sexta-feira, 21 de fevereiro de 2003

QUANTO TEMPO O TEMPO TEM

QUANTO TEMPO O TEMPO TEM?
RESUMO: Neste texto procurei abordar as diversas dimensões da temporalidade como componente indispensável ao pensar histórico, ao fazer e ensinar História. Distinguem-se as concepções de História baseadas no estudo do passado daquela voltada para o estudo do tempo presente. O tratamento da dimensão temporal da História constitui uma das dificuldades do seu ensino para crianças e, neste texto, procura-se oferecer alguns aportes para o trabalho do professor com alunos do Ensino Fundamental.
Palavras-chave: tempo, temporalidade, tempo presente, processo histórico, tempo histórico.
O HISTORIADOR, PESSOA DO SEU TEMPO
Este livro eu o fiz de mim mesmo, de minha vida e de meu coração.
Brotou de minha experiência, muito mais que de meu estudo.
Tirei-o da observação, das relações de amizade e vizinhança,
coligi-o ao longo dos caminhos; o acaso gosta de servir àquele que o persegue
sempre com um mesmo pensamento.
Enfim, encontrei-o sobretudo nas recordações de juventude.
Para conhecer a vida do povo, seus trabalhos, seus sofrimentos,
bastava-me interrogar as lembranças. (MICHELET, 1988, p. 2)
O questionamento sobre a relação entre o historiador e o tempo constitui aspecto decisivo da tarefa de ensino-aprendizagem da História. Trabalhando com relatos, com discursos produzidos sobre a experiência humana, o historiador desvenda um mundo temporal em sua  obra. Ao fazê-lo, permite que o tempo se torne humano na medida em que está articulado de  maneira narrativa, tendo como ponto de partida o presente.
Difícil tarefa a de estabelecer a dimensão do tempo presente. A dificuldade em fixá-lo nos leva a indagar: trata-se de minuto, hora, dia, mês, ano? Seu aspecto fugaz leva a concluir pela indeterminação e a confiar em sua definição como algo diferente do passado (aquilo que já foi) e o futuro (aquilo que ainda não é).
É a experiência que dá aos indivíduos a percepção dos intervalos de tempo – da medida  do tempo –, a qual é adquirida por meio das atividades sensoriais, intelectuais e pragmáticas.
Assim, compreende-se que o tempo histórico ultrapassa o tempo medido pelo movimento dos astros. Trata-se de considerar o tempo subjetivo que, em suas diferentes dimensões e ritmos,  passa pela experiência psicológica. Assim considerado, “o tempo torna-se [...] humano na medida em que está articulado num modo narrativo e que o relato atinge sua significação plena quando se torna uma condição da existência temporal” (RICOEUR, 1997, p. 105).
A relação entre tempo passado e tempo presente, realizada mediante as atitudes de comparar, analisar e relacionar, contribui para que as pessoas se percebam como membros de uma sociedade, sujeitos da história e responsáveis pela construção do futuro. É por meio do estabelecimento dessas relações, a partir das experiências cotidianas, que as pessoas podem aprofundar a compreensão da dimensão histórica do viver em sociedade e verificar a existência de múltiplas dimensões temporais.
Uma atitude frequente no estudo da história consiste na concentração do foco no passado remoto e no afastamento em relação às questões contemporâneas. Daí resulta uma relação com o passado semelhante ao turismo “[...] que excursiona pelo passado como se fosse mais um país estrangeiro para onde se quer evadir” (THOMPSON, 1992, p. 20). Porém, em contraponto a essa postura do historiador limitado ao estudo do acontecido, distante de sua época, hoje cada vez mais, ele se reconhece como homem de seu tempo e abandona a recusa à reflexão sobre acontecimentos do presente. O historiador segue, assim, as novas tendências da História, que fazem análises baseadas na noção de cultura e valorizam o tempo presente ao buscarem explicação sociocultural para a vida em sociedade. Esta concepção da história enfatiza o trabalho com temporalidades longas e volta-se tanto para permanências, quanto para mudanças.
Além dessa transformação do campo teórico-metodológico da História, existe atualmente massificação das informações, sua divulgação em grande velocidade e a tendência ao esquecimento rápido das notícias, que torna a memória extremamente passageira. O enorme fluxo de informações, que alcança diariamente os espectadores de televisão, os usuários da Internet, os leitores de jornais e revistas, traz abundância de notícias para consumo imediato.
Porém, ao mesmo tempo, essa quantidade de informações dificulta a relação do historiador com o passado na medida em que o torna extremamente próximo dos acontecimentos noticiados e sujeito aos filtros e decodificações utilizados pelos meios de comunicação. Há uma nova relação do historiador com seu tempo: passado e presente se aproximam, os eventos cotidianos invadem sua vida e o “fato histórico” é apropriado pelos meios de comunicação.
Diante dessa realidade, torna-se pertinente a questão:
... pode o presente ser objeto de história? Como de fato inscrever um presente fugaz na construção, ou reconstrução, necessariamente temporal ou retroativa, que elabora o historiador confrontando suas hipóteses de trabalho com a dura realidade da documentação e do arquivo recebidos? (RIOUX, 1999, p. 40).
Desde a década de 1960, essas inquietações geraram discussões sobre a ampliação do tempo abrangido pelo estudo da História, com a extensão da pesquisa ao período contemporâneo e, mais especificamente, à chamada “história imediata”. Sobretudo os historiadores do político foram chamados a atender às demandas da sociedade e a explicar os acontecimentos que atingem de modo espetacular o presente. O impacto do dia 11 de setembro de 2001 dificilmente poderá ser esquecido pelos que viram repetir-se, exaustivamente na tela da TV, o acontecimento-monstro registrado no calor da hora, universal e instantaneamente, e pouco a pouco banalizado, esvaziado de sentido. No entanto, milhares de livros rapidamente lançados no mercado editorial procuraram fornecer explicações históricas para a catástrofe. Este fenômeno atestou, por meio da exposição do vigor editorial, a expansão e o aumento do prestígio da história do tempo presente.
Diante dessa avalanche, como conservar o método histórico no estudo do tempo presente? As fontes documentais disponíveis para tal abordagem são problemáticas, pois nem sempre estão disponíveis para o historiador. Além disso, corre-se o risco de realizar uma análise dos acontecimentos apenas em seu encadeamento cronológico linear horizontal, em lugar de integrá-los a outros acontecimentos simultâneos que podem clarear seu significado. Recoloca-se, portanto, com urgência, a necessidade de manutenção de práticas historiográficas legítimas, como o distanciamento crítico em relação ao objeto de estudo, o uso criterioso de fontes, a resistência às pressões exercidas pelos grupos de sociabilidade de que participa o historiador, também percebido como ator/sujeito participante da história que estuda.
Nesse sentido, adquire pertinência a afirmação de Ariès sobre o trabalho do historiador e sua relação com o tempo presente:
[...] parece difícil apreender a natureza própria do passado se mutilamos em nós mesmos o sentido do nosso tempo. O historiador não pode mais ser o homem de gabinete, o cientista da caricatura, entrincheirado atrás de seus fichários e de seus livros, isolado dos ruídos vindos de fora. (ARIÈS, 1989, p. 240).
O historiador está intimamente conectado com o tempo presente e com a comunidade à qual pertence. No entanto, seu campo de trabalho é o passado, o tempo fluído e “morto”, que é recuperado a partir do presente. Independentemente do tema escolhido, do recuo temporal que ele contém, esta relação persiste, conectando o historiador a sua própria história. O tempo vivido pelo historiador é decisivo para que ele encontre e selecione, na “caixa de ferramentas” de sua “oficina”, o caminho a ser trilhado no estudo do passado.
Refletindo sobre o ensino de História a partir dessas questões, podemos considerar o quanto o tempo presente é importante, pois de nossa relação com ele decorrem as escolhas dos conteúdos a serem trabalhados a partir das “[...] problemáticas locais em que estão inseridas as crianças e as escolas, não perdendo de vista que as questões que dimensionam essas realidades estão envolvidas em problemáticas regionais, nacionais e mundiais” (BRASIL, 1997a, p. 43). É o estudo dessa realidade presente que irá contribuir para que o aluno estabeleça relações de identidade e diferença com outros indivíduos e grupos sociais, vistos em diversas épocas.
Para que a criança alcance um “modo de pensar histórico” e possa ver-se como sujeito ativo da História, é preciso escolher os conteúdos do ensino a partir do tempo presente, estabelecer diálogos entre passado e presente, identificando neles permanências e mudanças, simultaneidade e conexão temporal. O presente constitui um tempo vivo do qual participam diferentes tempos do passado, os quais se manifestam em conflitos, costumes, formas de organização social, modos de viver.
NO SEU TEMPO HAVIA DINOSSAUROS?
O ensino e a aprendizagem de História, em todos os níveis, não pode prescindir da noção de tempo/temporalidade e isto vale também para crianças de 6 a 11 anos. Ela é fundamental para a compreensão da historicidade, ou seja, das transformações de uma sociedade em suas múltiplas dimensões.
Nesse nível de ensino, os alunos trabalham com a noção de tempo histórico em suas dimensões de presente, passado e futuro associadas à anterioridade, posteridade, simultaneidade, abordadas inicialmente na dimensão cotidiana para, depois, ampliarem-se em períodos mais longos. A dimensão temporal será útil para o estudo de permanências e mudanças, as quais constituem o objeto mesmo do conhecimento histórico.
Segundo o PCN, ao final do chamado primeiro ciclo, os alunos deverão ser capazes de
[...] comparar acontecimentos no tempo, tendo como referência anterioridade, posterioridade e simultaneidade; reconhecer algumas semelhanças e diferenças sociais, econômicas e culturais, de dimensão cotidiana, existentes no seu grupo de convívio escolar e na sua localidade; reconhecer algumas permanências e transformações sociais, econômicas e culturais nas vivências cotidianas das famílias, da escola e da coletividade, no tempo, no mesmo espaço de convivência (BRASIL, 1997b, p. 50).
Com esta colocação, abandona-se o presentismo e a recusa da “datação” para enfatizar sequências temporais e ordenamento processual. Recusa-se também tanto a concepção linear da História, como a da História como progresso contínuo e as interpretações de ciclos que levam as sociedades inevitavelmente à decadência ou à revolução, enfim, filosofias da História teleológicas.
Esta concepção pode ser entendida como ruptura com “a ideia de um tempo único contínuo e evolutivo para toda a humanidade. Em lugar desta visão, afirma-se que “[...] a realidade  é moldada por descontinuidades políticas, por rupturas nas lutas, por momentos de permanências de costumes ou valores, por transformações rápidas e lentas” (BRASIL, 1997a, p. 31).
É preciso diferenciar o tempo cronológico, marcado apenas por calendários e datas que constituíam a base da história factual em seu ordenamento linear, dos fatos históricos em uma linha de tempo. Entende-se que a vida em sociedade é muito mais complexa em sua dimensão temporal do que a linearidade do arranjo dos fatos, segundo os critérios de passado, presente e futuro, ou seja, em sua dimensão de anterioridade e posterioridade. Considera-se, nesta perspectiva, que não existe regularidade no ritmo da História, acelerações e retardamentos ocorrem e podem ser bastante específicos de uma sociedade ou de um grupo social.
A compreensão da dimensão temporal da existência humana pode ser alcançada na escola a partir de vivências pessoais, cujo ponto de partida é sua própria história como ser humano sujeito a um tempo biológico (nascimento, desenvolvimento e morte). Extrapolar essa dimensão para a de outros indivíduos inseridos em uma dada sociedade é o salto qualitativo a ser feito para que a criança possa situar-se em relação ao seu próprio passado e ao da humanidade, que não obedece a um ritmo único, mas está sujeito a diferentes durações. A simultaneidade dos acontecimentos, que se desenrolam em diferentes espaços em permanências e mudanças, ocorre em diversas sociedades, rompendo-se assim a noção de uma história linear, universal e válida para todos os povos.
Algumas questões para reflexão: as acelerações da História (o Afeganistão desde 11 de setembro, as transformações sociais da China nas últimas décadas etc.); a percepção de tempo pela criança (– Vovô, no seu tempo havia dinossauros? Você conheceu a Princesa Isabel? etc.).

REFERÊNCIAS
ARIÈS, Philippe. O tempo da História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC, 1997a.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: História e Geografia. Brasília: MEC/SEF, 1997b, p. 50.
DOSSE, François. A História em migalhas. São Paulo: Ensaio; Campinas: UNICAMP, 1992.
MICHELET, Jules. O povo. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. São Paulo: Papirus, 1997. 3 v.
RIOUX, Jean-Pierre. “Pode-se fazer uma história do presente? In: CHÉVEAU, A; TÉTARD, P. (Orgs.). Questões para a história do tempo presente. Bauru: EDUSC, 1999.
THOMPSON, Paul. A voz do passado. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1992

BIBLIOGRAFIA
ABUD, Kátia M.; MALATIAN, T. M. A História e o historiador. PEC construindo sempre-aperfeiçoamento de professores PEB II. São Paulo: FAFE-SP/CENP/Fundação C.A . Vanzolini, 2002.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989). São Paulo: Ed. UNESP, 1997.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.
HOBSBAWM, Eric J. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
MARROU, Henri I. Do conhecimento histórico. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1975.
NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e História. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura/Companhia das Letras, 1992.

THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. 3 v

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