sábado, 13 de novembro de 2010

GESTÃO ESCOLAR, PRÁTICAS EDUCATIVAS, PPP - EIXO TEMÁTICO NO CONTEXTO PATAXÓ


Brincadeiras, jogos, mitos, lendas, cultura, cultura corporal, aprendizado, sobrevivência; a identidade é construída por intermédio da eleição de determinados signos: a organização social e política nos aldeamentos, o uso das indumentárias indígenas nas festividades religiosas e no cotidiano, a especialização do artesanato, em função das solicitações dos turistas, a ressignificação do Awê[1], que deixou de ser uma manifestação exclusivamente religiosa para tornar-se parte das ações políticas, e no campo linguístico a recuperação da língua do povo Pataxó – o Patxohã.
Para os educadores a possibilidade da afirmação de uma cultura diferenciada está na apropriação e aprendizado da esfera lúdica presente no cotidiano da aldeia, nas músicas cantadas no Awê, construídas com vocabulários da língua Patxohã, na agricultura, bem como na produção dos artesanatos, e adornos produzidos com sementes de plantas nativas da mata Atlântica.
Das experiências vivenciadas nas escolas, compreendemos que os educadores e educandos Pataxós da Jaqueira estão construindo uma escola diferenciada em dois espaços temporais: na esfera da aldeia as crianças costumam brincar diariamente desde o amanhecer até aproximadamente às doze horas, é o tempo de convivência com os familiares, nas danças período em que praticamente só falam em Patxohã, o período das brincadeiras tendem a ser mistas e realizadas nos descampados; e o tempo escola, no período vespertino nas salas de aula estudando os livros didáticos adotados pela Secretaria Estadual de Educação, junto com as cartilhas os livros produzidos pelos professores indígenas. A educação indígena se consolida quando os grupos se juntam em torno de um objetivo comum, a manutenção dos grupos no território tradicional, destinada à reserva nacional – Parque Nacional do Descobrimento.
Assim, a luta e a conquista material ou simbólica da educação indígena têm como ponto de partida a retomada de terras originalmente indígenas.
Nesse processo de recuperação do que foi perdido (território, língua, crenças religiosas), utilizam-se da escola indígena e do currículo para conhecerem e aprenderem sobre as manifestações lingüísticas e culturais de seus ancestrais.
A alfabetização em língua indígena foi a primeira preocupação dos educadores pataxós da Bahia após a conquista da escola na aldeia, com o objetivo de aproximar cada educando da cultura indígena Pataxó durante o processo de alfabetização foi elaborada a cartilha Alfabetizando nas escolas pataxó. A cartilha não traz explicitamente a informação que irá trabalhar as duas línguas, com o Patxohã e com o português. Ela informa que é um instrumento a ser utilizado na alfabetização nas escolas das aldeias indígenas. Entretanto, espera-se que ela seja bilíngue, uma vez que os dispositivos acerca da educação escolar indígena defendem que esta deve ser específica e diferenciada da escola não-indígena.
O material, por ser uma cartilha assinala que é um livro didático, que tem a função de instrumentalizar os docentes nas atividades de sala de aula e informar e acrescentar aos discentes conhecimentos e alfabetizá-los. A apreciação da cartilha apontou que esta tem a mesma formatação das cartilhas de alfabetização em português, em que há predominantemente o método sintético, partindo do conhecimento do alfabeto. Depois da apresentação do alfabeto, as combinações possíveis entre as vogais e as consoantes, em seguida trabalha-se as sílabas, retiradas de uma palavra geradora, a partir de um texto.
Na cartilha Alfabetizando nas Escolas Pataxó trabalha a alfabetização, a partir da unidade mínima da língua (letras, sons e sílabas) identificando estas em unidades mais complexas (palavras, frases e textos).
O material permite que os educandos reconheçam com precisão as palavras que lhes são apresentadas e se familiarizarem com a estrutura gráfica da língua portuguesa. Pois a cartilha é escrita em português, a língua apresentada para a alfabetização.
Figura 1 -  Capa Cartilha -  Produção regional das Reservas Pataxó Jaqueira e Nova Coroa
Fonte: da pesquisadora


Nesse material não há o estudo fonético das letras e nem o alfabeto fonético da língua Patxohã. Nesse sentido, a cartilha não contempla o bilinguismo, mas há uma valorização de alguns aspectos da cultura indígena. Os textos trazem informações ou fazem alusão ao universo indígena. No texto abaixo percebemos essa referencialidade.

Figura 2 – atividade da Cartilha - Produção regional das Reservas Pataxó Jaqueira e Nova Coroa
Fonte: da pesquisadora


A utilização do texto Gamela tem como intencionalidade trabalhar a família silábica da letra G. O enunciado do exercício nº 1 a ser realizado amplia a discussão, solicitando que o estudante circule no texto o nome do material que o índio usa para fazer a gamela. O texto não traz novidade, apenas registra de forma sucinta de que é feita a gamela e a sua utilidade, pois o objetivo maior é a decodificação da palavra Gamela e sua decomposição nas unidades linguísticas sílabas e letras. A alfabetização se dá em português, partindo de aspectos superficiais da cultura indígena.
A proposta educativa neste material está voltada para a alfabetização, com palavras geradoras que fazem parte do universo linguístico dos estudantes pataxós. Os subsídios presentes nos textos são elementares, com baixo nível de informatividade, entretanto não podemos negar que há um avanço, pois houve por parte dos educadores a preocupação em construir um material específico para a comunidade estudantil. Não podemos esquecer que os educadores foram alfabetizados em português em escolas não-indígenas, por isso a reprodução de parte do que vivenciaram em seus processos de alfabetização nessa cartilha.
A cartilha revela que o registro da língua está relacionado com o que os Pataxós vivenciaram no intenso processo de integração à sociedade nacional e a assimilação forçada da cultura do não-índio.
Quanto à significação avaliamos que os textos apresentados e as palavras eleitas estabelecem relações com o contexto dos atuais pataxós, apontando que “[...] a alfabetização, mesmo em português, tem por objetivo fortalecer a identidade e a educação indígena, conforme Meliá. (1979, p. 74).
Os textos são curtos, mas trazem elementos do universo cultural dos Pataxós. A escolha de palavras que são próximas da leitura de mundo dos discentes é positiva, pois é fundamental que cada sociedade recupere seus símbolos, colocando-os em evidência. A eleição de textos que falem sobre a comunidade reforça para os educandos indígenas que o seu povo também tem uma história e uma cultura, e que estas devem ser registradas e valorizadas.
O trabalho com a linguagem torna-se envolvente à medida que o educador aproxima os educandos de situações concretas vivenciadas em seu contexto. Entretanto, percebeu-se que na cartilha não há um estudo sistemático da língua do povo Pataxó, há maior investimento na apresentação de signos não-verbais relacionados à cultura indígena. Por exemplo, ao retratar o universo cultural Pataxó a cartilha apresenta símbolos como o cocar, o maracá, o awê e expressões grafo-plásticas como as pinturas corporais. Os ícones referentes a estes símbolos são apresentados em forma de desenhos, seguidos de pequenos textos informativos, estes também tem como objetivo a decodificação de palavras, a partir de sua decomposição em sílabas, com vistas à alfabetização.
Figura 3 - atividade da Cartilha - Produção regional das Reservas Pataxó Jaqueira e Nova Coroa
Fonte: da pesquisadora
Apesar de explicitar o desejo de trabalhar a alfabetização, a partir da leitura de mundo dos educandos, o material não apresenta um estudo consistente sobre o Paxtohã. O texto Cocar representa a interiorização de modelos de textos de demais cartilhas, por parte de quem o produziu. Não há o registro de palavras em Patxohã, a própria palavra cocar é de origem portuguesa, esta foi introduzida nos verbetes do Patxohã nas relações inter-étnicas, no período em que os Pataxós viveram com os Tupinikins.
Os Tupinikins foram os primeiros povos que tiveram contatos com os portugueses, portanto já falavam expressões em português e em Tupi nos aldeamentos compulsórios.
Quanto ao conhecimento de palavras em Patxohã a cartilha traz pouquíssimas informações. Nesse sentido, não podemos deixar de pontuar que é através da leitura de textos, frases, palavras, que se aprende novas vocábulos, diferentes daqueles usados cotidianamente.
Os conteúdos de alfabetização em Patxohã propostos nesse livro estão restritos a aprendizagem de saudações, pronúncia dos números, nome das cores, animais e frutas e no conhecimento de algumas palavras presentes nas músicas escritas em português.
Quanto à função social e política no estudo de uma língua Soares (1995) defende que esta deve ser relacionada à sua aplicabilidade e funcionalidade na construção dos atos comunicativos, que o estudo das línguas em condições bilíngues deve ser descritivo e não prescritivo. Advogamos sobre a importância de se contemplar na cartilha espaços para a produção espontânea de textos e que os estudantes fossem instigados a pesquisar e registrar palavras faladas em Patxohã pelos seus familiares.
Conforme pontua Sapir (1980) a língua é um fenômeno cultural, isto é, ela está relacionada à cultura e ao pensamento, portanto as manifestações linguísticas são formas de expressão do pensamento. Nesse sentido, falta na cartilha uma abordagem da língua como uma instituição social, cultural e histórica.
Na cartilha há o registro de vocábulos que fazem referência a realidade das aldeias como lista de palmeiras, árvores, plantas medicinais, animais, frutas, nomes das aldeias e de nomes próprios. O vocabulário apresentado é oriundo, em sua maioria da língua de contato, do falar Tupinikim com o Português, mas não do Patxohã. No entanto, não há informações da origem ou do processo de formação dessas palavras. E o vocabulário é apresentado aos estudantes como da língua Patxohã. Esse fato evidencia a ausência de informação cientifica acerca do processo de construção e mudança da língua por parte dos educadores.
Segundo o Parecer nº 14/99 do Conselho Nacional de Educação a formação do professor indígena deve contemplar os seguintes aspectos: a capacitação do professor para elaborar currículos e programas de ensino específicos para suas escolas; capacitação para produção de material didático e científico; formação para o ensino bilíngüe assim como a metodologia de ensino de segunda língua; conhecimento dos processos históricos de perda da língua quando necessário e capacitação linguística para desenvolver um sistema ortográfico da língua indígena. (BRASIL, MEC, 2002, p. 51).
Quanto ao atendimento ao decreto, avaliamos que os educadores que elaboraram o material não tinham um conhecimento científico acerca da Linguística, da importância de estudar o léxico da língua numa perspectiva diacrônica e sincrônica. No estudo de uma língua que ainda não foi assimilada pelos falantes deve ser contemplada a Morfologia, a Fonética e a Sintaxe, pois o estudo dos vocábulos, orações e fonemas demandam a compreensão do significante e do significado numa dimensão histórica, social e cultural. Marques pontua que,

o desenvolvimento da capacidade de usar a língua na escola deveria ser uma continuação do processo fundador de domínio da linguagem como processo de desenvolvimento e amadurecimento cognitivos, que é o fator que propicia crescente domínio dos processos mentais de apreensão do mundo real e de sua representação simbólica por meio da linguagem. (MARQUES In AZEREDO, 2001, p. 230).

Em toda cartilha só há quatro atividades que são escritas em Patxohã, na página 9 a lista de nomes indígenas (Jacarandá, Ajurú, Nayara, Adxuara, Mucujê, Iária, Mayara, Nayá, Kaiub, Rudá, Puxuri, Matalawê, Joôpek, Uruba, Assary, Jussara, Parú, Arawana, Inajé, Juerana, Massaranduba, Nawã, Tuxawá, Patiburi, Kati koko, Maynã, Kamassari, Tapurumã, Mark, Hayô, Aruã, Karkajú, Awoi e na página 74 a lista das palmeiras (airi, buri, buriti, coqueiro, dendê, Jussara, naiá, oricana, aricuri ou licuri, pati, patioba, paiçava, tucum-açu, tucum-mirim, xandó ou caxandó). Na primeira lista temos nomes de pessoas, plantas, divindades, a segunda lista trata-se só de nomes de palmeiras, são quinze nomes, um para cada tipo dentro de uma mesma classe <palmeira>. Essa variedade de nomes confirma a intimidade do indígena com a natureza. Para nós as duas palavras coqueiro e palmeiras são suficientes para determinar essa classe de plantas, enquanto que para os Pataxó cada nome identifica um tipo de palmeira que tem sua utilidade e importância. Por exemplo, para fazer o peixe assado só utilizam a patioba enquanto que da pati utilizam fibras da folha para fazer linhas para pescar e para o artesanato.
Todo e qualquer grupo humano usa a linguagem para transmitir suas experiências e seus conhecimentos. E é por meio dos signos eleitos é que se pode conhecer às experiências e os desafios vivenciados por ele. Nesse sentido, a Cartilha Alfabetizando nas Escolas Pataxó é utilizada pelos educadores para a socialização de saberes e de símbolos que afiançam a identidade cultural.
A cartilha traz na página 59 a atividade “ache o significado das palavras no caça-palavras”: Miãga - Xukakay - Mukusuy –Hayõ Kuyuna. A escrita das palavras na língua indígena é como se pronuncia, é uma escrita próxima da transcrição fonética. Em 1982 a professora Eni Pocinelli Orlandi elaborou uma proposta de grafia econômica, parecido com a transcrição fonética do português. (in Silva, 1984, p. 4). E tem sido esses os critérios empregados na grafia da língua.
As palavras do Patxohã registrada na atividade foram pouco exploradas, se resumiu na localização das mesmas no caça-palavras. Apesar disso, há uma riqueza de informações nesta proposta, primeiro seria mostrar a possibilidade de escrita. Por exemplo, o /h/ para representar os sons /r/ na posição inicial/ ou /rr/ no meio da palavra, o uso do som /tʃ/ que é escrito tx. Sendo assim, a escrita é fonética, o registro é como se pronuncia as palavras. Como nos exemplos abaixo:
(1) Miãga (água) o som nasal é representado e registrado pelo sinal /~/
(2) Xukakay (galinha), o som do i na posição de semi-vogal é escrito com o fonema /y/ a mesma ocorrência na palavra Mukuçuy ( peixe)
(3) Hayõ (sol), o som /r/ na posição inicial é escrito com o fonema /h/;
(4) Kuyuna (farinha), nesta palavra, o som da letra c é grafado pelo fonema /k/.
Meliá (1979) avalia como positivo esse fenômeno, da escrita fonética nos materiais em que se estuda a língua indígena e acrescenta que essa ação possibilitará que gradativamente a língua seja assimilada pelas crianças e as gerações futuras poderão de fato se expressar na língua de seus ancestrais.
Para o estudo da ortografia da língua indígena Meliá informa que “a escolha de símbolos obedece a algumas normas principais: que o símbolo deve ser o mais semelhante possível da grafia do português; e que seja um fonema para representa um único símbolo” (KINDEL-JONES, 1978 apud MELIÁ, 1979, p. 78).
O Patxohã é uma língua estruturada a partir de diferentes raízes, oriundas de línguas indígenas, africanas e do português falado pelos indígenas; conforme o texto Dawê Mayô ἷhé em que se percebe a presença de três matrizes linguísticas: Dawê – adeus em patxohã, despedir – que é dar adeus em português e Naô que significa caboclo (palavra de origem africana, presente nos rituais afro-brasileiros).
Figura 4 - atividade da Cartilha - Produção regional das Reservas Pataxó Jaqueira e Nova Coroa
Fonte: da pesquisadora

O refrão Dawê Mayô ἷhé/ dawê mayô ixê não tem como ser traduzido isolando os vocábulos, para ter acesso a ideia geral que ele transmite, deve ser lido como um todo, por isso o enunciado chama a atenção: “com a ajuda do professor, faça a tradução da música da língua Patxohã para a língua portuguesa. O adequado seria solicitar a interpretação e não a sua tradução.
Em linhas gerais o texto fala de um jovem que solicita a benção, pois vai partir, vai embora do seu lugar, precisa deixar o seu lugar. O lugar chamado Maxanawê que pode significar ao mesmo tempo o espaço físico – a aldeia – que é o lugar de festa e alegria e/ou despedir do seu lugar espiritual, de seus ancestrais, conforme o verso “despedir de meu Naô”.
As palavras que estruturam o texto não estão registradas no dicionário Patxohã, o que nos leva a inferir que a música foi estruturada, a partir do contato entre as etnias indígena, portuguesa e africana.
Essa atividade foi trazida com o objetivo de mostrar a riqueza de informações acerca das culturas presentes no processo de reconstrução e afirmação dessa língua. A análise aponta que o material não é bilíngue, mas é intercultural.
O texto meu cocar, assim como o anterior, tem uma linguagem poética, como a maioria das músicas que são cantadas na roda do Awê apresenta uma sintaxe semelhante da Língua Portuguesa, em que temos na construção da sentença o sintagma nominal seguido do sintagma verbal.
A palavra em Patxohã é tupisay que é um tipo de vestimenta, saia feita de fibra vegetal usada na dança do Awê, em cerimônias religiosas e ações políticas. O vocábulo tupisay faz parte do campo semântico de adornos indígenas, como colar e cocar, entretanto as palavras não são originarias de uma mesma língua.
Figura 5 - atividade da Cartilha - Produção regional das Reservas Pataxó Jaqueira e Nova Coroa
Fonte: da pesquisadora
Cocar: palavra de origem portuguesa que significa penacho ou capacete de plumas. (Urakatã)
Colar: palavra de origem portuguesa que significa ornamento para o pescoço. (Massaká)
Tupissay: palavra Patxohã que em português significa saia
ADORNOS
No diagrama abaixo se tem o registro dos três tipos de adornos indígenas, sendo que colar e cocar não provem de nenhuma língua indígena. Entretanto, as elas foram agregadas pelos Pataxós outros significados, esses relacionados a  questão mítica. No livro Trioka Há-hã-o Pataxi: caminhando pela historia pataxó, Katão Pataxó (2004, p.56) registra: “o cocar, o colar e maraká são instrumentos sagrados para os pataxós. Eles não podem faltar em uma comunidade porque cada um tem a sua função […]. É como se o cocar fosse uma casa, o colar um escudo e o maracá o coração”. Pelo valor sagrado que adquiriram passam a ser considerados palavras da língua Patxohã; sendo que diacronicamente só a palavra tupisay é do tronco Macro-jê, do qual o Patxohã foi gerado.
 






Essa ocorrência nos remete o que Sapir (1980) explicitou quanto às mudanças nas línguas, essas ocorrem motivadas por três fatores: a associação entre cultura e língua, uma mudança na cultura acarreta alteração na língua; o outro impulso, é a mudança estilística que tem relação com a forma como o falante deseja expressar seu pensamento e emoções e a terceira é a mudança própria da língua, pois ela é constituída por elementos conectados entre si de modo que qualquer modificação em um único elemento vai modificar os circundantes.
Na formação do Patxohã e na revitalização dessa língua aconteceram os três fatores: (1) pelo processo de integração com não-índios e com índios de outras etnias ocorreu a assimilação da cultura desses grupos e junto aos aspectos da cultura expressões da língua de cada sociedade; (2) depois de décadas de perseguições e diásporas, os Pataxós tiveram condições de reivindicarem a retomada de tudo o que lhes foi sido usurpado. E ao retornar ao território tradicional, os Pataxós avaliaram a gravidade da perda da língua e decidiram recuperá-la a partir de documentação e registros realizados junto aos Maxakalis e aos Pataxós Hã-hã-hãe e também por meio de pesquisa e documentação da língua falada pelos anciãos pelo grupo de pesquisa Atxôhã[2]e (3) Dentre as fontes disponíveis, os Pataxó decidiram de onde deveriam buscar as informações para a recuperação da língua, por meio do fortalecimento dos contatos com os Maxakalis de Minas Gerais. A língua Patxohã como sistema, estará sempre em processo de transformação, influenciada pela pelos seus falantes e sua cultura.
  

4.1       A Cartilha de Patxohã e o Bilinguismo
Outro material utilizado nas escolas pataxó é a Cartilha de Patxohã elaborada pelos professores indígenas que fazem parte do grupo de pesquisa Atxohã. O projeto Atxohã nasceu da necessidade de organizar, registrar e documentar as pesquisas realizadas sobre a cultura e língua dos Pataxós. Ele tem como metas integração e socialização entre as escolas e aldeias Pataxós e afirmar e valorizar a cultura e língua Pataxó.
Esse material didático traz explicitamente que o objetivo é estudar a língua Patxohã. Na cartilha há aspectos da gramática normativa da língua, como as regras de acentuação, o estudo da Fonologia, especificamente o registro dos fonemas (vogais, consoantes, nasalização e tonicidade da sílaba). Quanto ao estudo do texto e da sintaxe há informações sobre as regras de pontuação e registro das saudações em Patxohã.
Assim como a Cartilha alfabetizando nas escolas Pataxó, esse suporte reproduz informações, como listas de palavras, agrupadas por campos semânticos (meses do ano, frutas, plantas, animais), registro da escrita dos numerais por extenso, o nome de membros do corpo humano. Todas essas informações estão em Patxohã com a tradução em português.
A cartilha ensina o Patxohã como se fosse uma língua estrangeira, uma vez que o português é falado na aldeia e na escola como primeira língua, por isso a necessidade da decodificação em português. Os enunciados que explicam as operações cognitivas a serem realizadas a partir dos textos e palavras são registrados em português, pois o Patxohã não tem uma sintaxe que dê conta de atender essas necessidades comunicacionais.
Explica-se este fato devido à língua dos Pataxós sobreviver de forma “diferente”, estruturada a partir da língua portuguesa. E a recuperação do Patxohã aconteceu por meio do registro de vocabulários, principalmente de substantivos e adjetivos. Assim, palavras que eram substantivos foram adaptadas e assumiram a função sintática de verbos. Por exemplo, da palavra mãguti (subs. mas. significa comida), originou mãgutá (verbo que significa comer).
A cartilha não contém textos informativos sobre a cultura dos Pataxós. Todo ensinamento da língua Patxohã dar-se por meio do estudo da gramática de palavras e frases.
A Gramática Normativa da língua foi estruturada a partir da Descritiva, como o caso da flexão de número (plural e singular). Para passar uma frase para o plural acrescenta-se a letra p somente no final dos artigos e dos pronomes, exceto os pronomes da terceira pessoa que não flexionam; os demais sintagmas nominais permanecem no singular, inclusive os numerais. Conforme o exemplo (Cartilha de Patxohã, 2010, p. 9):
(1) Iõ kitok tornõ arẽgá (singular) - artigo – o (trad. o menino vai brincar).
(2) Iõp kitok torno arẽgá (plural) – artigo – os (trad. O menino vai brincar).
A língua Patxohã assim como o Português Não-formal é enxuta, sem redundância, uma vez que o artigo no plural, como no exemplo, informa que é mais de um sujeito.
Os verbos são registrados em três tempos (Presente, Passado e Futuro) e para cada tempo há uma única terminação para todas as pessoas. Um mesmo paradigma para as flexões de todos os verbos, como exemplo o verbo hamiar (dançar) no presente será acrescentado /xô/, hamiaxó; no passado será acrescentado /ã/ no final do verbo, hamiaã e no futuro acrescenta-se o /i/ no final, hamiai. A flexão será a mesma para todas as pessoas do verbo.
Quanto ao grau das palavras há a marca do aumentativo, por meio do acréscimo do afixo /puá/ no final do vocábulo; e para o diminutivo o aditamento do afixo /kwi/ no final da palavra. Conforme os exemplos retirados da Cartilha, p. 11:
(1) mukuyãga (bumbum)
(2) mukuyãgapuá (bundão)
(3) mukuyãgakui (bundinha)
A Cartilha de Patxohã em sua essência é uma Gramática da língua, ela não oferece fundamentos metodológicos para a alfabetização na língua Patxohã. Os temas abordados são regras de flexão nominal e verbal da língua.
Nesse sentido, há prejuízos porque não são abordados aspectos da cultura indígena, sim, uma ênfase ao estudo da língua numa perspectiva estruturalista. Uma contradição aos anseios dos povos indígenas ressurgidos que é a aprendizagem da língua numa perspectiva sociointeracionista.
Quanto ao aspecto da prescrição ser oriunda da oralidade, do ponto de vista linguístico é positivo, pois denota que a sociedade indígena Pataxó vem atingindo um maior grau de autonomia política, resultado das mobilizações e ações coletivas que teve como resultado o movimento de retribalização, o funcionamento das escolas nas aldeias; o direito de elaborar seus materiais didáticos, inclusive uma gramática da língua, com o objetivo de conter as mudanças.
A língua é uma necessidade social, um vínculo que une os seus falantes num mesmo universo, e somente ela possibilita a inclusão à vida cultural. Nesse sentido, os professores rompem com um modelo de escola que fora imposto a seu povo no passado e caminham rumo a construção de uma educação escolar diferenciadas, mesmo que seja partindo de modelos de matrizes curriculares e materiais didáticos de escolas não-indígenas.
Além das cartilhas citadas os professores pataxós utilizam alguns livros de leituras que tratam da etnohistoria e da cultura. Os textos são em grande parte de autoria dos professores pataxós, isto favorece aos alunos a aquisição de um conhecimento mais próximo da sociedade e história de seu povo.

4.2       Os Livros de História Sobre o Povo Pataxó e a Afirmação da Educação Diferenciada
O livro Uma historia de resistência pataxó, apresenta através de uma linguagem simples a história dos pataxós, desde o século XIX, fundamentado em documentos de viajantes da época. Descreve os conflitos com as autoridades, por meio de depoimentos dos próprios Pataxós, principalmente a diáspora pelo sul da Bahia, que fez com que grupos perdessem terras tradicionais.

Figura 6 - Capa do Livro “Uma História de Resistência” – produção local
A obra apresenta também a história de algumas aldeias, sua população, situação jurídica e econômica. Esses textos foram construídos a partir dos dados levantados nas pesquisas realizadas por professores pataxós, no curso de Magistério Indígena e nos cursos oferecido pelo Programa de Formação Continuada de Professores Indígenas.
Nesse livro podem ser exploradas diversas temáticas: a história do povo pataxó, a história dos indígenas no Brasil, a mata Atlântica, geografia do sul da Bahia, uma proposição interdisciplinar do estudo da língua e da cultura, uma vez que língua, cultura e sociedade são temas indissociáveis.
Para Meliá (1979) uma educação bilíngue mais contextualizada deveria está relacionada ao estudo dos conteúdos culturais e sociais do povo indígena como a sua história, sua organização, mitologia, geografia, com a mesma intensidade em todo desenvolvimento do ensino bilíngue.
O livro Leituras Pataxó traz um panorama sintético da resistência do povo pataxó, as lutas e conquistas, apresentando também como vivem na atualidade, a relação com os não-índios, o trabalho com o artesanato, a vida social na aldeia, a estrutura familiar, o trabalho coletivo, a produção de alimentos, os instrumentos utilizados para caça, pesca e o trabalho na roça. Fala dos rituais indígenas que ainda praticam e das cerimoniais católicos que assimilaram e ressignificaram, apresenta também algumas músicas que são cantadas no awê e o registro de alguns mitos.



Figura 7 – Capa do Livro do Aluno “Leituras Pataxó” produção local do grupo de lideranças, pesquisadores e professores
Fonte da pesquisadora

O livro vem acompanhado do caderno de orientação metodológica, que é um recurso auxiliar para o professor, traz diversas sugestões de como estudar os textos apresentados na obra. Na apresentação da obra os professores pontuam que o livro foi escrito com muita dedicação, e que o objetivo do trabalho é construir um currículo diferenciado para as escolas das aldeias, com informações construídas na coletividade.
Em relação ao estudo da língua indígena Meliá (1979) avalia a importância do seu aprendizado está relacionado ao contexto em que ela é vivenciada, juntamente com o sistema de crenças que faz com que o vocabulário da língua seja aprendido com toda sua potencialidade, e isso não tem como ser construído pelo estudo só da palavra, mas pela consciência e mística do povo.




Figura 8 - Capa do Livro “Pataxó do Prado” produção local do grupo de lideranças, pesquisadores e professores
A obra Pataxó do Prado: Índios na visão dos índios, foi elaborada a partir de depoimentos dos próprios índios, expõe a situação atual dos pataxós que vivem no município de Prado, a história do surgimento de cada aldeia, a luta pelo território, o descaso da sociedade e do órgão indigenista, FUNAI, além das dificuldades sociais enfrentadas nas aldeias, principalmente a precariedade da educação e da saúde.
Esse livro é importante porque ele traz a memória coletiva do povo Pataxó narrada pelas lideranças e ancião das aldeias, sendo utilizado na escola poderá contribuir na formação política dos educandos.
Uma das funções da escola é a democratização do saber, e este saber deve ser construído a partir de diálogos, de leitura de materiais didáticos ricos em informações, em que a questão da indianidade brasileira e regional seja abordada de forma crítica; não a partir do olhar eurocêntrico, da reprodução de ideias equivocadas. Sendo assim, os livros apresentados vêm preencher lacunas deixadas pelos livros didáticos adotados pelas escolas em que a questão indígena, suas lutas e conquistas ficam a margem do currículo. Acreditamos que a leitura e os debates gerados a partir dessas informações contribuirão para a construção de saberes mais consistentes acerca dessa temática e para a formação política dos educandos.
Nossa análise é que durante séculos a educação escolar para povos indígenas buscou a integração dos índios à sociedade nacional. Corrigir a deficiência cultural e linguística desses povos era a função delegada às escolas implantadas nas aldeias espalhadas pelo território brasileiro. A instituição escolar foi uma das várias ferramentas utilizadas na política de aculturação das populações indígenas. Os costumes, crenças e principalmente a língua de muitos povos foram desprezados a fim de que se cumprissem o projeto de assimilação dos saberes considerados como legítimos pela sociedade nacional por parte dos diversos povos indígenas.
A língua que estava quase desaparecida, voltou ao convívio entre os pataxós mesmo que parcialmente através de sua inserção no currículo. Essa vitória configura a luta pelo ensino bilíngüe que percorre um caminho até então moroso, mas com expectativas grandiosas, pois como todo processo possui desafios e contradições, e através destes é que se consegue alcançar a desejada educação escolar indígena, e nela vivenciar o bilinguismo. Uma conquista que vem sendo alcançada na coletividade, por meio de ações de vários educadores “[...] passamos a pensar uma maneira de organizar linguagem falada e escrita no nosso dia-a-dia. Foi assim que foi possível começar ensinar na escola, o que aprendemos” (ATXÔHÃ, 2010, p. 2). Passos importantes já foram dados, como a produção de materiais didáticos contextualizados à cultura e produzidos pelos professores pataxós.
Mesmo com a divulgação, ainda tímida da língua Patxohã nos materiais mostra que os Pataxós estão confiantes na reestruturação de sua língua. Eles acreditam no estabelecimento do bilinguismo em suas comunidades. Se no passado muitos de seus integrantes deixaram de falar a língua indígena para não serem ridicularizados, ou por não verem funcionalidade em seu uso, atualmente o grupo apóia-se na vontade de ter mais um bem simbólico que os sustentam na afirmação do ser Pataxó. O indivíduo permanece bilíngüe enquanto percebe a funcionalidade das duas línguas. (Meliá, 1979, p. 66). É na função de símbolo máximo da cultura que os pataxós pretendem sustentar o bilinguismo em suas comunidades.



[1] Awê, palavra Patxohã que significa o amor, a união e a espiritualidade com a natureza. O Awê traz segurança da dança e do canto como são instrumentos de comunhão entre o Povo Pataxó e a natureza
[2]  O projeto surgiu em 2009 com o objetivo de estruturar e organizar as pesquisas sobre a língua e cultura pataxó realizadas desde 1998 por educadores pataxós

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