O
que começou como meio para preservar a liberdade individual pode agora ser
usado por estados menores, para frustrar as ambições dos maiores.
O
cypherpunks[1] originais eram, na maioria, californianos libertaristas.[2] Eu
vinha de tradição diferente, mas todos nós buscávamos proteger a liberdade
individual contra a tirania do Estado. Nossa arma secreta era a criptografia.
Já se esqueceu o quanto isso foi subversivo. A criptografia, então, era
propriedade exclusiva dos Estados, para uso em suas muitas guerras. Ao escrever
nossos próprios programas e distribuí-los o mais amplamente possível, liberamos
a criptografia, a democratizamos e a espalhamos pelas fronteiras da nova
internet.
A
reação contra, sob várias leis “de tráfico de armas”, falhou. A criptografia se
difundiu nos browsers da rede e em outros programas que, hoje, as pessoas usam
diariamente. Criptografia forte é ferramenta vital na luta contra a opressão
pelo Estado. Essa é a mensagem do meu livro Cypherpunks. Mas o movimento para
disponibilizar universalmente uma criptografia forte tem de trabalhar para
obter mais do que isso. Nosso futuro não está apenas na liberdade para os
indivíduos.
Nosso
trabalho em WikiLeaks implica compreensão semelhante da dinâmica da ordem
internacional e da lógica do império. Durante o período de formação de
WikiLeaks, encontramos evidências de pequenos países abusados e dominados por
países maiores, ou infiltrados por empresas de fora, forçados a agir contra
eles próprios. Vimos o desejo popular ao qual não se dava voz e expressão,
eleições compradas e vendidas, e países ricos, como o Quênia, assaltados e
leiloados por plutocratas em Londres e em New York.
A
luta pela autodeterminação latino-americana é importante para muito mais gente
do que os que vivem na América Latina, porque mostra ao resto do mundo o que
pode ser feito. Mas a independência da América Latina ainda engatinha.
Tentativas para subverter a democracia latino-americana ainda acontecem,
inclusive recentemente, em Honduras, Haiti, Equador e Venezuela.
Por
isso a mensagem dos cypherpunks tem importância especial para os públicos
latino-americanos. A vigilância em massa não é só problema para a governança e
a democracia – é uma questão geopolítica. Se a população de um país inteiro é
vigiada por país estrangeiro, há ameaça contra a soberania. Intervenção após
intervenção nos assuntos da democracia na América Latina ensinaram-nos a ser
realistas. Sabemos que os velhos poderes ainda explorarão, para benefício
deles, qualquer possibilidade de retardar ou suprimir a eclosão da
independência latino-americana.
Considere-se
a simples geografia. Todos sabem que os recursos em petróleo regem a
geopolítica global. O fluxo do petróleo determina quem é dominante, quem é
invadido, quem é posto em ostracismo fora da comunidade global. O controle
físico sobre um segmento de oleoduto define maior poder geopolítico. Governos
que se ponham nessa posição podem obter concessões gigantescas. Num golpe, o
Kremlin pode condenar a Europa Oriental e a Alemanha a um inverno sem calefação.
E até a possibilidade de Teerã controlar um oleoduto para o leste, até Índia e
China, é pretexto para a lógica belicosa de Washington.
Mas
o novo grande jogo não é a guerra por oleodutos. É a guerra pelos dutos pelos
quais viaja a informação: o controle sobre as vias de cabos de fibras óticas
que se espalham pela terra e pelo fundo dos mares. O novo tesouro global é o
controle do fluxo gigante de dados que conecta todos os continentes e
civilizações, conectando as comunicações de bilhões de pessoas e empresas.
Não
é segredo que, na Internet e no telefone, todas as rotas que entram e saem da
América Latina passam pelos EUA. A infraestrutura da Internet dirige 99% do
tráfego que entra e que sai da América do Sul por linhas de fibras óticas que
atravessam fisicamente fronteiras dos EUA. O governo dos EUA não mostrou
qualquer escrúpulo quanto a quebrar sua própria lei e plantar escutas
clandestinas nessas linhas e espionar os seus próprios cidadãos. Todos os dias,
centenas de milhões de mensagens de todo o continente latino-americano são
devoradas por agências de espionagem dos EUA, e armazenadas para sempre em
armazéns do tamanho de pequenas cidades. Os fatos geográficos sobre a
infraestrutura da Internet, portanto, têm consequências sobre a independência e
a soberania da América Latina.
O
problema também transcende a geografia. Muitos governos e militares
latino-americanos protegem seus segredos com maquinário de criptografia. São
caixas e programas que ‘desmontam’ as mensagens na origem e as ‘remontam’ no
destino. Os governos compram essas máquinas e programas para proteger seus
segredos – quase sempre o próprio povo paga (caro) –, porque temem,
corretamente, que suas comunicações sejam interceptadas.
Mas
as empresas que vendem esses equipamentos e programas caros mantêm laços
estreitos com a comunidade de inteligência dos EUA. Seus presidentes e altos
executivos são quase sempre matemáticos e engenheiros da Agência Nacional de
Segurança dos EUA (NSA) capitalizando as invenções que eles mesmos criaram para
o Estado de Vigilância. Não raras vezes, as máquinas que vendem são quebradas:
quebradas propositalmente, por uma razão. Não importa quem as use ou como as
usem – as agências dos EUA conseguem ‘remontar’ os sinais e leem as mensagens.
Esse
equipamento é vendido para a América Latina e outros países como útil para
proteger os segredos do comprador, mas são, de fato, máquinas para roubar
aqueles segredos.
Enquanto
isso, os EUA aceleram a próxima grande corrida armamentista. A descoberta do
vírus Stuxnet vírus – e depois dos vírus Duqu e Flame – marca o início de uma
nova era de programas complexos usados como arma, que estados poderosos
fabricam para atacar estados mais fracos. A primeira ação agressiva contra o
Irã visou a minar os esforços daquele país com vistas a defender sua soberania
– ideia que é anátema para os interesses de EUA e de Israel na região.
Longe
vai o tempo em que usar vírus de computador como arma de ataque era peripécia
de romance de ficção científica. Agora, é realidade global, que se espalha graças
ao comportamento leviano do governo de Barack Obama, em violação da lei
internacional. Outros estados agora por-se-ão na mesma trilha, aumentando a
própria capacidade de ataque.
Os
EUA não são os únicos culpados. Em anos recentes, a infraestrutura de Internet
de países como Uganda tem recebido grandes investimentos chineses. Gordos
empréstimos chegam, em troca de contratos africanos para que empresas chinesas
construam a espinha dorsal da infraestrutura de Internet ligando escolas,
ministérios do governo e comunidades ao sistema global de fibra ótica.
A
África vai-se conectando online, mas com máquinas vendidas por potência
estrangeira aspirante ao status de superpotência. A Internet africana será o
meio pelo qual o continente continuará subjugado no século 21?
Esses
são algumas das importantes vias pelas quais a mensagem dos cypherpunks vai
além da luta pela liberdade individual. A criptografia pode proteger não só as
liberdades civis e os direitos individuais, mas a soberania e a independência
de países inteiros, a solidariedade entre grupos que lutem por causa comum, e o
projeto da emancipação global. Pode ser usada para enfrentar não só a tirania
do estado contra o indivíduo, mas a tirania do império contra estados menores.
O
grande trabalho dos cypherpunks ainda está por fazer. Junte-se a nós.
[1]
Sobre cypherpunks, ver também 14/11/2011, “30 anos de hacking político”, em
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2011/11/30-anos-de-hacking-politico.html
e 6/6/2012, e 6/6/2012, “Assange entrevista n. 8: os Cypherpunks” (parte 1 em
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2012/06/assange-entrevista-no-8-cypherpunks-1.html
e parte 2 em
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2012/06/assange-entrevista-no-9-cypherpunks.html
[NTs].
[2]
Orig. “libertarian”. Nos EUA, são liberais conservadores, que combatem,
sobretudo o Estado, sem qualquer associação ou conotação com comunistas
anarquistas. O movimento Tea Party, por exemplo, é dito libertarian. Dadas as
conotações comunistas anarquistas do adjetivo (port.) “libertário”, que aqui
absolutamente NÃO CABEM, optamos pela neologia “libertarista”. É solução
tentativa, há outras possibilidades, e todos os comentários e correções são
bem-vindos [NTs].