Retrato
contundente do impasse social brasileiro
Quase
dois irmãos, de Lucia Murat, é sobretudo um filme sobre conflitos. Conflito
entre dois amigos de infância cujas vidas correram paralelas em similitudes e
diferenças. Conflito entre caminhos que, como assinalou Borges, se bifurcam,
pontuando a distância que há entre os sonhos que alimentamos e seus desenhos
concretos. Conflito, enfim, entre duas épocas – o final dos anos 60, ápice
autoritário da ditadura militar, e os dias de hoje, quando o país encurrala-se
no impasse aparentemente sem solução do crescente poder e sedução do
narcotráfico.
Os
dois amigos, no caso, são Miguel (Caco Ciocler) e Jorge (Flavio Bauraqui), que
se conheceram ainda crianças devido ao apreço entre seus pais – o do primeiro,
um intelectual apaixonado pela cultura popular; o do segundo, um sambista negro
e morador do morro. A ponte cultural sugerida já no princípio do filme é, pois,
a união possível entre esses dois lados da frágil moeda social brasileira – e
também o ponto de partida para a diretora investigar de que maneira acabamos
chegando ao dilema que ora nos aflige.
A
trajetória de Miguel e Jorge será acompanhada ao longo de suas histórias
pessoais, sempre conectadas a um fundo político e centradas em dois momentos
básicos: a convivência na Ilha Grande, onde foram enquadrados na mesma Lei de
Segurança Nacional - respectivamente por motivos políticos e por assalto - e o
reencontro na atualidade, quando um virou deputado federal e o outro, líder do
Comando Vermelho. Murat repisa a tese de que o convívio de detentos comuns com
os articulados representantes dos movimento de esquerda corroborou para o
nascimento do chamado ‘crime organizado’. E renova, agora através da paixão da
filha adolescente de Miguel pelo ritmo do funk e por um jovem traficante, o
paradoxal vínculo de repúdio e fascínio que fração dos segmentos mais estudados
mantém com relação ao que é marginal.
Assim,
mais do que fazer um simples recorte a respeito de certos aspectos do Brasil
sob a mão pesada dos militares, a diretora expõe dilemas que nos flagelam hoje,
com a cisão entre a classe média insegura, refém do próprio individualismo, e o
imenso contingente de pobres que, cada vez mais afeitos aos signos do consumo,
optam por trocar anos de vida por algum glamour, nem que seja meramente local.
Um glamour cujo financiamento é feito pela própria classe média, num
moto-contínuo sem freio ou solução imediata. Esse dois mundos, que se esbarram
com progressiva freqüência, são muito bem retratados no roteiro, assinado em
parceria por Murat e pelo escritor Paulo Lins, ela ex-militante política, ele
autor do romance Cidade de Deus.
Com
uma competência técnica que (felizmente) não abdica da contundência, Quase dois
irmãos explicita a conivência policial, a coexistência compulsória da
comunidade com os criminosos, a violência gratuita de quem se crê onipotente,
todos estes elementos que contribuem para o mérito do filme de não enveredar
por otimismos cândidos, nem apontar dedos para nichos exclusivos. Pelo
contrário. Se Murat concede ao Estado sua parcela de culpa, em contrapartida
não livra a cara o indivíduo - cuja imagem, na produção, faz lembrar a
“superfluidade” conceituada pela grande Hannah Arendt. Uma imagem que esboça
impotência acomodada, como se nada que se diga, se queira ou se faça vá
importar para a sociedade.
Entre
as atuações, destaque para os elencos dos grupos Nós do Morro e Nós do Cinema,
que representam os jovens do tráfico, e para Flavio Bauraqui, no ponto exato
como o estrepitado Jorge. Merece citação a sensacional seqüência em que, diante
da lancinante dor-de-cotovelo do amigo, ainda dentro da prisão, Jorge o
consola, e consegue transformar a situação essencialmente dramática numa
verdadeira catarse. O trabalho de Ciocler é prejudicado pelos traços um tanto
estereotipados do militante de esquerda sessentista. Isso, embora seja possível
especular se alguns deles não constituíam de fato estereótipos em si.
Em
meio a tantas qualidades, é preciso salientar que Quase dois irmãos por vezes
esbarra no didatismo e chega a abusar de metáforas à beira do lugar-comum. Um
bom exemplo é a passagem em que os detentos da Ilha Grande propõem – e
constróem – um muro que a partir de determinado momento dividirá o pavilhão
entre presos políticos e os presos comuns. Desnecessária, a alegoria acentua o
que já está bastante claro para o espectador.
São,
entretanto, problemas menores num filme tão urgente quanto o estado de coisas
que, mais do que apenas denunciar, procura compreender, numa abordagem à beira
do documental, muito valorizada pela fotografia de Jacob Solitrenick. A câmera
na mão possibilita a agilidade e o vigor adequados à trama. E, em alguns
momentos, se permite vôos para além do realismo. É o que acontece num
plano-síntese no qual Jorge, já alçado ao comando do tráfico, descansa em sua
cela, coberto pela sombra das grades em contraluz. Sugestão sutil de que dentro
da atual perspectiva não há liberdade possível; de que sua clausura estende-se
para além do presídio, e o acompanhará aonde esteja ou para onde vá. Assim como
a de Miguel. E infelizmente, talvez, como a de cada um de nós