Em
mais um texto da série sobre metodologias científicas, chegamos ao método
dialético.
A
dialética é uma forma de analisar a realidade a partir da confrontação de
teses, hipóteses ou teorias e tem origem na Grécia antiga, com filósofos
clássicos como Sócrates, Platão, Aristóteles e Heráclito.
Para
Platão, a dialética era a própria definição do pensamento científico, ou seja,
a dialética era simplesmente a investigação racional de um conceito.
Assim,
a dialética é a investigação através da contraposição de elementos conflitantes
e a compreensão do papel desses elementos em um fenômeno. O pesquisador deve
confrontar qualquer conceito tomado como “verdade” com outras realidades e
teorias para se obter uma nova conclusão, uma nova teoria. Assim, a dialética
não analisa o objeto estático, mas contextualiza o objeto de estudo na dinâmica
histórica, cultural e social.
A
argumentação dialética foi usada também na metafísica (Osho Rajneesh, “guru”
indiano, utilizou parte dos pensamentos de Heráclito), sendo sistematizada
contemporaneamente pelo pensador idealista alemão Friedrich Hegel.
Hegel,
expoente da filosofia clássica alemã, identificou três momentos básicos no
método dialético: a tese (uma ideia pretensamente verdadeira), a antítese (a
contradição ou negação dessa essa tese) e a síntese (o resultado da
confrontação de ambas as ideias). A síntese se torna uma nova tese e o ciclo
dialético recomeça.
Mas
a dialética só se torna método científico a partir de Karl Marx, que critica o
idealismo da filosofia clássica alemã e propõe a dialética materialista, ou
seja, a utilização do pensamento dialético como método de análise da realidade,
utilizando a própria realidade como argumento.
Este
texto, como pretende analisar os métodos científicos, se refere a exatamente
esse tipo de dialética: a dialética materialista.
As Leis da
Dialética
Os
diferentes autores que interpretaram a dialética materialista não estão de
acordo quanto ao número de leis fundamentais do método dialético: alguns
apontam três e outros, quatro. Quanto à denominação e à ordem de
apresentação, estas também variam. Numa tentativa de unificação, diríamos
que as quatro leis fundamentais são:
1. ação
recíproca, unidade polar ou “tudo se relaciona”;
2. mudança
dialética, negação da negação ou “tudo se transforma”;
3. passagem
da quantidade à qualidade ou mudança qualitativa;
4. interpenetração
dos contrários, contradição ou luta dos contrários.
AÇÃO RECÍPROCA
Ao
contrário da metafísica, que concebe o mundo como um conjunto de coisas
estáticas, a dialética o compreende como um conjunto de processos. Para
Engels (ln: Politzer, 1979:214), a dialética é a “grande ideia fundamental
segundo a qual o mundo não deve ser considerado como um complexo de coisas
acabadas, mas como um complexo de processos em que as coisas, na
aparência estáveis, do mesmo modo que os seus reflexos intelectuais no
nosso cérebro, as idéias, passam por uma mudança ininterrupta de devir e decadência,
em que, finalmente, apesar de todos os insucessos aparentes e
retrocessos momentâneos, um desenvolvimento progressivo acaba por se fazer
hoje”.
Portanto,
para a dialética, as coisas não são analisadas na qualidade de objetos
fixos, mas em movimento: nenhuma coisa está “acabada”, encontrando-se
sempre em vias de se transformar, desenvolver; o fim de um processo é
sempre o começo de outro.
Por
outro lado, as coisas não existem isoladas, destacadas uma das outras e
independentes, mas como um todo unido, coerente. Tanto a natureza quanto a
sociedade são compostas de objetos e fenômenos organicamente ligados entre si,
dependendo uns dos outros e, ao mesmo tempo, condicionando-se reciprocamente.
Stalin
(ln: Politzer et al., s.d.:37) refere-se a esta interdependência e ação
recíproca, indicando ser por esse motivo “que o método dialético considera que
nenhum fenômeno da natureza pode ser compreendido, quando encarado
isoladamente, fora dos fenômenos circundantes; porque, qualquer fenômeno, não
importa em que domínio da natureza, pode ser convertido num contra-senso quando
considerado fora das condições que o cercam, quando destacado destas condições;
ao contrário, qualquer fenômeno pode ser compreendido e explicado, quando
considerado do ponto de vista de sua ligação indissolúvel com os fenômenos que
o rodeiam, quando considerado tal como ele é, condicionado pelos fenômenos que
o circundam”.
Politzer
et al. (s.d.:38-9) citam dois exemplos práticos, referentes à primeira lei do
método dialético. Determinada mola de metal não pode ser considerada à parte do
universo que a rodeia. Foi produzida pelo homem (sociedade) com metal extraído
da terra (natureza). Mesmo em repouso, a mola não se apresenta independente do
ambiente: atuam sobre ela a gravidade, o calor, a oxidação etc., condições que
podem modificá-la, tanto em sua posição quanto em sua natureza (ferrugem). Se
um pedaço de chumbo for suspenso na mola, exercerá sobre ela determinada força,
distendendo-a até seu ponto de resistência: o peso age sobre a mola que também
age sobre o peso; mola e peso formam um todo, em que há interação e conexão
recíproca. A mola é formada por moléculas ligadas entre si por uma força de
atração de tal forma que, além de certo peso, não podendo distender-se mais, a
mola se quebra, o que significa o rompimento da ligação entre determinadas
moléculas. Portanto, a mola não distendida, a distendida e a rompida
apresentam, de cada vez, um tipo diferente de ligações entre as moléculas. Por
sua vez, se a mola for aquecida, haverá uma modificação de outro tipo entre as
moléculas (dilatação). “Diremos que, em sua natureza e em suas deformações
diversas, a mola se constitui por interação dos milhões de moléculas de que se
compõe. Mas a própria interação está condicionada às relações
existentes entre a mola (no seu conjunto) e o meio ambiente: a mola e o meio
que a rodeia formam um todo; há entre eles ação recíproca.”
O
segundo exemplo enfoca a planta, que fixa o oxigênio do ar, mas também
interfere no gás carbônico e no vapor d’água, e essa interação modifica, ao
mesmo tempo, a planta e o ar. Além disso, utilizando a energia fornecida pela
luz solar, opera uma síntese de matérias orgânicas, desenvolvendo-se. Ora, esse
processo de desenvolvimento transforma, também, o solo. Portanto, a planta não
existe a não ser em unidade e ação recíproca com o meio ambiente.
Em
resumo, todos os aspectos da realidade (da natureza ou da sociedade) prendem-se
por laços necessários e recíprocos. Essa lei leva à necessidade de avaliar uma
situação, um acontecimento, uma tarefa, uma coisa, do ponto de vista das
condições que os determinam e, assim, os explicam.
MUDANÇA DIALÉTICA
Todas
as coisas implicam um processo, como já vimos. Esta lei é verdadeira
para todo o movimento ou transformação das coisas, tanto para as reais
quanto para seus reflexos no cérebro (idéias). Se todas as coisas e idéias
se movem, se transformam, se desenvolvem, significa que constituem
processos, e toda extinção das coisas é relativa, limitada, mas seu
movimento, transformação ou desenvolvimento é absoluto. Porém,
ao unificar-se, o movimento absoluto coincide com o repouso absoluto.
Todo
movimento, transformação ou desenvolvimento opera-se por meio das
contradições ou mediante a negação de uma coisa – essa negação se refere à
transformação das coisas. Dito de outra forma, a negação de uma coisa é o
ponto de transformação das coisas em seu contrário. Ora, a negação, por
sua vez, é negada. Por isso se diz que a mudança dialética é a negação da
negação.
A
negação da negação tem algo positivo, tanto do ponto de vista da lógica, no
pensamento, quanto da realidade: sendo negação e afirmação noções polares,
a negação da afirmação implica negação, mas a negação da negação implica
afirmação. “Quando se nega algo, diz-se não. Esta, a primeira negação.
Mas, se se repete a negação, isto significa sim. Segunda negação. O
resultado é algo positivo” (Thalheimer, 1979:92).
Uma
dupla negação em dialética não significa o restabelecimento da afirmação
primitiva, que conduziria de volta ao ponto de partida, mas resulta numa
nova coisa. O processo da dupla negação engendra novas coisas ou
propriedades: uma nova forma que suprime e contém, ao mesmo tempo, as
primitivas propriedades. Como lei do pensamento, assume a seguinte forma:
o ponto de partida é a tese, proposição positiva; essa proposição se nega
ou se transforma em sua contrária – a proposição que nega a primeira é a
antítese e constitui a segunda fase do processo; quando a segunda proposição,
antítese, é, por sua vez, negada, obtém-se a terceira proposição ou síntese,
que é a negação da tese e antítese, mas por intermédio de uma proposição
positiva superior – a obtida por meio de dupla negação.
A
união dialética não é uma simples adição de propriedades de duas coisas
opostas, simples mistura de contrários, pois isto seria um obstáculo ao
desenvolvimento. A característica do desenvolvimento dialético é que
ele prossegue através de negações.
Exemplo:
toma-se um grão de trigo. Para que ele seja o ponto de partida de um processo
de desenvolvimento, é posto na terra. Com isso o grão de trigo desaparece,
sendo substituído pela espiga (primeira negação – o grão de trigo desapareceu,
transformando-se em planta). A seguir, a planta cresce, produz, por sua vez,
grãos de trigo e morre (segunda negação – a planta desaparece depois de
produzir não somente o grão, que a originou, mas também outros grãos que podem,
inclusive, ter qualidades novas, em pequeno grau; mas as pequenas modificações,
pela sua acumulação, segundo a teoria de Darwin, podem originar novas
espécies). Portanto, a dupla negação, quando restabelece o ponto de partida
primitivo, ela o faz a um nível mais elevado, que pode ser quantitativa ou
qualitativamente diferente (ou ambas).
Segundo
Engels (ln: Politzer, 1979:202), “para a dialética não há nada de definitivo,
de absoluto, de sagrado; apresenta a caducidade de todas as coisas e em todas
as coisas e, para ela, nada existe além do processo ininterrupto do devir e do
transitório”. Nada é sagrado significa que nada é imutável, que nada escapa ao
movimento, à mudança. Devir expressa que tudo tem uma “história”. Tomando como
exemplo uma maçã e um lápis, veremos que a maçã resulta da flor, que resulta da
árvore – macieira – e que, de fruto verde, a maçã passa a madura, cai,
apodrece, liberta sementes que, por sua vez, darão origem a novas macieiras, se
nada interromper a seqüência. Portanto, as fases se sucedem, necessariamente,
sob o domínio de forças internas que chamaremos de autodinamismo. Por sua
vez, para que haja um lápis, uma árvore tem de ser cortada, transformada em
prancha, adicionando-lhe grafite, tudo sob a intervenção do homem. Dessa forma,
na “história” do lápis, as fases se justapõem, mas a mudança não é dialética, é
mecânica. Assim, “quem diz dialética, não diz só movimento, mas, também,
autodinamismo” (Politzer, 1979:205).
PASSAGEM DA QUANTIDADE À QUALIDADE
Trata-se
aqui de analisar a mudança contínua, lenta ou a descontínua, através
de “saltos”. Engels (ln: Politzer, 1979:255) afirma que, “em certos graus
de mudança quantitativa, produz-se, subitamente, uma conversão
qualitativa”. E exemplifica com o caso da água. Partindo, por exemplo, de
20°, se começarmos a elevar sua temperatura, teremos, sucessivamente, 21°,
22°, 23° … 98°. Durante este tempo, a mudança é contínua Mas se elevarmos
ainda mais a temperatura, alcançamos, 99°, mas, ao chegar a 100°, ocorre
uma mudança brusca, qualitativa. A água transforma-se em vapor.
Agindo ao contrário, esfriando a água, obteríamos 19º, 18° … 1°. Chegando
a 0º, nova mudança brusca, a água se transforma em gelo. Assim, entre 1° e
99°, temos mudanças quantitativas. Acima ou abaixo desse limite, a mudança
é qualitativa.
Dessa
forma, a mudança das coisas não pode ser indefinidamente
quantitativa: transformando-se, em determinado momento sofrem mudança
qualitativa. A quantidade transforma-se em qualidade.
Um
exemplo, na sociedade, seria o do indivíduo que se apresenta como
candidato, a determinado mandato. Se o número de votos necessário para que
seja eleito é 5.000, com 4.999 continuaria a ser apenas um candidato,
porque não é eleito. Mas se recebesse um voto a mais, a mudança
quantitativa determinaria a qualitativa: de candidato, tornar-se-ia um eleito.
Da mesma forma, se um vestibulando necessita de 70 pontos para ser
aprovado, com 69 será apenas um indivíduo que prestou exame vestibular, mas,
com 70, passará a universitário.
Denominamos
de mudança quantitativa o simples aumento ou diminuição de quantidade. Por
sua vez, a mudança qualitativa seria a passagem de uma qualidade ou de
um estado para outro. O importante é lembrar que a mudança qualitativa não
é obra do acaso, pois decorre necessariamente da mudança quantitativa;
voltando ao exemplo da água, do aumento progressivo do calor ocorre a
transformação em vapor, a 100°, supondo-se normal a pressão atmosférica. Se ela
mudar, então, como tudo se relaciona
(primeira lei da dialética), muda também o ponto de ebulição. Mas para dado
corpo e certa pressão atmosférica, o ponto de ebulição será sempre o
mesmo, demonstrando que a mudança de qualidade não é uma ilusão: é um fato
objetivo, material, cuja ocorrência obedece a uma lei natural. Em
conseqüência, é previsível: a ciência pesquisa (e estabelece) quais são as
mudanças de quantidade necessárias para que se produza dada mudança de
qualidade.
Segundo
Stalin (ln: Politzer et al., s.d.:58), “em oposição à metafísica, a
dialética considera o processo de desenvolvimento, não como um simples
processo de crescimento, em que as mudanças quantitativas não chegam a se
tomar mudanças qualitativas, mas como um desenvolvimento que passa, das
mudanças quantitativas insignificantes e latentes, para as mudanças
aparentes e radicais, as mudanças qualitativas. Por vezes, as mudanças
qualitativas não são graduais, mas rápidas, súbitas, e se operam por saltos
de um estado a outro; essas mudanças não são contingentes, mas
necessárias; são o resultado da acumulação de mudanças quantitativas
insensíveis e graduais”.
Essa
colocação de Stalin não quer dizer que todas as mudanças qualitativas
se operam em forma de crises, explosões súbitas. Há casos em que a
passagem para a qualidade nova é realizada através de mudanças
qualitativas graduais, como ocorre com as transformações de uma língua.
INTERPENETRAÇÃO DOS
CONTRÁRIOS
Considerando
que toda realidade é movimento, e que o movimento, sendo universal, assume
as formas quantitativas e qualitativas, necessariamente ligadas entre si e
que se transformam uma na outra, a pergunta que surge é: qual o motor da
mudança e, em particular, da transformação da quantidade em qualidade ou
de uma qualidade para outra nova?
Politzer
et al. (s.d.:70-l), citando Stalin, indicam que, “em oposição à metafísica,
a dialética parte do ponto de vista de que os objetos e os fenômenos da
natureza supõem contradições internas, porque todos têm um lado negativo e
um lado positivo, um passado e um futuro; todos têm elementos que
desaparecem e elementos que se desenvolvem; a luta desses contrários, a luta
entre o velho e o novo, entre o que morre e o que nasce, entre o que
perece e o que evolui, é o conteúdo interno do processo de
desenvolvimento, da conversão das mudanças quantitativas em mudanças
qualitativas”.
Estudando-se
a contradição, como princípio do desenvolvimento, é possível destacar seus
principais caracteres:
1) a
contradição é interna – toda realidade é movimento e não há
movimento que não seja conseqüência de uma luta de contrários, de sua
contradição interna, isto é, essência do movimento considerado e não
exterior a ele.
Exemplo:
a planta surge da semente e o seu aparecimento implica o
desaparecimento da semente. Isto acontece com toda a realidade: se ela
muda, é por ser, em essência, algo diferente dela. As contradições
internas é que geram o movimento e o desenvolvimento das coisas;
2) a
contradição é inovadora – não basta constatar o caráter interno da
contradição. É
necessário, ainda, frisar que essa contradição é a luta entre o velho
e o novo, entre o que morre e o que nasce, entre o que perece e o que se
desenvolve.
Exemplo: é na criança e contra ela que cresce o adolescente; é
no adolescente e contra ele que amadurece o adulto. Não há vitória sem
luta. “O dialético sabe que, onde se desenvolve uma contradição, lá está a
fecundidade, lá está a presença do novo, a promessa de sua
vitória” (Politzer et al., s.d.:74);
3) unidade dos contrários – a
contradição encerra dois termos que se opõem: para isso, é preciso que
seja uma unidade, a unidade dos contrários.
Exemplos:
existe, em um dia, um período de luz e um período de escuridão. Pode ser
um dia de 12 horas e uma noite de 12 horas. Portanto, dia e noite são dois
opostos que se excluem entre si, o que não impede que sejam iguais e
constituam as duas partes de um mesmo dia de 24 horas. Por sua vez, na
natureza existem o repouso e o movimento, que são contrários entre si.
Para o físico, entretanto, o repouso é uma espécie de movimento e,
reciprocamente, o movimento pode ser considerado como uma espécie de
repouso. Portanto, existe unidade entre os contrários, apresentando-os em
sua unidade indissolúvel.
“Essa
unidade dos contrários, essa ligação recíproca dos contrários, assume
um sentido particularmente importante quando, em dado momento do processo
os contrários se convertem um no outro” (o dia se transforma em noite e
vice-versa); “a unidade dos contrários é condicionada, temporária,
passageira, relativa. A luta dos contrários, que, reciprocamente, se
excluem, é absoluta, como absolutos são o desenvolvimento e o
movimento” (Politzer et al. s.d.:77-9).
REFERÊNCIAS:
POLITZER,
Georges. Princípios elementares de filosofia. 9. ed. Lisboa: Prelo, 1979.
Parte IV, Capítulos 1,2,3,4 e 5.
POLITZER,
Georges et al. Princípios fundamentais de filosofia. São Paulo: Hemus,
s.d. Parte I, Capítulos 1, 2, 3,4, 5, 6 e 7.
THALHEIMER,
August. Introdução ao materialismo dialético. São Paulo: Ciências Humanas,
1979. Capítulo 10.