"A política de um Estado
está na sua geografia", afirmou Napoleão Bonaparte com base na sua leitura
de Montesquieu e na experiência como militar. Esta sucinta e polêmica frase de
uma certa maneira sintetiza a questão sugerida no tema desta prova, que à
primeira vista é simples, mas que, na realidade, embaralha ou emaranha duas
renitentes problemáticas da história da geografia: as (possíveis) diferenças
entre geografia política e geopolítica e a (pretensa) oposição entre uma
abordagem determinista e uma outra possibilista.
Como desfazer ou esmiuçar
esse imbróglio?
Pensamos ser imprescindível
retomar brevemente as origens e a evolução da geografia política e da
geopolítica, que em vários momentos se imbricaram ou se identificaram, e, em
outras ocasiões, e apartaram de forma conflituosa. E também recordar o porquê
dessa distinção entre determinismo e possibilismo, que por sinal foi iniciada a
partir de uma determinada leitura – francesa – da obra do iniciador ou
sistematizador da geografia política moderna, Friedrich Ratzel. Em seguida
iremos avaliar em que medida essa distinção e esses rótulos ainda são válidos
para a geopolítica e as suas relações ou identificações com a geografia
política.
Sabemos que o estudo
geográfico da política foi redefinido ou reestruturado por Ratzel em 1897. Ao
escrever e publicar a obra Politische Geographie [Geografia política],
Ratzel, que evidentemente não foi pioneiro no uso desse rótulo, sistematizou uma
leitura espacial da política e ao mesmo tempo reformulou a maneira pela qual a
ciência geográfica abordava o fenômeno político. Foi justamente esse escrito de
Ratzel que suscitou uma forte reação francesa, que pouco a pouco construiu um
inimigo teórico, a "escola geográfica determinista germânica", que teria em
Ratzel o seu mentor. Tanto o sociólogo Émile Durkheim, in L’Année
sociologique de 1898, quanto o historiador-geógrafo Paul Vidal de La
Blache, in Annales de géographie, número VII, também de 1898, teceram
ácidas críticas às ideias ratzelianas da vinculação necessária entre o “solo”
(espaço físico, ou melhor, território) e o Estado, em especial a dependência
deste em relação àquele e o crescimento estatal sendo identificado com a
expansão territorial. Eles assinalaram um exagero e um dogmatismo nas
vinculações lógicas operadas por Ratzel, enxergando nelas um determinismo
estreito.
Mas foi o historiador – e
amigo de La Blache – Lucien Febvre, na sua monumental obra La Terre et
l’evolution humaine, editada em 1922, quem criou de forma mais acabada e
sistematizada a idéia da existência de duas "escolas geográficas" antagônicas,
uma "determinista" e simbolizada por Ratzel, e a outra "possibilista” e
capitaneada por La Blache.
O contexto histórico da
época ajudou muito na expansão e popularização dessa construção teórica. Em
primeiro lugar, cabe lembrar da secular rivalidade franco-alemã (ou prussiana)
no crepúsculo do século XIX, com a derrota francesa em 1870-1, fato ainda
dolorosamente nítido na consciência de La Blache e de Durkheim, que o
vivenciaram. Em segundo lugar, a Primeira Guerra Mundial, que mais uma vez
colocou a França e a Alemanha em lados opostos. E, em seguida, a ascensão do
nazismo e a criação e notável difusão da "geopolítica alemã" dos anos 1920, 30 e
40, em especial ao redor da Zeitschrift für Geopolitik [Revista de
Geopolítica], editada pelo general Karl Haushofer, que contou com a colaboração
de inúmeros geógrafos (embora também historiadores, cientistas políticos,
militares, juristas, etc), os quais por diversas vezes e de diferentes maneiras,
reproduziram ou se apropriaram de determinadas idéias ratzelianas, forneceram
mais lenha para a fogueira das críticas à escola determinista germânica e a sua
pretensa vinculação com a geopolítica.
O clima de rivalidade, de
disputa de poder entre França e Alemanha, além do fato de que os colaboradores
daquele periódico freqüentemente repercutiam as ideias nazistas de uma "raça
ariana superior" e do "destino manifesto" da Alemanha em se tornar uma grande
potência mundial, foram elementos determinantes no desenrolar dessa construção
segundo a qual existiria uma escola geográfica determinista e que ela teria
gerado a geopolítica de Haushofer e seus colaboradores. Até mesmo um importante
geógrafo alemão da época, Leo Waibel, que fugiu de seu país devido ao regime
nazista e se exilou nos Estados Unidos (embora tenha vivido alguns anos no
Brasil), no afã de desancar aquela geopolítica germânica bastante identificada
com o totalitarismo, acabou meio apressadamente rotulando-a como um "produto da
escola geográfica determinista" e bastante diferente de uma outra abordagem
geográfica –inclusive de geografia política – mais aberta e liberal, que a seu
ver não seria tanto simbolizada por La Blache e sim pelo seu mestre Alfred
Hettner. A partir daí, e em especial com o desfecho da Segunda Guerra Mundial,
essa identificação do determinismo com a geopolítica e desta última com os
regimes totalitários acabou por predominar durante algumas décadas, sendo
repetida, embora com algumas nuanças, por importantes geógrafos como Jacques
Ancel, Pierre George, Jean Gottman e inúmeros outros autores, inclusive não
geógrafos (historiadores, cientistas políticos, sociólogos), tanto na França
como em outros países como o Brasil, os Estados Unidos, a Argentina, etc.
Sem dúvida que aquela
geopolítica alemã dos anos 1920, 30 e 40 foi racista e dogmática, além de
manifestar uma clara simpatia pelo nazi-facismo. E também é inegável que podemos
encontrar facilmente nas obras de Ratzel, notadamente naquele mencionado livro
seminal, uma série de afirmações que exageram a importância do tamanho do
território para o poderio de um Estado-nação, as quais, mesmo tendo um fundo de
verdade, inflam demais o peso do espaço físico para o advento e o
desenvolvimento da civilização e em particular do Estado moderno, visto por
Ratzel como o coroamento do processo civilizatório.
Mas será que toda
geopolítica pode ser vista dessa mesma forma? Não existiriam outras
geopolíticas? E o rótulo determinismo seria de fato apropriado para Ratzel e,
mais ainda, para toda a tradição geográfica alemã do final do século XIX e da
primeira metade do século XX? E seria possível afirmar que existe uma forte
clivagem entre uma geopolítica, que seria determinista, e a geografia política,
que seria possibilista?
Acreditamos que as coisas
são bem menos claras ou rigidamente definidas, que essas duas leituras são
estereotipadas e exageram demais tanto na distinção entre geografia política e
geopolítica – que existe sim, mas de forma problemática e polêmica –, quanto na
rígida separação entre uma visão determinista e uma outra
possibilista.
Vamos começar por esta
última questão, a do determinismo versus o possibilismo. Do ponto de
vista da epistemologia, o que significa afinal determinismo?
Claude Raffestin reproduz e
concorda com a afirmativa de René Thom, que prefaciou a célebre obra de Laplace
– "Ensaio filosófico sobre a probabilidade" –, segundo a qual "A ciência
[moderna] é determinista" na medida em que busca uma ordem, uma
regularidade, um encadeamento entre os fenômenos, uma forma mesmo que complexa
de causalidade, sem a qual o conhecimento científico não seria
possível(1)
Quando lemos algum físico
teórico importante – Einstein, por exemplo, ou Max Plank ou ainda Heisemberg –
logo constatamos que eles aceitam tranqüilamente o que denominam "princípio do
determinismo", segundo o qual as coisas e os fenômenos são encadeados ou se
influenciam mutuamente, que existem causas – mesmo que muitas vezes
probabilísticas – e efeitos, razões e conseqüências. E até mesmo em Marx podemos
encontrar as "determinações" de um acontecimento ou de um processo, aquele
conjunto de fatores que o originaram ou que o explicam. A discussão mais
pertinente aqui não é sobre o "princípio da determinação" em si, pois sem ele a
ciência, tal como a conhecemos hoje e desde Galileu Galilei, não seria possível,
mas sim sobre o caráter ou a substância dessas determinações ou relações
causais. Alguns cientistas e filósofos – os chamados "realistas" – pensam que
elas seriam inerentes ao real, ao mundo, às coisas e fenômenos. Outros, os
"idealistas", afirmam que no final das contas elas, essas determinações, seriam
um produto da nossa lógica ou da nossa linguagem, mas que, mesmo assim, seriam
imprescindíveis para se conhecer e agir no mundo(2)
O que se criticou muito em
Ratzel – e também, ou principalmente, em autores que se proclamavam como seus
discípulos, como a geógrafa norte-americana Ellen Semple – foi um determinismo
exagerado e estreito, que não buscava causas complexas e sim uma causa única ou
unilateral, que via apenas a importância do meio físico para a sociedade e não
valorizava a criação humana em si, a tecnologia e a (re)produção da natureza.
Mas a critica a esse determinismo estreito – ou visão unilateral, como
preferimos – considerou toda a busca de determinações como equivocada, algo
absurdo e sem sentido do ponto de vista científico. E a contraposição a isso, o
chamado possibilismo, pouco acrescentou a uma antiga discussão filosófica e
científica sobre a originalidade do ser humano, sobre o livre arbítrio e a
liberdade de se criar e fazer coisas novas.
Desde no mínimo Maquiavel, o
criador da idéia moderna de política (e da relativa autonomia do político em
relação ao divino, aos fenômenos físicos etc), por sinal um autor importante
para a obra de Ratzel, que essa questão relativa ao que o ser humano cria e o
que determina a sua ação já vinha avançando bastante. “Julgo feliz aquele que
sabe combinar as suas ações com o sentido [ou "as determinações"] do seu tempo”,
afirmou Maquiavel em O Príncipe, acrescentando ainda que em parte os
acontecimentos (políticos) decorrem de circunstâncias externas e em parte do
livre arbítrio do(s) sujeito(s) que age(m). Ora, seria justamente esta a questão
que permitiria a La Blache ou a Lucien Febvre se contraporem ao raciocínio
causalístico unilateral que eles julgaram haver em Ratzel, complexizando as
"causas" ou motivos das ações ou dos processos políticos – tal como a "evolução
dos Estados", um dos temas prediletos de Ratzel – e incluindo aí o livre
arbítrio dos seres humanos, a tensão entre a lógica (as determinações) e a
política ou o acaso (as indeterminações, a produção do novo).
Tão somente repetir que a
natureza oferece "possibilidades", e que o Homem as aproveita desta ou daquela
maneira, não produz nenhum avanço nessa problemática clássica do maior ou menor
peso das determinações (que não são apenas naturais, diga-se de passagem) frente
à indeterminação ou o livre arbítrio do ser humano. Um geógrafo inglês, numa
obra recente, chegou a afirmar que "A crítica exarcebada ao ‘determinismo
geográfico’ obnubilou ou obscureceu a análise das influências do ambiente sobre
o social"(3). E um professor de história
econômica na Universidade de Harvard, que nos anos 1990 publicou um importante
livro sobre as causas da riqueza e da pobreza das nações, comentou que a
geografia produziu um escasso material sobre as (possíveis) influências da
localização, do meio físico, etc, no desenvolvimento de determinados países
(Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha...) em contraponto ao pouco
desenvolvimento de outros (nações africanas, por exemplo), provavelmente devido
à forte (auto) repressão que sofreu (ou se impôs) a partir dos exageros
"deterministas" de autores como Ellen Semple, que por sinal também foi
professora nessa mesma universidade norte-americana, que depois dela – ou devido
a ela – fechou o seu curso de geografia(4).
Enfim, acreditamos que essa
diferença ou a oposição entre determinismo e possibilismo não procede, não se
sustenta, nem na geografia política versus geopolítica e tampouco na ciência
geográfica em geral, embora possamos encontrar em determinados autores ou obras
– mas não só da geografia e sim da sociologia (exemplo: Victor Cousin), da
filosofia (exemplo: Montesquieu) e de outras ciências humanas – algumas
afirmações que estabelecem nexos ou relações causais simples e estreitas,
unilaterais portanto, e conseqüentemente falsas.
Todavia, permanece a questão
da diferença ou da identidade entre geopolítica e geografia política. Após uma
fase de separação radical no pós-Segunda Guerra Mundial, quando os geógrafos e
demais cientistas sociais exorcizaram a geopolítica, que ficou durante algum
tempo restrita aos círculos militares ou de Estados maiores, surgiu novamente
uma aproximação no final dos anos 1970. Autores como Yves Lacoste e inúmeros
outros redescobriram a geopolítica – ou "as geopolíticas", como algumas vezes se
afirma, com o argumento que seria possível uma "geopolítica crítica", uma
"geopolítica dos dominados", etc. – e proclamaram que no final das contas nunca
existiu qualquer diferenciação substancial – no objeto, nos métodos, nas formas
de abordagem – entre a geografia política e a geopolítica. E a geopolítica, como
afirmou Paul Claval, tornou-se moda a partir dos anos 1980. Inúmeros centros ou
institutos de pesquisas de estratégia e de geopolítica foram criados dentro e
fora das universidades, tanto na Europa como nos Estados Unidos e em vários
outros países, inclusive no Brasil.
Mas o "tornar-se moda" de
que fala Claval nada tem de pejorativo, pois como ele próprio reconhece, a época
atual demanda mais pesquisas e reflexões sobre as relações entre espaço e poder,
sobre os pontos de tensões na superfície terrestre (ou dentro de algum
território nacional), sobre as mudanças na ordem mundial com o final da União
Soviética e do mundo socialista, com a globalização e a formação de "blocos
regionais", com a multiplicações das máfias e dos terrorismos.
Deixemos de lado esse viés
positivista de imaginar que cada ciência se justifica pelo "seu objeto" – como
se a realidade fosse um terreno a ser demarcado e registrado em cartório –, e
pensemos um pouco sobre quem fez e quem faz afinal geopolítica, quem estuda as
relações entre espaço (não apenas físico-natural, mas principalmente
social-produzido) e poder (ou poderes, como diria Foucault), com uma ênfase na
questão do poderio de cada Estado, da competição econômica, político-diplomática
e militar pela hegemonia mundial ou regional. Desde a criação da palavra
geopolítica por Kjeléen no início do século XX – por sinal um não geógrafo que
foi inspirado pela obra de Ratzel, mas que trazia uma importante bagagem de
jurista e historiador – que os nomes mais significativos da geopolítica, tanto a
nível mundial como aqui no Brasil, onde tivemos uma rica tradição nesse setor,
sempre foram e continuam sendo oriundos de diversas áreas: dos meios militares
(Mahan, Haushofer, Mário Travassos, Golbery do Couto e Silva), de juristas
(Kjeléen), de historiadores (Kissinger, Paul Kennedy), de sociólogos ou
cientistas políticos (Fukuyama, Luttuack, Huntington, etc.) e logicamente também
de geógrafos (Mackinder, Spykman e vários outros).
A problemática abordada pela
geopolítica,, ou rotulada como tal, é rica e complexa, é um vastíssimo campo de
estudos, e comporta várias leituras (de "direita" ou de "esquerda", com os
inúmeros matizes, enfatizando mais a indeterminação ou o livre arbítrio ou sendo
"deterministas" naquela sentido estreito, etc.) e abordagens oriundas de
diferentes áreas do conhecimento cientifico. A nosso ver, a geopolítica hoje, a
partir dos anos 1980, configura-se cada vez mais como um campo de estudos
interdisciplinares, como um conjunto de temas estudados isoladamente ou em
equipe por geógrafos, cientistas políticos e sociólogos, historiadores,
juristas, economistas, militares e alguns poucos outros.
A geografia e
conseqüentemente a geografia política possui sim uma autonomia, mesmo que
relativa. Existe portanto uma geografia política independente da geopolítica, e
vice-versa, embora haja uma relação de imbricação profunda, de superposição
parcial entre elas. O geógrafo, em especial o especialista em geografia
política, tem na geopolítica uma de suas preocupações, uma de suas temáticas
essenciais. Só que ele tem outras temáticas ou objetos (geografia eleitoral, por
exemplo, ou mesmo a análise da política do corpo, algo comum nos dias de hoje na
geografia anglo-saxônica) e ao mesmo tempo outros especialistas também
compartilham com ele essa preocupação em entender essa rica problemática
designada geopolítica.