Brincadeiras,
jogos, mitos, lendas, cultura, cultura corporal, aprendizado, sobrevivência; a
identidade é construída por intermédio da eleição de determinados signos: a
organização social e política nos aldeamentos, o uso das indumentárias
indígenas nas festividades religiosas e no cotidiano, a especialização do artesanato,
em função das solicitações dos turistas, a ressignificação do Awê[1],
que deixou de ser uma manifestação exclusivamente religiosa para tornar-se
parte das ações políticas, e no campo linguístico a recuperação da língua do
povo Pataxó – o Patxohã.
Para
os educadores a possibilidade da afirmação de uma cultura diferenciada está na
apropriação e aprendizado da esfera lúdica presente no cotidiano da aldeia, nas
músicas cantadas no Awê, construídas com vocabulários da língua Patxohã, na
agricultura, bem como na produção dos artesanatos, e adornos produzidos com
sementes de plantas nativas da mata Atlântica.
Das
experiências vivenciadas nas escolas, compreendemos que os educadores e
educandos Pataxós da Jaqueira estão construindo uma escola diferenciada em dois
espaços temporais: na esfera da aldeia as crianças costumam brincar diariamente
desde o amanhecer até aproximadamente às doze horas, é o tempo de convivência
com os familiares, nas danças período em que praticamente só falam em Patxohã,
o período das brincadeiras tendem a ser mistas e realizadas nos descampados; e o
tempo escola, no período vespertino nas salas de aula estudando os livros
didáticos adotados pela Secretaria Estadual de Educação, junto com as cartilhas
os livros produzidos pelos professores indígenas. A educação indígena se
consolida quando os grupos se juntam em torno de um objetivo comum, a
manutenção dos grupos no território tradicional, destinada à reserva nacional –
Parque Nacional do Descobrimento.
Assim,
a luta e a conquista material ou simbólica da educação indígena têm como ponto
de partida a retomada de terras originalmente indígenas.
Nesse
processo de recuperação do que foi perdido (território, língua, crenças
religiosas), utilizam-se da escola indígena e do currículo para conhecerem e
aprenderem sobre as manifestações lingüísticas e culturais de seus ancestrais.
A alfabetização em língua indígena foi a primeira preocupação dos
educadores pataxós da Bahia após a conquista da escola na aldeia, com o
objetivo de aproximar cada educando da cultura indígena Pataxó durante o
processo de alfabetização foi elaborada a cartilha Alfabetizando nas escolas
pataxó. A cartilha não traz explicitamente a informação que irá trabalhar
as duas línguas, com o Patxohã e com o português. Ela informa que é um
instrumento a ser utilizado na alfabetização nas escolas das aldeias indígenas.
Entretanto, espera-se que ela seja bilíngue, uma vez que os dispositivos acerca
da educação escolar indígena defendem que esta deve ser específica e
diferenciada da escola não-indígena.
O material, por ser uma cartilha assinala que é um livro didático,
que tem a função de instrumentalizar os docentes nas atividades de sala de aula
e informar e acrescentar aos discentes conhecimentos e alfabetizá-los. A
apreciação da cartilha apontou que esta tem a mesma formatação das cartilhas de
alfabetização em português, em que há predominantemente o método sintético,
partindo do conhecimento do alfabeto. Depois da apresentação do alfabeto, as
combinações possíveis entre as vogais e as consoantes, em seguida trabalha-se
as sílabas, retiradas de uma palavra geradora, a partir de um texto.
Na cartilha Alfabetizando nas Escolas Pataxó trabalha a
alfabetização, a partir da unidade mínima da língua (letras, sons e sílabas)
identificando estas em unidades mais complexas (palavras, frases e textos).
O material permite que os educandos reconheçam com precisão as
palavras que lhes são apresentadas e se familiarizarem com a estrutura gráfica
da língua portuguesa. Pois a cartilha é escrita em português, a língua
apresentada para a alfabetização.
Figura
1 - Capa Cartilha - Produção regional das Reservas Pataxó Jaqueira
e Nova Coroa
Fonte:
da pesquisadora
Nesse
material não há o estudo fonético das letras e nem o alfabeto fonético da
língua Patxohã. Nesse sentido, a cartilha não contempla o bilinguismo, mas há
uma valorização de alguns aspectos da cultura indígena. Os textos trazem informações
ou fazem alusão ao universo indígena. No texto abaixo percebemos essa
referencialidade.
Figura
2 – atividade da
Cartilha - Produção regional das Reservas Pataxó Jaqueira e Nova Coroa
Fonte:
da pesquisadora
A utilização do texto Gamela tem como intencionalidade trabalhar a
família silábica da letra G. O enunciado do exercício nº 1 a ser realizado
amplia a discussão, solicitando que o estudante circule no texto o nome do
material que o índio usa para fazer a gamela. O texto não traz novidade, apenas
registra de forma sucinta de que é feita a gamela e a sua utilidade, pois o
objetivo maior é a decodificação da palavra Gamela e sua decomposição nas
unidades linguísticas sílabas e letras. A alfabetização se dá em português,
partindo de aspectos superficiais da cultura indígena.
A proposta educativa neste material está voltada para a
alfabetização, com palavras geradoras que fazem parte do universo linguístico
dos estudantes pataxós. Os subsídios presentes nos textos são elementares, com
baixo nível de informatividade, entretanto não podemos negar que há um avanço,
pois houve por parte dos educadores a preocupação em construir um material
específico para a comunidade estudantil. Não podemos esquecer que os educadores
foram alfabetizados em português em escolas não-indígenas, por isso a
reprodução de parte do que vivenciaram em seus processos de alfabetização nessa
cartilha.
A cartilha revela que o registro da língua está relacionado com o
que os Pataxós vivenciaram no intenso processo de integração à sociedade
nacional e a assimilação forçada da cultura do não-índio.
Quanto à significação avaliamos que os textos apresentados e as
palavras eleitas estabelecem relações com o contexto dos atuais pataxós,
apontando que “[...] a alfabetização, mesmo em português, tem por objetivo
fortalecer a identidade e a educação indígena, conforme Meliá. (1979, p. 74).
Os textos são curtos, mas trazem elementos do universo cultural
dos Pataxós. A escolha de palavras que são próximas da leitura de mundo dos
discentes é positiva, pois é fundamental que cada sociedade recupere seus
símbolos, colocando-os em evidência. A eleição de textos que falem sobre a
comunidade reforça para os educandos indígenas que o seu povo também tem uma
história e uma cultura, e que estas devem ser registradas e valorizadas.
O trabalho com a linguagem torna-se envolvente à medida que o
educador aproxima os educandos de situações concretas vivenciadas em seu
contexto. Entretanto, percebeu-se que na cartilha não há um estudo sistemático
da língua do povo Pataxó, há maior investimento na apresentação de signos
não-verbais relacionados à cultura indígena. Por exemplo, ao retratar o
universo cultural Pataxó a cartilha apresenta símbolos como o cocar, o maracá,
o awê e expressões grafo-plásticas como as pinturas corporais. Os ícones
referentes a estes símbolos são apresentados em forma de desenhos, seguidos de
pequenos textos informativos, estes também tem como objetivo a decodificação de
palavras, a partir de sua decomposição em sílabas, com vistas à alfabetização.
Figura
3 - atividade da
Cartilha - Produção regional das Reservas Pataxó Jaqueira e Nova Coroa
Fonte:
da pesquisadora
Apesar
de explicitar o desejo de trabalhar a alfabetização, a partir da leitura de
mundo dos educandos, o material não apresenta um estudo consistente sobre o
Paxtohã. O texto Cocar representa a interiorização de modelos de textos de
demais cartilhas, por parte de quem o produziu. Não há o registro de palavras
em Patxohã, a própria palavra cocar é
de origem portuguesa, esta foi introduzida nos verbetes do Patxohã nas relações
inter-étnicas, no período em que os Pataxós viveram com os Tupinikins.
Os
Tupinikins foram os primeiros povos que tiveram contatos com os portugueses,
portanto já falavam expressões em português e em Tupi nos aldeamentos
compulsórios.
Quanto
ao conhecimento de palavras em Patxohã a cartilha traz pouquíssimas
informações. Nesse sentido, não podemos deixar de pontuar que é através da
leitura de textos, frases, palavras, que se aprende novas vocábulos, diferentes
daqueles usados cotidianamente.
Os
conteúdos de alfabetização em Patxohã propostos nesse livro estão restritos a
aprendizagem de saudações, pronúncia dos números, nome das cores, animais e
frutas e no conhecimento de algumas palavras presentes nas músicas escritas em
português.
Quanto
à função social e política no estudo de uma língua Soares (1995) defende que
esta deve ser relacionada à sua aplicabilidade e funcionalidade na construção
dos atos comunicativos, que o estudo das línguas em condições bilíngues deve
ser descritivo e não prescritivo. Advogamos sobre a importância de se
contemplar na cartilha espaços para a produção espontânea de textos e que os
estudantes fossem instigados a pesquisar e registrar palavras faladas em
Patxohã pelos seus familiares.
Conforme
pontua Sapir (1980) a língua é um fenômeno cultural, isto é, ela está
relacionada à cultura e ao pensamento, portanto as manifestações linguísticas
são formas de expressão do pensamento. Nesse sentido, falta na cartilha uma
abordagem da língua como uma instituição social, cultural e histórica.
Na cartilha há o
registro de vocábulos que fazem referência a realidade das aldeias como lista
de palmeiras, árvores, plantas medicinais, animais, frutas, nomes das aldeias e
de nomes próprios. O vocabulário apresentado é oriundo, em sua maioria da
língua de contato, do falar Tupinikim com o Português, mas não do Patxohã. No
entanto, não há informações da origem ou do processo de formação dessas
palavras. E o vocabulário é apresentado aos estudantes como da língua Patxohã.
Esse fato evidencia a ausência de informação cientifica acerca do processo de
construção e mudança da língua por parte dos educadores.
Segundo o Parecer nº 14/99 do Conselho Nacional de Educação a
formação do professor indígena deve contemplar os seguintes aspectos: a
capacitação do professor para elaborar currículos e programas de ensino
específicos para suas escolas; capacitação para produção de material didático e
científico; formação para o ensino bilíngüe assim como a metodologia de ensino
de segunda língua; conhecimento dos processos históricos de perda da língua
quando necessário e capacitação linguística para desenvolver um sistema
ortográfico da língua indígena. (BRASIL, MEC, 2002, p. 51).
Quanto ao atendimento ao decreto, avaliamos que os educadores que
elaboraram o material não tinham um conhecimento científico acerca da
Linguística, da importância de estudar o léxico da língua numa perspectiva
diacrônica e sincrônica. No estudo de uma língua que ainda não foi assimilada
pelos falantes deve ser contemplada a Morfologia, a Fonética e a Sintaxe, pois
o estudo dos vocábulos, orações e fonemas demandam a compreensão do
significante e do significado numa dimensão histórica, social e cultural.
Marques pontua que,
o
desenvolvimento da capacidade de usar a língua na escola deveria ser uma
continuação do processo fundador de domínio da linguagem como processo de
desenvolvimento e amadurecimento cognitivos, que é o fator que propicia
crescente domínio dos processos mentais de apreensão do mundo real e de sua
representação simbólica por meio da linguagem. (MARQUES In AZEREDO, 2001, p.
230).
Em toda cartilha só há quatro atividades que são escritas em
Patxohã, na página 9 a lista de nomes indígenas (Jacarandá, Ajurú, Nayara,
Adxuara, Mucujê, Iária, Mayara, Nayá, Kaiub, Rudá, Puxuri, Matalawê, Joôpek,
Uruba, Assary, Jussara, Parú, Arawana, Inajé, Juerana, Massaranduba, Nawã,
Tuxawá, Patiburi, Kati koko, Maynã, Kamassari, Tapurumã, Mark, Hayô, Aruã,
Karkajú, Awoi e na página 74 a lista das palmeiras (airi, buri, buriti,
coqueiro, dendê, Jussara, naiá, oricana, aricuri ou licuri, pati, patioba,
paiçava, tucum-açu, tucum-mirim, xandó ou caxandó). Na primeira lista temos nomes de pessoas, plantas,
divindades, a segunda lista trata-se só de nomes de palmeiras, são quinze
nomes, um para cada tipo dentro de uma mesma classe <palmeira>. Essa
variedade de nomes confirma a intimidade do indígena com a natureza. Para nós
as duas palavras coqueiro e palmeiras são suficientes para determinar essa
classe de plantas, enquanto que para os Pataxó cada nome identifica um tipo de
palmeira que tem sua utilidade e importância. Por exemplo, para fazer o peixe
assado só utilizam a patioba enquanto que da pati utilizam fibras da folha para
fazer linhas para pescar e para o artesanato.
Todo e qualquer grupo humano usa a linguagem para transmitir
suas experiências e seus conhecimentos. E é por meio dos signos eleitos é que
se pode conhecer às experiências e os desafios vivenciados por ele. Nesse
sentido, a Cartilha Alfabetizando nas Escolas Pataxó é utilizada pelos
educadores para a socialização de saberes e de símbolos que afiançam a
identidade cultural.
A cartilha traz na página 59 a atividade “ache o significado
das palavras no caça-palavras”: Miãga - Xukakay - Mukusuy –Hayõ – Kuyuna.
A escrita das palavras na língua indígena é como se pronuncia, é uma escrita
próxima da transcrição fonética. Em 1982 a professora Eni Pocinelli Orlandi
elaborou uma proposta de grafia econômica, parecido com a transcrição fonética
do português. (in Silva, 1984, p. 4). E tem sido esses os critérios empregados
na grafia da língua.
As palavras do Patxohã registrada na atividade foram pouco
exploradas, se resumiu na localização das mesmas no caça-palavras. Apesar
disso, há uma riqueza de informações nesta proposta, primeiro seria mostrar a
possibilidade de escrita. Por exemplo, o /h/ para representar os sons /r/ na
posição inicial/ ou /rr/ no meio da palavra, o uso do som /tʃ/ que é escrito
tx. Sendo assim, a escrita é fonética, o registro é como se pronuncia as
palavras. Como nos exemplos abaixo:
(1) Miãga (água) o som nasal é representado e registrado pelo
sinal /~/
(2) Xukakay (galinha), o som do i na posição de semi-vogal é
escrito com o fonema /y/ a mesma ocorrência na palavra Mukuçuy ( peixe)
(3) Hayõ (sol), o som /r/ na posição inicial é escrito com o
fonema /h/;
(4) Kuyuna (farinha), nesta palavra, o som da letra c é grafado
pelo fonema /k/.
Meliá (1979) avalia como positivo esse fenômeno, da escrita
fonética nos materiais em que se estuda a língua indígena e acrescenta que essa
ação possibilitará que gradativamente a língua seja assimilada pelas crianças e
as gerações futuras poderão de fato se expressar na língua de seus ancestrais.
Para o estudo da ortografia da língua indígena Meliá informa que
“a escolha de símbolos obedece a algumas normas principais: que o símbolo deve
ser o mais semelhante possível da grafia do português; e que seja um fonema
para representa um único símbolo” (KINDEL-JONES, 1978 apud MELIÁ, 1979, p. 78).
O Patxohã é uma língua estruturada a partir de diferentes raízes,
oriundas de línguas indígenas, africanas e do português falado pelos indígenas;
conforme o texto Dawê Mayô ἷhé em que se percebe a presença de três matrizes
linguísticas: Dawê – adeus em patxohã, despedir – que é dar adeus em português
e Naô que significa caboclo (palavra de origem africana, presente nos rituais
afro-brasileiros).
Figura
4 - atividade da
Cartilha - Produção regional das Reservas Pataxó Jaqueira e Nova Coroa
Fonte: da pesquisadora
O refrão Dawê Mayô ἷhé/ dawê mayô
ixê não tem como ser traduzido isolando os vocábulos, para ter acesso a ideia
geral que ele transmite, deve ser lido como um todo, por isso o enunciado chama
a atenção: “com a ajuda do professor, faça a tradução da música da língua
Patxohã para a língua portuguesa. O adequado seria solicitar a interpretação e
não a sua tradução.
Em linhas gerais o texto fala de um jovem que solicita a benção,
pois vai partir, vai embora do seu lugar, precisa deixar o seu lugar. O lugar
chamado Maxanawê que pode significar ao mesmo tempo o espaço físico – a aldeia
– que é o lugar de festa e alegria e/ou despedir do seu lugar espiritual, de
seus ancestrais, conforme o verso “despedir de meu Naô”.
As palavras que estruturam o texto não estão registradas no
dicionário Patxohã, o que nos leva a inferir que a música foi estruturada, a
partir do contato entre as etnias indígena, portuguesa e africana.
Essa atividade foi trazida com o objetivo de mostrar a riqueza de
informações acerca das culturas presentes no processo de reconstrução e
afirmação dessa língua. A análise aponta que o material não é bilíngue, mas é
intercultural.
O texto meu cocar, assim como o anterior, tem uma linguagem
poética, como a maioria das músicas que são cantadas na roda do Awê apresenta
uma sintaxe semelhante da Língua Portuguesa, em que temos na construção da
sentença o sintagma nominal seguido do sintagma verbal.
A palavra em Patxohã
é tupisay que é um tipo de vestimenta, saia feita de fibra vegetal usada na
dança do Awê, em cerimônias religiosas e ações políticas. O vocábulo tupisay
faz parte do campo semântico de adornos indígenas, como colar e cocar,
entretanto as palavras não são originarias de uma mesma língua.
Figura
5 - atividade da
Cartilha - Produção regional das Reservas Pataxó Jaqueira e Nova Coroa
Fonte:
da pesquisadora
Cocar: palavra de origem portuguesa
que significa penacho ou capacete de plumas. (Urakatã)
|
Colar: palavra de origem portuguesa
que significa ornamento para o pescoço. (Massaká)
|
Tupissay: palavra Patxohã que em
português significa saia
|
ADORNOS
|
Essa ocorrência nos remete o que Sapir (1980) explicitou quanto às
mudanças nas línguas, essas ocorrem motivadas por três fatores: a associação
entre cultura e língua, uma mudança na cultura acarreta alteração na língua; o
outro impulso, é a mudança estilística que tem relação com a forma como o
falante deseja expressar seu pensamento e emoções e a terceira é a mudança
própria da língua, pois ela é constituída por elementos conectados entre si de
modo que qualquer modificação em um único elemento vai modificar os
circundantes.
Na formação do Patxohã e na revitalização dessa língua aconteceram
os três fatores: (1) pelo processo de integração com não-índios e com índios de
outras etnias ocorreu a assimilação da cultura desses grupos e junto aos
aspectos da cultura expressões da língua de cada sociedade; (2) depois de
décadas de perseguições e diásporas, os Pataxós tiveram condições de
reivindicarem a retomada de tudo o que lhes foi sido usurpado. E ao retornar ao
território tradicional, os Pataxós avaliaram a gravidade da perda da língua e
decidiram recuperá-la a partir
de documentação e registros realizados junto aos Maxakalis e aos Pataxós
Hã-hã-hãe e também por meio de pesquisa e documentação da língua falada pelos
anciãos pelo grupo de pesquisa Atxôhã[2]e
(3) Dentre as fontes disponíveis, os Pataxó decidiram de onde deveriam buscar
as informações para a recuperação da língua, por meio do fortalecimento dos
contatos com os Maxakalis de Minas Gerais. A língua Patxohã como sistema,
estará sempre em processo de transformação, influenciada pela pelos seus
falantes e sua cultura.
4.1 A Cartilha de Patxohã e o Bilinguismo
Outro material utilizado nas escolas pataxó é a Cartilha de
Patxohã elaborada pelos professores indígenas que fazem parte do grupo de
pesquisa Atxohã. O projeto Atxohã nasceu da necessidade de organizar, registrar
e documentar as pesquisas realizadas sobre a cultura e língua dos Pataxós. Ele
tem como metas integração e socialização entre as escolas e aldeias Pataxós e
afirmar e valorizar a cultura e língua Pataxó.
Esse material didático traz explicitamente que o objetivo é
estudar a língua Patxohã. Na cartilha há aspectos da gramática normativa da
língua, como as regras de acentuação, o estudo da Fonologia, especificamente o
registro dos fonemas (vogais, consoantes, nasalização e tonicidade da sílaba).
Quanto ao estudo do texto e da sintaxe há informações sobre as regras de
pontuação e registro das saudações em Patxohã.
Assim como a Cartilha alfabetizando nas escolas Pataxó,
esse suporte reproduz informações, como listas de palavras, agrupadas por
campos semânticos (meses do ano, frutas, plantas, animais), registro da escrita
dos numerais por extenso, o nome de membros do corpo humano. Todas essas
informações estão em Patxohã com a tradução em português.
A cartilha ensina o
Patxohã como se fosse uma língua estrangeira, uma vez que o português é falado
na aldeia e na escola como primeira língua, por isso a necessidade da decodificação
em português. Os enunciados que explicam as operações cognitivas a serem
realizadas a partir dos textos e palavras são registrados em português, pois o
Patxohã não tem uma sintaxe que dê conta de atender essas necessidades
comunicacionais.
Explica-se este fato devido à língua dos Pataxós sobreviver de
forma “diferente”, estruturada a partir da língua portuguesa. E a recuperação
do Patxohã aconteceu por meio do registro de vocabulários, principalmente de
substantivos e adjetivos. Assim, palavras que eram substantivos foram adaptadas
e assumiram a função sintática de verbos. Por exemplo, da palavra mãguti (subs.
mas. significa comida), originou mãgutá (verbo que significa comer).
A cartilha não contém textos informativos sobre a cultura dos
Pataxós. Todo ensinamento da língua Patxohã dar-se por meio do estudo da
gramática de palavras e frases.
A Gramática Normativa
da língua foi estruturada a partir da Descritiva, como o caso da flexão de
número (plural e singular). Para passar uma frase para o plural acrescenta-se a
letra p somente no final dos artigos e dos pronomes, exceto os pronomes da
terceira pessoa que não flexionam; os demais sintagmas nominais permanecem no
singular, inclusive os numerais. Conforme o exemplo (Cartilha de Patxohã, 2010,
p. 9):
(1) Iõ kitok tornõ arẽgá
(singular) - artigo – o (trad. o menino vai brincar).
(2) Iõp kitok torno arẽgá (plural) – artigo – os (trad. O menino
vai brincar).
A língua Patxohã assim como o Português Não-formal é enxuta, sem
redundância, uma vez que o artigo no plural, como no exemplo, informa que é
mais de um sujeito.
Os verbos são registrados em três tempos (Presente, Passado e
Futuro) e para cada tempo há uma única terminação para todas as pessoas. Um
mesmo paradigma para as flexões de todos os verbos, como exemplo o verbo hamiar
(dançar) no presente será acrescentado /xô/, hamiaxó; no passado será
acrescentado /ã/ no final do verbo, hamiaã e no futuro acrescenta-se o /i/ no
final, hamiai. A flexão será a mesma para todas as pessoas do verbo.
Quanto ao grau das palavras há a marca do aumentativo, por meio do
acréscimo do afixo /puá/ no final do vocábulo; e para o diminutivo o aditamento
do afixo /kwi/ no final da palavra. Conforme os exemplos retirados da Cartilha,
p. 11:
(1) mukuyãga (bumbum)
(2) mukuyãgapuá (bundão)
(3) mukuyãgakui (bundinha)
A Cartilha de Patxohã em sua essência é uma Gramática da
língua, ela não oferece fundamentos metodológicos para a alfabetização na
língua Patxohã. Os temas abordados são regras de flexão nominal e verbal da
língua.
Nesse sentido, há prejuízos porque não são abordados aspectos da
cultura indígena, sim, uma ênfase ao estudo da língua numa perspectiva
estruturalista. Uma contradição aos anseios dos povos indígenas ressurgidos que
é a aprendizagem da língua numa perspectiva sociointeracionista.
Quanto ao aspecto da prescrição ser oriunda da oralidade, do ponto
de vista linguístico é positivo, pois denota que a sociedade indígena Pataxó
vem atingindo um maior grau de autonomia política, resultado das mobilizações e
ações coletivas que teve como resultado o movimento de retribalização, o
funcionamento das escolas nas aldeias; o direito de elaborar seus materiais
didáticos, inclusive uma gramática da língua, com o objetivo de conter as
mudanças.
A língua é uma necessidade social, um vínculo que une os seus
falantes num mesmo universo, e somente ela possibilita a inclusão à vida
cultural. Nesse sentido, os professores rompem com um modelo de escola que fora
imposto a seu povo no passado e caminham rumo a construção de uma educação
escolar diferenciadas, mesmo que seja partindo de modelos de matrizes
curriculares e materiais didáticos de escolas não-indígenas.
Além das cartilhas citadas os professores pataxós utilizam alguns
livros de leituras que tratam da etnohistoria e da cultura. Os textos são em
grande parte de autoria dos professores pataxós, isto favorece aos alunos a
aquisição de um conhecimento mais próximo da sociedade e história de seu povo.
4.2 Os Livros de
História Sobre o Povo Pataxó e a Afirmação da Educação Diferenciada
O livro Uma historia de resistência pataxó, apresenta
através de uma linguagem simples a história dos pataxós, desde o século XIX,
fundamentado em documentos de viajantes da época. Descreve os conflitos com as
autoridades, por meio de depoimentos dos próprios Pataxós, principalmente a
diáspora pelo sul da Bahia, que fez com que grupos perdessem terras
tradicionais.
Figura
6 - Capa do Livro
“Uma História de Resistência” – produção local
A obra apresenta também a história de algumas aldeias, sua
população, situação jurídica e econômica. Esses textos foram construídos a
partir dos dados levantados nas pesquisas realizadas por professores pataxós,
no curso de Magistério Indígena e nos cursos oferecido pelo Programa de
Formação Continuada de Professores Indígenas.
Nesse livro podem ser exploradas diversas temáticas: a história do
povo pataxó, a história dos indígenas no Brasil, a mata Atlântica, geografia do
sul da Bahia, uma proposição interdisciplinar do estudo da língua e da cultura,
uma vez que língua, cultura e sociedade são temas indissociáveis.
Para Meliá (1979) uma
educação bilíngue mais contextualizada deveria está relacionada ao estudo dos
conteúdos culturais e sociais do povo indígena como a sua história, sua
organização, mitologia, geografia, com a mesma intensidade em todo
desenvolvimento do ensino bilíngue.
O livro Leituras Pataxó traz um panorama sintético da
resistência do povo pataxó, as lutas e conquistas, apresentando também como
vivem na atualidade, a relação com os não-índios, o trabalho com o artesanato,
a vida social na aldeia, a estrutura familiar, o trabalho coletivo, a produção
de alimentos, os instrumentos utilizados para caça, pesca e o trabalho na roça.
Fala dos rituais indígenas que ainda praticam e das cerimoniais católicos que
assimilaram e ressignificaram, apresenta também algumas músicas que são
cantadas no awê e o registro de alguns mitos.
Figura
7 – Capa do Livro do
Aluno “Leituras Pataxó” produção local do grupo de lideranças, pesquisadores e
professores
Fonte
da pesquisadora
O livro vem acompanhado do caderno de orientação metodológica, que
é um recurso auxiliar para o professor, traz diversas sugestões de como
estudar os textos apresentados na obra. Na apresentação da obra os professores
pontuam que o livro foi escrito com muita dedicação, e que o objetivo do
trabalho é construir um currículo diferenciado para as escolas das aldeias, com
informações construídas na coletividade.
Em relação ao estudo da língua indígena Meliá (1979) avalia a
importância do seu aprendizado está relacionado ao contexto em que ela é
vivenciada, juntamente com
o sistema de crenças que faz com que o vocabulário da língua seja aprendido com
toda sua potencialidade, e isso não tem como ser construído pelo estudo só da
palavra, mas pela consciência e mística do povo.
Figura
8 - Capa do Livro
“Pataxó do Prado” produção local do grupo de lideranças, pesquisadores e
professores
A obra Pataxó do Prado: Índios na visão dos índios, foi
elaborada a partir de depoimentos dos próprios índios, expõe a situação atual
dos pataxós que vivem no município de Prado, a história do surgimento de cada
aldeia, a luta pelo território, o descaso da sociedade e do órgão indigenista,
FUNAI, além das dificuldades sociais enfrentadas nas aldeias, principalmente a
precariedade da educação e da saúde.
Esse livro é importante porque ele traz a memória coletiva do povo
Pataxó narrada pelas lideranças e ancião das aldeias, sendo utilizado na escola
poderá contribuir na formação política dos educandos.
Uma das funções da escola é a democratização do saber, e este
saber deve ser construído a partir de diálogos, de leitura de materiais
didáticos ricos em informações, em que a questão da indianidade brasileira e
regional seja abordada de forma crítica; não a partir do olhar eurocêntrico, da
reprodução de ideias equivocadas. Sendo assim, os livros apresentados vêm preencher
lacunas deixadas pelos livros didáticos adotados pelas escolas em que a questão
indígena, suas lutas e conquistas ficam a margem do currículo. Acreditamos que
a leitura e os debates gerados
a partir dessas informações contribuirão para a construção de saberes mais
consistentes acerca dessa temática e para a formação política dos educandos.
Nossa análise é que
durante séculos a educação escolar para povos indígenas buscou a integração dos
índios à sociedade nacional. Corrigir a deficiência cultural e linguística
desses povos era a função delegada às escolas implantadas nas aldeias
espalhadas pelo território brasileiro. A instituição escolar foi uma das várias
ferramentas utilizadas na política de aculturação das populações indígenas. Os
costumes, crenças e principalmente a língua de muitos povos foram desprezados a
fim de que se cumprissem o projeto de assimilação dos saberes considerados como
legítimos pela sociedade nacional por parte dos diversos povos indígenas.
A língua que estava
quase desaparecida, voltou ao convívio entre os pataxós mesmo que parcialmente
através de sua inserção no currículo. Essa vitória configura a luta pelo ensino
bilíngüe que percorre um caminho até então moroso, mas com expectativas
grandiosas, pois como todo processo possui desafios e contradições, e através
destes é que se consegue alcançar a desejada educação escolar indígena, e nela
vivenciar o bilinguismo. Uma conquista que vem sendo alcançada na coletividade,
por meio de ações de vários educadores “[...] passamos a pensar uma maneira de
organizar linguagem falada e escrita no nosso dia-a-dia. Foi assim que foi
possível começar ensinar na escola, o que aprendemos” (ATXÔHÃ, 2010, p. 2).
Passos importantes já foram dados, como a produção de materiais didáticos
contextualizados à cultura e produzidos pelos professores pataxós.
Mesmo com a divulgação, ainda tímida da língua Patxohã nos
materiais mostra que os Pataxós estão confiantes na reestruturação de sua
língua. Eles acreditam no estabelecimento do bilinguismo em suas comunidades.
Se no passado muitos de seus integrantes deixaram de falar a língua indígena
para não serem ridicularizados, ou por não verem funcionalidade em seu uso,
atualmente o grupo apóia-se na vontade de ter mais um bem simbólico que os
sustentam na afirmação do ser Pataxó. O indivíduo permanece bilíngüe enquanto
percebe a funcionalidade das duas línguas. (Meliá, 1979, p. 66). É na função de
símbolo máximo da cultura que os pataxós pretendem sustentar o bilinguismo em
suas comunidades.
[1] Awê, palavra Patxohã
que significa o amor, a união e a
espiritualidade com a natureza. O Awê traz segurança da dança e do canto como
são instrumentos de comunhão entre o Povo Pataxó e a natureza
[2] O projeto
surgiu em 2009 com o objetivo de estruturar e organizar as pesquisas sobre a
língua e cultura pataxó realizadas desde 1998 por educadores pataxós
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