Idealizada por Nitxnawã, uma das três líderes da reserva indígena, e apoiada por suas duas irmãs, Naiara e Jandaia, essa érea transformou-se num lugar onde membros da comunidade Pataxó convivem em harmonia direta com a natureza, cultivando os hábitos e costumes de sua etnia Pataxó.
O lugar serve ainda de ponto de atividades de etnoturismo, educação ambiental e cultural das tradições Pataxó. O desenvolvimento sustentável de sua comunidade é o foco principal da existência da reserva, seguido do reflorestamento e proteção ambiental da Mata Atlântica, valorização cultural e ensino da língua nativa, o patxohã.
A biodiversidade da Jaqueira é muito rica e está totalmente preservada e protegida da destruição do homem. Na reserva foram construídas quijemes, em formato original, onde residem os índios que cuidam da reserva.Durante o dia outros índios de Coroa Vermelha se juntam aos da reserva para recepcionar os turistas e fazer suas apresentações dentro do programa de ecoturismo – Proecotur, uma proposta de desenvolvimento do turismo sustentável.
É o primeiro projeto implantado em aldeia indígena com preservação ambiental, afirmação cultural; eco e etnoturismo.
Oportunidade para os visitantes é a experimentação da cultura, do idioma, do modo de vida e até da culinária típica, como o peixe assado na folha da patioba ou pati. Do tronco da patioba, uma palmeira delgada, os índios retiram as cordas para atar suas redes, alguns dos instrumentos usados no cotidiano pataxó desde a caça, os hábitos, o cozimento de alimentos da cultura indígena Pataxó também podem ser vistos na reserva.
A história dos Pataxó pelos Pataxó (entrevista):
Antigamente vivíamos em grupos pequenos circulando entre um território que variava do Espirito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia. Acabamos confinados pelo governo em um pequeno território, na aldeia de Barra Velha, que incide no atual Parque Nacional de Monte Pascoal. Os antropólogos e historiadores dizem que esse aldeamento jesuítico foi em 1860. A Aldeia Mãe, como ficou conhecida entre nós, era onde moravam todos os Pataxó. Segundo os historiadores fomos aldeados para ficarmos fixos e não atrapalhar o processo de instalação das plantações e da pecuária.
Desde então, a gente sempre esteve naquele território. Em 1943 o governo percebeu que tinha uma grande área verde no extremo sul da Bahia e quando investigou viu que tinham índios morando nessa área, os Pataxó. Nesse ano resolveram transformar o território Pataxó em território florestal. A ideia era demarcar para que não destruíssem a mata. Mas se a única área verde da região foi preservada justamente por que os Pataxós estavam lá?
O Governo pediu a ajuda de todos Pataxós para demarcar. E eles se perguntavam: “Para que demarcar o que é nosso?”. A resposta foi que quem não ajudasse não desfrutaria do território, diante da ameaça todos ajudaram. Depois de delimitar o território e de demarcá-lo, o governo avisou que a partir daquela data ninguém mais podia caçar, pescar ou fazer roça na área demarcada. Nesse momento o povo ficou sem saber para onde ir ou o que fazer.
O governo tirou nosso povo de Barra Velha e delimitou para os Pataxó uma área perto da praia, em cima de um brejo. Os mais velhos falavam: “Vamos morar no brejo? Mas nós não somos sapos para morar dentro da água!”. Ficou todo mundo ali, apertadinho nesse espaço. Foi aí que começou a briga. Todos pensando o que fariam. Sem a roça, a única alternativa era o mangue, que já era uma fonte de alimentação dos Pataxó, mas concentrou só nele. Como não tinham o que plantar, não tinham como produzir a farinha, que é a comida principal dos Pataxó. Tendo a farinha e o peixe, o Pataxó tem tudo.
O que eles faziam para se manter? À noite, iam escondido para pegar piaçaba (palha para fazer teto), porque de dia sempre tinham muitos guardas que não deixavam, e trocavam por farinha na cidade. Nesse período o pessoal passava muito fome. Foi quando alguém de Caraíva disse para eles: “Vocês têm direito! Tem alguém que ampar vocês”. Essa pessoa indicou para que procurassem o Serviço de Proteção ao Índio (SPI – órgão indigenistas do governo brasileiro da época). Isso foi em 1949, imagine quanto tempo de penúria viveram desde 1943. Esse senhor que deu a dica, também lhes deu um jegue para que trocassem por uma passagem até o Rio de Janeiro. O que os mais velhos contam é que chegaram a ir até o SPI no Rio de Janeiro e que lá lhes disseram que enviariam alguém para resolver o problema deles.
Um tempo depois que eles retornaram duas pessoas chegaram à aldeia. Para os Pataxó eram as pessoas enviadas pelo SPI. Um deles dizia que era engenheiro e o outro que era Tenente, disseram que resolveriam o problema deles e que fariam a demarcação de suas terras, mas que precisavam da participação de todos. Os mais velhos dizem que esses homens chegaram com todo um discurso que deixou a todos felizes de eles terem vindo.
Acontece que o território que seria demarcado era muito grande, então os Pataxó disseram que precisavam de alimentação para fazer a trilha e acampar. Chegando na venda mais próxima esses dois homens declararam assalto e obrigaram os Pataxó a pegar tudo o que tinha lá. E pediram a um índio, o seu Tururim, que ainda hoje está vivo, para levar o dono da venda, o seu Teodomiro, até a aldeia. Como o dono da venda era amigo dos índios, o Tururim soltou ele no caminho. E provavelmente foi seu Teodomiro quem denunciou o assalto para a polícia. A confusão estava armada.
Em Porto Seguro e Prado, cidades próximas, se espalhou a notícia de que os índios tinham roubado. Para desfazer o mal entendido os índios colocaram todas as mercadorias dentro da igreja e falaram: “Dessas coisas a gente não quer nada”. Entretanto, os dois homens disseram que todos estavam sobre suas ordens. “Nós vamos dividir isso”, ordenaram. Eles pediram que os Pataxó fossem se preparando com arco, flecha. Com certeza eles já sabiam que ia dar problema.
E deu. Um conflito tão grande que ficou conhecido pelos mais velhos como “O fogo de 1951″. A aldeia fica entre uma montanha e a praia. Na madrugada vieram grupos de policiais de duas cidades, um pela praia e outro por cima do morro, mas eles não sabiam da existência um do outro. Então os policiais de cima atiravam e os de baixo respondiam com tiro, e cada um deles pensava que eram os índios os que atiravam. Os tiros não pegavam nos índios pela posição que estavam e alguns conseguiram fugir para a mata. À medida que os policias foram se aproximando se deram conta de que estavam trocando tiros entre eles e então começaram as ofensivas conjuntas contra a comunidade. Ataram fogo em todas as casas, destruíram tudo. Todo mundo que eles encontravam, geralmente os mais velhos e as crianças, eles amarravam e levavam para a vila. Os mais velhos contam que eram amarrados como caranguejo. Violavam as mulheres, minha tia foi violada, muitas mulheres foram violadas, mulheres novas. Destruíram as roças, saquearam a aldeia. Fizeram muitas torturas com homens e mulheres: montavam neles como se fossem cavalos. Quem eles pegavam, levavam para serem presos na delegacia de Prado. A ordem do governo era para pegar todos os índios. Onde eles achassem índios, na cidade, no mato, onde quer que fosse, eles prendiam.
As lágrimas caem do rosto da jovem. Pausa a narrativa para recuperar o fôlego. É muito trágico. Eu fico imaginando, se eu que não vivi tudo isso fico assim, imagine quem viveu. E prossegue.. Os índios que conseguiram fugir pra o mato passaram vários dias de fome na floresta, que é muito densa, só tem frutos. Durante uma semana os policias ficaram de tocaia nas fazendas para pegar os índios que fossem aparecendo para pedir alimento. Foi isso que aconteceu. Apareceram dois índios com aqueles dois homens e na hora que os policiais os pegaram, mataram os quatro, parece que um índio fugiu, não se sabe direito.
Depois disso a ordem do governo foi que soltassem os índios porque descobriram que o assalto foi uma armação. Não sei como descobriram que foi uma armação se os dois homens morreram. Alguém contou? Muitos antropólogos e historiadores que analisam os relatos e os documentos, considerando que o governo queria fazer o parque florestal, dizem que esse conflito foi uma estratégia para exterminar os Pataxó que eram um empecilho.
Depois que soltaram os Pataxó, nosso povo ficou disperso. A ordem era que os fazendeiros acolhessem os índios. E, de fato, como os índios não tinham mais nada e tinham medo de voltar para aquele pedacinho de terra, muitos começaram a trabalhar nas fazendas em condições quase de escravos, só para poder comer. Viveram essa agonia por quase 7 anos. Nesse período a maioria das famílias foram tomando coragem de voltar para as antigas terras no Parque Nacional Monte Pascoal. Voltaram casados com negros, brancos, houve grande mestiçagem nesse período. O que o Pataxó é hoje é resultado dessa diáspora, desse conflito.
Por fim, a Terra Indígena de Barra Velha foi demarcada em 1991, uma área de 8.627 hectares, não muito grande. Mas ainda continuava como parque florestal. Em 2000 os Pataxó fizeram uma retomada e brigaram para que o parque fosse gerido pelos Pataxó, ainda que continuasse como parque florestal. Nesse mesmo ano o governo decidiu reestruturar o local e tirar os não-índios. O território não é contínuo, é picotado por fazendas de gado, cacau, café, seringueira, frutas e eucaliptos, além de hotéis de luxo e cidades. Hoje existem cerca de 24 aldeias Pataxó nessa área. As famílias moram espalhadas, à medida que vão crescendo formam novas aldeias. O território Pataxó é dividido em 4 municípios: Prado, Porto Seguro, Santa Cruz Cabrália e Itamaraju.
Como o aldeamento era jesuítico, quando fomos confinados em Barra Velha, fomos proibidos de falar nossa língua, praticar nossa religião, não podíamos fazer nada relacionado à nossa tradição. Hoje, estamos em um processo que a gente chama de retomada da língua, que começou em 1983. Em 1997, um grupo de pesquisadores Pataxó se reuniu e começou a fazer um registro com os mais velhos, a elaborar um dicionário, uma gramática dos Pataxó, a partir também dos registros de viajantes que estiveram em nossas terras. Esse dicionário já está com mais de 5 mil palavras. Como sempre fica aquele embate se essa realmente era nossa língua, denominamos a língua agora de Patxohã (língua de guerreiro). Hoje todas as escolas indígenas da região têm essa língua como disciplina. Muitas coisas avançaram, mas muito ainda há para ser feito.
Arissana Braz Bonfim de Souza, Pataxó de 36 anos, Graduada em Artes Plásticas e mestranda em Estudos Étnicos na Universidade Federal da Bahia (UFBA), atualmente vive na cidade de salvador. Estuda por “puro gosto”, como faz questão de ressaltar. Entretanto, deixa claro que também vê no estudo um instrumento na luta de seu povo; contou aqui parte da luta de seu povo por esse território. Não aquela que aprendemos nas escolas, nas universidades ou nos livros. Mas a que lhe transmitiu seu avós e que segue marcada no povo mais velho de sua comunidade. Seu depoimento não traz impressa a precisão dos historiadores, mas os elementos da memória coletiva de um povo que luta por seu reconhecimento.
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