Desde que a carranca de Jânio Quadros substituiu o sorriso de Juscelino Kubitschek em 1961, o gabinete presidencial já hospedou napoleões de hospício, generais de exército da salvação, perfeitas cavalgaduras, messias de gafieira, gatunos patológicos, vigaristas provincianos e outros exotismos da fauna brasileira. A rotina da anormalidade ─ que seria retomada por Lula, um ex-operário metalúrgico que acha leitura pior que exercício em esteira, e mantida por Dilma Rousseff, primeira mulher a exercer o cargo (e provavelmente a primeira figura a governar um país sem conseguir expressar-se de modo inteligível) ─ só foi interrompida entre 1° de janeiro de 1995 e 31 de dezembro de 2002, quando o Palácio do Planalto abrigou Fernando Henrique Cardoso. A soma e o resto ─ um olhar sobre a vida aos 80 anos (Civilização Brasileira; 195 páginas; 29,90 reais) confirma que foi FHC o ponto fora da curva. Lula e Dilma são duas formidáveis singularidades, mas parecem à vontade na galeria de retratos que os tornou vizinhos de parede de Jânio, João Goulart, Emilio Medici, João Figueiredo, José Sarney, Fernando Collor ou Itamar Franco. Todos executam harmoniosamente a partitura da ópera do absurdo. O acorde dissonante é Fernando Henrique, constata quem ouve as mais de 10 horas de lembranças, reflexões e desabafos reunidas no livro organizado por Miguel Darcy de Oliveira.
Eleitos pelo voto popular ou impostos pelo regime militar, quase todos os ex-presidentes têm tudo a ver com o Brasil dos 14 milhões de analfabetos, dos 50 milhões que não compreendem o que acabaram de ler nem conseguem somar dois mais dois, da imensidão de miseráveis embrutecidos pela ignorância. Tal paisagem ajuda a entender por que tantos brasileiros se dobraram a populistas sedutores ou foram dobrados por autoritários fardados. E torna especialmente intrigante a passagem pela Presidência de um intelectual brilhante, exemplarmente democrata, que escreveu muitos livros e fala sem espancar a língua portuguesa. A leitura de A soma e o resto explica alguma coisa, mas acentua a suspeita de que Fernando Henrique tinha tudo para não ser presidente do Brasil da virada do século.
“Este talvez seja o livro mais espontâneo que já publiquei”, avisa FHC. É mesmo: a transcrição quase literal das falas resultou numa obra sem parentesco formal com a escrita sofisticada (e eventualmente impenetrável) do sociólogo mundialmente respeitado. Tal opção cobrou seu preço em redundâncias, raciocínios que pedem mais espaço e histórias interrompidas. Esses pecados veniais são amplamente compensados por revelações que só ocorrem em diálogos sem gravata. Avesso a derramamentos e confidências, FHC nunca foi tão longe nas viagens íntimas, sobretudo as que o levam a reencontrar os pais e os avós. Aos 80 anos, completados em 18 de junho, ele enfim se animou a esboçar o retrato de um futuro presidente quando menino. Acabou tornando bem mais nítidos os contornos do adulto. “Sou cartesiano, mas com pitadas de candomblé”, informa. “Acasos, acidentes, escolhas, capacidade para assumir riscos… Os pontos de inflexão na minha trajetória são um misto de tudo isso”.
A frase se ampara na trajetória do professor universitário que disputou a primeira eleição aos 48 anos, virou suplente de senador, substituiu o titular em 1982, perdeu a prefeitura de São Paulo para Jânio Quadros em 1985, conseguiu outro mandato no Senado um ano mais tarde e já se conformara com a ideia de tentar uma vaga na Câmara dos Deputados, em 1994, quando o presidente Itamar Franco decidiu que seu chanceler deveria ser ministro da Fazenda. Os acasos e acidentes o colocaram frente a frente com a inflação de três dígitos. Coisas do candomblé. E então o cartesiano entrou em ação. Escolheu uma equipe de economistas excepcionais, comandou a implantação do Plano Real, rebaixou a inflação a porcentagens europeias e virou presidente. Por oito anos.
“É a curiosidade que me move”, diz. “O sentido que dei à minha vida foi tentar perceber o que vem de novo por aí”. Essa curiosidade permanente o levaria a inventar, de volta à planície, a versão brasileira do ex-presidente surgida nos Estados Unidos em 1951, quando a 22ª emenda estabeleceu o limite de dois mandatos. Nesta primavera, por exemplo, José Sarney e Fernando Collor agonizam no Senado e Lula escolhe candidatos a prefeito. Fernando Henrique se reúne com os Elders, grupo de ex-governantes fundado por Nelson Mandela, protagoniza um documentário sobre o problema das drogas, busca soluções para o Oriente Médio, escreve livros e coleciona afagos até da presidente Dilma Rousseff. No Brasil, quem conheceu o coração do poder não consegue respirar longe das urnas. FHC deixou a política miúda para, sem sair da vida, entrar na história.
Eleitos pelo voto popular ou impostos pelo regime militar, quase todos os ex-presidentes têm tudo a ver com o Brasil dos 14 milhões de analfabetos, dos 50 milhões que não compreendem o que acabaram de ler nem conseguem somar dois mais dois, da imensidão de miseráveis embrutecidos pela ignorância. Tal paisagem ajuda a entender por que tantos brasileiros se dobraram a populistas sedutores ou foram dobrados por autoritários fardados. E torna especialmente intrigante a passagem pela Presidência de um intelectual brilhante, exemplarmente democrata, que escreveu muitos livros e fala sem espancar a língua portuguesa. A leitura de A soma e o resto explica alguma coisa, mas acentua a suspeita de que Fernando Henrique tinha tudo para não ser presidente do Brasil da virada do século.
“Este talvez seja o livro mais espontâneo que já publiquei”, avisa FHC. É mesmo: a transcrição quase literal das falas resultou numa obra sem parentesco formal com a escrita sofisticada (e eventualmente impenetrável) do sociólogo mundialmente respeitado. Tal opção cobrou seu preço em redundâncias, raciocínios que pedem mais espaço e histórias interrompidas. Esses pecados veniais são amplamente compensados por revelações que só ocorrem em diálogos sem gravata. Avesso a derramamentos e confidências, FHC nunca foi tão longe nas viagens íntimas, sobretudo as que o levam a reencontrar os pais e os avós. Aos 80 anos, completados em 18 de junho, ele enfim se animou a esboçar o retrato de um futuro presidente quando menino. Acabou tornando bem mais nítidos os contornos do adulto. “Sou cartesiano, mas com pitadas de candomblé”, informa. “Acasos, acidentes, escolhas, capacidade para assumir riscos… Os pontos de inflexão na minha trajetória são um misto de tudo isso”.
A frase se ampara na trajetória do professor universitário que disputou a primeira eleição aos 48 anos, virou suplente de senador, substituiu o titular em 1982, perdeu a prefeitura de São Paulo para Jânio Quadros em 1985, conseguiu outro mandato no Senado um ano mais tarde e já se conformara com a ideia de tentar uma vaga na Câmara dos Deputados, em 1994, quando o presidente Itamar Franco decidiu que seu chanceler deveria ser ministro da Fazenda. Os acasos e acidentes o colocaram frente a frente com a inflação de três dígitos. Coisas do candomblé. E então o cartesiano entrou em ação. Escolheu uma equipe de economistas excepcionais, comandou a implantação do Plano Real, rebaixou a inflação a porcentagens europeias e virou presidente. Por oito anos.
“É a curiosidade que me move”, diz. “O sentido que dei à minha vida foi tentar perceber o que vem de novo por aí”. Essa curiosidade permanente o levaria a inventar, de volta à planície, a versão brasileira do ex-presidente surgida nos Estados Unidos em 1951, quando a 22ª emenda estabeleceu o limite de dois mandatos. Nesta primavera, por exemplo, José Sarney e Fernando Collor agonizam no Senado e Lula escolhe candidatos a prefeito. Fernando Henrique se reúne com os Elders, grupo de ex-governantes fundado por Nelson Mandela, protagoniza um documentário sobre o problema das drogas, busca soluções para o Oriente Médio, escreve livros e coleciona afagos até da presidente Dilma Rousseff. No Brasil, quem conheceu o coração do poder não consegue respirar longe das urnas. FHC deixou a política miúda para, sem sair da vida, entrar na história.