terça-feira, 22 de maio de 2001

O FIM DO MUNDO ANTIGO

uma discussão historiográfica

Com este artigo, pretendemos refletir sobre a maneira pela qual as transformações observadas no conhecimento histórico a partir do século XVIII proporcionaram múltiplas interpretações sobre a “queda” do Império Romano. Nesse sentido, analisamos como a mudança na concepção de tempo, a crítica às noções de progresso e decadência e a superação do paradigma positivista permitiram que a transição da Antigüidade para a Idade Média adquirisse um novo significado dentro da historiografia.
Palavras-chave: Mundo Antigo - Desagregação - Historiografia
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Introdução
O fim do Mundo Antigo sempre representou, ao longo da História, um apaixonante tema para todos aqueles que se sentiam atraídos pela “grandeza” e “decadência” de Roma, o que não nos deve suscitar uma excessiva admiração - a expressão “fim do Mundo Antigo” não possui, no espaço desse trabalho, nenhum conteúdo pejorativo, daí que a utilizaremos com freqüência, nas páginas subseqüentes, para definir o ápice de todo um amplo conjunto de transformações que vinham se processando no interior da sociedade romana desde o século III. Estas transformações redefiniram de tal forma o perfil da Civilização Clássica que se torna impossível negar que a Idade Média significou o advento de uma outra civilização, não obstante inúmeros elementos da cultura romana poderem ser detectados sem muito esforço ao longo de todo o período medieval.
De fato, após nada mais nada menos do que dez séculos de História, uma das mais importantes civilizações da Antigüidade encontrava sérios obstáculos à sua manutenção como uma estrutura integrada, sendo atingida por uma série de reveses políticos, econômicos e culturais internos, além de sofrer com problemas de ordem externa, como foi o caso das famosas invasões bárbaras, tidas por muitos como o principal fator responsável pela “queda” do Império Romano do Ocidente (embora os manuais de História Antiga costumem incluir os três séculos anteriores à instauração da República [509 a.C. aprox.] no período de vigência da Civilização Romana, para efeitos deste trabalho julgamos por bem considerar que a Civilização Romana propriamente dita somente se constitui a partir da segunda metade do século VI, momento no qual emergem formas de organização social que poderíamos identificar como sendo tipicamente romanas e não mais etruscas ou mesmo latinas). Por sua vez, a tendência a se atribuir aos “bárbaros” uma maior responsabilidade nos acontecimentos que irão culminar com a desagregação do Império Romano remonta até Comodiano e Ambrósio (séculos III e IV respectivamente). Dentre os historiadores contemporâneos que se afinam com essa concepção, merece referência André Piganiol, que certa vez afirmou: "a Civilização Romana não pereceu de morte natural. Foi assassinada" (1972: 466). Contudo, a maior parte dos autores se inclina por uma análise dos fatores internos da desagregação. Para um maior esclarecimento sobre o assunto, consultar Fernández Ubiña (1982).
Diante de um acontecimento tão insólito como este, os espíritos não poderiam permanecer serenos e passivos. Pelo contrário, tornava-se imprescindível descobrir os motivos pelos quais isto se deu, apontar os indícios de “enfraquecimento” do Império, estabelecer explicações. Aos contemporâneos interessava, particularmente, entender o complexo emaranhado de mudanças que vivenciavam no cotidiano e que na maior parte das vezes os deixavam perplexos, tal a rapidez com a qual se processavam (por exemplo, Agostinho [Sermonis 2 e 7] e Jerônimo [Epistulae 123, 126 e 128]), enquanto que para os seus sucessores o problema se encontrava circunscrito ao domínio da História propriamente dita, com todas as funções capitais que esta assumiu no panorama da cultura ocidental desde a Idade Média: transmissão da Palavra e do Exemplo, veículo da tradição, crítica do presente, decifração do destino da Humanidade, antecipação do futuro, promessa de um retorno (Foucault, s/d.: 477) e, mais recentemente, compreensão das estruturas atuais e planejamento das futuras (Cardoso, 1988: 120).
Sendo assim, desde o século III até os nossos dias, passando por autores como Flávio Biondo (Historiarum ab inclinatione romanorum decada tres, 1453), Montesquieu (Considérations sur les causes de la grandeur des romains et leur décadence, 1734) e Gibbon (History of the decline and fall of the Roman Empire, 1776-88), se produziram múltiplas interpretações sobre o fim do Mundo Antigo em consonância com os próprios pressupostos inerentes ao conhecimento histórico, razão pela qual pretendemos analisar, no decorrer desse trabalho, o modo pelo qual o tema da desagregação do Império Romano do Ocidente acompanhou as transformações historiográficas observadas a partir do século XIX.
Para tanto, partimos de duas premissas fundamentais. Em primeiro lugar, que todas as formações discursivas que emergem em uma dada época provêm de um solo que as possibilita e circunscreve tanto a sua estruturação interna quanto os seus limites. Em segundo lugar que, como definiu magistralmente Georges Lefèbvre (1981: 2), somente podemos propor novas explicações para os fenômenos históricos se conhecermos a historiografia, pois muito embora a escrita da História dependa da exploração de novas fontes ou da leitura de fontes já conhecidas sob uma ótica renovada, ela não depende menos do diálogo com todo um repertório de interpretações pré-existentes.
A História tradicional
O século XIX representou, sem sombra de dúvida, um momento de considerável avanço para a estruturação da História enquanto domínio de saber positivo, com a elaboração de técnicas específicas concernentes ao tratamento das fontes históricas (métodos de erudição crítica), publicação de gigantescas coletâneas de documentos, a exemplo do Corpus Inscriptionun Latinarum, de Mommsen, cujo primeiro tomo apareceu em 1863, e da Patrologia Latina e Grega, de Jean-Paul Migne, um pouco posterior, e o surgimento de grandes escolas históricas nacionais européias sob a égide de historiadores como Ranke, Guizot, Thierry, Michelet e outros, os quais gozavam de grande prestígio junto aos meios universitários da época (Cardoso, 1988: 33-4).
Contudo, não obstante todas essas inovações de caráter técnico-científico, o trabalho dos historiadores do século XIX se encontrava ainda limitado por algumas concepções produzidas em épocas anteriores que resistiriam por muito tempo antes de serem definitivamente superadas. Uma delas, talvez a mais evidente, sustentava que a dimensão por excelência do conhecimento histórico era a ação política (Lefèbvre, 1981: 16), só que não mais esta ação tomada na sua manifestação particular tal como a concebia a Filosofia Política do século XVIII, mas inserida agora numa visão processual que lhe conferia um sentido abrangente e a vinculava à História da Humanidade (Arendt, 1988: 93), advindo daí todo o interesse dos historiadores até meados do século XIX pelas vicissitudes dos Estados e Impérios e suas infindáveis querelas diplomáticas e conflagrações militares. A História Política, de fato, parecia não trazer muitas preocupações à maioria dos historiadores, envolvidos com seus estudos monográficos e exaustivos, adequando-se tanto ao espírito cientificista do positivismo, com o seu interesse pelo estabelecimento de fatos empíricos mediante um estudo acurado da documentação, quanto ao historicismo, dedicado a uma investigação cada vez mais minuciosa do pormenor e à explicação de acontecimentos individuais e irrepetíveis mediante um encadeamento hipotético de causas e efeitos (Barraclough, 1987: 33).
Na sua obsessão pelos acontecimentos políticos, únicos passíveis de uma datação “precisa” e meticulosa que muitas vezes preferia a década ao século, o ano à década, o mês ao ano e assim por diante, os historiadores do século XIX elaboraram periodizações para a História que, devido ao seu excessivo esquematismo, acabaram dando margem a interpretações reducionistas e por demais desconectadas da realidade social, sempre complexa e infinita (Bloch, s.d.: 157-8). No que diz respeito à História Antiga, na tentativa de delimitar com “exatidão” e “rigor científico” o momento em que se deu a passagem da Antigüidade para a Idade Média, os historiadores não hesitaram em eleger o desaparecimento da unidade política imperial nas províncias do Ocidente (o qual, de acordo com a tradição, teria se dado com a deposição do último imperador, Rômulo Augusto, por Odoacro, rei dos hérulos, em 476) como o marco final do Mundo Antigo. A partir de então, inaugurava-se uma nova era na História da Civilização Ocidental cuja única relação que mantinha com a anterior devia-se ao fato de tê-la sucedido no tempo, posto que a “queda” do Império era considerada o acontecimento máximo a condicionar a mutação abrupta em todos os níveis da sociedade.
Uma periodização como essa, elaborada a partir dos acontecimentos políticos que, como sabemos, se caracterizam por uma acentuada mobilidade, produzindo rupturas institucionais freqüentes (Le Goff, 1984: 416), era o instrumento mediante o qual se tornava possível classificar o Baixo Império romano como um período de decadência, declínio, queda, pois atrelava a existência de toda uma cultura à manutenção do Império, unidade essencialmente política. Ao mesmo tempo, a visão expressa pelos conceitos acima mencionados era bastante pessimista. Isso porque, na medida em que a Civilização Clássica havia entrado em “decadência” o período seguinte, isto é, a Idade Média, surgia como a antítese do anterior, a “Idade das Trevas” tão decantada pelos renascentistas, momento de afirmação da barbárie, da descentralização, do obscurantismo, um capítulo à parte na história da “brilhante” Civilização Ocidental.
O Renascimento, é bem verdade, buscara resgatar os valores clássicos negando ostensivamente a experiência medieval, dentro de uma concepção de tempo cíclica segundo a qual a Humanidade passaria por fases regulares de progresso, apogeu e decadência, ao término das quais se retornaria novamente ao ponto de partida por meio da reatualização de um passado otimizado. Os séculos XVII e XVIII refinaram um pouco mais essa concepção com o aparecimento de pensadores que, adotando o tempo linear, não acreditavam na possibilidade de retorno a uma suposta Idade de Ouro (já que o passado jamais poderia voltar a ser o presente e tampouco o futuro), mas sim num desenvolvimento seguido de declínio, dando lugar a uma nova fase de desenvolvimento diferenciada da primeira, de modo que no decorrer desses movimentos oscilantes se obteria uma ascese gradual.
Esse tipo de interpretação parecia eximir a Idade Média de qualquer conteúdo pejorativo, mas na realidade não foi isso o que ocorreu - para uma síntese sobre as diversas vertentes da idéia de progresso desde a Antigüidade até os nossos dias, consultar o artigo de Le Goff (progresso/reação) em Romano (1984: 338-69). No século XVIII, por exemplo, Voltaire defendia um progresso da razão humana mediante a sua revelação empírico-objetiva, mas apontava entraves poderosos a esse progresso: a religião e as guerras (Arrilaga Torres, 1982: 35-6). A referência à Idade Média, período marcado por uma visão de mundo eminentemente religiosa, é aqui evidente. Gibbon (1989: 442-3), no seu monumental trabalho sobre a desagregação do Império Romano, manifestava uma clara influência iluminista ao afirmar que o Império havia sido “engolfado por um dilúvio de bárbaros” e que as seitas cristãs perseguidas haviam se tornado “inimigas do seu país”.
Desse modo a Idade Média, em maior ou menor grau, era vista sempre pelos autores não vinculados à Igreja como um momento de recuo, de retrocesso, o que vinha a reforçar ainda mais o tema da “decadência” de Roma. E nem mesmo toda a reação romântica a favor de um progresso ininterrupto, o que forçosamente negava a existência de uma regressão durante a Idade Média, foi capaz de reabilitá-la aos olhos da maioria dos historiadores. Pelo contrário, a tradição iluminista mostrou-se muito mais vigorosa num mundo que redefinia as fronteiras entre o sagrado e o secular e experimentava um progresso técnico e científico que parecia não ter fim.
De fato, do Renascimento ao século XIX as invenções e descobertas da inteligência humana haviam produzido um mundo que apostava cada vez mais na capacidade do homem em dominar a natureza, reelaborar o seu meio e criar as condições para o bem-estar universal. O progresso era tido, então, como uma meta a ser alcançada no futuro, recusando-se qualquer ideal nostálgico de retorno ao passado. A segunda metade do século XIX assistiu ao triunfo definitivo da ideologia do progresso, em meio ao grande boom econômico e industrial do Ocidente (Le Goff, 1984: 355). Nada parecia capaz de abalar esse progresso, uma vez que nem mesmo os inumeráveis conflitos entre os impérios europeus ao longo de toda a Idade Moderna e princípios da Contemporânea tiveram condições de detê-lo. Diante dessa constatação, o fim do Mundo Antigo se revestiu de uma excepcional importância para os historiadores do século XIX na medida em que representava uma “decadência” e um “recuo” do Ocidente em termos globais, ao passo que todas as demais “decadências” sofridas pelos impérios europeus foram apenas acontecimentos isolados no seio de um progresso ininterrupto, contínuo, irresistível.
Com isso, a “queda” de nenhuma outra civilização suscitou tanta admiração e foi tão exaustivamente estudada como a da Civilização Clássica, instaurando-se um intenso debate entre os historiadores sobre os motivos que provocaram uma ruptura em tal profundidade.
O conceito de decadência, não obstante incluísse critérios morais e culturais, se pautava fundamentalmente por critérios de ordem política (Le Goff, 1984: 416), fazendo derivar das oscilações do sistema político, como já dissemos, a transformação de toda a sociedade. O que se encontra subjacente à utilização desse conceito e, conseqüentemente, à opinião geral que ele visa a expressar, é uma determinada concepção de temporalidade que, embora rompida na passagem do século XVIII para o XIX com a dissolução da episteme clássica, continuou por muito tempo ainda presente no trabalho dos historiadores.
Para os homens da Idade Média e Moderna a história, fosse ela cósmica ou providencialista, era concebida como algo contínuo e uniforme, um processo global de ascensão ou de queda que reunia todos os seres e todas as coisas num movimento único, sem que nada pudesse permanecer inerte (Foucault, s.d.: 477). Devido a isso, domínios de saber como a Biologia, a Filologia, a Economia Política e outros não podiam se constituir, já que para tanto dependiam do isolamento do seu objeto de estudo num certo número de regras que lhes fossem próprias e que possuíssem uma temporalidade particular, desvinculada da história do homem ou do universo. As condições para que isso ocorresse somente se deram no século XIX, com a descoberta de uma historicidade própria ao trabalho, à vida e à linguagem.
Mas a História produzida nas universidades e academias, pelo fato de se voltar quase que exclusivamente para os acontecimentos de natureza política, não fora capaz de absorver de imediato as inovações que estavam sendo geradas em outros ramos do conhecimento e que, dentro em breve, redefiniriam todo o panorama da História tradicional ao instaurar como objetos passíveis de uma análise histórica per se, isto é, sem vinculação estreita com o tempo da política, setores da vida social até então submetidos a essa vinculação ou, em muitos casos, ignorados.
Por outro lado, além desse problema central referente à temporalidade, havia outros que impunham igualmente sérios limites à explicação histórica, como por exemplo a tendência a se considerar a história como o domínio do acontecimento irrepetível, individual e particular, a ausência de hipóteses explícitas que orientassem as pesquisas, a elaboração de explicações superficiais e restritas, sem validade em nível estrutural, a excessiva fixação em fontes escritas e o isolamento da História frente aos notáveis avanços das demais Ciências Humanas, em especial a Sociologia, a Economia e a Demografia (Cardoso, 1988: 36-7).
No limiar da ruptura
Todos esses problemas configuravam uma História tradicional que, desde finais do século XVIII, vinha recebendo críticas de pensadores como Voltaire, Guizot e Michelet, defensores de uma História que se voltasse para o estudo da sociedade como um todo e não apenas para os seus aspectos políticos e que fosse, ao mesmo tempo, explicativa. Do mesmo modo os cientistas sociais, dentre os quais podemos incluir Max Weber, recuperaram estas mesmas críticas contra uma História eminentemente descritiva (Lefèbvre, 1981: 333). Não que todos os historiadores dessa época se preocupassem apenas em narrar os fatos. Pelo contrário, apesar de o positivismo, tal como define Comte, negar à História a capacidade de estabelecer leis gerais acerca dos fenômenos que estuda em função do caráter particular e irrepetível destes, além de rejeitar a noção de causalidade primeira ou final por julgá-la radicalmente inacessível e profundamente inútil (Simon, 1986: 63), alguns historiadores se preocupavam em identificar o nexo causal entre os acontecimentos, mesmo que em nível somente do singular, o que não deixava de ser uma tentativa de se explicar a História, demonstrando-se com isso que os fatos descritos não eram de modo algum contingentes (sobre as noções de causa, determinismo e acaso, ver Arrilaga Torres, 1982: 78-115).
A grande dificuldade era, entretanto, a insuficiência da explicação, vinculada ao particular e limitada ao campo da política. Por outro lado, os historiadores do século XIX não deixavam de atentar, como habitualmente se pensa, para os demais aspectos da sociedade, embora eliminassem qualquer possibilidade de uma análise mais produtiva ao conceberem uma relação de necessidade entre a ascensão ou queda dos impérios e a “decadência” dos demais setores da vida social, ou ao realizarem uma abordagem estanque da realidade na qual cada uma das manifestações da vida humana era tratada separadamente, sem maiores articulações de conjunto, como ocorre com a “História-Quadro” criticada por Lucien Febvre (1977: 111-2).
Dentre todas as severas críticas dirigidas à História tradicional por inúmeros pensadores ainda na segunda metade do século XIX, a mais contundente brotará do trabalho de Marx e Engels, os primeiros a elaborar uma teoria global coerente das sociedades humanas, vistas tanto nas suas leis estruturais quanto nas suas leis dinâmicas ou de transformação (Cardoso, 1988: 34). Agindo assim, o marxismo estimulava uma nova orientação da investigação histórica, afastando-se da análise descritiva de acontecimentos isolados, na maior parte das vezes de ordem política, para se consagrar à investigação de processos econômicos e sociais complexos e de grande extensão.
Além disso, o marxismo preconizava uma abordagem de caráter sociológico, sustentando que os historiadores deveriam dedicar-se ao estudo de formas de organização social recorrentes ao longo da história (Barraclough, 1987: 40-1). Iniciava-se, assim, o lento processo de redefinição dos parâmetros do conhecimento histórico, por meio da superação de procedimentos que muito pouco tinham já a oferecer em termos de um entendimento global da vida do homem em sociedade, o qual só viria a se completar quase um século mais tarde.
No entanto, em que pese toda a importância do materialismo histórico para a expansão dos horizontes do historiador, aquele mantinha ainda um vínculo com a História tradicional que limitou todo o seu desenvolvimento posterior quando a partir de 1917, com a vitória dos bolcheviques, a concepção marxista da História começou a se difundir nos meios acadêmicos europeus: a noção de temporalidade única, resultado direto do determinismo econômico subjacente à interpretação de Marx acerca do devir histórico. Em 1859 escrevia ele:
"Em certa fase do seu desenvolvimento, as forças produtivas da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes (...) De formas evolutivas das forças produtivas que eram convertem-se em seus entraves. Abre-se, então, uma era de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura" (Marx, 1946: 30-1).
Como podemos perceber, Marx aqui ainda pressupõe uma identidade temporal entre os diversos setores da vida social na medida em que concebe para estes uma historicidade única, só que não mais uma historicidade fundada na ascensão ou derrocada dos impérios, mas sim nos movimentos de dissolução e emergência dos modos de produção. Essa perspectiva de abordagem será, mais tarde, acentuada em extremo mediante a utilização do conceito de revolução social pelos historiadores soviéticos quando estes, seguindo as diretrizes do marxismo “oficial” durante o governo de Stálin, se dedicarem ao estudo do processo de transição da Antigüidade para a Idade Média.
Nesse período, verificaremos que a grande maioria dos pesquisadores (senão a sua totalidade), ao trabalharem com a História, selecionaram apenas os dados empíricos que vinham comprovar as teses de Marx, Engels e seus epígonos sobre o devir histórico, não hesitando em deturpar a realidade para alcançar os seus objetivos, os quais se confundiam com os objetivos do Partido Comunista Soviético, isto é, produzir um determinado conhecimento, dito “verdadeiro” porque elaborado segundo os cânones da investigação “científica”, que corroborasse a visão de mundo marxista sobre o passado e, por extensão, validasse os pressupostos do materialismo histórico quanto ao progresso inevitável da humanidade rumo à superação das relações de produção burguesas, tidas por Marx como a última formação social da pré-história humana (Marx, 1946: 32). O predomínio da interpretação oficial da História sustentada pelos historiadores marxistas mais ortodoxos somente será rompido a partir da segunda metade da década de 1950, após a morte de Stálin e a conseqüente abertura política vivenciada pela sociedade soviética.
Para uma nova história
A História tradicional, a despeito de sua ampla aceitação nos meios acadêmicos por historiadores tanto de orientação positivista quanto historicista, não reinava absoluta e isenta de críticas. Muitos já haviam apontado, ao longo do século XIX, as limitações desse tipo de História, principalmente os seguidores do materialismo histórico que, após a Grande Depressão de 1929-1930 e a crise cada vez mais acentuada do sistema capitalista, viram os trabalhos de Marx e Engels serem resgatados do limbo para onde haviam sido lançados pelos pesquisadores europeus outrora maravilhados com os inacreditáveis avanços da sociedade burguesa (Barraclough, 1987: 47).
Mas o marxismo não se encontrava sozinho nessa luta. Ao seu lado se constituía um outro movimento de renovação do conhecimento histórico que estaria destinado a cumprir um papel capital na estruturação da moderna historiografia: a Escola dos Annales. Juntas, ambas as correntes irão desconstruir todo o edifício da História tradicional num esforço lento e contínuo que somente receberá um impulso decisivo após a Segunda Guerra Mundial, quando os historiadores perceberem que o seu ofício, tal como era exercido antes de 1939, não lhes dava mais condições para entender todas as transformações pelas quais passará o mundo durante o conflito.
A Escola dos Annales surgiu em 1929, em torno de uma publicação regular intitulada, a princípio, Annales d’Histoire Économique et Sociale, sob a organização de Lucien Febvre e Marc Bloch, dois dos mais eminente historiadores franceses da época, e congregava diversos pesquisadores que se propunham a escrever uma História renovada em todos os seus aspectos, desde a escolha do objeto e da documentação até os pressupostos teórico-metodológicos da análise. Em suas propostas fundamentais, resultado das severas críticas que dirigiam à História tradicional, os teóricos dos Annales se aproximavam bastante do marxismo, mais não fosse pelo fato de que, embora na maior parte dos países o ensino universitário estivesse vedado aos marxistas e socialistas antes de 1945, somente a França se mostrava mais receptiva para com o materialismo histórico, a exemplo de historiadores como Jaurès, Labrousse e Lefèbvre, adeptos da História Econômica que começava então a se enriquecer com o auxílio da Demografia e da Estatística.
Entretanto, não obstante todas as semelhanças que possamos detectar entre a Escola dos Annales e o marxismo, ambos guardam entre si uma diferença essencial quanto aos postulados da ciência histórica que irá condicionar todos os trabalhos historiográficos produzidos a partir de 1929, além de gerar uma polêmica bastante acirrada entre os seguidores das duas correntes que só mais recentemente logrou um certo abrandamento. Isso porque os Annales, diferentemente do marxismo, incorporam de modo definitivo ao conhecimento histórico e tomam como a sua profissão de fé a noção das temporalidades múltiplas. De fato, tanto Febvre quanto Bloch (s.d.: 158) e os demais, na sua cruzada contra uma História Política excessivamente mecanicista e capaz de gerar sérias deformações devido ao rigor com que os fatos políticos eram tomados como parâmetros de datação, aceitam plenamente a existência não de um tempo único a reger o devir dos seres e das coisas, mas sim de tempos múltiplos que conferem a tudo uma historicidade particular e que se manifestam em concordância com a heterogeneidade dos próprios seres e das coisas.
No momento em que essa descoberta é assimilada pelos historiadores, cujo objeto primordial, além do homem, é o tempo, a duração, conforme afirmava Marc Bloch (s.d.: 29), o todo compacto, cristalizado, uniforme que era a sociedade, se desfaz e nesse movimento liberta os homens, suas ações, obras e instituições da historicidade que os mantinha unidos no interior de um discurso que não mais se sustenta. Percebe-se claramente, a partir daí, que a sociedade é um todo, isso não se pode negar, mas um todo heterogêneo e ao mesmo tempo harmonioso, constituído por múltiplos níveis ou sistemas de acordo com a natureza dos fenômenos sociais, sejam eles econômicos, políticos, ideológicos e outros.
Assim, a língua, as relações de produção e parentesco, as instituições políticas, os códigos de lei, os ritos e doutrinas, a indumentária, as artes maiores e menores, as ideologias, enfim, tudo o quanto existe, criado pela ação do homem em sociedade, é regido por tempos diferenciados não se modificando, necessariamente, num só instante, embora não se neguem as inter-relações que existem entre os sistemas. A dispersão temporal não é mais o limite do trabalho do historiador, o qual lutava desesperadamente para reconstituir a unidade existente entre os acontecimentos, eliminando tudo aquilo que não fosse possível inserir numa narrativa contínua e uniforme. Ela se torna agora a sua condição de possibilidade (Foucault, 1976: 57-8).
Com o recurso às temporalidades múltiplas, abriu-se uma perspectiva inédita para o domínio da História. Agora era possível identificar-se quais os elementos de uma dada formação social haviam resistido ao tempo e permanecido habitando o interior da formação social subseqüente, sem existir mais a preocupação de se delimitar cada cultura no âmbito de um espaço que lhe era inerente e absolutamente específico. Surgem as teorias de Fernand Braudel (1978) sobre a curta, a média e a longa duração, e a História forja para si ou toma das demais Ciências Humanas novas abordagens, objetos, métodos e técnicas. E a História Antiga, como não poderia deixar de ser, é atingida também por esse movimento, voltando à cena as questões em torno da “decadência” do Império Romano do Ocidente.
Nesse sentido, não se aceitava mais a opinião de que a Civilização Clássica havia simplesmente acabado no momento em que Rômulo Augusto foi deposto ou quando se processou a substituição do escravo pelo colono como mão-de-obra dominante (a exemplo do que sustentavam os marxistas mais ortodoxos). Tudo passará a depender, doravante, da perspectiva de abordagem escolhida pelo pesquisador para empreender a sua análise. Um exemplo disso são os historiadores que até hoje se esforçam para provar que a Civilização Romana se desfez no momento em que as invasões “bárbaras” tornaram-se mais numerosas e ofensivas e os chefes germânicos assumiram o poder nas localidades provinciais, juntamente com os bispos e os antigos proprietários romanos ou romanizados. Esse ponto de vista, não obstante possua uma certa coerência, não esgota a problemática, uma vez que resta sempre a pergunta: mas, toda a Civilização Romana se reduzia apenas ao funcionamento satisfatório das instituições político-jurídicas e administrativas? Decerto que não, e isso fornece aos outros sistemas sociais uma importância equivalente à do sistema político ou mesmo do econômico.
Com efeito, se pensarmos em termos de costumes, arte ou ideologia, como comprovar um fim, um esgotamento, uma ruptura? De acordo com as propostas da Escola dos Annales, o que ocorre no período de transição da Antigüidade para a Idade Média é uma renovação, o surgimento de uma nova cultura a partir da fusão de valores clássicos com valores cristãos. Por conta disso, elabora-se um novo conceito com a finalidade de exprimir toda a originalidade e vigor das transformações sociais que atingiram o Império Romano do III ao V século, principalmente após a Anarquia Militar: o de Antigüidade Tardia, oriundo do alemão Spatantike (Martin, 1976: 261), e que teve em Peter Brown (1972) e Henri-Irénèe Marrou (1980) dois notáveis defensores.
De acordo com essa perspectiva, o fim do Mundo Antigo não pode e nem deve ser visto como um período de decadência, queda ou declínio, mas sim de surgimento de novas concepções religiosas e estéticas, de novas invenções e técnicas artísticas que exerceram uma inegável influência sobre as civilizações posteriores. Todas essas transformações se encontram encerradas no conceito de Antigüidade Tardia, o qual possui a atribuição precípua de valorizar a especificidade de um mundo marcado pela fusão da cultura pagã clássica com os valores cristãos e bárbaros que há de aprender-se a reconhecer em sua originalidade e a julgar-se por si mesmo e não através dos cânones de outras idades (Marrou: 1980: 15).
Muito embora a descoberta da historicidade própria que reside no interior dos seres e das coisas tenha se dado, como afirmamos, já na passagem do século XVIII para o XIX, tal acontecimento não foi capaz de reordenar, de um único assalto, todos os discursos produzidos desde então sobre a desagregação do Império Romano, de maneira que ainda hoje o tema da “queda” de Roma permanece como um tema recorrente, por exemplo, nos manuais escolares, verdadeiros redutos de conservação e reprodução de memórias historiográficas, especialmente no que diz respeito à História Antiga e Medieval.
Por outro lado, se a passagem da Antigüidade para a Idade Média não pode mais ser compreendida, em absoluto, nos termos de uma suposta “decadência”, como argumentam com propriedade os que empregam o conceito de Antigüidade Tardia, restaria ainda explicar as razões pelas quais o Império Romano do Ocidente se fragmentou. Na verdade, muito embora a perspectiva, digamos, culturalista, assumida por Marrou, Peter Brown e inúmeros outros especialistas seja bastante apropriada na medida em que busca enfatizar os aspectos que não se ajustam a uma visão de ruptura e descontinuidade absolutas, a análise realizada pelos autores tende a ser excessivamente otimista. Nela não há conflitos e tudo parece concorrer para que não tenhamos uma impressão sinistra do fim do Mundo Antigo, razão pela qual afirma Peter Brown (1972: 35): "As profundas modificações religiosas e culturais do fim da Antigüidade não têm por teatro um mundo aterrado pela sombra de uma catástrofe. Longe disso, os homens dessa época formam uma sociedade rica e surpreendentemente compreensiva que se estabiliza e conquista uma estrutura significativamente diferente da classe romana do período clássico."
Conclusão
Quando confrontamos o conceito de Antigüidade Tardia com a realidade social do Baixo Império, permanece sempre a indagação sobre os motivos pelos quais uma civilização que possuía tantos elementos novos, vibrantes e originais não foi capaz, ao fim e ao cabo, de manter-se integrada como havia ocorrido por séculos. Nesse caso, parece-nos necessário reconhecer que a desagregação do Império Romano do Ocidente mediante a regionalização provincial e enfraquecimento do aparelho militar e burocrático estatal é um fenômeno de natureza política, uma vez que o Império era, acima de tudo, uma unidade político-administrativa que integrava em um determinado território mais de uma centena de províncias, as quais apresentavam múltiplas especificidades econômicas e culturais que não podem ser esquecidas.
Sendo assim, podemos dizer que a desagregação do Império deve ser tratada como um tema de História Política. Não daquela que faziam os nossos predecessores, mas de uma História Política renovada em virtude do imenso instrumental teórico de que hoje dispomos (Rémond, 1996). De fato, a dissolução do Estado imperial centralizado e burocratizado nos levaria a supor uma situação na qual o padrão das relações políticas se modifica completamente, tendendo cada vez mais para a regionalização e concentração de poder nas mãos dos grandes proprietários rurais. Nesse sentido, a constituição dos reinos bárbaros foi mais uma etapa desse longo processo de pulverização do poder que atingiu o seu ápice com o feudalismo clássico. A conclusão que se depreende destes fatos é deveras simples: após a desagregação do Império Romano nenhuma outra entidade política o excedeu em territorialidade ou duração no Ocidente.
Podemos dizer que a dissolução do Estado romano se encontra condicionada, em termos mais efetivos, pela inépcia do governo imperial em gerir os conflitos sociais que se apresentam no período do Baixo Império, e isso devido a uma série de fatores, como por exemplo a perda de autoridade por parte do poder constituído em virtude da indefinição das regras sucessórias e das ações perpetradas pelos imperadores com o objetivo de garantir a sobrevivência do Império, as quais descontentam importantes segmentos sociais. A seqüência de usurpações que verificamos ao longo dos três últimos séculos da História de Roma dá bem a medida do enfraquecimento do Estado imperial. Com isso, os indivíduos não se sentirão mais parte integrante de uma coletividade que outrora dominava o mundo, passando a se organizar mediante relações pessoais, sem a interferência estatal. Daí a difusão do patronato, instrumento de aglutinação dos indivíduos em torno de um grande proprietário, que desafia frontalmente o governo imperial.
Ao tratarmos da desagregação do Império priorizando os aspectos políticos desse processo, não estamos de modo algum optando por uma perspectiva reducionista, uma vez que todo conflito social apresenta, naturalmente, inúmeras motivações. As ações que os indivíduos praticam contra a ordem estabelecida são, em muitos casos, uma resposta a transformações ocorridas o âmbito do processo produtivo ou do sistema de valores, de tal forma que, no caso da sociedade romana, os conflitos que põem em risco a manutenção do Império muitas vezes só podem ser entendidos na sua plenitude se nos reportamos às deficiências do modo de produção escravista antigo ou ao combate entre duas visões de mundo, uma pagã e outra cristã, num contexto em que os valores culturais estão se modificando com uma profundidade e rapidez inusitadas. Sendo assim, sejam provocados por fatores econômicos, religiosos ou mesmo políticos, o certo é que os conflitos sociais que irrompem no Baixo Império se tornarão cada vez mais agudos e incontornáveis, desestabilizando o Estado e acarretando a sua dissolução. Nesse momento, o antigo ideal de Res Publica recebe o seu golpe de misericórdia. Doravante, Estado e sociedade tomarão rumos distintos, o que significará o fim do Império em termos efetivos.
Sabemos bem que abordar a desagregação do Império Romano do Ocidente pela via dos conflitos sociais subjacentes às relações entre Estado/Sociedade significa apenas mais uma contribuição no sentido de entender um fenômeno tão complexo em sua totalidade. O que propomos, à guisa de conclusão, não é nem pode ser a última palavra sobre o assunto, mas acreditamos na sua vitalidade teórica. Para finalizar, talvez fosse oportuno mencionar que, a despeito da imensa quantidade de obras que se tem produzido sobre o fim do Mundo Antigo, muito há ainda por fazer se quisermos nos elevar de uma História descritiva rumo a uma História explicativa, de modo que o assunto continua apresentando uma riqueza e um fascínio inesgotáveis para inúmeros pesquisadores os quais, ao longo dos séculos, vêm seguindo de perto o tom quase profético da poesia de Rutílio Namaciano, um autor do século V:
Não estará seguro aquele que te esquecer
Que possa eu louvar-te ainda que o sol
Se torne escuro
Pois contar as glórias de Roma
É como contar as estrelas do céu.

domingo, 4 de fevereiro de 2001

HISTÓRIA DO BRASIL COLONIAL - AS REVOLTAS NATIVISTAS

A crise do capitalismo comercial português e os interesses ingleses não são suficientes para explicar o desmoronamento do sistema colonial. As contradições internas da colonização foram os fatores determinantes.
Não se pode negar que a colonização, mesmo tendo caráter francamente explorador, promoveu o crescimento do Brasil-Colônia, durante os dois séculos em que predominou. As elites dominantes locais, apesar de divergências momentâneas, beneficiavam-se com a própria dominação que sofriam.
As primeiras rebeliões não se manifestaram com a idéia de conseguir a independência do Brasil. Essas manifestações, chamadas rebeliões nativistas, a princípio apenas contestavam os aspectos específicos do pacto colonial, não a dominação integral da Metrópole. Além disso, tinham um caráter regionalista, não se preocupando com a unidade nacional.
Ocorreram entre 1641 e 1720 e foram, na prática, esforços de defesa contra certos aspectos da exploração colonial. Daí à idéia de autonomia completa em relação as Portugal foi um longo processo.
Somente um século depois, quando a exploração da Colônia se agravou, e a situação internacional se tornou propícia, é que as rebeliões adquiriram caráter de libertação nacional. Os objetivos deixaram de ser restritos, exigindo-se a extinção do pacto colonial e a autonomia política.
Longe de representarem uma espécie de “sentimento nacional”, as rebeliões nativistas tomaram destaque a partir dos fins do século XVII. Entre os principais levantes destacamos a Revolta de Beckman (1684, Maranhão); a Guerra dos Emboabas (1708-1709, Minas Gerais); a Guerra dos Mascates (1710 – 1711, Pernambuco); e a Revolta de Filipe dos Santos (1720, Vila Rica, Minas Gerais).
Guerra dos Emboabas
Na primeira década do século XVIII, os relatos da presença de grandes reservas auríferas na região de Minas Gerais se espalharam rapidamente pelo Brasil e Portugal, ocasionando um grande movimento em direção a essa região. Várias pessoas deixaram suas próprias terras para se aventurarem na busca pelas riquezas da região, no entanto, essa exploração não era tão fácil, visto que já havia um grande número de pessoas interessadas.Sempre considerada um levante nativista, a Guerra dos Emboabas, na verdade, opunha dois grupos que queriam as mesmas coisas: ouro e poder político.

O episódio é famoso. Bandeirantes paulistas descobrem enormes jazidas de ouro na região de Minas Gerais e reclamam exclusividade em sua exploração. Os achados atraem muitos portugueses e pessoas de todas as partes do Brasil. Esses forasteiros são pejorativamente chamados de “emboabas” – para alguns, a palavra designava o indivíduo que cobria as pernas para protegê-las dos perigos dos sertões. As tensões entre os dois grupos culminam em um conflito armado que ficou conhecido como Guerra dos Emboabas. Há exatos 300 anos.
O confronto entre paulistas e emboabas já foi tema de um sem-número de livros e estudos. No entanto, pouco se avançou no conhecimento do episódio. Ao longo dos anos, houve um debate acalorado e polarizado que nada mais fez do que mascarar as reais motivações da guerra. Ao contrário do que se defendeu por muito tempo, o fato é que nem os bandeirantes nem os emboabas eram movidos pelo amor à terra.
O levante emboaba entraria para os anais da história mineira e para a memória local como o evento mais formidável das origens da capitania. Prova disso é o poema épico “Vila Rica”, no qual Manuel da Costa narra o nascimento da vila mineira partindo do conflito entre paulistas e emboabas:
Levados de fervor, que o peito encerra
Vê os Paulistas, animosa gente,
Que ao Rei procuram o metal luzente
Co’as próprias mãos enriquecer o erário.
Mas ainda no século XIX deixa de ser um conflito local em torno da posse das minas de ouro para se tornar um capítulo memorável na biografia da jovem nação. Na pena de historiadores como Affonso de E. Taunay, J. Soares de Mello, Capistrano de Abreu e Isaías Golgher, a Guerra dos Emboabas ganha grandes proporções e se transforma em uma luta sangrenta e implacável do povo brasileiro em nome da liberdade contra o domínio tirânico da metrópole.
Esse tipo de interpretação floresceu em torno do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), preocupado em estudar e valorizar os processos que levaram à independência do país. Ao cunhar a expressão “revoltas nativistas”, aqueles historiadores pretendiam designar os conflitos coloniais marcados por um incipiente sentimento nacionalista. Mas, ao contrário de outros episódios do gênero – como a Revolta de Beckman, a Guerra dos Mascates, o Motim do Maneta e a Revolta de Vila Rica –, a Guerra dos Emboabas apresentava uma dificuldade: qual era, afinal, o grupo social imbuído desse caráter autonomista ou nacionalista? Quem seriam os verdadeiros defensores da causa nacional? A questão ainda dividia a historiografia no século XX: de um lado ficaram os partidários dos paulistas; de outro, os dos emboabas.
Os pró-paulistas, engajados na exaltação da figura do bandeirante, dominaram os estudos sobre a Guerra dos Emboabas entre os anos 1920 e 1940. Para autores como Alfredo Ellis Júnior, Teodoro Sampaio e Taunay, o episódio foi, antes de tudo, o “noviciado da liberdade para a terra de Santa Cruz”. Os homens do Planalto de Piratininga seriam os legítimos representantes da nação brasileira, os defensores da pátria contra a cobiça de Portugal.
Apesar de dominante, essa não foi a única interpretação a respeito do conflito. Em uma chave oposta, outra corrente historiográfica defendeu uma interpretação inteiramente oposta: identificavam na causa emboaba as sementes do sentimento nacional. Seus argumentos: os rebelados aclamaram Nunes Viana como governador local, em franca desobediência à Coroa portuguesa. O ato seria uma afirmação de projeto autonomista, pondo em xeque o domínio metropolitano. O historiador Isaías Golgher, russo radicado em Belo Horizonte, é o grande defensor desta tese. Para ele, a Guerra dos Emboabas foi “a primeira guerra civil nas Américas”, um movimento de resistência que culminaria mais tarde com Tiradentes.
Mas, afinal, quem tem razão? Teriam sido os emboabas os precursores da liberdade contra o domínio metropolitano, como quis Golgher? Não exatamente. Desde o início do conflito, o partido emboaba se apresentou como representante legítimo dos interesses de Portugal contra a turba de paulistas insubmissos e rebeldes. Inspirados no exemplo de Portugal sob o domínio da Espanha entre os anos de 1580 e 1640, os emboabas comparavam a libertação das Minas Gerais com a Restauração lusitana. Segundo eles, em ambos os casos era o povo português que se insurgia contra a opressão em nome da liberdade.
É revelador, por exemplo, o fato de o Conselho Ultramarino, órgão responsável pela administração colonial, ter simpatizado com a luta dos emboabas. O governador Antônio de Albuquerque, enviado para promover a pacificação dos sertões, chegou a ser orientado para que fosse em tudo favorável aos emboabas. E assim, apesar de Nunes Viana ter deixado seu cargo, a grande maioria dos emboabas foi mantida em seus postos. Em 1709, a geração heroica dos descobridores paulistas abandonaria a cena mineira para buscar ouro nos sertões de Goiás e Mato Grosso.
Seriam então os paulistas os precursores da Independência brasileira? Também não é bem isso. Apesar da força avassaladora das interpretações tradicionais, os paulistas não nutriam um ódio especial pelos portugueses. Para eles, emboaba era, sobretudo, o forasteiro, fosse ele carioca, pernambucano, baiano ou português. Tampouco se bateram por um ideal de libertação nacional ou pela contestação da opressão metropolitana. O que estava realmente em jogo era a convicção de que, como responsáveis pela descoberta e pelo povoamento dos sertões, eles mereciam privilégios e prerrogativas especiais na administração da região.
Para se ter uma ideia, em 1705, quando a supremacia política dos paulistas começava a se enfraquecer ante o avanço dos forasteiros, o prestigiado sertanista Garcia Rodrigues Pais chegou a escrever ao rei implorando, em tom ressentido, que os cargos ficassem nas mãos de seus patrícios. Pouco antes, a Câmara da Vila de São Paulo também se dirigira ao rei para pedir o monopólio das terras a serem repartidas na região mineradora. Os paulistas reivindicavam mesmo era o controle político. Não porque fossem vassalos rebeldes em luta contra o poder metropolitano, mas pelo chamado “direito de conquista”, uma noção jurídica tradicional do Antigo Regime português, que assegurava aos descobridores um tratamento privilegiado por parte da Coroa.
Entre uma e outra versão, o que se percebe é que muito do que se escreveu até recentemente sobre a guerra deriva quase exclusivamente das interpretações divulgadas por paulistas e emboabas ainda no século XVIII. Assim foram se perpetuando as acusações de lusofobia da parte dos paulistas e as alegações de que os emboabas seriam movidos pela cobiça desenfreada. Ambas as visões são pra lá de parciais e tendenciosas, o que acabou polarizando o conflito.
O que se pode concluir de tanta discórdia é que, na verdade, a Guerra dos Emboabas não foi, de modo algum, uma revolta nativista. Ponto final. Mesmo se restringirmos o conceito de nativismo à acepção corrente no século XVIII, isto é, de sentimento de amor à pátria, ainda assim a palavra não se aplica ao conflito. Nem paulistas nem emboabas pareciam movidos pela afeição à terra. O aprisionamento do conflito nesse rótulo nativista impediu gerações de historiadores de perceberem que, por trás das divergências entre os dois grupos, o que existia na época era uma cultura política peculiar. Uma política herdeira tanto das doutrinas que no século anterior tinham legitimado a insurreição de Portugal contra o domínio espanhol quanto do conturbado processo de negociação entre os descobridores e a Coroa em torno da exploração das riquezas minerais.
Paulistas e emboabas eram todos igualmente forasteiros numa terra recém-descoberta. Juntos formavam uma multidão de 50 mil pessoas que fervilhavam à beira dos rios e caminhos, nos sertões distantes e inóspitos, e disputavam lado a lado as lavras e datas minerais. E ali, em meio a essa “multidão vaga e tumultuária”, no dizer dos contemporâneos, confluíam valores e concepções políticas forjados em experiências históricas muito diferentes.
Como bem sabiam os observadores, a guerra era tão-somente uma questão de tempo…
Em busca do ouro
A Guerra dos Emboabas foi um confronto travado entre 1708 e 1709 pelo direito de exploração das recém-descobertas jazidas de ouro no sertão das Minas Gerais. Responsáveis pelos achados, os paulistas se instalaram na incipiente estrutura administrativa ali montada e reivindicaram o direito exclusivo de exploração. No entanto, logo que a notícia da descoberta se espalhou, milhares de pessoas migraram para a região, ficando pejorativamente conhecidas como emboabas, em referência às aves de mesmo nome. O aumento considerável do contingente de forasteiros desequilibrou a frágil balança dos poderes locais, ameaçando o domínio dos paulistas. O conflito armado constitui o ápice de uma longa série de pequenos incidentes. Em outubro de 1708, os emboabas iniciam o levante com um ataque de surpresa ao arraial do Sabará sob o comando de Manuel Nunes Viana. Português de origem humilde, Nunes Viana seria logo aclamado governador. Uma afronta direta à Coroa, já que a região estava sob a jurisdição do governador do Rio de Janeiro, D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre. Ademais, a escolha dos governantes era prerrogativa do rei. Em agosto de 1709, menos de um ano depois do início do conflito, D. Antônio de Albuquerque, recém-nomeado governador do Rio de Janeiro, pisa em solo mineiro determinado a pôr fim à guerra. Ao contrário do seu antecessor, que havia tentado apaziguar os ânimos, mas acabou sendo expulso e ameaçado de morte, Albuquerque alcança um êxito surpreendente. Ele destitui Nunes Viana, mas conserva a composição da estrutura administrativa emboaba. No fim, a guerra se encarregou de afastar os paulistas da região, abrindo caminho para a adoção de um novo projeto político.

Revolta de Filipe dos Santos
A dinâmica de exploração da colonização portuguesa no Brasil assumiu diferentes formas e intensidades ao logo da trajetória do Brasil Colônia. A definição das atividades mineradoras como principal atividade econômica do século XVII deu margem para um sistema de tributação e práticas fiscalizantes nunca outrora observadas em nossa história colonial.
A região de Minas Gerais, na qualidade de maior centro desse tipo de exploração econômica, também foi o local propício para diversos episódios de indignação e revolta contra o controle massivo das autoridades metropolitanas. A própria Guerra dos Emboabas, deflagrada no início das atividades mineradoras, prenunciava que o interesse econômico português seria responsável pela inconformidade de alguns integrantes da sociedade colonial.
Observando a ameaça de seus lucros com o contrabando e a livre exploração dos minérios, Portugal resolveu implementar uma série de tributações a serem aplicadas sob a região das Minas Gerais. Em 1719, ainda buscando garantir uma ampla margem de lucro, os portugueses instituíram as chamadas Casas de Fundição, que funcionariam como centros de cobrança e controle sobre as riquezas extraídas do solo.
Paralelamente à tributação dos minérios, a formação de diversos centros urbanos trouxe outra notável fonte de renda à metrópole. Graças às amarras econômicas estabelecidas pelo pacto colonial, os colonos ainda eram obrigados a pagar os altos valores cobrados sob os gêneros manufaturados oferecidos por Portugal. Mediante essa lógica de exploração e controle é que compreendemos a deflagração da Revolta de Filipe dos Santos, em 1720.
A hostilidade e a desconfiança instaladas na região das minas faziam com que qualquer suspeita de contrabando ou sonegação acionassem a rígida ação das tropas metropolitanas. Durante um desses episódios de averiguação das forças metropolitanas, um grupo de mineiros resolveu atacar a casa do ouvidor-mor, principal autoridade judicial da região. Logo em seguida, dirigiram-se para Vila do Carmo a fim de pressionar o governador da região, o Conde de Assumar.
O grupo, liderado pelo tropeiro Filipe dos Santos, reivindicava o fechamento das casas de fundição. Prometendo atender a demanda do grupo, o levante retornou à Vila Rica à espera das ações do governador. No entanto, isso serviu para que as tropas portuguesas se organizassem contra os revoltosos. No dia 14 de julho iniciou-se o conflito que prendeu vários participantes e condenou Filipe dos Santos à morte e ao esquartejamento.


Revolta de Beckman
Com a saída dos holandeses do Brasil e a crise da economia açucareira, a região Nordeste tornou-se lugar de recorrentes crises de abastecimento e estagnação econômica. Ao final do século XVII, esses problemas fizeram do Maranhão uma das regiões mais carentes de todo o nordeste brasileiro. Tentando intervir na economia local, Portugal, em 1682 , decidiu criar a Companhia Geral do Comércio do Estado do Maranhão.
Essa companhia deveria desempenhar duas obrigações essenciais: comprar os gêneros agrícolas da região, vender produtos manufaturados e suprir as elites coloniais com um carregamento anual de quinhentos escravos. Essa última medida serviria para que os conflitos entre os fazendeiros e jesuítas, em torno do uso de índios como escravos, chegassem ao seu fim. Dessa forma, o monopólio comercial lusitano seria uma medida que ampliaria os lucros da metrópole, ao mesmo tempo em que encerraria as dificuldades dos colonizadores.
No entanto, ao longo do tempo, a ineficácia financeira e administrativa lusitana em nada melhorou a situação. Os fazendeiros não recebiam os lotes de escravos do governo e desgastavam-se em conflitos contra os jesuítas que impediam a escravização dos índios. Além disso, a companhia não adquiria toda produção agrícola e negociava manufaturados de má qualidade e com altos preços. Dessa forma, a população maranhense tinha seus problemas de ordem econômica agravados mediante sua dependência em relação à Coroa.
Em 24 de fevereiro de 1684, aproveitando da ausência do governador, um grupo de manifestantes promoveu um grande rebuliço em São Luís. Os revoltosos prenderam o governador interino, invadiram os colégios jesuítas e saquearam os galpões da Companhia de Comércio. Liderados pelos irmãos Manuel e Tomás Beckman, a revolta exigia a melhora das relações entre Maranhão e Portugal. Ao longo de quase um ano, Manuel Beckman, também conhecido como Bequimão, controlou uma junta revolucionária que tomou o poder político da província.
Nesse meio tempo, Tomás Beckman dirigiu-se a Portugal para reafirmar lealdade às autoridades lusitanas e denunciar as infrações cometidas pela Companhia de Comércio. Impassível a uma possível negociação, Portugal respondeu o levante com a nomeação de um novo governador para o Maranhão e o envio de tropas que deveriam aniquilar o movimento. Ao chegar ao Maranhão, as tropas deram fim ao levante e os irmãos Beckman foram condenados ao enforcamento. Em 1685, com a confirmação das denúncias, a Companhia foi extinta pela Coroa.
Guerra dos Mascates
A partir de 1654, a expulsão definitiva dos holandeses de Pernambuco provocou uma grande mudança no cenário econômico daquela região. Os grandes produtores de açúcar que anteriormente usufruíram dos investimentos holandeses, agora viviam uma crise decorrente da baixa do açúcar no mercado internacional e a concorrência do açúcar produzido nas Antilhas. Contudo, esses senhores de engenho ainda possuíam o controle do cenário político local por meio do poder exercido na câmara municipal de Olinda.
Em contrapartida, Recife - região vizinha e politicamente subordinada à Olinda - era considerado o principal pólo de desenvolvimento econômico de Pernambuco. O comércio da cidade trazia grandes lucros aos portugueses, que controlavam a atividade comercial da região. Essa posição favorável tinha como motivação as diversas melhorias empreendidas na cidade com a colonização holandesa, que havia transformado a cidade em seu principal centro administrativo.
Com o passar do tempo, a divergência da situação política e econômica entre os fazendeiros de Olinda e os comerciantes portugueses de Recife criou uma tensão local. Inicialmente, os senhores de engenho de Olinda, vivendo sérias dificuldades para investirem no negócio açucareiro, pediram vários empréstimos aos comerciantes portugueses de Recife. Contudo, a partir da deflagração da crise açucareira, muitos dos senhores de engenho acabaram não tendo condições de honrar seus compromissos.
Nessa mesma época, a complicada situação econômica de Olinda somava-se ao completo sucateamento da cidade, que sofreu com as guerras que expulsaram os holandeses. Com isso, a câmara de Olinda decidiu aumentar os impostos de toda a região, incluindo Recife, para que fosse possível recuperar o centro administrativo pernambucano. Inconformados, os comerciantes portugueses, pejorativamente chamados de “mascates”, buscaram se livrar da dominação política olindense.
Para tanto, os comerciantes de Recife conseguiram elevar o seu povoado à categoria de vila, tendo dessa maneira o direito a formar uma câmara municipal autônoma. A medida deixou os latifundiários de Olinda bastante apreensivos, pois temiam que dessa forma os comerciantes portugueses tivessem meios para exigir o pagamento imediato das dívidas que tinham a receber. Dessa forma, a definição das fronteiras dos dois municípios serviu como estopim para o conflito.
A guerra teve início em 1710, com a vitória dos olindenses que conseguiram invadir e controlar a nova cidade pernambucana. Logo em seguida, os recifenses conseguiram retomar o controle de sua cidade em uma reação militar apoiada por autoridades políticas de outras capitanias. O prolongamento da guerra só foi interrompido no momento em que a Coroa Portuguesa indicou, em 1711, a nomeação de um novo governante que teria como principal missão estabelecer um ponto final ao conflito.
O escolhido para essa tarefa foi Félix José de Mendonça, que apoiou os mascates portugueses e estipulou a prisão de todos os latifundiários olindenses envolvidos com a guerra. Além disso, visando evitar futuros conflitos, o novo governador de Pernambuco decidiu transferir semestralmente a administração para cada uma das cidades. Dessa maneira, não haveria razões para que uma cidade fosse politicamente favorecida por Félix José.


FONTE: REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL
Saiba Mais – Bibliografia:
GOLGHER, Isaías. Guerra dos Emboabas: a primeira guerra civil nas Américas. 2a. edição. Belo Horizonte: Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais, 1982.
MELLO, J. Soares de. Emboabas: crônica de uma revolução nativista – documentos inéditos. São Paulo: São Paulo Editora, 1929.

SUANNES, S. Os emboabas. São Paulo: Brasiliense, 1959.


sexta-feira, 2 de fevereiro de 2001

A PARTILHA DA AFRICA - Breve Resumo

Processo de ocupação territorial, exploração econômica e domínio político do continente africano por potências europeias. Tem início no século XV e estende-se até a metade do século XX. Ligada à expansão marítima europeia, a primeira fase do colonialismo africano surge da necessidade de encontrar rotas alternativas para o Oriente e novos mercados produtores e consumidores.
Portugueses
Iniciam o processo na primeira metade do século XV, estabelecendo feitorias, portos e enclaves no litoral oeste africano. Não existe nenhuma organização política nas colônias portuguesas, exceto em algumas áreas portuárias onde há tratados destinados a assegurar os direitos dos traficantes de escravos. A obtenção de pedras, metais preciosos e especiarias é feita pelos sistemas de captura, de pilhagem e de escambo.
O método predador provoca o abandono da agricultura e o atraso no desenvolvimento manufatureiro dos países africanos. A captura e o tráfico de escravos dividem tribos e etnias e causam desorganização na vida econômica e social dos africanos. Milhões de pessoas são mandadas à força para as Américas, e grande parte morre durante as viagens. A partir de meados do século XVI, os ingleses, os franceses e os holandeses expulsam os portugueses das melhores zonas costeiras para o comércio de escravos.

Ingleses
No final do século XVIII e meados do século XIX, os ingleses, com enorme poder naval e econômico, assumem a liderança da colonização africana. Combatem a escravidão, já menos lucrativa, direcionando o comércio africano para a exportação de ouro, marfim e animais. Para isso estabelecem novas colônias na costa e passam a implantar um sistema administrativo fortemente centralizado na mão de colonos brancos ou representantes da Coroa inglesa.

Holandeses
Estabelecem-se na litorânea Cidade do Cabo, na África do Sul, a partir de 1.652. Desenvolvem na região uma nova cultura e formam uma comunidade conhecida como africâner ou bôer. Mais tarde, os bôeres perdem o domínio da região para o Reino Unido na Guerra dos Bôeres.

PARTILHA DA ÁFRICA
No fim do século XIX e início do século XX, com a expansão do capitalismo industrial, começa o neocolonialismo no continente africano. Entre outras características, é marcado pelo aparecimento de novas potências concorrentes, como a Alemanha, a Bélgica e a Itália. A partir de 1880, a competição entre as metrópoles pelo domínio dos territórios africanos intensifica-se. A partilha da África tem início, de fato, com a Conferência de Berlim (1884), que institui normas para a ocupação. No início da I Guerra Mundial, 90% das terras já estão sob domínio da Europa.
A partilha é feita de maneira arbitrária, não respeitando as características étnicas e culturais de cada povo, o que contribui para muitos dos conflitos atuais no continente africano. Os franceses instalam-se no noroeste, na região central e na ilha de Madagáscar.
Os ingleses estabelecem territórios coloniais em alguns países da África Ocidental, no nordeste e no sul do continente. A Alemanha conquista as regiões correspondentes aos atuais Togo, Camarões, Tanzânia, Ruanda, Burundi e Namíbia. Portugal e Espanha conservam antigas colônias.
Os portugueses continuam com Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, enquanto os espanhóis mantêm as posses coloniais de parte do Marrocos e da Guiné Equatorial. A Bélgica fica com o Congo (ex-Zaire) e a Itália conquista a Líbia, a Eritréia e parte da Somália.
Após a partilha ocorrem movimentos de resistência. Muitas manifestações são reprimidas com violência pelos colonizadores. Também são exploradas as rivalidades entre os próprios grupos africanos para facilitar a dominação. A colonização, à medida que representa a ocidentalização do mundo africano, suprime as estruturas tradicionais locais e deixa um vazio cultural de difícil reversão. O processo de independência das colônias europeias do continente africano tem início a partir da II Guerra Mundial.

PARTILHA DA ÁFRICA (1860-1914)   
1) Domínio Inglês sobre o Egito
1.1. A Questão do Canal de Suez (1869-1882)
Ainda que investir capital na África fosse algo pouco lucrativo, a Inglaterra desde muito se preocupava com este continente na sua condição de território estratégico para garantir sua hegemonia em importantes mercados, tais como a Índia, a China e a América Latina. Diante do acirramento da competição internacional, a Inglaterra pretendia dominar as principais rotas de acesso a estes mercados, excluindo as potências adversárias.
Os franceses e o quediva do Egito, Ismail Pasha (vassalo do sultão turco-otomano), construíam o Canal de Suez, que ligaria o Mar Mediterrâneo ao Mar Vermelho, permitindo um rápido acesso da Europa aos portos asiáticos.

1.2. Os Ingleses estabelecem controle sobre o Canal de Suez
Ao longo da construção, o governante do Egito havia contraído uma enorme dívida junto aos banqueiros ingleses e franceses. Em 1875, na impossibilidade de pagar esta dívida, Ismail Pasha põe à venda a sua cota de participação no empreendimento, que é comprada integralmente pela Inglaterra.
Em 1879, diante das crescentes dificuldades financeiras e dos "gastos extravagantes" do quediva, a França e a Inglaterra decidem assumir o controle das finanças egípcias através de uma intervenção direta, a fim de garantir que os capitais ingleses e franceses fossem restituídos.

1.3. Os Ingleses se tornam “administradores do Egito”
A situação provocou a revolta de grupos radicais egípcios (Revolta de Urabi) que viam na intervenção anglo-francesa um afronto às tradições do país. Assim, diante do estado de desordem, a Inglaterra decide unilateralmente ocupar o Egito e assumir completamente sua administração. Em seguida, os Ingleses iniciam o domínio do Rio Nilo, principal via de comunicação intra-africana.

2) Começa a Partilha da África
2.1. Depois da atitude inglesa, ninguém queria ficar para trás.
A ação inglesa pelo controle do Canal de Suez e do Egito deslanchou uma verdadeira corrida pelo controle do maior número possível de possessões na África. Os franceses ocuparam a Tunísia e a Guiné em 1881-1884, a Inglaterra estendeu suas possessões ao Sudão e para partes da Somália, a partir do Egito. Em 1870 e 1882, a Itália tomou posse da Eritréia, e a Alemanha ocupou o Togo, Camarões e os territórios no sudeste africano.

2.2. A Disputa pelo Congo
O Congo era uma região de pouco interesse econômico, mas que provocou uma série de disputas entre as potências imperialistas europeias. A situação em torno da região era de tensão. Mesmo sendo uma área com poucos atrativos, nenhuma das potências imperialistas aceitaria que um de seus rivais controlasse a área. O Rei Leopoldo II da Bélgica tinha planos expansionistas para a região do Congo, onde almejava explorar a produção de borracha em associação com trustes europeus.
A França havia se estabelecido em Brazzaville, em 1881, no Oeste do Congo. Portugal reclamava para si a região baseado em antigos acordos estabelecidos com os governantes nativos do "Império do Congo", e para tal, estabeleceram um tratado com a Inglaterra em 1884 para bloquear uma eventual saída para o Atlântico por parte de Leopoldo II.

3) A Conferência de Berlim (1884)
3.1. Bismarck resolve colocar ordem
Tendo sido aconselhado pelo Rei de Portugal, Bismarck resolve convocar as principais potências com interesses na África para um diálogo diplomático, a fim de estabelecer normas de conduta para a Partilha da África, e evitar que a expansão colonial se tornasse uma guerra constante, e quem sabe, de proporções mundiais.
Assim, na Conferência de Berlim (1884) se reúnem Estados Unidos da América, Império Austro- Húngaro, Bélgica, Dinamarca, França, Inglaterra, Itália, Holanda, Portugal, Rússia, Espanha e Suécia-Noruega (reino unido). A Conferência terminou em 1885, e todas as potências envolvidas ratificaram o acordo, exceto os Estados Unidos. Decidira-se o seguinte:
Diante da situação de tensão no Congo, a região deveria se transformar em um Estado Livre, propriedade pessoal do Rei Leopoldo II.
Entretanto, as potências signatárias teriam direito à livre navegação e livre comércio na bacia do Rio Congo. Vale lembrar que este rio é outra via privilegiada de transporte e comunicação no interior da África.

O tráfico de escravos foi proibido.

Pelo Princípio da Efetividade, uma potência somente poderia clamar um território como sua colônia se efetivamente estivesse dominando este território por meio de forças militares.

Qualquer ação de conquista de territórios na África deveria ser anunciada para todas as demais potências signatárias da Conferência de Berlim.

O Rei Leopoldo II da Bélgica justificava seu domínio pessoal sobre o Congo através de um discurso humanitário em defesa das populações africanas. Entretanto, em 1903-1904, Leopoldo II foi denunciado internacionalmente por genocídio e prática de atrocidades no Estado Livre do Congo. Diante da pressão internacional, foi obrigado a abrir mão de seu domínio pessoal, e o Congo passou a ser uma colônia do Estado belga em 1907-1908.

4) A Expansão Inglesa na África
4.1. Do Cabo ao Cairo, um sonho imperialista inglês
Após estabelecer seu domínio sobre o Egito, os ingleses foram expandindo suas colônias para o sul, ocupando os territórios dos atuais Sudão, Nigéria, Quênia e Uganda.
No extremo sul do continente africano, a Inglaterra mantinha controle sobre a Colônia do Cabo (no atual território da África do Sul). O plano era estabelecer uma linha contínua de territórios desde o Egito até a Colônia do Cabo.
No meio do caminho, entretanto, havia dois Estados Independentes, formados por colonos holandeses, que impediam a pretendida união territorial das colônias inglesas. Eram a República do Transvaal e o Estado Livre de Orange. Estes colonos holandeses haviam se estabelecido no sul da África, mas haviam deixado a região após a chegada dos ingleses. Eles eram chamados Bôeres.

4.2. A Guerra dos Bôeres (1899-1902)
Para a infelicidade dos Bôeres, explorações geológicas empreendidas por eles em 1887 revelaram a existência de amplas jazidas de ouro próximas de Pretória, capital da República do Transvaal
O Presidente da República do Transvaal, Paul Krueger, alertara aos seus cidadãos: "Antes de ficaram felizes, é melhor que choremos, porque todo este ouro fará nosso país ser banhado de sangue". Dito e feito.
Ao terem notícia da descoberta, milhares de colonos ingleses vindos da Colônia do Cabo entram em território dos Bôeres, para explorar as riquezas. Logo, os ingleses seriam maioria nas minas de ouro.
Para tentar excluir os ingleses deste processo, as autoridades do Transvaal negam direito de voto aos imigrantes ingleses e impõem severos impostos sobre a exploração do ouro.
Esta atitude provoca a ira das autoridades inglesas que demandam completa igualdade aos mineradores ingleses no Transvaal. A Rainha Vitória da Inglaterra é pressionada pela administração colonial no sentido de autorizar a invasão do território Bôer e a deposição de seu presidente.
A República do Transvaal e o Estado Livre de Orange se aliam, e enviam um ultimato aos ingleses, demandando a retirada de suas tropas da fronteira. Na medida em que não há acordo entre as duas partes, os Bôeres iniciam a guerra atacando a Colônia do Cabo (1899).
A partir de 1900 tem início a ofensiva inglesa, que reprime a agressão dos Bôeres e domina, com grande dificuldade, as capitais do Estado Livre de Orange e da República do Transvaal.
De 1900 a 1902 os Bôeres resistem através de táticas de guerrilha. Os ingleses utilizam a tática de terra arrasada, destruindo fazendas, gado, envenenando fontes de água e criando campos de concentração para aprisionar as famílias dos colonos bôeres. Cerca de ¼ da população Bôer foi reduzida aos campos de concentração, e 120.000 negros africanos, aliados dos Bôeres, foram igualmente aprisionados. Aproximadamente 30.000 crianças e mulheres morreram nos campos de concentração, vítimas de doenças e fome.
Em 1902, a tática de terra arrasada destruiu o moral dos colonos bôeres, que desistem da luta e se rendem.
Pelo Tratado de Vereeniging (1902), a Inglaterra concedeu uma indenização de 3 milhões de libras aos colonos derrotados, e a promessa de que, se aliados à Inglaterra, teriam direito ao auto-governo. Os colonos concordaram, e a República do Transvaal e o Estado Livre de Orange foram extintos e seus territórios incorporados como colônias.
Em 1910, a Inglaterra cria a União da África do Sul, incorporando o Transvaal, Orange e a Colônia do Cabo, concedendo-lhes autogoverno (ainda que dentro da condição de colônias inglesas)
Os ingleses conseguem assim ficar cada vez mais próximos de concretizar a união territorial do Egito ao sul da África.

5) A Tensão entre Inglaterra e França
5.1. Do Cairo ao Cabo, de Dakar ao Chifre: interesses em conflito
Na medida em que os ingleses queriam unir o Cairo á Colônia do Cabo (eixo norte-sul), os franceses também tinham interesses, mas em um outro sentido geográfico. Pretendiam unir Dakar (Senegal) ao Chifre da África (região leste do Sudão), em um eixo leste-oeste.
Os franceses queriam unir o Rio Niger ao Rio Nilo, e com isso controlar as caravanas que cruzavam o Deserto do Saara, unindo o Oceano Atlântico ao Mar Vermelho.
Estas duas linhas se cruzavam em algum ponto perto de Fashoda, no leste do Sudão.

5.2 O Incidente de Fashoda (1898-1899)
As forças armadas britânicas e francesas foram progressivamente acumulando tropas na região, iniciando uma guerra psicológica, ambos tentando persuadir o inimigo a recuar e abrir mão do controle da região. A situação chegou a um ponto de tensão internacional tamanho que a guerra entre Inglaterra e França parecia quase que inevitável. Os dois lados acusavam-se de expansionismo desleal, e exigiam a retirada.
Não resistindo a pressão e temendo uma vitória inglesa, a França se retira de Fashoda. Após o incidente, França e Inglaterra estabelecem que a nascente do Rio Nilo e o Rio Congo seriam os limites das áreas de influência de cada uma das potências. Esta foi a última disputa em larga escala envolvendo franceses e ingleses.



O ÊXITO E O FRACASSO ESCOLAR SEGUNDO A PERSPECTIVA PSICANALÍTICA

PSICOLOGIA E CONTRIBUIÇÕES PARA A EDUCAÇÃO
 Gisele Finatti Baraglio
             “Dê-me uma dúzia de crianças saudáveis, bem formadas, e meu próprio mundo especificado para criá-los e eu vou garantir a tomar qualquer uma ao acaso e treiná-lo para se transformar em qualquer tipo de especialista que eu selecione - advogado, médico, artista, comerciante-chefe, e, sim, mesmo mendigo e ladrão, independentemente dos seus talentos, inclinações, tendências, habilidades, vocações e raça de seus antepassados; eu vou além dos meus fatos e eu admito isso, mas tem os defensores do contrário e eles foram fazendo isso por muitos milhares de anos. "
John B. Watson, behaviorismo.
Ainda que tomemos este pensador; um dos mais proeminentes exemplos do behaviorismo, e apesar das inegáveis qualificações de John Watson, que começou a ensinar psicologia da Universidade John Hopkins em 1908, a questão do êxito e do fracasso escolar, é de tal forma fósmeo que não nos permitimos acolher uma só explicação, o tema exige ser repensado, pois as teorias para "explicar" tal fenômeno nunca proporcionaram plena satisfação aos cientistas que fazem as tais chamadas "ciências psi". Por ciências psi (melhor dito, saberes psi) entenda-se um conjunto multidisciplinar que agrega a psicanálise, a psicologia, e até a psiquiatria e se consolida com o advento da psicopedagogia, que agora integra esse o rol das especialidades acadêmicas.
Transmitir educação escolar ou acadêmica às novas gerações e os problemas inerentes à tal necessidade tem gerado estudos e debates; em meio a esta algavia encontra-se a relação professor-aluno, e consequentemente, a capacidade do professor de conseguir alcançar os objetivos inerentes à sua função. Não são necessárias pesquisas pedagógicas para saber que, entre outras dificuldades, o professor passa a maior parte de seu tempo em sala de aula, tentando criar condições para por em prática seu fazer pedagógico.
Neste cenário de buscas e controvérsias o tema afetividade, que consideramos como um dos pontos chaves na superação dos conflitos escolares, é infrequente, e quando abordado acaba sendo ocultado nas encruzilhadas do cotidiano escolar.
Em suas primeiras luzes, desde que começou a ser forjada no espírito dos seus pioneiros, a psicopedagogia inquietou-se com o problema do êxito e do fracasso escolar. A síntese acadêmica que resulta na psicopedagogia é a própria ilustração desse fato: os saberes da psicologia e da pedagogia; e da didática; não comportavam sozinhas as exigências do pensar e do fazer a arte do ensinar e do aprender, objeto teórico e prático específicos da psicologia e da pedagogia.
Assim, o nascimento da psicopedagogia sinaliza os anseios de um novo pensar sobre o processo ensino-aprendizagem. Quais os mistérios envolvem o ofício de transmissão de saberes; o que produz a centelha do saber dentro das pessoas? Como e em quais circunstâncias é possível alguém ensinar alguma coisa a outrem? Aprender percorre o itinerário de dentro para fora, ou inverso? É possível ensinar o que não se sabe? Ou a quem não se identifica como ensinado? (propositalmente evito ao longo deste artigo usar o termo aluno pela sua essência: sem –luz).
Estas perguntas comportam diversas respostas, para refletir sobre o tema, com o foco do êxito e do fracasso escolar, utilizarei o universo conceitual da Psicanálise, naquilo que me é conhecido até o momento, ampliando-o sua perspectiva social, para promover o entendimento global do ensinar e do aprender dentro do contexto da nossa sociedade específica.
Vamos então, em primeiro lugar, convocar à cena o pensar dos brasileiros que articulam o discurso da psicanálise com a educação. Evoco, a priori, o psicanalista Célio Garcia, professor da UFMG, em seu profundo texto "Psicanálise e Educação" afirma que "toda e qualquer pedagogia expõe o sujeito ao outro e é fonte de aculturação. A educação solicita o aprendiz a entrar em contato com a alteridade a mais estranha, exige que ele renasça mestiço."[1]
O autor que dizer que, no encontro entre o professor e o aprendente, perpassa uma linha invisível (e indizível) do desejo. Todo desejo remete à nossa incompletude, a uma falta que reivindica satisfação, algo da ordem muito singular, do sujeito. Tanto do que ensina quanto do que aprende. A própria razão de ser do desejante cognitivo é um entremeado de comunicações metalinguísticas subjacentes ao desejo de saber e ao desejo de poder de cada um dos componentes da dinâmica ensinar-aprender.
Para possibilitar um patamar mais elevado de discussão, a Psicanálise propõe não uma reforma da pedagogia enquanto "ciência da educação", nem da didática (didax, dedo em riste) enquanto método, mas articula-se um novo patamar epistêmico na medida em que a sugere uma reforma do entendimento. Nesse projeto inclui-se a instauração da Pedagogia Clínica, "decididamente instruída pela Psicanálise", no dizer de Célio Garcia, que completa: "A Pedagogia Clínica não se pauta pelo dogma, nem se limita à estrutura, ela conhece o indistinto (o indecidível), porém não o confunde com a incerteza."[2]. Assim, o erro (e, com ele, o fracasso escolar) pode levar à reflexão diversa da clássica concepção linear do que é certo e do que é errado, no campo do ensino-aprendizagem.
Freud, por seu lado, tocou no tema "educação" em 97 dos seus trabalhos, embora tenha dedicado especial atenção à questão na sua conferência XXXIV, no volume XXII da Edição Stardard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, onde lemos que: 
"Percebemos que a dificuldade da infância reside no fato de que, num curto espaço de tempo, uma criança tem de assimilar os resultados de uma evolução cultural que se estende por milhares de anos, incluindo-se aí a aquisição do controle de seus instintos e a adaptação à sociedade (...) Só pode efetuar uma parte dessa modificação através do seu desenvolvimento; muitas coisas devem ser impostas à criança pela educação. Não nos surpreendemos se muitas vezes as crianças executam essa tarefa de modo muito imperfeito. Durante esses primeiros anos, muitas delas passam por estados que podem ser equiparados a neuroses (...). Em algumas crianças, a doença neurótica não espera até a puberdade, mas irrompe já na infância e dá muito trabalho aos pais e aos médicos."[3]
Portanto, não há dúvida que as "releituras" de Freud indiquem a persistência de uma preocupação, por parte de Freud, da temática educação.
O que a Psicanálise colocou em evidência é o paradoxo no qual se inscrevem o educando e o educador. Isso porque a educação é um dos meios de o indivíduo suportar e controlar suas pulsões naturais, por um lado; por outro lado, a Psicanálise também revelou que reprimir as pulsões instintivas é o melhor método para produzir neuroses.
Quando Freud dizia que governar, educar e (psic) analisar são "ofícios impossíveis". Note-se que os três acima referidos dizem respeito ao contato do indivíduo que, para realizar a construção simbólica da sua "personalidade", coloca em contato interpessoal o desejo, nesse caso especificamente o desejo de saber que, para Freud, tinha uma conotação sexual.
O desejo de aprender do aprendiz está conectado com o desejo de ensinar do professor. Vale lembrar que o vocábulo "ensinar" deriva do in-signare latino, ou seja, colocar sinais, apontar direções, sugerir os melhores caminhos. Missão por excelência dos mestres de todas as épocas. A transmissão do conhecimento tem como suporte a palavra, sustentáculo da civilização por integrar o tríplice intercâmbio cultural proposto por Lévi-Strauss.
Freud nos alerta, em seu artigo “O Interesse Científico da Psicanálise”, que "só pode ensinar aquele que está capacitado a entrar na alma do seu aluno."[4] Nesse diálogo de alma a alma, uma ilumina a outra, fazendo surgir conhecimentos ocultos do próprio sujeito. Desde os gregos questiona-se a possibilidade de alguém transmitir conhecimentos que não estejam in potentia dentro do próprio indivíduo, esperando oportunidade para vir à tona.
Em contrapartida, a psicanálise fala de um desejo que não permite ser conhecido. Algo que se inscreve na ordem do inconsciente e do inominável: aquilo que não tem nome e nem existência (dado que o que não é nomeado, não possui direito de reivindicação; à vida).
Assim, a psicologia de corte psicanalítico está bastante distanciada das concepções puramente pedagógicas que não conseguem admitir um conhecimento de natureza inconsciente porque a ela (pedagogia) não lhe é familiar a estrutura psíquica, as teorias das pulsões e outros signos e significados próprios à psicologia.
A vida cotidiana das instituições escolares constitui uma realidade de cooperação e conflitos entre os sujeitos que a compõem. E essa realidade pode ser menos ou mais cooperativa, ou conflituosa, dependendo da forma de interagir desses sujeitos. Entretanto, a interação social depende da maneira como as pessoas se percebem.
  A percepção que temos de outrem é influência de nossas experiências passadas, preconceitos e valores, que interferem de forma definitiva nas relações humanas, como também de nosso estado emocional momentâneo. Em outros termos, uma das vias de entendimento dos conflitos no interior da escola é acerca da qualidade das relações interpessoais entre seus atores.
Este inconsciente manifesta-se nos sonhos, nos sintomas, nos chistes, nos atos falhos e nos lapsos de língua, tais manifestações inconscientes colocam em cena as questões emocionais mais profundas, neles marcados desde a mais tenra infância.
Por causa disso é tão importante a relação professor-aluno, pois neste confronto são colocadas duas pessoas, cada uma com sua própria "herança" afetivo-emocional; o professor e o aprendente nos leva à discussão sobre a relação docente-discente, especialmente porque "as perguntas e os motivos que levam um aluno a aprender ou a fracassar desembocam, direta ou indiretamente, em respostas que trazem para o primeiro plano da cena pedagógica a relação professor-aluno."[5]
Evidenciar-se o desejo de ensinar, no professor, e o desejo de saber, do outro; então, por um lado o aluno supõe que o professor saiba o que ele deseja aprender, mas por outro lado, o professor não sabe o que os estudantes querem saber. Desse modo fica claríssimo que a tarefa pedagógica consiste na enunciação de dois vetores desejantes: o de quem ensina e o de quem aprende; os desejos de ensinar e aprender provoca uma confusão mental nos professores que querem ser amados por haverem colaborado com o êxito social de ex-discípulos. a tal ponto que  se afastam da possibilidade de sustentar a transmissão, não realizam outras função a não ser a da sedução, já que acreditam serem, eles próprios (os professores), o verdadeiro objeto de amor de seus alunos.
Eis, portanto uma das múltiplas variações do desejo; ou seja, estamos no campo específico da psicanálise que é convocada a emitir um discurso sobre a questão do fracasso escolar, fracasso este entendido como  outra perspectiva, a de um sintoma, uma espécie de mal-estar sociocultural que precede e prossegue antes, durante e depois do processo ensino-aprendizagem.
            O próprio termo "fracasso" já implica em um julgamento de valor, lembra Anny Cordié. Em seu livro “Os Atrasados não Existem”, no qual trata da psicanálise de crianças com fracasso escolar, esta autora afirma: 
"Ser bem-sucedido na escola é ter uma perspectiva do ter, mais, tarde, um a bela situação, de Ter acesso, portanto, ao consumo de bens. Significa também 'ser alguém', isto é, possuir o falo imaginário, ser considerado, respeitado. O dinheiro e o poder, não são eles a felicidade? (...) O fracasso escolar pressupõe a renúncia a tudo isso, a renúncia ao gozo."[6]
             Abdicar do gozo exige também uma interpretação radical. Gozo, num sentido metafreudiano, significará para Lacan algo além do princípio do prazer: "O gozo é o que o sujeito procura além dos objetos de sua cobiça nas suas condutas repetitivas, e que podem muito bem ser o sofrimento ou a morte", afirma Cordié.[7]
Já temos, portanto, uma função para o sintoma representado pelo fracasso escolar; considerando que o sintoma é a atividade erótica do neurótico, fornecendo-lhe um gozo secundário mesmo através do fracasso escolar, estamos diante da evidência de que a economia libidinal está ligada aos processos ensino-aprendizagem, no qual até mesmo o êxito escolar revela as dificuldades psicológicas do sujeito aprendente.
É essa dinâmica que Piaget negligenciou na sua epistemologia genética, pois o mesmo acreditava que o rendimento intelectual era independente do desenvolvimento psico-sexual-afetivo-emocional, daí porque a ideia da ligação entre as dificuldades escolares e a inibição neurótica lhe era completamente estranha.
Para analisar o fracasso (e mesmo o êxito) escolar é preciso entender que além dos desejos inconscientes que trafegam em mão dupla na relação professor-aluno, existe o fenômeno da transferência através do qual os participantes desta díade.
O fracasso é o ponto de estrangulamento na relação ensino-aprendizagem que teria como substrato não apenas condições cognitivas passíveis de mensuração, mas sim algo da ordem do imponderável e mesmo do irracional, dado que o sintoma (o não-aprender) é um epifenômeno, o sinal de um profundo mal-estar do sujeito, este assujeitado às condições do seu gozo (ou da falta dele) nas primeiras fases do desenvolvimento psico-sexual do indivíduo, na sua primeira infância, que o tornou um ser dividido entre o princípio do prazer e o princípio da realidade, entre as exigências do gozo colocadas pelas pulsões instintuais, por um lado, e a denegação do gozo, imposta pela "cultura".
Portanto, o fracasso escolar representa um sintoma, e não necessariamente debilidade cognitiva ou de condicionamento comportamental.
A partir deste pressuposto  devemos nos acautelar quando nos deparamos, por exemplo, com crianças "diagnosticadas" como portadoras de debilidade intelectual; os motivos que instalam o sintoma não são só de ordem intrapsíquicas, mas inclusive de ordem econômico-social: "A desigualdade dos cidadãos, que se fundamenta na diferença de classes sociais, reaparece atualmente sob a forma de desigualdade das capacidades intelectuais", afirma Cordié.[8].
Ocorre que na imensa maioria das vezes aquilo que é sintomático se transforma em estrutural, sem esquecer que limitações intelectuais são encontradas em todas as estruturas psicopatológicas.
Com o objetivo de proporcionar novo campo explicativo para a questão do êxito e do fracasso escolar, é necessário estabelecer que na prática psicopedagógica de inspiração psicanalítica (para quem a segue) existem os tópicos que não podem ser esquecidos, a saber:
  • a dimensão do inconsciente;
  • a noção de estrutura neurótica ou psicótica;
  • o sentido do sintoma; e
  • a inscrição do sujeito no campo da linguagem.

Anny Cordié, dentro da coerência do seu discurso psicanalítico, critica Jean Piaget porque apesar de o mesmo haver escrito mais de duzentos títulos, num total de vinte mil páginas, num período de 60 anos, o mesmo procede ao isolamento social do sujeito que aprende. "Piaget bem sabia nas crianças que observava que estas tinham afetos, conflitos, emoções, mas pensava não ter de considerá-los na avaliação do desenvolvimento intelectual; acreditava, pois na autonomia das faculdades cognitivas", resume Cordié.[9]
O reducionismo dessa abordagem foi criticado por muitos autores, inclusive por Henry Wallon, que tentou realizar uma crítica elaborada dos conceitos piagetianos. Outra dimensão, a do social, também foi resgatada por Lev Simonovich Vigotsky, a realização das potencialidades estão submetidas a certas condições como a troca com o outro, a inserção de ambos num universo simbólico.
Enquanto Piaget tão somente abstraía, por opção de isolamento metodológico, de componentes como pulsões, conflitos intrapsíquicos, afetos inconscientes e desejos recalcados, nos seus seguidores esta opção tornou-se negação desses componentes acima referidos.
Wallon resgata a emoção como substrato do ato cognitivo e o afeto como raiz do intelecto; Lacan, durante um seminário em 12 de junho de 1963, também criticou Piaget afirmando: "Piaget desconhece totalmente o que há como causa para uma criança: oque são os desejos não imagina que uma torneira, por exemplo, a ela lhe dar vontade de “fazer pipi”. (...) A torneira, assim, se encontra também no lugar da causa no nível de sua dimensão fálica"
Desse modo, a causa do desenvolvimento na concepção de Piaget se reduz ao determinismo biológico, ao passo que a causa do sujeito, desde a perspectiva psicanalítica, é encontrada na sua condição de sujeito originalmente dividido.
 Entretanto, existem aqueles casos mais complicados em que o sujeito apresenta uma inibição das estruturas psicóticas, na qual o sujeito não pode ter acesso à ordem simbólica devido a uma falha em sua estrutura psíquica que impede seu acesso ao saber.
E por último, mas não menos importante, temos aqueles casos nos quais o fracasso escolar está associado a carência de contribuição significativa na qual as crianças de meios populares não recebem os devidos estímulos linguísticos, culturais e sociais que podem ser agravadas naqueles casos em que a pobreza afetiva e emocional está associada à penúria econômica e cultural da família do sujeito aprendente.
Aprender, compreender, está ligado à pulsão da vida e é em última análise um hino de vitória sobre nossa maior inimiga, a que torna débil quem não conquista os melhores patamares da pirâmide do conhecimento. Por estar ligado às pulsões eróticas e ao princípio do prazer, a vontade ou a pulsão do saber poderá tornar-se em muitos sujeitos uma verdadeira paixão pelo saber.
Em contrapartida, deve também existir uma "paixão da ignorância", que estaria ligada à pulsão de morte, através do qual o sujeito é excluído por força de exclusões que experimentou nos seus primeiros laços afetivos, na sua mais tenra infância.
CONCLUSÃO
É bom lembrar que nosso universo de investigação, por ser demasiado amplo, exige uma abordagem pluridisciplinar dos sintomas, sem cair nos riscos fáceis de se tornar incoerente por força das discrepâncias entre alguns paradigmas das teorias aqui evocadas, devemos recordar que a inibição intelectual (e, portanto, o fracasso escolar) é proveniente de uma desordem neurótica, pois o desejo de saber (ou a pulsão de saber, como Freud chama) ficou inibido quando atingido por um interdito, uma proibição sobre algo que o sujeito queria saber, de modo que o conhecimento ameaça o equilíbrio do sujeito e, por isso, ele se nega (inconscientemente) a aprender.
Sabemos que o objetivo da vida é a conquista do gozo, que se evade sem cessar, mas a cuja busca eterna o sujeito se prende. Esse gozo, próximo da pulsão de morte, deverá ser domado pelo sujeito e para isso, o sujeito deverá submeter-se às regras do prazer e do desejo, bem como aos interditos da lei.
  E a melhor forma de assujeitar o sujeito é articulando desejo e prazer no desafio cultural do bem aprender, isto é, da conquista do êxito escolar, através do qual o sujeito se inscreve como vitorioso no meio social onde escreve sua história individual e coletiva.



BIBLIOGRAFIA
CORDIÉ, A. “Os Atrasados não Existem: Psicanálise de Criança com Fracasso Escolar”. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
FREUD, S. “Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar (1914). In: Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud”. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XIII, pp. 245-50.
_____. “Análise terminável e interminável (1937). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud”. Rio de Janeiro: Imago, 1975, vol. XXIII, p. 239-88.
_____. “Carta 71 (1897). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud”. Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. I, p. 263.
_____. “Conferências Introdutórias à Psicanálise. Parte III. A teoria geral das neuroses” (1917) Conferência XXIII: Os caminhos para a formação de sintomas. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. XVI, pp. 419-40.
_____. “Da história de uma neurose infantil” (1918). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. XVII, p. 13-156.
_____. “O Futuro de uma Ilusão” (1927). In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XXI, pp. 15-66.
GARCIA, C. "Psicanálise e Educação", in Eliana LOPES (Org.), A Psicanálise Escuta a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
MENDONÇA FILHO, J.B. "Ensinar: Do mal-entendido ao inesperado da transmissão", in Eliana LOPES (Org.), “A Psicanálise Escuta a Educação”. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.
ROTHGEB, C.L. (ed.). “Sigmund Freud - Chaves Resumo das Obras Completas”. São Paulo: Atheneu, 2001, 284p.




[1] C. GARCIA, "Psicanálise e Educação", in Eliana LOPES (Org.), A Psicanálise Escuta a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 1998, p. 22.
[2] Id., op. cit., p. 22.
[3] S. FREUD, "Conferência XXXIV", Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, s/d.
[4] J. B. MENDONÇA FILHO., "Ensinar: Do mal-entendido ao inesperado da transmissão", in Eliana LOPES (Org.), A Psicanálise Escuta a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 1998, p. 75.
[5] Id., op. cit., p. 104.
[6] A. CORDIÉ, Os Atrasados não Existem: Psicanálise de Criança com Fracasso Escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996, p. 21.
[7] Id., op. cit., p. 152.
[8] Conf. Id., op. cit., p. 41.
[9] Id., op. cit., p. 116..