domingo, 9 de setembro de 2012

"O ENCOURAÇADO POTTEMKIN" ANÁLISE DO FILME

Ficha técnica:
Diretor: Sergei Eisenstein
Fotografia: Eduard Tisse
Música: Edmund Meisel (composta para performance ao vivo)
Ano da produção: 1925
Duração: 75’

Análise
Em 1926 a Academia Americana de Artes o elegeu o "melhor filme do mundo" e em 1958 a Exposição Internacional de Bruxelas considerou-o "melhor filme de todos os tempos e de todos os povos".
O filme conta a história do maior navio de guerra da armada imperial russa, o Couraçado Potemkin, no ano da primeira revolução socialista soviética. Essa obra explora os recursos técnicos da linguagem cinematográfica de forma a fugir das abordagens "dramatúrgicas", tão comuns no primeiro cinema de arte europeu. São assim valorizados os elementos de montagem, dos planos e tomadas e do enredo permeado por numerosos elementos simbólicos.
Numa espécie de representação holonômica, Eisenstein procura mostrar microcosmicamente como se inicia e desenrola a revolução socialista. Parece defender a tese de que não é necessária uma ampla consciência de classe para detonar um movimento revolucionário. Basta que, a partir de um fato isolado, se desencadeie uma série de ações que coloquem em movimento um número cada vez maior de envolvidos, potencializando as forças coletivas progressivamente. É exatamente isso que acontece na segunda parte, uma das mais alegóricas de todo o filme. As referências à estratificação social russa e a utilização de diversos signos simbólicos faz com que se reproduza em torno e dentro do Couraçado todo o movimento social do país.
O filme está dividido em cinco partes, dispostas na versão original da seguinte forma:
I
II
III
IV
V
14 min
19 min
11 min
11 min
20 min
Parece haver uma busca de equilíbrio e contraste nesta distribuição: após a introdução, espécie de apresentação temática e espaço-temporal, a parte II sintetiza o processo revolucionário soviético num ritmo muito dinâmico, a parte III contrasta com a antecedente e precedente num pesado clima depressivo, e as duas partes finais retomam, através de um crescendo, o ritmo composto de tensão e movimento. A aparentemente excessiva simetria na distribuição temporal das partes pode ser visualizada, então, da seguinte forma (proporção melhor visualizada com o browser bem largo):
INTRO
II
III
IV e V
14 min
19 min
11 min
31 min
Um fato notável sobre as primeiras exibições do filme fora da Rússia se deu na Suécia, onde foi realizado um procedimento interessante de censura: ao invés de cortar cenas, foi alterada a ordem das partes do filme de forma a induzir o público a crer que o levante revolucionário dos marujos do Potemkin termina com o seu fuzilamento, o que se fez através da transposição dessa cena para o final do filme (1).
Num artigo intitulado Cinema e Literatura: A Estrutura do Enredo, Umberto Eco (2) utiliza o filme e esta montagem censora como exemplos da importância da temporalidade na arte cinematográfica.

Partes
I - Introdução (0-14=14’)
    • Situa o tempo, através de um diálogo entre os marujos Vakulintchuk e Matiuchenko, no início do levante operário da Revolução Russa de 1905.
    • O espaço é o do Couraçado Potemkin na Baía do Tendra (Mar Negro), próximo à cidade de Odessa.
    • A crise do país é micro-representada na carne com vermes que será servida aos marinheiros do Couraçado, avaliada como boa pelo oficial médico Smirnov.
    • Os marinheiros, revoltados com a situação, recusam-se a comer a sopa e furtam os enlatados reservados aos oficiais.
II - O Drama na Baía do Tendra (14-33=19’)
    • Todos chamados ao convés, constrói-se no navio metaforicamente a estratificação social russa: o almirante Guiliarovsky (o Czar Nicolau II), oficiais do primeiro escalão (a aristocracia), a guarda (o exército imperial), os "dragões" do segundo escalão (a burguesia) e os marinheiros não graduados (o proletariado).
    • Questionados pelo almirante sobre a boa qualidade sopa, começam a aderir os oficiais e a maioria dos marujos. A aceitação da carne podre representa a aceitação do "regime" do Czar. A frase "A maioria aderiu" simboliza os menscheviques do Partido Social Democrata russo.
    • Ao final da "adesão" a minoria (bolchevique) é encurralada num canto da proa, simbolizando sua posição de vanguarda, dos que vão "à frente".
    • Ao perceber o risco que correm, alguns marujos tentam fugir pela escotilha do almirante mas são violentamente impedidos pelo próprio almirante, simbolizando a inacessibilidade do povo aos privilégios da elite.
    • Essa vanguarda é coberta com uma lona para ser executada. Aparece (nas alturas do convés) o pastor (figura estranhíssima, quase demoníaca, de olhar obsessivo) que afirma "Senhor, fazei-os voltar à obediência", mostrando o apoio da Igreja ao status quo. Um close passeia por vários elementos repertoriais metálicos: mostra uma cruz na mão do pastor (símbolo do poder eclesiástico), passa para a espada (arma branca) de um oficial (poder imperial), para as armas de fogo (arma negra) da guarda (poder militar) e em seguida para a corneta (voz metálica).
    • A voz afirmativa do poder (na frase do oficial "Fogo!") vai ser oposta pela voz questionadora do proletário Vakulintchuk (na frase "Irmãos! Contra quem vão atirar?"). É um momento de enorme tensão, representando o prenúncio de um salto qualitativo de consciência. Ao início do levante, Vakulintchuk sobe em uma plataforma para incitar os irmãos à luta.
    • Os "dragões" são atacados, mas o almirante escapa (assim como o Czar escapou durante algum tempo).
    • Numa cena onde são distribuídas as armas, aparecem nitidamente os "pés-descalços" de um marujo, reforçando a figura e situação do proletário.
    • Na iminência de ser atacado, o pastor empunha a cruz em defesa própria, utilizando o nome de Deus para tentar se salvar ("Deus te castiga!"). Ao ser atacado, derruba a cruz que se finca no convés de madeira, mostrando seu poder cortante. Aparece a seguir o pastor desfalecido numa escada. 
    • Várias lutas são facilmente vencidas pelos marujos, bem mais numerosos. Como um efeito em cadeia, parece que todos vão progressivamente tomando consciência de sua força coletiva.
    • Um marinheiro bate com o cabo da arma nos pés de um oficial que cai ao mar, mostrando que a burguesia deve ser atingida nas suas bases (a propriedade, o capital, o poder econômico) para ser derrotada.
    • O pastor aparentemente morto abre dissimuladamente um dos olhos, simbolizando a falsidade da religião, "ópio do povo" nas palavras de Marx e Engels.
    • Vários "dragões" são atirados ao mar e reaparece a cena dos vermes na carne, simbolizando o estado parasitário da burguesia no "tecido" social.
    • A última imagem antes do grito de vitória é dos óculos de Smirnov, uma referência à visão (?).
    • O almirante persegue e mata Vakulintchuk com um tiro pelas costas, representando a perseguição e risco das lideranças populares.
    • A parte II se encerra com a cena de vários marujos jogando-se ao mar para tentar salvar Vakulintchuk, mostrando a camaradagem como valor revolucionário.
III - O Morto Conclama (33-44=11’)
Parte mais pesarosa e reflexiva do filme. Expõe o percurso desde o velamento do mártir, onde a população de Odessa chora a morte do herói, até a revolta das massas ocorrida a partir da provocação de um burguês anti-semita. Nesta parte é dita a frase "Um por todos e todos por um", um dos principais leit-motiv do filme.
    • Vela - símbolo da iluminação, fonte da consciência e da vigília.
    • Pescadores - proletário é o real produtor de bens indispensáveis.
    • Escadaria - símbolo da estratificação social e das divisões hierárquicas.
    • Procissão - representando a necessidade da movimentação social, coletiva.
    • Moedas doadas - solidariedade como valor.
    • Leitura do manifesto - tomada de consciência. É o morto que conclama o povo à revolta.
IV - A Escadaria de Odessa (44-55=11’)
Aqui se desenrola o massacre do povo de Odessa pela guarda imperial do Czar. Cenas de alta dramaticidade reproduzem a verve assassina e cruel do exército frente a mulheres, crianças e homens desarmados. É nesta parte que ocorre uma cena que ficou para a história do cinema, citada por vários diretores: a do carrinho de bebê que rola escada abaixo após a morte da mãe.
    • Dezenas de veleiros vão cumprimentar os revoltosos do Potemkin.
    • Água (purificação) reflete a luz do sol (iluminação) numa cena de rara beleza.
    • Povo de Odessa doa alimentos aos marujos (solidariedade).
    • Clima positivo é representado por sorrisos, pela música e por crianças felizes.
    • Guarda-sol avança até cobrir o campo de visão. Rompe-se o clima inicial desta parte. Surge uma estátua (do Czar, talvez) e inicia-se o massacre do povo pelos Cossacos do exército imperial.
    • Uma criança é atingida, desfalece e é pisoteada. A câmera dá um close na pisada que um homem dá em sua mão. Sua mãe enlouquece. Toma o filho no colo para denunciar a insanidade do massacre. Anda contra a corrente da multidão que foge e é impiedosamente morta pelo exército. Ênfase na crueldade. A referência à figura da mãe pode simbolizar o desprezo à fraternidade e a incapacidade dos homens do exército em reconhecer sua igualdade de origem com o povo de Odessa.
    • Outra mãe, com um carrinho de bebê na escadaria, é assassinada. Após close na fivela de seu cinto, ela é mostrada caindo e empurrando acidentalmente o carrinho escada abaixo.
    • Uma face de mulher, mostrada anteriormente rindo, aparece agora chorando e se desesperando com o rolar do carrinho pela escadaria. Num corte brusco, surge o couraçado que responde ao ataque destruindo o Teatro de Odessa, sugerindo que a violência é gerada pela violência.
V - O Encontro com a Esquadra (55-1:15=20’)
    • Uma assembléia dos marujos discute sobre o seu desembarque para auxiliar o povo de Odessa. A notícia de que a esquadra imperial está a caminho faz com que decidam se preparar para enfrentá-la. Ela representa a figura do Czar que deve ser derrotado.
    • A espera pela chegada da esquadra mescla, paradoxalmente, um clima de tensão e de estaticidade.
    • Desce uma bandeira entre dois canhões.
    • Aparecem instrumentos de medida, uma referência ao desmesuramento do regime imperial.
    • O leme, indicativo de direção, é mostrado diversas vezes, agora nas mãos dos marujos.
    • Binóculo - visão.
    • Ex-dragão tira o casaco de oficial e se veste como marujo. Todos agora estão no mesmo nível.
    • Corneta - ?. Cachimbo - ?.
    • O clima se torna altamente dinâmico, com a preparação do couraçado para o combate. Todos correm e a música acelera o ritmo.
    • A ordem "máquinas a todo vapor" é seguida por imagens de pistões (máquinas) e da chaminé expelindo fumaça (vapor). Esse ciclo é repetido, aumentando a tensão.
    • A frase "um por todos e todos por um" da parte III se torna nesse instante "um contra todos e todos contra um".
    • Como última tentativa, o Potemkin manda uma mensagem para a esquadra incitando os outros barcos a aderirem à Revolução, o que efetivamente ocorre, encerrando o filme numa espécie de "anti-clímax" pacífico representado pelo "hurra" geral e o hasteamento da bandeira vermelha do socialismo.

Conclusão
É admirável a profusão de símbolos nesta obra do início do século. A multiplicidade atual dos recursos técnicos parece, ao contrário de enriquecer tais possibilidades, ter tentado substituir o papel da dimensão simbólica na arte cinematográfica.
Tomemos como exemplo diferencial o desfecho do filme. A própria idéia de "anti-clímax" é proveniente de nossa expectativa de um combate final. O término do filme com uma comemoração de fraternidade, talvez hoje considerado piegas por muitos, na verdade consolida um clímax imprevisto.
A forma como Eisenstein trata a violência, como uma espécie de aberração, difere bastante da produção hollywoodiana que a coloca como característica natural de "homens violentos" (sejam eles heróis ou anti-heróis). Ao invés de objetivar "entreter" com a violência, visa fazer-nos pensar sobre ela, recusá-la socialmente.
Os heróis do Potemkin, ainda que referenciados individualmente, apontam sempre para o coletivo. Vakulintchuk e Matiuchenko aparecem sempre ligados aos "irmãos" ou "camaradas". Contradizem diametralmente os heróis "personalizados" a que estamos habituados na cultura ocidental. São homens muito mais próximos de nós que os mitológicos Batman ou Superman.
Mais do que uma apologia ao socialismo, o "Couraçado" intenta simbolizar um processo qualitativo de transformação. Opondo-se ao cinema "teatral" de catarse, que até hoje encontra amplos espaços no cinema de entretenimento, abre espaço para uma conjunção paradoxal do narrativo-descritivo com o sugestivo-simbólico. Além de um filme histórico – tanto no sentido de descrever fatos da história soviética quanto no de ter se tornado uma obra histórica para o cinema – o "Potemkin" pode ser entendido como um libelo à paz e em defesa da liberdade, seja da expressão artística, seja da própria condição humana.

Notas
(1) Jan MUKARÓVSKÝ, Em Volta da Estética do Cinema, in Escritos sobre Estética e Semiótica da Arte, Lisboa, Estampa, 1981, p. 206. (volta ao ponto da nota)
(2) Umberto ECO, A Definição da Arte, Lisboa, Presença, 1972. (volta ao ponto da nota)

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