quinta-feira, 10 de outubro de 2013

PATAXÓ - RITO E MITO

O MITO DA AMESCA: TRADIÇÃO E AFIRMAÇÃO DA CULTURA PATAXÓ





Pataxó é água da chuva
batendo na terra, nas pedras,
e indo embora para o rio 
e o mar.[1]

Txôpai, o Deus guerreiro e da água, é a principal divindade na cosmologia Pataxó. Ele foi o primeiro a viver na terra e aprender tudo sobre ela, desde sua fauna a sua flora. Quando os Pataxó surgem é ele quem vai ensinar toda a sabedoria da mata.
Os Pataxó possuem um conhecimento acurado sobre a terra e os diferentes ambientes de seu território. A percepção e o conhecimento que os Pataxó possuem dos ambientes é fruto de uma longa história de relação com os diversos seres e entidades que coabitam com eles os espaços, conhecimentos que se originam não apenas da experiência produtiva na busca por alimento, mas de uma vivência emotiva de reflexão e de experimentação que gera uma relação de responsabilidade e pertença ao território.[2]
O presente artigo é um ensaio sobre a relação dos Pataxó com a natureza. Destacando o mito da Amesca, uma árvore de grande importância cultural e cosmológica – com propriedades que servem tanto no cotidiano da aldeia quanto para os momentos ritualísticos – e a sua relação direta com a Festa das Águas, um dos rituais mais importantes para a cultura deste povo. Vale ressaltar que na atual conjuntura os Pataxó passam por um processo de resignificação e reafirmação de sua identidade..
Este estudo teve participação significante de Tamaru, professor de cultura na aldeia Geru Tucunã. No qual, contribuiu para a compreensão desta relação imprescindível da amesca e a comunidade. Devemos destacar que por conta de sua sacralidade algumas informações são omitidas para estudo ou para não indígenas, sendo reservados apenas para o grupo. Assim garantem a preservação de seus aspectos culturais mais íntimos para as gerações futuras, pelo bem da cultura e memória Pataxó.


Cacique Bayara - Aldeia Geru Tucunã
A LUTA ATUAL
            A mobilidade espacial dos Pataxó era um elemento muito forte na cultura. Não estabeleciam aldeias por mais de três a quatro meses. Nayara Pataxó[1] deixa bem claro que conhecedores das matas e de seu território não passavam fome. Entretanto, com o tempo todas as terras foram sendo invadidas, as matas foram sumidas devido ao desmatamento. O aldeamento forçado de 1861 também transformou os aspectos culturais dos Pataxó.
             Assim como muitas outras etnias indígenas brasileiras, os Pataxó também sofreram com o processo de integração nacional como outras pressões que ameaçaram seu povo, foram expulsos de seus territórios e procuraram se readaptar para sobreviver. “Por meio da elaboração e execução de diferentes políticas indígenas, possibilitando aos índios a reelaboração de sua cultura, a reconstrução de suas identidades, a ampliação de suas redes de solidariedade e a sua permanência física e cultural enquanto grupo social”.[2]
             Com a constituição de 1988 o cenário político se torna mais favorável para os direitos das minorias, é vista como um marco histórico no âmbito do surgimento dos movimentos indígenas brasileiros e a busca por autoafirmação de sua identidade étnica.
             Levando em consideração o caso os Pataxó “vivem um momento de reelaboração dos “traços culturais”, que remetem a um passado comum, às continuidades e descontinuidades da narrativa histórica construída em torno do contato com a sociedade envolvente”.[3] Dessa forma  um dos marcadores étnicos mais importantes da cultura Pataxó é a utilização da Amesca.

Defumando com Amesca 
ONDE HÁ PATAXÓ, HÁ AMESCA
Nem que seja um pouquinho, nem que seja uma árvore. A Amesca é uma planta insubstituível na Cultura Pataxó. Tamanho é seu grau de importância que sua utilização vai desde o uso cotidiano a suas práticas sagradas. Tão relevante que existe até um mito sobre sua origem.
A Amesca era uma índia pataxó que desde criança foi escolhida pelo seu povo para ser uma grande guerreira, por isso ela não podia se casar e ter filhos. Passados muitos anos, Amesca cresceu e se tornou uma jovem muito bonita e logo se apaixonou por um índio que também era Pataxó. Logo Amesca engravidou e até então estava tudo bem, mas com o passar do tempo, Amesca descobriu que estava grávida de gêmeos. Segundo os mais velhos da sua aldeia, quando uma índia ficasse grávida de gêmeos teria que sacrificar um dos dois, pois acreditavam que um deles viria para praticar o bem e o outro para fazer o mal. Amesca não queria que seu filho morresse e então passou os nove meses chorando e pensando no que ela iria fazer para salvar seu filho. No dia do seu parto, Amesca deu à luz aos seus dois filhos e morreu. Assim, os mais velhos acreditaram que a maldição morreu com ela e que seu filho estava livre da maldição. Então o seu povo enterrou Amesca e foi embora daquele lugar. Passou-se muito tempo até que os Pataxó voltaram ao lugar onde tinham enterrado Amesca e em cima do seu túmulo viram que tinha nascido um grande pé de árvore. Eles colocaram o nome dessa árvore de Amesca. Essa árvore soltava uma resina branca parecida com uma lágrima e dava duas frutinhas grudadas e muito doces. Os índios logo observaram que essa resina era as lágrimas da índia e que os frutos eram os seus filhos gêmeos.[1]
Ensinado pelos antepassados, todos da aldeia a utilizam e em tudo se aproveita da Amesca: suas folhas, seus frutos, a resina que a planta produz. Segundo Tamaru[2], professor de Cultura da Aldeia Geru Tucunã, ela pode ser encontrada “em duas qualidades: uma solta só um pó preto e a outra resina”, que pode ser branca ou preta. A mais utilizada é a que solta a resina branca.
Como uso medicial, de suas folhas se faz chá, a própria resina quando dissolvida na água é boa para gastrite. A “seiva serve para combater dores de cabeça, dor de dente, sinusite, dor de barriga e outros”[3]. Outro uso é na lamparina, nas comunidades que não tinham ou não tem acesso à energia elétrica. Seus frutos servem de alimento e são muito saborosos. O artesanato também a utiliza para a confecção de pequenos objetos que servem como ornamentos para enfeitar a casa, que são vendidos principalmente para turistas e pessoas que visitam a aldeia.
Mas, sobretudo, o uso da seiva da Amesca, a resina, é utilizado em práticas de incensar: nas orações para proteção dos encantados da mata e também nos rituais sagrados para chamar os espíritos bons e guerreiros para dentro da Aldeia e principalmente, para uma limpeza espiritual.  Como afirma Tamaru, “sem o cheiro da Amesca não tem ritual”. E são vários os rituais sagrados que a utilizam, como a importantíssima Festa das Águas, o Awê, rituais de pajelança, entre outras. Até as parteiras utilizam dessa tão significativa planta nos trabalhos de parto. Tão considerável que “um dos cuidados com a casa consiste na defumação, que pode ser tanto com plantas sagradas encontradas nos quintais, como com capim aruanda encontrado, ou com a amescla.”[4]Utilizada também como fumo ritual, outras plantas são adicionadas ao cachimbo, o capim de aruanda, alfazema, alecrim e amburana.
A FESTA DAS ÁGUAS
Todo ano no mês de outubro a comunidade Pataxó se reúne para um dos mais essenciais rituais de sua cultura: A festa das águas. Cacique Romildo[5], deixa claro que desde seus antepassados essa festa ritualística e sagrada já era realizada. É um momento de evocação dos espíritos bons e guerreiros da Mata, onde os protetores da floresta, como o Pai da Mata e Hamãy vem à aldeia e é um momento de agradecer e comemorar o tempo da colheita a Txôpai - Deus das águas.
Na Festa das Águas, o uso da Amesca é indispensável, pois ela é utilizada para a purificação do espaço e dos corpos presentes. Outro grande destaque é a figura do pajé, que fará a ligação aldeia – mundo espiritual. O uso da Amesca, como descrito anteriormente, é de extrema importância por ser a partir dela a vinda dos espíritos bons e guerreiros da mata para comemorar juntamente com a Aldeia. Funciona como um sinalizador que os Pataxó possuem para atrair os espíritos a se achegarem.
Vale ressaltar que eles são um povo que tem uma estreita relação com a água, tanto que sua principal divindade é o Deus das Águas, ademais a sua própria origem está na água. A escolha do período, além de ter relação com os antepassados também associa-se ao fato de ter ser tempo da colheita, como relata Cacique Romildo, “é o início das águas, início de novas vidas, início da fartura”. Dessa forma podemos perceber como a cultura Pataxó está intimamente ligada com a natureza, o meio ambiente e os seres encantados que o circunda. Os Pataxó utilizam da própria natureza (a Amesca) para poder entrar em contato com todos os outros mundos (cultura) e assim manter a harmonia entre animais, espíritos da mata e encantados. Não há outro modo de viver Pataxó que não esteja relacionado com a ligação Natureza – Cultura.
A realização do rito promove a transmissão cultural às gerações futuras. Atualmente a cultura Pataxó é mantida e fortalecida através dos rituais e momentos culturais na aldeia. Reafirmando que o povo Pataxó existe e resiste, mesmo com todo o histórico de desapropriação de seu território, quando na década de 60 tinham sido dados como extintos ou totalmente “integrados” a nação. Contrariando assim a afirmativa de Darcy Ribeiro[6].

ONDE HÁ PATAXÓ HÁ AMESCA
A LUTA ATUAL
[1] Índios Pataxós e a terra do descobrimento. Direção: Paula Saldanha, Roberto Verneck. Produção: Pedro S. Werneck. Documentário, 25’26”. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=Vblr6PrWYs4. Acesso em 20 outubro de 2013.
[2]Povo Pataxó. Inventário Cultural Pataxó: tradições do povo Pataxó do Extremo Sul da Bahia. Bahia: Atxohã / Instituto Tribos Jovens (ITJ), 2011. P.15.
[3] Llanes Guardiola, Carolina. Autoridades, Lideranças e Administração de Conflitos na Aldeia Indígena Pataxó de Barra Velha, Bahia / Carolina Llanes Guardiola, UFF/ Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Niterói, 2011. p.25
 INTRODUÇÃO
[1] PATAXÓ, Kanátyo. Itôhã e Txôpai. Programa de implantação das escolas indígenas de Minas Gerais. SEE/MG Belo Horizonte, 1997
[2] Cardoso, Thiago Mota; Pinheiro, Maíra Bueno(Orgs.). Aragwaksã: Plano de Gestão Territorial do povo Pataxó de Barra Velha e Águas Belas.- Brasília: FUNAI/CGMT/CGETNO/CGGAM,2012.p.37
[3] Há dois mitos sobre a origem: um está presente no livro de referência nº 1 e o outro está em Povo Pataxó. Inventário Cultural Pataxó: tradições do povo Pataxó do Extremo Sul da Bahia. Bahia: Atxohã / Instituto Tribos Jovens (ITJ), 2011. P.104
[4] PAES, Francisco Simões. Rastros do espírito: fragmentos para a leitura de algumas fotografias dos Ramkokamekrá por Curt Nimuendaju. Rev. Antropol. [online]. 2004, vol.47, n.1, pp. 267-307. ISSN 0034-7701.
[5] CARNEIRO DA CUNHA, Manoela. Lógica do mito e da ação: o movimento messiânico canela de 1963. In: Antropologia do Brasil, São Paulo, Brasiliense.1987. p. 34
[6] Grifo nosso. O termo “tribo” não é mais utilizado desde a Convenção 169 da OIT, entretanto o texto original utiliza-se dessa palavra.