possui uma estrutura épica: a fusão das raças, o sincretismo religioso, o fundamento cristão, enfim os mitos fundadores básicos de nossa cultura e que são pisados e repisados na obra dos pintores em questão. Mito aqui não deve ser entendido como algo falso, esse é um sentido contemporâneo que não compreende o real sentido da expressão.
O conceito de mito fundador vem do filósofo alemão Schelling, ele entendia que esse conceito abarcava a reencenação dos arquétipos, estruturas simbólicas condicionantes que ordenadas na mente humana situam-se na esfera dos possíveis, ou seja, como existência potencial, nesse sentido o mito não é o oposto a verdade, mas possui função arquetípica, não deve ser acreditado ou desacretidado, é uma experiência, é uma vivência que os espectadores de um quadro, leitores de um poema ou de um romance devem ter, pois esses símbolos, são estruturadores da consciência individual; como a esfera do possível é anterior a do efetivo fica claro aqui que uma obra de arte pode ser a reencenação arquetípica de um acontecimento real ou imaginado, mas que também pode ser novamente consciência efetiva na medida em que é uma realização concreta, em nosso caso execução não só de um quadro mas de um projeto de cultura nacional.
Em ambos os quadros esse projeto parece claro: reencenar a primeira missa no Brasil - um mito afastado no tempo - é também a promessa de um futuro brilhante. A unidade entre os opostos: o índio e o europeu, a tão sonhada ideia de uma união entre os povos e que em nosso país ocorre de maneira muito peculiar. Os sonhos poderiam um dia tornar-se realidade. Organizar visualmente aspectos aparentemente tão diversos, mas que se conjugam sistematicamente, me parece ser a tarefa do artista plástico, comecemos então observando a situação de Victor Meirelles e Portinari e o modo como eles resolvem o problema.
Victor Meirelles e Portinari são dois dos artistas mais discutidos da arte brasileira. Suas obras representam, em seus respectivos períodos, a culminância das concepções estéticas discutidas no país. O primeiro representa a recriação mais bem acabada do cânone pictórico francês em terras nacionais. O segundo representa, provavelmente, o mais original pintor brasileiro que sem perder o vislumbre da arte internacional, não deixou de lado a audácia e a imaginação ao construir suas obras. Ao observamos o contexto em que suas obras foram produzidas percebe-se uma série de aproximações que deixam em relevo a continuidade da formação acadêmica em ambos os pintores, ou seja, uma manifestação explícita de que o processo de formação tradicional não dificultou o desenvolvimento de questões inovadoras na obra de ambos os artistas, pelo contrário, contribui para a conscientização dos diversos aspectos que o instrumental das artes visuais possuem para a construção de imagens que atuassem sobre o plano da realidade. O processo de construção dos quadros de ambos, por mais diverso que seja, deixa muito mais em evidência aproximações do que divergências.
Dentro do esquema da formação acadêmica, deve-se entender que, praticamente em todas as épocas em ocorreram academias, a formação se baseia na seguinte esquemática: A imitação dos antigos, o aprendizado das técnicas, o adestramento do olhar e o conhecimento dos fatos históricos e religiosos. Sobre essa base o pintor/artesão edificava o seu trabalho. Já dentro do esquema das oficinas, nas loggias do período renascentista o aprendizado se dava em um circuito mais fechado com o discípulo observando o mestre e tentando imitar o seu processo, podemos dizer, no entanto, que  a didática era a mesma que as das academias. Nelas o processo educativo geralmente era a eleição de um pintor como canônico, podia ser Raphael, Rubens, Michelangelo ou Poussin e utilizando-o como base os estudantes prosseguiam em seus estudos. É claro que havia pintores que não seguiam exatamente o esquema do mestre, eram artistas mais originais e que não se contentavam com a imitação. No Brasil do século XIX, esses conflitos se fazem presentes principalmente em Victor Meirelles, Pedro américo, Eliseu Visconti e Antonio Parreiras, pois suas obras representam, por um lado, a apreensão da tradição ocidental, e, por outro, um vislumbre de possibilidades originais em relação aos europeus.
A carreira de Victor Meirelles não representava só a construção do imaginário, ou a elaboração de quadros oficiais, também era uma ostensiva competição profissional com Pedro Américo, ambos realizaram algumas das obras mais importantes da arte brasileira; suas limitações tantas vezes apontadas pelos críticos não devem ser levadas muito a sério, pois temos que levar em consideração as diversas dificuldades que um artista tinha ao se firmar em um país fundamentalmente agrário como o Brasil e que no século XIX se encontrava tão distante da Europa, imaginemos a situação de pintores que saídos daqui se deparavam com a potência da arte europeia, e levando em consideração os naturais preconceitos com a arte produzida por aqui durante o Barroco acabavam incorporando um cânone pictórico europeu, se esquecendo ou ignorando a riqueza imaginativa de um Aleijadinho ou um Mestre Valentim. Procurando se encaixar em um padrão europeu e simultaneamente articulando-o a uma nova visão que o país em sua independência recém-adquirida procurava construir sobre si mesmo eles acabavam a seu modo sendo evidentemente originais. Creio que a importância desse período se dá na medida em que vemos um tremendo esforço de apreensão da tradição oriunda de séculos anteriores e sua relação com problemas específicos da cultura nacional.
Como a Arte Francesa era o ponto de chegada dos artistas brasileiros, tínhamos uma evidente influência da arte dessa nação e que é apontada muitas vezes como tentativa de plágio, mas aqui não é o caso. A primeira missa no Brasil de Victor Meirelles [Figura 1] representa uma síntese original e não pode ser confundida com mera imitação; em uma primeira observação percebemos que a cena ocorre em uma clareira na floresta, o ritual congrega índios e brancos, nesse ritual fica evidente a separação entre as duas culturas e a promessa de unidade que a é representada pelo símbolo da cruz, a organização do campo visual se dá em uma espacialidade naturalista em grau máximo, ou seja, o sistema pictórico elaborado principalmente a partir do Renascimento. A reação dos críticos na época não foi das melhores, muitos atacaram o pintor, esperavam uma coisa e viram outra, talvez o choque com a realidade que ali se apresentava. A atmosfera do quadro não possui um caráter fantástico, não é um mundo de sonhos, mas uma simples cena realizada no interior da mata.
 
figura 1
O sistema plástico de Victor Meirelles é derivado principalmente da plástica desenvolvida pelos pintores italianos do século XVI , principalmente os venezianos, assim como de espanhóis, franceses e holandeses do século XVII, nesses períodos, com exceção dos franceses, a linearidade é desenvolvida em menor grau, são valorizados os grandes grupos e o encadeamento entre os elementos do quadro, por mais polarizados que sejam. Essa concepção de realismo visual não tem nada a ver com o que hoje se compreende por 'imitação' ou cópia. Essa incompreensão é manifesta em diversos autores do século XX. Pierre Francastel, por exemplo, ao comentar o espaço Renascentista afirma que “admitia-se que o novo espaço tinha a forma de um cubo, que todas as linhas se reuniam em um ponto único situado no interior do quadro e corresponde a um ponto de vista único do corpo humano. O mesmo equívoco é cometido por René Guilleré: “A antiga perspectiva nos apresentava nos apresentava conceitos geométricos de objetos e com eles podiam ser vistos por um olho ideal”. Aqui obviamente ele fala sobre a perspectiva exata. No entanto, ele generaliza o conceito propositalmente para as artes visuais, vejamos: “Nossa perspectiva moderna nos mostra os objetos como vemos ambos os olhos andando despreocupados. Não mais construímos um mundo visual com um ângulo agudo, convergindo no horizonte. Abrimos este ângulo, colocando as representações contra nós, sobre nós, em direção a nós... fazemos parte desse mundo.
As duas afirmações acima são espinhosas e cheias de equívocos em relação ao problema da representação bidimensional:
A espacialidade em forma de cubo, é rara no Renascimento, basta observarmos autores como Paolo Uccelo, Van Eyck, Michelangelo, Raphael e mesmo Da Vinci e Dürer. Neles vemos perspectivas construídas com mais de um ponto de fuga e com diversas adaptações dos objetos ao espaço em volta, sem falarmos dos Maneiristas e Barrocos. A ideia de Guilleré “fazemos parte desse mundo” está presente em praticamente todas as obras de todas as épocas sendo boa parte da arte do século XX precisamente o contrário: é a manifestação de um estranhamento dos indivíduos com o mundo. Criticar a artificialidade do realismo visual é um ponto de vista ingênuo, pois o modo como a mente opera é necessariamente indireto, ou seja, um dado só pode ser apreendido se existir na estrutura do pensamento um “órgão” capaz de captá-lo, daí que o esquema realista é necessariamente tão artificial quanto qualquer outro aparato construído pela mente, o desenho é uma esquemática que traduz a realidade dentro da consciência, quanto mais o aparato pictórico se sofisticou mais o homem pode compreender o mundo que potencialmente havia a sua volta.
Victor Meirelles não foi um criador de uma nova linguagem, um novo código, não inovou na composição, mas continuou de maneira consistente a tradição que se traçou no Renascimento. A harmonia e identificação que encontramos ao nos depararmos com sua Primeira Missa se deve a um aparato plástico que era suficiente para traduzir no plano pictórico o mundo da natureza e que correspondia aos anseios de identificação com a realidade. Seu papel foi o de, inclusive, educar o olhar do brasileiro, fornecer material para a reestruturação do olhar, em terras nacionais isso era um golpe audacioso e inovador. Se como foi dito acima a linguagem plástica é constituída de artifícios que visavam uma melhor tradução da estrutura da realidade no campo plástico, como não poderia ocorrer estranhamento do público com relação a essa linguagem mesma? O que hoje percebemos como “realismo” talvez não o tenha sido em sua época. É provável que a incompreensão tenha ocorrido na medida em que os artifícios compositivos não estavam condicionados às mentes que os recebiam.
Pode-se afirmar que a tradição plástica realista não é uma representação ipsis litteris da realidade, mas uma aproximação, uma reencenação ou simulação e que a esfera estética situa-se na esfera das possibilidades e da aparência. O caráter persuasivo do quadro se dá na medida em que as representações sejam ultrapassadas e o quadro seja vivido no interior do espectador, daí que a unidade entre o observador e o quadro não é uma invenção moderna ou contemporânea.
Afirmar o caráter meramente artificioso da pintura naturalista possui implicações que ultrapassam os próprios limites da pintura, o período de Candido Portinari é bastante intenso e representa um estágio mais específico de desenvolvimento do problema. Portinari também viajou para a Europa, conheceu a pintura de diversos períodos e voltou aqui nutrido de duas ideologias: comunismo e cubismo. Ambos os movimentos possuíam caráter revolucionário e apregoavam uma transformação completa tanto da sociedade quanto da arte. A pintura sente o impacto desses movimentos.
Se em Victor Meirelles a ambição era restrita ao ambiente brasileiro, ou seja, dar ao público um resumo das possibilidades já consagrados pelo tempo, em Portinari, a Primeira Missa no Brasil [Figura 2] se problematiza a ponto do diálogo explícito com seu contemporâneos internacionais se fazer presente.
fig.2
 
 Entre os dois pintores há uma unidade de propósitos, ambos se preparavam para as realizações de painéis históricos, ambos estavam informados sobre a produção europeia de seu tempo. Portinari tinha a necessidade de produzir uma obra moderna sem perder o contato com a tradição nacional, seu desenho incorpora além da sofisticação europeia, a rusticidade da arte popular, além de um certo “barroquismo”. Há, no entanto, a presença do cubismo e sua problematização.
Não cabe aqui uma análise pormenorizada desse movimento, mas algumas observações devem ser feitas: o cubismo parte do pressuposto de que a pintura anterior era necessariamente ambígua e que tinha que ser harmonizada ao plano plástico. Se em Cézanne, o equilíbrio dinâmico entre o observador e a realidade havia sido alcançado a custa de artifícios lineares a cromáticos, nos cubistas esse equilíbrio é rompido sendo estabelecidas convenções que se supunham ser o a priori fundamental da imagem. Esse a priori seria composto dos diversos fragmentos esparsos que simbolizavam a imersão do indivíduo na realidade fragmentada e desconexa, mas que possuíam ao mesmo tempo unidades que representavam “a ideia” daquilo que possuímos na mente, esses elementos seriam os próprios limites do conhecimento pictórico e que não poderiam ser ultrapassados, pois significavam a própria limitação do olhar. Não mais se apegando à realidade aparente a mente poderia trabalhar livremente apenas com o que o quadro ofereceria. Esse princípio transcendental seria o próprio fundamento por trás objetos não mais precisando representá-los realisticamente. Ora, se é a mente que organiza a realidade bastaria que olhássemos esses fragmentos esparsos e reconheceríamos de imediato o que eles representam. Esses pedaços de narizes, copos, xícaras indicados no plano plástico deixariam em evidência o que é a verdadeira natureza dos objetos e principalmente deixaria claro o que devemos conhecer a respeito deles. Sem as limitações dúbias que a pintura anterior só poderia nos fornecer através da imagem apenas “verossímil”. Pois nela a relação da mente com a realidade nos forneceria apenas uma visão limitada das coisas. Era necessário buscar os princípios permanentes que estavam subjacentes na natureza dos objetos e que localizavam-se na mente. Pois a pintura anterior não conseguiria captar a integridade mesma dessa relação entre pensamento e realidade.
No cubismo temos, portanto. a negação de que houvesse uma relação consistente da pintura tradicional com o mundo empírico, pois este é dotado de dados muito fracos para que pudéssemos pensá-lo em sua totalidade logo, não forneceria a realidade tal como ela é constituída. Com esta novidade no campo do aparato plástico eles acreditavam que poderiam reduzir a pintura a um código que fosse suficiente para relacionar-se com o aparato mental que possuímos, pois nele teríamos os dados necessários para a reordenação do mundo sensível. Teríamos princípios fixos e que não se alteram de acordo com o ponto de vista do observador. Um copo pintado por Raphael não revela o copo por inteiro, jamais o revelará, pois seus aspectos múltiplos só podem ser captados por aproximação, um copo cubista mostra apenas aquilo o quadro bidimensional comportaria, daí o copo cubista aparentemente ser mais pleno, mais completo, mais exato. O problema é que o copo cubista continuava sendo uma representação. Braque ao afirmar que “Não se imitam as aparências, a aparência é o resultado”, no fundo reafirma a estrutura da realidade, já que não podemos pensá-la em seu todo  apenas intuí-la. Talvez sem o perceber acabava por validar também o realismo visual. Pois este poderia constituir uma visão de todo fundada no mundo das aparências. Portinari nunca se manifestou a respeito de tais ideias, mas certamente reagiu como muitos pintores à máquina cubista, que ameaçava os fundamentos da pintura. Mas que perigos representavam os princípios expostos acima?
Os cubistas entendem que a pintura era uma construção assim como os antigos, no entanto radicalizam essa postura e acreditam que uma artificialização revelaria os limites do conhecimento perceptivo, sem notarem que reduziam a pintura a um esquema calcado em uma mera formalização. Seu princípio assim como de uma parte das escolas modernas de pintura era: 'a arte e natureza são distintas'. Ao tentarem reorganizar os fundamentos da pintura, os cubistas rejeitam o aspecto ambíguo do realismo visual e tentam realizar uma pintura ideal, sem os vaivens da realidade, no entanto acabam reduzindo-se a um esquema mental, dando as costas para a variedade e riqueza do mundo observado. O que os cubistas fazem no final das contas é estabelecer novas convenções. Revelaram apenas a estrutura do quadro, não romperam com a representação. Ao comentar sobre a representação, Schelling afirmava:
O supremo triunfo da ciência seria justamente este: trazer aquilo que só é possível conhecer elevando-se acima da representação e, portanto, aquilo que por si mesmo não é acessível à mera representação, mas somente ao pensar puro, até a esfera da representação. Assim o sistema coperniciano não poderia ter sido estabelecido sem impelir o mundo para além da mera representação e sem chocar frontalmente a mera representação; e ele foi, em seu início, um sistema altamente impopular, contraditório com todas as representações. Mas o mesmo sistema, quando totalmente executado e quando por seu intermédio, mesmo a representação de um movimento do sol em torno da Terra se torna concebível, reconcilia também consigo a mera representação e se torna tão claro para ela quanto era anteriormente a representação oposta e, em continuidade, esta lhe aparece agora como confusa e sem clareza.
As premissas plásticas que eles partem jamais podem ser compreendidas sem alguma representação, em um primeiro momento o espectador não compreende a nova estrutura plástica, mas, com o passar do tempo, ela se reacomoda em sua mente e torna-se também representação; daí que um círculo representa um copo, um quadrado é uma mesa, etc.
Os cubistas trabalhavam com convenções, daí que um círculo só é copo se foi nomeado como tal. Mas para entender que um círculo cubista é copo eu preciso reconhecer um copo verdadeiro. Se eu já reconheço o copo em sua representação pra que pintá-lo como um círculo e duas linhas? Por que afirmar que esta última é a mais exata? Dizer que o segundo maneira é a mais consistente é pura balela, pois a representação “normal” do copo certamente é a mais válida, pois ela se dá por aproximação e não por exatidão. O Cubismo nega, portanto, a “imperfeição” da pintura anterior em prol de uma pintura absoluta, que representará os objetos em sua forma permanente sem as ambiguidades da realidade. Ao buscarem uma pintura mais “racional” e que resolvesse todos os problemas anteriores os cubistas criaram apenas convenções que mais arbitrárias que esses princípios mesmos que acabaram por relativizar uma tradição milenar. É o início dos movimentos contestadores do século XX, do cubismo para a abstração e a consequente negação da realidade é um passo. A proibição de qualquer elemento relacionado à pintura anterior torna-se uma regra na arte atual. Não é à toa que a arte contemporânea se caracteriza por um esforço desesperado em relacionar-se com o mundo, pois ele foi perdido. O Cubismo, no fundo, é a expressão mais bem acabada da irracionalidade.
Mergulhamos aqui em um furor iconoclasta que chegava às raias do fanatismo. O cubismo e sua continuação, o abstracionismo, não representam de modo algum soluções, mas problemas. Em seu desejo de poder absoluto nos legaram apenas uma realidade parcial. Separaram o expectador da realidade e depositaram o mundo da mente. Apenas na mente.
Se em Victor Meirelles o problema era tornar a cena verossímil, persuadir o público de qual imagem remontara a fatos reais mesmo que num ambiente de encenação, em Portinari o problema é de outra natureza, pois, ao digerir a pintura cubista, Portinari incorporou o aparato plástico a priori fornecido pelos cubistas: no caso os planos geométricos modulados. Creio que o problema de Portinari era o seguinte: Como fazer uma imagem verossímil que fundida a um esquema cubista/abstrato não perde a riqueza que o realismo fornece?
Se eu desenho um copo com duas linhas dois círculos, estou implicitamente afirmando que há uma identidade no objeto que eu apreendi ao observá-lo concretamente, ora se eu ao observar um copo real já apreendi o princípio que constitui a sua realidade, mesmo que eu não seja um conhecer profundo dos objetos. O que eu quero dizer é que observar um copo a partir de ângulo qualquer é captar um aspecto arbitrário que nem por isso obscurece o conhecimento totalizante que eu possuo do copo. Logo desenhar um copo realisticamente não é mera representação do copo no sentido imitativo que o termo possui, mas uma evidência de que o princípio individualizador dos objetos está nos próprios objetos, há algo de sua essência que foi captado na estrutura do quadro, e que possibilita reconhecê-lo, mesmo que representado em um meio aparentemente ambíguo como o meio plástico. É nesse raciocínio por analogia que de fato as coisas se processam. A diferença entre uma pintura e o objeto real é que eu sei qual dos dois é o real e qual é a sua representação pictórica. Essa relação é indireta. Devemos nos lembrar que as convenções cubistas diferem das convenções realistas na medida que a primeira acreditava depositar apenas na mente os fundamentos dos códigos visuais; a segunda na realidade e em sua intersecção com o espectador: o desenho. O realismo era um artifício que reencenava o mundo fenomênico no plano visual. O cubismo era uma realidade plástica que se afirmava como puro artifício. Em nenhum momento se acreditou que essa reencenação, a realista, era uma tentativa de substituir a realidade por outra, o cientista ao construir seus modelos não raciocina que o seu modelo seja uma versão mais correta da realidade; nem o pintor.
Victor Meirelles confiava na realidade, se aconchegava nela e aceitava suas configurações. Portinari tensionava com ela e a interpretava de acordo com configurações geométricas pré-estabelecidas. Se em Meirelles a artificialidade se dá em uma escala sutil em Portinari ela salta diante dos olhos do público. Isto se deve sem dúvida ao subjetivismo encontrado em Portinari, vindo das escolas modernistas, a ideia de um “eu expressivo” está nítida na disposição das figuras e no tratamento de cada personagem, na pincelada, a maneira pessoal do pintor. Portinari estava antenado com as escolas internacionais e sabia que essa escala de valor era importante, seu trabalho incorporou uma visão de mundo realista. Adaptada ao mundo externo por um lado. Subjetiva e personalizado por outro.
Victor Meirelles incorporou certa impessoalidade épica, talvez contrabalançado com sua identificação com o mundo fenomênico que no seu quadro é mais harmoniosa. Em Portinari a tensão se faz presente desde os primeiros estudos [Figura 3].
fig.3
Há uma estrutura condicionante: são as formas geométricas. Em um dos primeiros estudos elas estão nitidamente traçados, armou-se um esqueleto que entram em conflito com a 'continuidade' realista. Não temos os estudos de Meirelles, mas a julgar por outros desenhos que dele conhecemos sua abordagem é direta, do ponto de vista do desenho, ou seja, não há dados configurantes que “armam” a composição. Em Meirelles, configurante e configurado são uma única coisa, em Portinari isso difere um pouco. A presença do cubismo com suas estruturas configurantes o obrigam a tentar resolver o problema; daí o caráter mais artificial que seus quadros possuem e que são normalmente entendidos como uma falha ou um equívoco, mas que na realidade são tentativas de resolver um problema dramático na arte do século XX: a tão sonhada busca por unidade presente tanto nas artes, mas também na ciência e filosofia.
Picasso assume o caráter trágico desse divórcio do homem com o mundo a sua volta. Portinari não aceita com facilidade e tenta corajosamente unificar os opostos: geometrização abstrata versus organicidade realista. Se em Victor Meirelles a ponto de partida era a própria unidade do indivíduo com o mundo representada pelo ritual que liga o homem a Deus e que é manifesta em sua abordagem realista, em Portinari a tragédia existencial é evidenciada na medida em que as convenções formalizantes criam um obstáculo na interação do homem com o Divino.
CONSIDERAÇÕES
A sequencia que vai de Victor Meirelles a Portinari põe as claras um desenvolvimento particular na arte brasileira. A abordagem que se faz das escolas europeias não ocorreu sem conflito e reflexão. Se no século XIX a situação encontrava-se um estado latente, no século XX o problema explode em todas as suas contradições.
Os pintores da atualidade que estão cônscios dos problemas abordados acima deveriam em princípio dar alguma resposta, pois estas questões ainda não foram retomadas. O objetivo desse pequeno estudo foi fazer um percurso bastante simplificado dos problemas básicos da pintura e tentar situá-los dentro de um contexto específico. A intenção era responder a duas perguntas básicas:
1.     De que forma as soluções dadas pelos pintores constituem soluções especificamente nacionais?
As soluções dadas por ambos podem ser compreendidas como a solução de problemas específicos da arte brasileira na medida em que não incorporam mimeticamente a estética europeia, mas recriam dentro de novas perspectivas o imaginário brasileiro calcado na ideia de sincretismo e unidade, em ambos os pintores existe algum tipo de conflito seja de natureza semântica no caso de Victor Meirelles (cultura europeia versus cultura indígena), seja de natureza plástica (cubismo versus realismo) em Portinari.
 
2.     Qual a relevância dessas contribuições para a arte internacional?
Se em Victor Meirelles a unidade realista que seu quadro possui lhe confere uma interação maior entre os elementos, em Portinari o conflito modernista deixa nítida uma maior conscientização dos problemas visuais vigentes em sua época. Isso de modo algum faz de Victor Meirelles um pintor menor, apenas deixa clara uma diferença de perspectivas entre os dois pintores. Portinari não ignorou a obra de Meirelles ao construir sua primeira missa, pelo contrário, ela representa um voto de respeito ao mestre anterior e abre uma riqueza de perspectivas que se faz presente. Pois se na arte europeia o divórcio com o mundo significou o “fim da representação”, aqui sua busca pela unidade deixou claro que mesmo em uma pintura marcada pela tradição europeia a presença de um passado específico serviu de sustentáculo para o pintor não perder a busca por uma unidade maior. Se em Victor Meirelles a temática da incorporação de uma cultura em outra é resolvida no próprio plano da realidade, ou seja, o realismo visual por si mesmo é suficiente para expressar a incorporação da cultura indígena pela europeia, em Portinari a incorporação se dá em outro nível no qual a estrutura plástica abstrata e reabsorvida em uma espacialidade realista. Logo, em ambos os pintores, temos o tema da incorporação de dados culturais, só que em campos semânticos diferentes.
O percurso que tracei de Victor Meirelles até Portinari tenta pôr em bases mais claras uma relação muitas vezes ignorada ou pouco compreendida. É necessário que a arte hoje retorne ao problema inconcluso que a obra de Portinari nos legou e siga adiante. Ao nos perguntarmos sobre a consistência da pintura de Portinari a primeira questão que deve vir a tona é como ele incorporou novos problemas pictóricos sem perder a consistência que a tradição lhe fornecia. Os problemas pictóricos enunciados acima estão presentes em toda a produção da arte ocidental, e de maneira geral tem sido elaborados por todos os pintores e escultores, aqueles que em geral incorporam uma estrutura naturalista na qual as formas vivas da natureza são traduzidas para a abordagem expressiva da dinâmica plástica realizam uma obra que evidencia a identificação do indivíduo com a realidade, aqueles que usam essa dinâmica para expressar tensão com o mundo efetivo, evidenciam uma tomada de posição trágica em relação à existência, ambas as posições são válidas se o ponto de partida for a unidade intrínseca da realidade, mas, como no caso do cubismo e das tendências abstratizantes, se ocorrer uma busca por relações artificiais e encará-las sob um ponto de vista positivo o que teremos não é apenas uma visão trágica do ponto de vista da realidade, mas a negação da realidade em nome de um ideal que no fundo é uma artificialização delirante. Boa parte da arte do século XX evidenciou esta última postura: a tensão do indivíduo não era mais expressa com as próprias estruturas que estavam imersas na realidade, pelo contrário essa tensão é artificializada a tal ponto que se tenta produzir uma arte voltada para si mesma, na qual se tenta dar conta da realidade com um mero jogo de formas. Isso é evidente em uma parte da obra de Picasso, assim como de Mondrian, Kandinsky, Malevitch, Pollock, Duchamp, entre outros.
A arte cubista ou abstrata não reconhece a capacidade do indivíduo de realizar-se no mundo sensível e através dele apreender uma esfera transcendente, mas, como foi analisado acima, nesses movimentos mesmos criam-se obstáculos para que essa apreensão não possa ser efetivada; eles só podem ser aceitos como solução válida se não forem compreendidos como uma ruptura, mas como possibilidades novas e que podem ser incorporadas no sistema maior das artes plásticas cujas bases permanentes foram fixadas principalmente entre os séculos XV e XVII.
Em geral, a abordagem intelectual de uma obra de arte feita por um pintor não é bem vista, sendo inclusive rejeitada por teóricos especializados. Mas isso não deve ser obstáculo para um artista pensar sobre o seu trabalho, na maioria das vezes esse preconceito é fortemente estimulado pela nossa tradição que situa o artista em um pedestal diferenciado, numa espécie de plano místico no qual ele mesmo está impedido de formular um pensamento verbal sobre o seu trabalho. Isso é ingenuidade. Em uma carta a Sömering de 28 de agosto de 1796, Goethe afirmava: “Uma ideia sobre os objetos da experiência é como um órgão de que me sirvo para captar esses objetos e apossar-me deles”. Delacroix assim como vários outros artistas, tais como Baudelaire e Richard Wagner, também fizeram afirmações importantes a respeito do assunto. Creio que na arte de hoje é fundamental que se construa constantemente o trabalho em uma base crítica consciente, pois essa base mesma foi contrabandeada para um universo estético vazio e sem coerência que é o mundo da arte contemporânea, contribuir para essa renovação dos estudos plásticos foi a intenção do presente estudo.
BIBLIOGRAFIA:
ARNHEIM, Rudolph. Arte e Percepção Visual. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1991.
EINSENSTEIN, Sergei. O Sentido do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2002 (trad. Teresa Ottoni).
FRANCASTEL, Pierre. Peinture e Societé. Paris: Gallimard, 1965, citado por Carlos Zílio em A querela do Brasil.
GUILLERÉ, René. Il n'y a plus de perspective, Le Cahier Bleu, 4, 1933, citado por Sergei Einsenstein em O Sentido do Filme.
PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1976 (trad. Maria Clara F.Knese e J. Guinsburg).
SCHELLING, Fridriech von. Apêndice de um manuscrito mais antigo (de Erlangen), Coleção Os Pensadores, Abril Cultural, 1973 (trad. Rubens Rodrigues Torres Filho).
ZÍLIO, Carlos. A querela do Brasil. Rio de Janeiro: Funarte, 1982.
Estudos sobre Agostinho e a filosofia do tempo feitos por Olavo de Carvalho: <http://www.olavodecarvalho.org/semana/060313dc.htm> Acesso em: 1 de junho 2012
Estudos sobre Schelling e o conceito de mito fundador: <http://www.olavodecarvalho.org/semana/mitoideo.htm> Acesso em: 1 de junho 2012  

Um comentário:

  1. Ótima análise, no final os dois tinham o mesmo objetivo, reproduzir, relatar.
    E pergunto, se Meirelles estivesse no fato, mudaria mt coisa?
    E Portinari, foi revolucionário reproduzindo uma tela de mesmo tema religioso só por nao colocar nativos? rs

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