“1984” é um daqueles livros que transformam o leitor após a
última página. Perturbadoramente indispensável. Não dá para passar ileso das
palavras de George Orwell. A sociedade fictícia criada por ele causa repulsa,
horror e medo. Os sentimentos são oprimidos em detrimento de uma fidelidade
cega ao Estado, representado pela figura do Grande Irmão.
Quando
publicado em 1949, a história parecia um prelúdio do porvir. Num contexto
pós-Segunda Guerra Mundial, as atenções do mundo estavam divididas entre as
duas grandes potências da época: URSS e EUA. A Guerra Fria engatinhava. O clima
de incerteza pairava. A dualidade comunismo versus capitalismo era o tema da
vez.
Mas o ano de 1984 chegou, passou e alguns questionam a
relevância do livro de Orwell nos dias de hoje. Se a intenção do autor fosse
fazer somente uma previsão um tanto apocalíptica do futuro, poderíamos afirmar
que ele não fora bem-sucedido. Levando ao pé da letra, essa sociedade
totalitária nos moldes da imaginada por Orwell não existe. Inegável que alguns
países vivem em ditadura talvez até tão ruim quanto a descrita no livro, mas
não são maioria.
Entretanto, dificilmente o autor de um livro tão relevante e
denso como “1984” teria se atido somente ao ano que dá titulo a sua obra. É
preciso enxergar além de possíveis previsões. O livro é muito mais do que isso.
É um grito em prol da rebeldia. Dessa insatisfação pessoal e, muitas vezes,
social que nos acomete e que faz a sociedade clamar por mudanças.
“Guerra é Paz; Liberdade é Escravidão; Ignorância é Força”
O protagonista de “1984” é Winston, funcionário do
Departamento de Documentação do Ministério da Verdade, um dos quatro
ministérios que governam a fictícia Oceânia, que junto com a Lestásia e
Eurásia, formam as três nações que dominam o mundo. Sua função é falsificar
registros históricos, a fim de moldar o passado à luz dos interesses do
presente tirânico. A Oceânia reúne a ex-Inglaterra, as ex-Américas,
ex-Austrália e Nova Zelândia e parte da África.
Além do Ministério da Verdade, existem ainda o Ministério do
Amor, que reprime o desejo, além de torturar os rebeldes; o Ministério da
Fartura, que administra a distribuição de alimentos e bens de consumo; e o
Ministério da Paz, que conduz os assuntos da guerra.
Na Oceânia, a sociedade é comandada pelo Partido. Sem
legislação própria, a lei vigente é a obediência indiscutível ao Grande Irmão.
Qualquer suspeita de desobediência é tratada com rigor e crueldade.
Como forma de fazer uma verdadeira lavagem cerebral nas
pessoas e disseminar o medo, cartazes com fotos do Grande Irmão são espalhados
pelas ruas com o slogan: “O Grande Irmão está de olho em você”. E ele realmente
estava. Espalhadas em locais públicos e nas residências, existem um tipo de
televisão capaz de monitorar, gravar e espionar a população chamada “teletela”.
Nelas, programações em ode ao Partido eram passadas diária e ininterruptamente.
Fica proibido desligar as “teletelas” que, de tão sensíveis, são capazes de
detectar o menor dos sussurros.
Exausto de viver em uma sociedade em que o passado era
modificado de acordo com os interesses do Partido e em que crianças eram
treinadas para denunciar os próprios pais, Winston compra clandestinamente um
diário e passa então a fazer desabafos. Logicamente, que escondido em um dos
poucos lugares de sua casa onde a “teletela” não o poderia espionar. À medida
que transforma os pensamentos em escrita, ele questiona os absurdos cometidos
pelo Partido. O sentimento de insatisfação cresce.
Nesse meio tempo, Winston conhece Júlia, funcionária do
Departamento de Ficção. Os dois se apaixonam e passam a se encontrar
clandestinamente. A princípio, sempre em lugares diferentes. Até que passam a
alugar um quarto. Um refúgio em ruinas que, para eles, era o paraíso.
Relações amorosas, para o partido, eram vistas como um crime
grave. Qualquer sinal de afeto era visto com desconfiança. Até as relações
entre pessoas da mesma família eram monitoradas. Mas o casal decidira se
arriscar, mesmo sabendo que, provavelmente, um dia seria pego. E a partir do
momento que Winston passa a viver esse sentimento transgressor, ele começa a
acreditar que uma rebelião é possível. O sentimento de insatisfação transborda.
Era preciso agir.
“Ver aquilo que temos diante do nariz requer uma luta
constante”
Apesar de tratar de um tema bastante complexo, a linguagem
utilizada por Orwell é clara e acessível. As frases são, na maioria das vezes,
escritas na ordem direta. As metáforas são interpretadas sem grandes
dificuldades. No entanto, de simples o livro não tem nada. Os diálogos são
riquíssimos e as reflexões feitas pelo protagonista, um soco no estômago.
Sem dúvida um livro envolvente que te prende da primeira à
última frase. Impossível não se indignar com o Partido e não torcer por Winston
e Júlia. Em alguns momentos, dá vontade de entrar na história e reunir os
“proletas” (mais de 80% da população que é dominada pelo Partido e que vive na
miséria). Em outro trecho, mais para o final, o sentimento de revolta cresce e
já não é possível vislumbrar um desfecho feliz.
Uma desesperança surge no peito. Angústia, talvez. E a
certeza que precisamos nos indignar sim. Contra as injustiças, desmandos,
mentiras, descaso, desamor. Acostumarmo-nos com a situação vigente? Jamais. Que
viva a rebeldia!
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