O livro de José Augusto Drummond tem entre
outros méritos o de não ser ambíguo ao dar conta do movimento tenentista. Com
efeito, a tese clássica de Virgínio Santa Rosa segundo a qual os tenentes encarnavam
os anseios mais íntimos das classes médias e constituíram sua primeira
expressão política foi substituída na historiografia e sociologia brasileiras
por argumentos frouxos e explicações ad hoc que de má vontade admite
atenuar a ênfase na.dimensão de classe e permitir algum espaço a fatores
especificamente militares, isto é, institucionais. O resultado tem sido
análises pouco convincentes e claudicantes da perna teórica: sim, os
tenentes traziam um forte componente de classe, mas não se deve
ignorar o processo de socialização nos valores militares; é claro que
representavam os interesses das classes médias, entretanto o Exército é
uma instituição que goza de autonomia em relação à sociedade; como membros da
instituição militar, os tenentes pertenciam a uma categoria que não é
diretamente determinada por critérios de classe, todavia, etc., etc.,
etc. Nem se veja em tais argumentos instâncias de sofisticação teórica ou de
percepção mais aguda de nuances de análise; trata-se simplesmente de carência
de um modelo analítico sólido no qual o peso relativo dos dois fatores — o de
classe e o institucional — esteja adequadamente determinado bem como o modo de
sua operação. Há também uma outra dificuldade: os historiadores e sociólogos
brasileiros nunca souberam muito bem o que fazer com a variável militar;
em última análise remetem-na para o âmbito do Estado diluindo-a em outras
variáveis de tratamento cômodo, até porque a dicotomia Estado/Qualquer Outra
Coisa tem sido usada para tudo explicar nos últimos vinte e poucos anos.
José Augusto Drummond opta claramente pela
análise institucional; isto é, ele remete o tenentismo de volta ao seu
contexto natural, o Exército, e aí procura determinar o seu lugar. Desta opção
decorrem o pressuposto da análise e sua hipótese de trabalho: a)
"Quando digo que os tenentes atuam como militares e que o tenentismo
foi uma forma de militarismo, parto da seguinte suposição: o Exército
Brasileiro — como instituição burocrática permanente — é dotado de autonomia
(organizativa, burocrática, ideológica, de recursos humanos) em relação aos
demais grupos sociais e às demais organizações governamentais" (ps.
22-23); b) "sustentarei que os tenentes quiseram principalmente
lutar pelos interesses do Exército Brasileiro, conforme os entenderam,
atribuindo-lhe um papel especial de arbitragem sobre o sistema político
nacional" (p. 31). Em síntese, os tenentes atuaram em função de
valores da instituição militar simplesmente porque eram militares, e não um
bando de pequenos comerciantes, funcionários públicos, advogados, engenheiros,
etc.; e os militares têm interesses peculiares que não se confundem com os de
qualquer outra categoria social.
Mas aqui começam os problemas com a análise
de José Augusto Drummond. Em primeiro lugar ele supõe que a auto-suficiência de
meios do Exército Brasileiro (toda organização militar moderna tem suas
próprias escolas, critérios peculiares de recrutamento, quadros superiores
próprios, etc) equivale, no plano do comportamento institucional, a autonomia
de ação na esfera política. Ao invés de toma-la como um dado da análise,
José Augusto Drummond deveria ter mostrado que tal equivalência realmente
existia, digamos, em 1922. Ademais, o Autor negligencia o fato de que tal
autonomia não é jamais um atributo, mas uma variável; isto é, não basta dizer
ou supor que o Exército gozava de autonomia, pois a questão é: quanta autonomia?
O suficiente para fazer da instituição militar um ator com projeto próprio ou
para negociar sem maiores injunções com os demais agentes políticos?
Em segundo
lugar, José Augusto Drummond dá crédito excessivo ao organograma organizacional
e o confunde com o comportamento efetivo da instituição militar. É verdade que
o Exército era uma organização burocrática, mas não há porque exagerar na
avaliação do grau em que as variáveis estruturais funcionavam eficientemente; a
imagem que o Autor nos oferece do Exército (ps. 29-30) é a de uma burocracia do
"tipo ideal" na qual a instituição está consolidada no
aparelho governamental, a hierarquia, é rígida e resulta em coesão
interna, os quadros superiores (oficiais) são profissionalizados, as
funções institucionais dentro do aparelho do Estado são específicas, o
ambiente é de convivência profissional intensa, etc. De qual
Exército está falando José Augusto Drummond? Não certamente do Exército
Brasileiro do início do século XX, como quer nos fazer crer o Autor. Aliás, a
leitura mesmo superficial da parte propriamente analítica do livro desconfirma
seus pressupostos teóricos: o que surge das páginas escritas por José Augusto
Drummond está longe de ser uma instituição disciplinada, rigidamente
hierarquizada ou coesa, com funções específicas no plano do comportamento real
ou dotada de clima de intensa convivência profissional. E por que defini
o Exército como instituição burocrática permanente se os próprios
militares, os de ontem e os de hoje, não estão seguros disto, a ponto de
inscrever o "permanente" na Constituição vigente como a buscar abrigo
na letra da lei?
Desejando estudar o Exército como
organização (o que está correto) José Augusto Drummond enfatiza excessivamente
as dimensões internas, estruturais da instituição militar e, por isso,
escorrega numa análise muito formal. Fico sem saber o que têm a estrutura
burocrática do Exército a ver com o tenentismo, e o Autor não tem muito
sucesso em auxiliar-me sobre este ponto. Também é muito formal e demasiadamente
resumido o tratamento que José Augusto Drummond dá à percepção que os tenentes
supostamente tinham do papel do Exército no processo político. Em linhas
gerais, o esquema apresentado é o seguinte (p. 86): a) O poder civil é corrupto
e não se identifica com os interesses da Nação; b) inversamente, o Exército
Brasileiro representa legitimamente as aspirações nacionais; c) o Exército está
em oposição ao poder civil e cabe-lhe assumir uma posição de
"arbitragem" que leve à "regeneração" política do país e
garanta sua própria sobrevivência e autonomia como instituição. Mas o que tem
este esquema de peculiar ao tenentismo?. Eu diria que muito pouco, ou
nada; com alguns acréscimos e alterações menores este mesmo esquema forma a
estrutura básica do pensamento de Góes Monteiro que, por sinal, em nada se identificava
cote os tenentes (além de tê-los combatido com denodo).
Em síntese: José Augusto Drummond optou pela
perspectiva analítica correta, mas não soube desenvolvê-la; ficou nos
enunciados genéricos de um modelo que a teoria organizacional contemporânea há
muito declarou inadequado e demasiado formal. Como conseqüência, as evidências
que o Autor apresenta como "demonstração" de sua hipótese
articulam-se de maneira muito frágil com o pressuposto analítico: os
tenentes procuraram preferencialmente ganhar aliados dentro do Exército e
encontrar uma liderança dentro do quadro de oficiais (ps. 102-103), deflagraram
uma revolta concebida operacionalmente em termos militares (ps. 105; 115), etc.
Estes podem até ser indicadores do caráter militar do movimento tenentista; mas
por não estarem articulados com qualquer concepção do Exército como instituição
(e não apenas do Exército como organização) soam como fragmentos de um tipo de
"explicação por exemplificação” sempre tênues e algo ingênuos.
O livro de José Augusto Drummond é,
entretanto, muito interessante no aspecto estritamente informativo, e o
capítulo sobre a Coluna Prestes é, sem favor, muito bom. O Autor é um
pesquisador competente e fez um bom trabalho de levantamento de fontes. Neste
aspecto o leitor achará o livro muito satisfatório.
O Movimento Tenentista: a Intervenção Política dos Oficiais Jovens (1922-1935)
Autor: José Augusto Drummond, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1986