Ficha técnica:
Diretor: Sergei Eisenstein
Fotografia: Eduard Tisse
Música: Edmund Meisel (composta para performance ao vivo)
Ano da produção: 1925
Duração: 75’
Análise
Em 1926 a Academia Americana de Artes o elegeu o "melhor filme do mundo" e em 1958 a Exposição Internacional de Bruxelas considerou-o "melhor filme de todos os tempos e de todos os povos".
O filme conta a história do maior navio de guerra da armada imperial russa, o Couraçado Potemkin, no ano da primeira revolução socialista soviética. Essa obra explora os recursos técnicos da linguagem cinematográfica de forma a fugir das abordagens "dramatúrgicas", tão comuns no primeiro cinema de arte europeu. São assim valorizados os elementos de montagem, dos planos e tomadas e do enredo permeado por numerosos elementos simbólicos.
Numa espécie de representação holonômica, Eisenstein procura mostrar microcosmicamente como se inicia e desenrola a revolução socialista. Parece defender a tese de que não é necessária uma ampla consciência de classe para detonar um movimento revolucionário. Basta que, a partir de um fato isolado, se desencadeie uma série de ações que coloquem em movimento um número cada vez maior de envolvidos, potencializando as forças coletivas progressivamente. É exatamente isso que acontece na segunda parte, uma das mais alegóricas de todo o filme. As referências à estratificação social russa e a utilização de diversos signos simbólicos faz com que se reproduza em torno e dentro do Couraçado todo o movimento social do país.
O filme está dividido em cinco partes, dispostas na versão original da seguinte forma:
I
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II
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III
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IV
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V
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14 min
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19 min
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11 min
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11 min
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20 min
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Parece haver uma busca de equilíbrio e contraste nesta distribuição: após a introdução, espécie de apresentação temática e espaço-temporal, a parte II sintetiza o processo revolucionário soviético num ritmo muito dinâmico, a parte III contrasta com a antecedente e precedente num pesado clima depressivo, e as duas partes finais retomam, através de um crescendo, o ritmo composto de tensão e movimento. A aparentemente excessiva simetria na distribuição temporal das partes pode ser visualizada, então, da seguinte forma (proporção melhor visualizada com o browser bem largo):
INTRO
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II
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III
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IV e V
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14 min
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19 min
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11 min
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31 min
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Um fato notável sobre as primeiras exibições do filme fora da Rússia se deu na Suécia, onde foi realizado um procedimento interessante de censura: ao invés de cortar cenas, foi alterada a ordem das partes do filme de forma a induzir o público a crer que o levante revolucionário dos marujos do Potemkin termina com o seu fuzilamento, o que se fez através da transposição dessa cena para o final do filme (1).
Num artigo intitulado Cinema e Literatura: A Estrutura do Enredo, Umberto Eco (2) utiliza o filme e esta montagem censora como exemplos da importância da temporalidade na arte cinematográfica.
Partes
- Situa o tempo, através de um diálogo entre os marujos Vakulintchuk e Matiuchenko, no início do levante operário da Revolução Russa de 1905.
- O espaço é o do Couraçado Potemkin na Baía do Tendra (Mar Negro), próximo à cidade de Odessa.
- A crise do país é micro-representada na carne com vermes que será servida aos marinheiros do Couraçado, avaliada como boa pelo oficial médico Smirnov.
- Os marinheiros, revoltados com a situação, recusam-se a comer a sopa e furtam os enlatados reservados aos oficiais.
- Todos chamados ao convés, constrói-se no navio metaforicamente a estratificação social russa: o almirante Guiliarovsky (o Czar Nicolau II), oficiais do primeiro escalão (a aristocracia), a guarda (o exército imperial), os "dragões" do segundo escalão (a burguesia) e os marinheiros não graduados (o proletariado).
- Questionados pelo almirante sobre a boa qualidade sopa, começam a aderir os oficiais e a maioria dos marujos. A aceitação da carne podre representa a aceitação do "regime" do Czar. A frase "A maioria aderiu" simboliza os menscheviques do Partido Social Democrata russo.
- Ao final da "adesão" a minoria (bolchevique) é encurralada num canto da proa, simbolizando sua posição de vanguarda, dos que vão "à frente".
- Ao perceber o risco que correm, alguns marujos tentam fugir pela escotilha do almirante mas são violentamente impedidos pelo próprio almirante, simbolizando a inacessibilidade do povo aos privilégios da elite.
- Essa vanguarda é coberta com uma lona para ser executada. Aparece (nas alturas do convés) o pastor (figura estranhíssima, quase demoníaca, de olhar obsessivo) que afirma "Senhor, fazei-os voltar à obediência", mostrando o apoio da Igreja ao status quo. Um close passeia por vários elementos repertoriais metálicos: mostra uma cruz na mão do pastor (símbolo do poder eclesiástico), passa para a espada (arma branca) de um oficial (poder imperial), para as armas de fogo (arma negra) da guarda (poder militar) e em seguida para a corneta (voz metálica).
- A voz afirmativa do poder (na frase do oficial "Fogo!") vai ser oposta pela voz questionadora do proletário Vakulintchuk (na frase "Irmãos! Contra quem vão atirar?"). É um momento de enorme tensão, representando o prenúncio de um salto qualitativo de consciência. Ao início do levante, Vakulintchuk sobe em uma plataforma para incitar os irmãos à luta.
- Os "dragões" são atacados, mas o almirante escapa (assim como o Czar escapou durante algum tempo).
- Numa cena onde são distribuídas as armas, aparecem nitidamente os "pés-descalços" de um marujo, reforçando a figura e situação do proletário.
- Na iminência de ser atacado, o pastor empunha a cruz em defesa própria, utilizando o nome de Deus para tentar se salvar ("Deus te castiga!"). Ao ser atacado, derruba a cruz que se finca no convés de madeira, mostrando seu poder cortante. Aparece a seguir o pastor desfalecido numa escada.
- Várias lutas são facilmente vencidas pelos marujos, bem mais numerosos. Como um efeito em cadeia, parece que todos vão progressivamente tomando consciência de sua força coletiva.
- Um marinheiro bate com o cabo da arma nos pés de um oficial que cai ao mar, mostrando que a burguesia deve ser atingida nas suas bases (a propriedade, o capital, o poder econômico) para ser derrotada.
- O pastor aparentemente morto abre dissimuladamente um dos olhos, simbolizando a falsidade da religião, "ópio do povo" nas palavras de Marx e Engels.
- Vários "dragões" são atirados ao mar e reaparece a cena dos vermes na carne, simbolizando o estado parasitário da burguesia no "tecido" social.
- A última imagem antes do grito de vitória é dos óculos de Smirnov, uma referência à visão (?).
- O almirante persegue e mata Vakulintchuk com um tiro pelas costas, representando a perseguição e risco das lideranças populares.
- A parte II se encerra com a cena de vários marujos jogando-se ao mar para tentar salvar Vakulintchuk, mostrando a camaradagem como valor revolucionário.
Parte mais pesarosa e reflexiva do filme. Expõe o percurso desde o velamento do mártir, onde a população de Odessa chora a morte do herói, até a revolta das massas ocorrida a partir da provocação de um burguês anti-semita. Nesta parte é dita a frase "Um por todos e todos por um", um dos principais leit-motiv do filme.
- Vela - símbolo da iluminação, fonte da consciência e da vigília.
- Pescadores - proletário é o real produtor de bens indispensáveis.
- Escadaria - símbolo da estratificação social e das divisões hierárquicas.
- Procissão - representando a necessidade da movimentação social, coletiva.
- Moedas doadas - solidariedade como valor.
- Leitura do manifesto - tomada de consciência. É o morto que conclama o povo à revolta.
Aqui se desenrola o massacre do povo de Odessa pela guarda imperial do Czar. Cenas de alta dramaticidade reproduzem a verve assassina e cruel do exército frente a mulheres, crianças e homens desarmados. É nesta parte que ocorre uma cena que ficou para a história do cinema, citada por vários diretores: a do carrinho de bebê que rola escada abaixo após a morte da mãe.
- Dezenas de veleiros vão cumprimentar os revoltosos do Potemkin.
- Água (purificação) reflete a luz do sol (iluminação) numa cena de rara beleza.
- Povo de Odessa doa alimentos aos marujos (solidariedade).
- Clima positivo é representado por sorrisos, pela música e por crianças felizes.
- Guarda-sol avança até cobrir o campo de visão. Rompe-se o clima inicial desta parte. Surge uma estátua (do Czar, talvez) e inicia-se o massacre do povo pelos Cossacos do exército imperial.
- Uma criança é atingida, desfalece e é pisoteada. A câmera dá um close na pisada que um homem dá em sua mão. Sua mãe enlouquece. Toma o filho no colo para denunciar a insanidade do massacre. Anda contra a corrente da multidão que foge e é impiedosamente morta pelo exército. Ênfase na crueldade. A referência à figura da mãe pode simbolizar o desprezo à fraternidade e a incapacidade dos homens do exército em reconhecer sua igualdade de origem com o povo de Odessa.
- Outra mãe, com um carrinho de bebê na escadaria, é assassinada. Após close na fivela de seu cinto, ela é mostrada caindo e empurrando acidentalmente o carrinho escada abaixo.
- Uma face de mulher, mostrada anteriormente rindo, aparece agora chorando e se desesperando com o rolar do carrinho pela escadaria. Num corte brusco, surge o couraçado que responde ao ataque destruindo o Teatro de Odessa, sugerindo que a violência é gerada pela violência.
- Uma assembléia dos marujos discute sobre o seu desembarque para auxiliar o povo de Odessa. A notícia de que a esquadra imperial está a caminho faz com que decidam se preparar para enfrentá-la. Ela representa a figura do Czar que deve ser derrotado.
- A espera pela chegada da esquadra mescla, paradoxalmente, um clima de tensão e de estaticidade.
- Desce uma bandeira entre dois canhões.
- Aparecem instrumentos de medida, uma referência ao desmesuramento do regime imperial.
- O leme, indicativo de direção, é mostrado diversas vezes, agora nas mãos dos marujos.
- Binóculo - visão.
- Ex-dragão tira o casaco de oficial e se veste como marujo. Todos agora estão no mesmo nível.
- Corneta - ?. Cachimbo - ?.
- O clima se torna altamente dinâmico, com a preparação do couraçado para o combate. Todos correm e a música acelera o ritmo.
- A ordem "máquinas a todo vapor" é seguida por imagens de pistões (máquinas) e da chaminé expelindo fumaça (vapor). Esse ciclo é repetido, aumentando a tensão.
- A frase "um por todos e todos por um" da parte III se torna nesse instante "um contra todos e todos contra um".
- Como última tentativa, o Potemkin manda uma mensagem para a esquadra incitando os outros barcos a aderirem à Revolução, o que efetivamente ocorre, encerrando o filme numa espécie de "anti-clímax" pacífico representado pelo "hurra" geral e o hasteamento da bandeira vermelha do socialismo.
Conclusão
É admirável a profusão de símbolos nesta obra do início do século. A multiplicidade atual dos recursos técnicos parece, ao contrário de enriquecer tais possibilidades, ter tentado substituir o papel da dimensão simbólica na arte cinematográfica.
Tomemos como exemplo diferencial o desfecho do filme. A própria idéia de "anti-clímax" é proveniente de nossa expectativa de um combate final. O término do filme com uma comemoração de fraternidade, talvez hoje considerado piegas por muitos, na verdade consolida um clímax imprevisto.
A forma como Eisenstein trata a violência, como uma espécie de aberração, difere bastante da produção hollywoodiana que a coloca como característica natural de "homens violentos" (sejam eles heróis ou anti-heróis). Ao invés de objetivar "entreter" com a violência, visa fazer-nos pensar sobre ela, recusá-la socialmente.
Os heróis do Potemkin, ainda que referenciados individualmente, apontam sempre para o coletivo. Vakulintchuk e Matiuchenko aparecem sempre ligados aos "irmãos" ou "camaradas". Contradizem diametralmente os heróis "personalizados" a que estamos habituados na cultura ocidental. São homens muito mais próximos de nós que os mitológicos Batman ou Superman.
Mais do que uma apologia ao socialismo, o "Couraçado" intenta simbolizar um processo qualitativo de transformação. Opondo-se ao cinema "teatral" de catarse, que até hoje encontra amplos espaços no cinema de entretenimento, abre espaço para uma conjunção paradoxal do narrativo-descritivo com o sugestivo-simbólico. Além de um filme histórico – tanto no sentido de descrever fatos da história soviética quanto no de ter se tornado uma obra histórica para o cinema – o "Potemkin" pode ser entendido como um libelo à paz e em defesa da liberdade, seja da expressão artística, seja da própria condição humana.
Notas
(1) Jan MUKARÓVSKÝ, Em Volta da Estética do Cinema, in Escritos sobre Estética e Semiótica da Arte, Lisboa, Estampa, 1981, p. 206. (volta ao ponto da nota)
(2) Umberto ECO, A Definição da Arte, Lisboa, Presença, 1972. (volta ao ponto da nota)
(2) Umberto ECO, A Definição da Arte, Lisboa, Presença, 1972. (volta ao ponto da nota)
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