Como
todo mudo está comentando desde ontem, sábado 24/05, até que demorou, mas agora veio o
ataque mais forte ao livro do Piketty na área onde realmente a jiripoca
pia, ou seja, nos dados (puxando a brasa para os pobres empiristas de história
econômica).
Quatro problemas
principais apontados pelo editor e colunista do Financial Times, Chris
Giles: erros na passagem dos dados das planilhas e de fontes; metodologia
questionável na escolha de pesos, ajustes com números inexplicados e
cherry-picking.
Genericamente
falando, o primeiro tipo de problema desgasta, mas é inevitável e terrivelmente
comum para quem trabalha pesado com dados como Piketty faz. A menos que sejam
desastrosos (como o de Rogoff e Reinhart), ou não sejam aleatórios (isto é,
sejam deliberadamente produzidos para reforçar o argumento; ver abaixo),
os erros desse tipo não costumam ser o fim do mundo.
O
segundo tipo de problema, a escolha de pesos, é mais ambíguo, até para definir
se é problema mesmo, pois se refere a opções por procedimentos que podem ser
divergentes mas perfeitamente defensáveis, daí não sendo um necessariamente
melhor do que o outro em todas as situações. A disputa nesses casos gira em
torno do que é mais plausível e menos arbitrário.
O
terceiro problema, quanto aos ajustes de dados incompletos, é em parte
parecido com o anterior: depende de hipóteses e escolhas do pesquisador que
estão sujeitas a opiniões distintas e divergências. Mas com dados incompletos
ou inexistentes exige-se bem mais prudência e critério. É mais simples
quando é o caso de usar interpolação ou extrapolação em séries de tempo
(em poucos anos), mas complica quando o que está em jogo são valores relativos
a unidades como estados, países, setores econômicos ou estratos sociais.
Nessas situações, pode-se utilizar aproximações baseadas em unidades similares
de outros períodos, regiões ou setores. O critério deve (ou deveria) ser alguma
extrapolação plausível e bem justificada em termos históricos e
econômicos, não um número extraído da imaginação. E o procedimento deve ser
claro e explicado. Infelizmente, contudo, muitas vezes esses requisitos básicos
não são seguidos.
Já
o quarto tipo de problema é devastador. Viesar as escolhas de
procedimentos, hipóteses e dados em seu favor, e em detrimento de outros que
minam seu argumento geral, é o supremo pecado do historiador econômico. Não
ameniza o problema o fato de que esse viés seja muito comum em todas as
disciplinas ou que vários autores o considerem muito natural.
No
caso do Piketty, minhas impressões ao ler a crítica do FT: o problema 1 parece
ter ocorrido de fato no livro, mas não aparenta ser grave; o problema
2 não necessariamente é problema (Piketty pondera por país, não por
população), embora a crítica de Giles seja correta e muito comum em
relação ao tipo de procedimento que Piketty adota para obter os resultados
agregados; o problema 3 parece mais sério, pois há de fato números
inexplicados que são usados para estimativas em partes
importantes dos argumentos de Piketty; quanto ao problema 4, não tive
elementos, ou melhor, ainda resisto em imaginar que Piketty tenha distorcido os
dados em seu favor (acho que estou viesado em favor dele).
Tudo,
porém, depende das explicações que imagino que serão dadas por Piketty em
breve. Por exemplo, sobre os 36 pontos percentuais que são adicionados à
participação dos 1% mais ricos para obter-se o percentual dos 10% com maior
riqueza nos Estados Unidos entre 1910 e 1950. É provável que o percentual tenha
sido deduzido de algum critério razoável, embora não seja explicado
no livro.
A
primeira reação de Piketty depois de publicada a matéria no sábado não foi
propriamente uma resposta, pois resumiu-se a dizer que a crítica do FT é
“ridícula” pois todos reconhecem que as grandes fortunas cresceram mais
rapidamente ou que foi “desonesta” por sugerir que as mudanças indicadas alteram
as conclusões do livro ( ver em http://www.theguardian.com/business/2014/may/26/thomas-piketty-financial-times-dishonest-criticism-economics-book-inequality).
Podem
ser até bons como figuras de retórica, mas os termos e as frases não fazem
sentido para quem está interessado nos dados e na realidade que ele se
propôs a descrever no livro.
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